Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3639/18.4T8PBLA.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: INDEMNIZAÇÃO
DANOS MATERIAIS
JUROS
DECISÃO JUDICIAL
SENTENÇA
CONTRATO DE SEGURO
TRIBUTAÇÃO
IMPOSTO
IRS
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Nada distingue, no plano funcional ou no plano estrutural, a indemnização por danos materiais da indemnização por danos corporais, uma vez que tanto num como noutro caso a indemnização tem o fim de reconstituir a situação que existiria se o facto lesivo não tivesse ocorrido e, tanto num caso como noutro, a indemnização integra os juros devidos desde a citação até ao pagamento, dado que só neste momento se torna possível realizar aquele fim.

II. Assim sendo, os juros de mora respeitantes a indemnização por danos materiais, determinada por decisão judicial, com fundamento em responsabilidade no âmbito de seguro de danos, não estão sujeitos a tributação em sede fiscal, nos termos dos artigos 5.º, n.º 1, al. g), in fine, e 12.º, n.º 1, al. b), do CIRS.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. RELATÓRIO

Recorrente: Companhia de Seguros Fidelidade, S.A.

Recorrida: Auto Industrial, S.A.

1. A Companhia de Seguros Fidelidade veio opor-se, mediante embargos, à execução em que é exequente Auto Industrial, alegando que disponibilizou à exequente o recebimento quer do capital, quer dos juros, ainda antes do trânsito em julgado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido a exequente quem se recusou a recebê-los, com fundamento em que os juros não estavam sujeitos a qualquer retenção de imposto. No entender da executada / embargante, ao recorrer à acção executiva, a exequente excedeu os limites impostos pela boa-fé.

2. A exequente / embargada apresentou contestação, defendendo que os juros que a embargante foi condenada a pagar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não estão sujeitos a qualquer retenção na fonte.

3. Realizado o julgamento, foi proferida sentença a julgar improcedentes os embargos e a determinar o prosseguimento da execução.

4. Inconformada, a executada / embargante apresentou recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra decidido julgar o recurso improcedente e confirmar a decisão da 1.ª instância.

5. Continuando a pugnar pela procedência da sua oposição à execução, vem a executada / embargante interpor recurso de revista, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, al, c), do CPC.

Conclui assim as suas alegações:

DO ACORDÃO DO TRC

1.

O Ac. do TRC sob Revista confirmou a decisão recorrida provinda da 1ª instância, decidindo que os juros legais moratórios não tinham/têm incidência fiscal, que o valor de retenção na fonte foi ilegal, a mora foi criada pela embargante, com recusa legitima da embargada em receber e legitimação não abusiva desta quando dá o Ac. do STJ à execução, legitimando também e ainda a sanção pecuniária compulsória.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

2.

A factualidade definitiva adquirida depois do TRC em sede de reponderação ter aditado o item 6) ao rol dos que já vinham demonstrados da 1ª instância, é exatamente a que transcrevemos supra no corpo das alegações e que aqui damos por inteiramente reproduzida.

SUBSUNÇÃO OPERADA NO AC. DO TRC QUANTO À NÃO SUJEIÇÃO A INCIDÊNCIA FISCAL E RETENÇÃO NA FONTE DOS JUROS MORATÓRIOS

3.

Decidiu o Ac. do TRC que os juros legais moratórios que motivam o diferendo não estão sujeitos a incidência fiscal.

4.

Uma interpretação à letra do preceituado nos artigos 5º e 12º do CIRS aparenta ditar essa solução.

5.

Todavia, sendo impossível a reconstituição “in natura” da situação danosa que atingiu o património da exequente/embargante, tal qual prevista no artigo 562º do CC.,deve o intérprete da lei e decisor, alternativamente, valer-se da correspondente fixação em dinheiro daquela impossível reconstituição, nos termos do artigo 566º do CC.

6.

No âmbito desta operação de fixação em dinheiro, prevista na referida norma, os juros legais moratórios não constituem acréscimo do património do lesado que sofreu o dano, sendo isso sim, um complemento do equivalente pecuniário fixado e que o atualiza.

7.

Refere o Ac. do TRC que não faria sentido isentar de tributação quem recebesse indemnização atualizada na data mais recente atendível pelo Tribunal, nos termos do artigo 566º/2 do CC e tributar outrem que recebesse indemnização, mas atualizada através do mecanismo da incidência da taxa de juros moratórios legais.

