Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P269
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: DOLO EVENTUAL
MEDIDA DA PENA
PENA SUSPENSA
Nº do Documento: SJ200603080002693
Data do Acordão: 03/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1 . É segura a compatibilidade entre dolo eventual e tentativa acabada.
2 . No crime de homicídio, ainda que tentado, as necessidades de prevenção geral são particularmente prementes.
3 . Não obstante, a pena de três anos de prisão deve ser mantida, relativamente a arguida que, tendo disparado, com uma carabina, sobre o companheiro, atingindo-o no peito:
Agiu com dolo eventual relativamente à morte deste que não ocorreu;
Fê-lo movida por violento ciúme e após conhecimento da infidelidade dele;
Está muito arrependida;
Não tem passado criminal:
Tem normalmente um temperamento calmo e bom relacionamento com os que a rodeiam;
Está bem integrada social e laboralmente;
Foi visitada na prisão pelo ofendido;
Reatou com este vivência em comum, ainda que entretanto tivesse ocorrido nova separação.
4 . Justifica-se mesmo, neste caso, a suspensão da pena.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal da Justiça:

I -
Na Vara Mista do Tribunal de Setúbal foi condenada AA, pela prática de um crime de homicídio voluntário, na forma tentada, p. e p. pelos art. 131º e 132º nºs 1 e 2 - d) e h) do Cód. Penal, a:
Três anos de prisão.

Tendo tal pena sido suspensa por quatro anos.

II -
Recorre a Ex.ma Procuradora da República, directamente para este tribunal, concluindo a motivação do seguinte modo:

1- O presente recurso restringe-se à apreciação da matéria de direito,
2- Discordando-se vivamente da medida da pena aplicada e, consequentemente, da suspensão da execução da pena.
3- Admitem-se todos os factos, sendo certo que, quanto à falta de registo de antecedentes criminais mais não é, do que o dever de qualquer cidadão.
4- Mas, o douto Acórdão não relevou, como deveria, o comportamento muito grave da arguida, o qual não pode ser tolerado em sociedade.
5- É que, se deu como provado, entre o mais, que arguida, munida da arma apreendida nos autos, dirigiu-se ao local de trabalho do ofendido e, quando lá chegou, pegou na arma, e, sem qualquer palavra, disparou em direcção ao ofendido, tendo representado como possível atingir aquele, o que fez, atingindo-o na zona torácica, tendo posto em perigo a vida daquele;
6- Antes destes factos, arguida, em 2002, já tinha efectuado vários disparos com a mesma arma na direcção da porta de um vizinho que a andava a importunar, conhecendo, assim, as características, perigosidade e forma de manusear a arma.
7- Do mesmo modo, não relevou as igualmente muito graves consequências (lesões descritas nos exames médicas) do seu acto (Basta, aliás, ver as fotografias constantes os autos!)
8- E, atenta a sua formação académica e autonomia económica da arguida, esta poderia (e deveria) ter lidado com a situação de traição do companheiro de uma forma bem mais civilizada, o que, aliás, lhe era exigível.
9- E, sendo o crime de homicídio, atento o bem protegido, o mais grave do nosso ordenamento jurídico, também se não deu toda a relevância às exigências de prevenção.
10- Assim, afigura-se-nos que, só a aplicação de uma pena mínima de prisão de quatro anos seria a justa e adequada à culpa do arguido e satisfazia as necessidades de prevenção.
11- Verificou-se, assim, violação do disposto nos n°s 1 e 2 do art.°71° do Código Pena.
12- Daí que, se entenda não poder aplicar-se o instituto da suspensão da execução da pena!
13- É que, a suspensão da execução da pena "é um poder-dever ou um poder funcional, dependente da verificação dos pressupostos formal e material fixados na lei" (Ac. R. C., de 20/11/97, in CJ, V, 53).
14- Mas, atendendo à gravidade do crime praticado e suas consequências, e à grande necessidade de prevenção, neste tipo de crime, tal como já foi entendido, num caso de ofensas corporais graves, "... exclui a possibilidade de a censura mediante suspensão da pena bastar como medida de prevenção de futuros crimes" (vide Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 17/10/1990- in WWW.DGSI.PT ).
15- E, como já foi entendido, num caso de crime de roubo), ":.mesmo que o juízo prognóstico se mostrasse favorável ao(s) arguido(s), importa ter na devida conta que a suspensão da execução da prisão não deveria ser decretada por a ela se oporem no caso as necessidades de reprovação e prevenção do crime como exigência mínima e irrenunciável de defesa do ordenamento jurídico" (vide Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 15/01/2004- in WWW.DGSI.PT ).
16- Foi, assim ilegal a aplicação no caso "sub judice" do disposto na art. 50º do Código Penal, tendo-se verificado a sua violação pelo Tribunal.
17- Por outro lado, também não justifica o douto Acórdão, tal decisão: depois de enumerar os factos dados como provados, a motivação subjacente, a aplicação dos factos às normas legais e à escolha e medida da pena pelo que, neste particular, enferma a decisão do vício de nulidade previsto no art. 379° n.º 1, al. a), com referência ao n.º 2 do art. 374°, todos do Código de Processo Penal.
18- Deverá, assim, condenar-se a arguida em, pelo menos, quatro anos de prisão, obviamente efectiva.