8.

No caso, tendo a exequente/embargada sofrido danos nas suas instalações e sendo a reposição ao “statu quo ante” impossível, o Tribunal fixou o equivalente indemnizatório pecuniário, mas reportado à data do sinistro, ou no limite, à data da PI e acrescido de juros para acautelar e compensar a demora própria da tramitação processual, a inflação ou outra circunstância.

9.

Os juros contemplados no segmento decisório, têm a natureza de um capital indemnizatório complementar para compensar o tempo de espera entre o momento da fixação da indemnização em dinheiro prevista no artigo 566º/1 do CC e o momento do efetivo pagamento.

10.

Sendo assim, os juros têm de ser englobados no valor indemnizatório global que é devido ao lesado, nos termos dos artigos 562º e 566º/2 do CC, não consubstanciando rendimento autónomo e acrescido e suscetível de incidência fiscal.

11.

No caso, verificou-se/verifica-se mora “debitoris”, a que a embargante deu causa e jamais mora “creditoris”, e a embargada recusou com razão receber menos do que vinha sentenciado e foi legitimamente que instaurou a execução, sem incorrer em qualquer conduta abusiva quando o fez, e a embargante está adstrita “ope legis” à sanção pecuniária compulsória do artigo 829º-A do CC.

ACORDÃO FUNDAMENTO SUBSUNÇÃO OPERADA

ASPETOS CASUÍSTICOS IDENTITÁRIOS

12.

O Acórdão Fundamento contempla de igual modo uma execução de Ac. do STJ que condenou a ora recorrente a pagar aos exequentes/embargados, indemnização por danos materiais em bens a coberto de contrato de seguro e também acrescida de juros vencidos e vincendos desde a citação até pagamento e sobre as quais a embargante, nos termos análogos também procedeu à retenção na fonte do valor tributário sobre os juros legais moratórios, o que gerou diferendo em tudo igual ao dos presentes autos.

13.

Realça que os juros moratórios decorrentes de indemnização por danos materiais em bens seguros, no âmbito do contrato de seguro e responsabilidade contratual, constituem rendimentos de capital resultantes da dilação do vencimento ou do pagamento deste e por isso sujeitos a tributação fiscal, como estipulam os artigos 5º/1 e º/2 g) 1ª parte do CIRS, estando apenas isentos desta incidência os juros legais moratórios devidos em consequência de lesão corporal, doença ou morte pagos ou atribuídos (artigo12º/1doCIRS) e ao abrigo de contrato de seguro, decisão judicial ou acordo homologado judicialmente (artigo 12º/1 b) do CIRS)

14.

Acentua que os juros moratórios decorrentes de indemnização de danos materiais, constituindo “ope legis” rendimentos da categoria E (de capitais) e sendo a seguradora uma sociedade anónima com contabilidade organizada (artigo 123º do CIRC), está obrigada a proceder à retenção na fonte do valor tributável (artigos 98º e 101º/1 a) do CIRS).

15.

Nesta orientação perfilhada, o Ac. do TRL acentua a força da informação vinculativa da Autoridade Tributária sancionada pelo Despacho de 24/06/2020 da Subdiretora Geral do IR e no caso dos autos, “sub judice”, a recorrente tomou a iniciativa de juntar ao processo Parecer provindo da Autoridade Tributária e com base no qual tinha e tem por prática comum e corrente operar a retenção na fonte de valor tributário com incidência sobre juros de mora derivados de indemnizações por danos materiais devidos no âmbito do contrato de seguro.

16. Considera o Ac. Fundamento que nos termos do artigo 28º da LGT a executada/embargante, com a retenção na fonte da carga fiscal incidente sobre o rendimento de juros de mora vencidos sobre o valor/capital indemnizatório extinguiu a correspondente obrigação sentenciada a seu cargo e por isso decidiu julgar procedente a oposição à execução com consequente extinção desta.

SUBSUNÇÃO NO AC. FUNDAMENTO SUA JUSTEZA CONSEQUÊNCIAS

17.

São evidentes os traços identitários de facto e de direito no que respeita à mesma questão fundamental de direito debatida no Ac. do TRC sob recurso e no Ac. Fundamento.

18.

Tal legítima que a decisão proferida no Ac. do TRC possa ser objeto de apreciação em sede de Revista Excecional, ao abrigo do disposto no artigo 672º/1 c) do CPC, dadas as soluções antípodas que foram tiradas nos dois arestos que frontalmente conflituam.

19.

Salvo o devido respeito a solução adotada no Ac. Fundamento é a que respeita o direito constituído, na medida em que o capital indemnizatório propriamente dito é o valor que torna indemne o lesado e os juros legais moratórios, são frutos desse crédito principal como ensinam Pires de Lima, Antunes Varela e Mário Júlio de Almeida Costa.

20.

E por incrementarem o património do lesado demandam incidência fiscal, com retenção na fonte, de incumbência do devedor por enquadrarem nos rendimentos de capital.

21.

A embargada não tinha razão válida para recusar o recebimento do capital e juros que a recorrente colocou à sua disposição, devolvendo o recibo tornando a execução que instaurou absurda, desnecessária e arbitrária e o mesmo se diga quanto à majoração punitiva de juros (artigo 829º-A do CC) quando, podendo ter recebido aos 28-08-2018 tudo quanto de modo sentenciado lhe era devido, o não fez, gerando uma clara situação de mora “accipiendi”, incorrendo em evidente excesso e abuso de direito (artigo 334º do CC).

22.

Estamos perante decisões da 2ª instância, as quais sobre a mesma questão, emitem pronúncias de sentido inverso, o que não é salutar vistas as coisas à luz da ótica da certeza na aplicação do direito, cabendo ao STJ dirimir este conflito jurisprudencial, revendo o AC do TRC e revogando-o com fundamento na violação da lei substantiva por erro de interpretação e aplicação e erro na determinação das normas aplicáveis.

23.

A revogação do Ac. do TRC impõe a proferição de decisão inversa, em consonância com o recente Ac. Fundamento do TRL, no sentido de que os juros legais moratórios objeto de discussão, têm incidência fiscal tributária e com retenção na fonte, que foi a exequente que agindo em manifesto abuso de direito deu (e ainda dá) causa á mora no pagamento, decidindo julgar procedente a oposição com a consequente extinção da execução que aniquila as demais pretensões da exequente, mormente o valor da invocada sanção pecuniária compulsória e tudo sob as legais consequências.

24.

O Ac. do TRC sob revisão, fez incorreta interpretação e aplicação do que dispõem os artigo 5º e 12º do CIRS, artigos 562º e 566º/2 do CC e artigos 829º-A/4, 763º/1 e 334º todos também do CC e a correta interpretação destes normativos e ainda do que dispõem os artigos 5º/2 g) 1ª parte e artigo 12º/1 do CIRS e artigo 12º/1 b) do CIRS e 123º do CIRC e artigos 98º e 101º/1 a) do CIRS e artigo 28º da LGT ditam a revogação do mesmos e a proferição de decisão que julgue procedente a oposição à execução com a consequente extinção desta e tudo sob as legais consequências”.

Junta cópia do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.05.2021 (Proc. 1875/20.2T8FNC-A.L1-2), que apresenta como Acórdão fundamento.

6. A exequente / embargada apresentou contra-alegações, concluindo pela rejeição do recurso a título de inadmissibilidade ou de improcedência.

7. O Exmo. Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra proferiu despacho com o seguinte teor:

Revista excecional: remeta os autos ao Supremo Tribunal de Justiça (art.672, nº 3, do Código de Processo Civil)”.

8. A presente Relatora proferiu despacho remetendo os autos à Formação, que admitiu a revista excepcional.


*

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão fundamental a decidir, in casu, é a de saber se os juros relativos a uma indemnização por danos materiais, determinada por decisão judicial, com fundamento em responsabilidade no quadro de um contrato de seguro, estão sujeitos a tributação em sede fiscal.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 - Em 11.10.2018, a Exequente deu entrada de requerimento executivo contra a executada, aqui embargante, peticionando o pagamento da quantia de 136 989,68 € (Cento e Trinta e Seis Mil Novecentos e Oitenta e Nove Euros e Sessenta e Oito Cêntimos), sendo 119.815,09 € a título de capital.