Respondeu a arguida, sustentando a bondade da decisão, quer quanto à medida da pena, quer quanto a sua suspensão.

III -
Da 1.ª instância vem provado o seguinte:

A arguida viveu com o ofendido BB em comunhão de cama, mesa e habitação como se de marido e mulher se tratasse, desde Julho de 2003 e até 10 de Setembro de 2004
Desconfiando da fidelidade do ofendido a arguida começou a visionar as mensagens que este recebia no seu aparelho de telemóvel verificando que algumas tinham cariz ou expressões românticas e que claramente eram dirigidas ao BB.
Apesar de o ofendido negar manter ou ter mantido outro relacionamento amoroso a arguida confirmou este relacionamento com a autora de tais mensagens.
No dia 10 de Setembro de 2004, por volta das 11h e quando se encontrava nas instalações da empresa que geria, sita em Lisboa, a arguida contactou, via telefónica, com um amigo do ofendido BB o qual também lhe confirmou que tal relacionamento teria acontecido.
Então a arguida, que ficou perturbada com a confirmação das suas suspeitas e com o facto de o ofendido lhe estar a mentir, saiu da empresa e dirigiu-se no seu veículo automóvel de matrícula XJ, de marca Opel, modelo Vectra, à sua residência, sita em ...., Quinta do Anjo.
No caminho, telefonou ao BB, perguntando-lhe onde é que se encontrava a trabalhar e com o pretexto de o ir buscar, ao que este lhe respondeu que se encontrava na Estrada dos Barris, numa vivenda, onde efectuava trabalho de estucador.
Chegando à sua residência a arguida muniu-se de uma carabina que aí guardava já há alguns anos e de quatro projécteis.
Trata-se de uma carabina de origem americana, marca Marlin - modelo 60 - de calibre 22 Long Rifle, com o nº de registo 07394071 aposto no lado esquerdo da caixa de culatra.
Possui um carregador tubular sobre cano, no qual pode armazenar 14 munições daquele calibre.
No lado esquerdo do cano apresenta as seguintes inscrições: The Marlin Firearms Co. North Haven CT USA Model 60 Micro Groove Barrel (cano Micro estriado) Cal 22 LR only
No lado direito do cano apresenta as seguintes instruções: warning: mineuse can cause injury ou death - follow wargnings and instructions in owner´s manual (aviso de que o uso indevido pode causar ferimentos ou morte e que devem ser cumpridas as instruções e conselhos contidos em manual próprio)
É uma arma de fogo semi-automática e de ejecção lateral. Apresenta sistema de travamento ao gatilho. É habitualmente usada para tiro de precisão.
Encontra-se em muito bom estado de conservação e funcionamento.
A arguida colocou a arma e as balas no assento dianteiro do lado direito do veículo e dirigiu-se ao local de trabalho do ofendido BB.
Momentos antes de chegar ao local e quando se encontrava a cerca de 200 metros do mesmo, abrandou o veículo e mesmo com este em movimento carregou a arma com as quatro balas, disparando uma inadvertidamente.
Cerca das 13h a arguida chegou ao local de trabalho de BB, sito no Vale dos Barris, avistando-o, travou abruptamente o veículo.
Saindo do automóvel a arguida dirigiu-se ao lado direito do veículo abriu a porta da frente e pegou na arma. O ofendido encontrava-se a cerca de 15 metros daquele local.
Empunhando a arma, a arguida colocou a coronha da arma no ombro direito e disparou de imediato na direcção do ofendido para o assustar e representando como possível atingir o ofendido, causando-lhe a morte, agiu conformando-se com ela, não tendo essa morte ocorrido por razões estranhas à vontade da arguida.
Na altura do disparo o ofendido tinha na sua frente um bidom com água e meia palete de tijolo, com cerca de um metro de altura.
O projéctil atingiu o corpo do ofendido na zona torácica.
Verificando que o ofendido caia inanimado, a arguida introduziu-se no seu veículo e abandonou o local.
Já no seu veículo a arguida ligou para o seu pai a quem contou o sucedido, ligando, após para o nº 112, para onde solicitou socorro para o ofendido.