2 – A embargada/exequente deu à execução Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, transitado em julgado em 01.10.2018, proferido no âmbito da acção declarativa de condenação que correu termos pela Instância Central Cível ..., J..., e no âmbito do qual, além do mais e no que aqui interessa, a ali Ré Fidelidade foi condenada a pagar à ali Autora Auto Industrial a quantia de 119.815,09 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a citação até integral pagamento.

3 - A citação da Ré, aqui executada, ocorreu em 11.03.2015.

4 - A executada, aos 28/08/2018 remeteu à exequente recibos para imediato pagamento a esta: a) Do valor do capital indemnizatório – 119.815,09 €; b) E do valor dos juros vencidos até 31/08/2018.

5 – A executada procedeu à retenção na fonte, do valor de tributação sobre os juros moratórios sentenciados o que mereceu discordância da exequente, que declinou o recebimento do valor com essa retenção efectuada, por discordar da mesma.

6 – A executada, desde há já vários anos, tinha por prática comum e corrente, operar a retenção na fonte, de valor tributário à taxa de 25%, aplicável ao pagamento de juros de mora derivados de indemnizações por danos materiais devidos no âmbito de contratos de seguro[1].

7 – No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça dado à execução nos autos principais (Acórdão proferido em 12.07.2018, no Proc. 825/15.2T8LRA.C1.S2, disponível em dgsi.pt), confirmou-se a decisão de condenação da executada / ora embargante em indemnização por danos resultantes de desmoronamento parcial de imóvel locado pela exequente / ora embargada, ao abrigo de contrato de seguro de danos que garantia o pagamento dos danos sofridos pelos bens seguros em consequência dos seguintes fenómenos geológicos: aluimentos, deslizamentos, derrocadas e afundamento de terras cobre os prejuízos consequentes ao desmoronamento causado pela movimentação de terras no prédio do réu (causa humana) e pela forte pluviosidade registada (causa natural)[2].

O DIREITO

Resulta da factualidade provada que a seguradora procedeu à retenção na fonte de quantias correspondentes a juros de mora vencidos sobre indemnização por danos materiais cobertos pelo contrato de seguro e a cujo pagamento havia sido condenada por decisão judicial.

Na linha do Tribunal de 1.ª instância, o Acórdão recorrido entendeu que os juros de mora em cujo pagamento foi condenada a executada-seguradora, ora embargante, por sentença transitada em julgado, no âmbito de indemnização por danos materiais cobertos pelo contrato de seguro celebrado entre as partes, não se qualificavam como rendimentos de aplicação de capitais e, à luz das disposições conjugadas dos artigos 5.º e 12.º do CIRS, não eram susceptíveis de tributação fiscal em sede de IRS[3].

Explicou o Tribunal recorrido:

Estes juros não se destinam a remunerar um capital, uma obrigação pecuniária originária, nem representam um rendimento autónomo.

Estes juros devem ser vistos como englobados no valor indemnizatório global, por forma a ser possível estar mais próximo do objetivo preconizado pelos artigos 562 e 566, nº 2, do Código Civil”.

Posto isto, concluiu o Tribunal que a retenção daquelas quantias havia sido ilegal, que existia mora do devedor e assistia, portanto, ao credor o direito de se recusar a receber apenas parte da prestação, atendendo ao disposto no artigo 763.º, n.º 1, do CC. Consequentemente, determinou a improcedência dos embargos e o prosseguimento da execução para pagamento (também) daquelas quantias.

A executada / embargante / ora recorrente discorda deste entendimento.

Sustenta, em síntese, que os juros moratórios relativos a indemnização de danos materiais constituem rendimentos de capital resultantes da dilação do vencimento ou do pagamento deste, estando, por isso, sujeitos a tributação fiscal, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2, al. g), 1.ª parte, do CIRS; isentos desta incidência estariam apenas os juros legais moratórios devidos em consequência de lesão corporal, doença ou morte pagos ou atribuídos, ao abrigo de contrato de seguro, decisão judicial ou acordo homologado judicialmente, em conformidade com o disposto no artigo 12.º, n.º 1, al. b), do CIRS.

Aprecie-se.

A questão que se põe é a de saber os juros em causa nos presentes autos se integram na categoria dos rendimentos de capitais regulada genericamente no artigo 5.º, n.º 1 e n.º 2, 1.ª parte, do CIRS ou antes na excepção prevista no artigo 5.º, n.º 2, al. g), in fine, do CIRS e que não está sujeita a tributação em IRS, ao abrigo do artigo 12.º, n.º 1, al. b), do CIRS.

O artigo 5.º do CIRS, sobre os rendimento da categoria E, é do seguinte teor:

1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.

2 - Os frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente:

(…)

g) Os juros ou quaisquer acréscimos de crédito pecuniário resultantes da dilação do respetivo vencimento ou de mora no seu pagamento, sejam legais sejam contratuais, com exceção dos juros devidos ao Estado ou a outros entes públicos por atraso na liquidação ou mora no pagamento de quaisquer contribuições, impostos ou taxas e dos juros atribuídos no âmbito de uma indemnização não sujeita a tributação nos termos do n.º 1 do artigo 12.º (…)[4].

Por sua vez, dispõe-se no artigo 12.º do CIRS, com a epígrafe “delimitação negativa da incidência”:

1 - O IRS não incide, salvo quanto às prestações previstas no regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, alterado pelas Leis n.os 59/2008, de 11 de setembro, 64-A/2008, de 31 de dezembro, e 11/2014, de 6 de março, sobre as indemnizações devidas em consequência de lesão corporal, doença ou morte, pagas ou atribuídas, nelas se incluindo as pensões e indemnizações auferidas em resultado do cumprimento do serviço militar, as atribuídas ao abrigo do artigo 127.º do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, e as pensões de preço de sangue, bem como a transmissão ao cônjuge ou unido de facto sobrevivo de pensão de deficiente militar auferida ao abrigo do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 240/98, de 7 de agosto:

(…)

b) Ao abrigo de contrato de seguro, decisão judicial ou acordo homologado judicialmente (…)[5].

Em tema de sujeição a tributação em IRS e retenção na fonte dos juros respeitante a indemnização por responsabilidade extracontratual existe já um conjunto significativo de acórdãos das Relações bem como deste Supremo Tribunal de Justiça.

Destacam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.10.2003 (Proc. 03B2749) e de 9.03.2004 (Proc. 03B4269), ilustrando a posição (maioritária) na jurisprudência portuguesa no sentido de que os juros advenientes de indemnização por acidente de viação não estavam sujeitos a tributação.

Não obstante sujeitos a enquadramento normativo que foi variando, na sua redacção, ao longo dos tempos[6], os argumentos aí desenvolvidos são válidos ainda hoje.

Diz-se, por exemplo, de forma ilustrativa, no primeiro destes Acórdãos:

(…) os juros em causa não constituem rendimentos de capitais, tendo antes natureza compensatória. Constituem parte da indemnização devida e são, assim, também capital (…).

Com efeito, os juros indemnizatórios exercem a função de indemnização pelo retardamento de uma prestação pecuniária (artº. 806º, nº. 1, do Código Civil), sendo, assim, devidos a título de indemnização, e, a partir do Decreto-lei nº. 200-C/80 como meio de contrabalançar a desvalorização monetária.

Não faria sentido (…) que alguém, tendo recebido determinada indemnização, actualizada nos termos do artº. 566º, nº. 2, do Código Civil, não pagasse qualquer imposto, enquanto que outrem, recebendo um montante indemnizatório presumivelmente igual (mas determinado e actualizado através do mecanismo da taxa de juros), acabasse por, na prática, receber bem menos, por ver uma parte daquele montante sujeito a imposto de capitais.

Outro entendimento teria como consequência dever o lesado suportar os efeitos fiscais da mora do devedor da indemnização não sujeita a imposto, nos termos do mencionado artigo 13º, do Código do IRS[7] [8].

As considerações e os argumentos aqui expostos são ponderosos e permitem chegar à leitura adequada do disposto, em conjunto, nos artigos 5.º, n.º 2, al. g), e 12.º, n.º 1, al. b), do CIRS[9].

Os juros de mora que, como acontece no caso dos autos, são fixados, por sentença judicial, à taxa legal, desde a citação até à data do integral pagamento da indemnização não configuram juros moratórios em sentido próprio[10]. São, sim, juros compensatórios porquanto preordenados à reparação (plena) do dano e à reconstituição (plena) da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, que é a função de qualquer indemnização (cfr. artigo 562.º do CC)[11].

Adverte-se, incisivamente, no sumário do segundo dos Acórdãos atrás referidos:

o facto de a lei se lhes referir como moratórios não deve fazer esquecer a verdadeira função - compensatória - desses juros, que constituem, afinal, ainda, uma - ou fazem parte da - indemnização devida”.

Como é sabido, sempre que não seja possível ou viável a reconstituição natural (o que é frequente), há lugar à indemnização por equivalente, ou seja, em dinheiro, que tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que ele teria nessa data não fossem os danos (cfr. artigo 566.º, n.º 2, do CC).

Dito isto, o tribunal, em vez de fixar o montante indemnizatório actualizado à data em que é proferida a decisão[12], condena, por vezes, o obrigado ao pagamento dos juros desde a data da citação até ao efectivo pagamento da indemnização (foi o que aconteceu no caso dos autos).

Ora, como se observa no primeiro Acórdão referido, não faria qualquer sentido que, na primeira hipótese, o lesado recebesse o montante da indemnização “intocado” (sem qualquer dedução fiscal) e, na segunda hipótese, em que o montante indemnizatório é fraccionado ou repartido, os juros estivessem sujeitos a tributação, vindo o lesado a receber, a final, uma importância significativamente mais baixa do que na hipótese anterior.

Quer isto dizer, em suma, que os juros devidos desde a citação até ao efectivo pagamento desempenham (ainda) a função de indemnização e integram-se nela, não constituindo rendimentos de capitais e, consequentemente, não se reconduzem aos rendimentos de capital, logo aos rendimentos da categoria E, prevista no artigo 5.º, n.º 1, do CIRS.

Sucede que os Acórdãos mencionados e as considerações tecidas acima pressupõem que estejam em causa indemnizações resultantes da responsabilidade extracontratual. Ora, os presente autos respeitam a indemnização da seguradora ao abrigo de contrato de seguro de danos (cfr. facto provado 7) sendo que, de acordo com o artigo 123.º do RJCS, “o seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais.

Mas, em primeiro lugar, o artigo 12.º, n.º 1, al. b), do CIRS refere-se expressamente às “indemnizações devidas [ ] [a]o abrigo de contrato de seguro”, pelo que a indemnização no quadro da responsabilidade contratual não parece ser um problema.

Quanto ao facto de estarem em causa, in casu, danos relativos a coisas / “danos materiais”, dir-se-ia que ele tão-pouco prejudica alguma coisa. Não obstante da letra do artigo 12.º, n.º 1, do CIRS resultar que a norma apenas se refere a indemnizações por “danos corporais”, há razões para entender que o regime se aplica igualmente à indemnizações por “danos materiais”. Vendo bem, nada distingue estas indemnizações no plano funcional e estrutural (que são os que relevam para estes efeitos). Tanto num como noutro caso, o montante indemnizatório visa reconstituir a situação que existiria se o facto lesivo não tivesse ocorrido e, tanto num como noutro caso, a indemnização integra os juros devidos em função do tempo que leva a realizar este propósito, conforme se explicou acima[13].

Em conclusão, não se integrando os juros em causa na categoria dos rendimentos de capitais nos termos do artigo 5.º, n.º 1, al. g), 1.ª parte, do CIRS, nem se mostrando incluídos noutra categoria sujeita a tributação em IRS [14], eles não são tributáveis, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, al. b), do CIRS, pelo que não podia a executada / ora embargante subtrair certos montantes à prestação a realizar perante a exequente / ora embargada, a título de retenção na fonte do IRS.

Dito isto, é evidente que esta última tinha o poder de recusar a prestação (rectius: a prestação parcial) que assim lhe foi oferecida, nos termos do artigo 763.º do CC, não se vislumbrando qualquer comportamento abusivo, e inexistindo fundamento para a presente oposição à execução.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela embargante / ora recorrente.


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Lisboa, 30 de Março de 2023

Catarina Serra (Relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] Aditado pelo Tribunal de Relação.
[2] Aditado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
[3] Note-se que estas disposições são aplicáveis também em matéria de IRC.
[4] Sublinhados nossos.
[5] Sublinhados nossos.
[6] A norma homóloga do artigo 5.º do CIRS no anterior CIRS (aprovado pelo DL n.º 442-A/88, de 30.11), era a do artigo 6.º, onde se prescrevia: Consideram-se rendimentos de capital: (…) [o]s juros ou quaisquer acréscimos de crédito pecuniário resultantes da dilação do respectivo vencimento ou de mora no seu pagamento, sejam legais, sejam contratuais”. Esta norma foi julgada inconstitucional pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 170/03, de 28.03, por violação dos princípios da igualdade dos cidadãos e da repartição justa dos rendimentos, que defluem dos artigos 13º, 103º, nº 1, e 104º, nº 1, todos da Lei Fundamental, a norma constante da alínea g) do nº 1 do artº 6º do Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares quando interpretada no sentido de serem tributáveis como rendimento os juros que forem atribuídos no âmbito de uma indemnização devida por responsabilidade civil extracontratual e na medida em que se destinem a compensar os danos decorrentes da desvalorização monetária ocorrida entre o surgimento da lesão e o efectivo ressarcimento desta”. O julgamento de inconstitucionalidade foi reiterado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 154/2004, de 12.07. Por sua vez, a norma que correspondia ao artigo 12.º, n.º 1, do actual CIRS era o artigo 13.º, n.º 1, do CIRS anterior, segundo o qual “O IRS não incide sobre as indemnizações recebidas ao abrigo de contrato de seguro ou devidas a outro título, salvo quando devam ser consideradas como proveitos para efeitos de determinação do rendimento das actividades comerciais, industriais ou agrícolas, quando este Código disponha diferentemente, quando aquelas visem a reparação de lucros cessantes, ou ainda quando se trate de indemnizações relativas a bens sinistrados, de harmonia com o artigo 42.º do IRC”.
[7] Sublinhados nossos.
[8] Já antes (em 1998) Eurico Consciência (“As seguradoras não podem fazer retenções em IRS no pagamento dos juros das indemnizações por acidentes de viação”, in: Revista da Ordem dos Advogados, 1998, ano 58, vol. II, pp. 1039 e s.) defendia, no quadro da norma, que “os juros das indemnizações por acidentes de viação não são passíveis de IRS, não podendo as seguradoras fazer retenções de IRS quando pagam as indemnizações devidas”. Explicava o autor que, desde logo, os juros deviam ser integrados nas indemnizações e, portanto, deviam ficar sob a alçada da norma de delimitação negativa de incidência do artigo 13.º, n.º 1, do CIRS (correspondente, como se disse, ao artigo 12.º, n.º 1, do actual CIRS) e, além disso, os direitos às indemnizações não eram “créditos pecuniários” no sentido do artigo 6.º. n.º 1, al. g), do CIRS e os juros vencidos não eram juros de mora em sentido próprio mas sim, também eles, indemnizações ou juros compensatórios.
[9] Vale a pena recordar aqui o artigo 11.º da Lei Geral Tributária, segundo o qual “ [n]a determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis “.
[10] Fala-se, a este propósito em “mora artificial”. Cfr., neste sentido, Correia das Neves, Manual dos Juros: estudo jurídico e prático, Coimbra, Almedina, 1969, p. 326.
[11] Adriano Vaz Serra (“Obrigações genéricas, obrigações alternativas – obrigações com faculdade alternativa, obrigações de juros”, Separata do Boletim do Ministério da Justiça n.º 55, Lisboa, 1956, pp. 159 e s.) dizia que sem produção de juros a indemnização não ficaria completa.
[12] Caso em que este vence juros de mora a contar da data desta decisão actualizadora. Veja-se, com relevo para esta hipótese, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002, de 9.05, do qual resulta que “sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do art. 566.º do CC, vence juros de mora, por efeito do disposto nos arts. 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do CC, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.
[13] Não se pode, aliás, pressupor que o entendimento propugnado naquela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça se restringisse aos danos corporais, sendo apenas seguro que a responsabilidade em causa nos acórdãos mencionados se fundava em acidente de viação.
[14] Veja-se, por exemplo, que o artigo 9.º, n.º 1, al. b), do CIRS, que regula a categoria (residual) dos rendimentos da categoria G (incrementos patrimoniais) é aplicável apenas às “indemnizações que visem a reparação de danos não patrimoniais, excetuadas as fixadas por decisão judicial”.