Este foi transportado e internado no Hospital de S. Bernardo, em Setúbal onde no SO e, depois na unidade de cuidados intensivos, foi verificada ferida por arma de fogo no hemitorax esquerdo, foi submetido a intubação orotraqueal e ventilação mecânica, seguidas de cirurgia pulmonar - toractomia com encerramento de ferida pulmonar, lavagem e drenagem.
Apresentava ferida torácica (anterior - porta de entrada à esquerda) e ferida torácica posterior à esquerda(porta de saída)
Em 28/10/04 e quando submetido a exame directo de avaliação nos serviços do Ministério Público deste tribunal apresentava: "cicatriz de ferida contusa perfurante medindo 0,5cm de diâmetro, situada na face anterior do hemitorax esquerdo, 6 cm acima e 3cm para dentro do mamilo esquerdo. Cicatriz de ferida contusa situada na face posterior do hemitorax esquerdo, 4 cm acima do ângulo superior da omoplata esquerda medindo 0,8cm x o,4cm. Cicatriz operatória oblíqua de cima para baixo e de trás para diante situada na face anterior do hemitorax esquerdo e na face lateral do mesmo, com início a nível do mamilo medindo 20cm, duas cicatrizes de feridas operatórias situadas na face lateral do hemitorax esquerdo medindo 2cm cada uma.
As lesões traumáticas apresentadas resultaram de traumatismo de natureza contuso perfurante devidas a projéctil com arma de fogo.
Tais lesões traumáticas determinaram para o ofendido um período de 60 dias de doença sendo os primeiros trinta com afectação da capacidade para o trabalho em geral.
A região do corpo atingida aloja órgãos vitais e as lesões sofridas puseram em perigo a vida do ofendido.
A arma em causa havia sido adquirida pelo então marido da ofendida para que ela praticasse tiro de precisão com ele, o que não veio a acontecer por a arguida não se interessar pela modalidade.
A arguida, antes dos factos, disparou com a arma em questão, no máximo, duas vezes.
A autorização de porte de arma que possuía desde o ano de 1999 havia caducado tendo-lhe sido indeferido o pedido de renovação que efectuou uma vez que no ano de 2002 tinha efectuado vários disparos com a mesma arma na direcção da porta da residência de um vizinho que a andava a perseguir e ameaçar assim como aos filhos da arguida.
A arguida conhecia as características, perigosidade e forma de manusear a arma de que se muniu.
Agiu de modo livre, deliberado e consciente.
Quando se encontrava na esquadra a arguida pediu informações sobre o estado de saúde do ofendido
O ofendido foi visitar a arguida ao Estabelecimento prisional onde a mesma se encontrava detida e após esta sair deste estabelecimento voltaram a viver juntos até ao dia 26/5, data em que se separaram por ter ocorrido nova situação de infidelidade por parte do ofendido.
A arguida está muito arrependida da sua conduta.
A arguida tem normalmente um temperamento calmo, tendo bom relacionamento com os que a rodeiam.
A arguida não tem passado criminal.
Vive com dois filhos de 10 e 4 anos de idade.
Tem uma empresa de acessórios para electrodomésticos.

E foi considerado não provado que:

A arguida tenha disparado quando se encontrava a cerca de 5 metros do ofendido nem que tenha encostado a face de modo a bem visualizar a alça e a mira, que tenha apontado na direcção do peito do ofendido e que tenha proferido a expressão "vou-te matar, já estás morto".
A arguida tenha representado a morte do ofendido como consequência directa do disparo que efectuou e da parte do corpo que pretendeu atingir.
O ofendido na altura do disparo tenha feito um movimento com o seu corpo.
Após o disparo algumas pessoas que se encontravam dentro de casa tenham atirado alguns objectos (tijolo e pau) na direcção da arguida, tendo um deles atingido a parte traseira da viatura da arguida.

IV -
Logo à partida, há que tomar posição sobre se é admissível a figura da tentativa de homicídio nos casos de dolo eventual.

Depois, deparam-se-nos as questões consistentes em saber se:
Se verifica a pretendida nulidade por falta de fundamentação da suspensão da pena;
A medida desta é de acolher;
Deve ter lugar a suspensão referida.

V -
A arguida pretendeu assustar o visado e aí situou o dolo directo.
Do disparo para assustar não resultava necessariamente a morte dele, de sorte que fica afastado o dolo necessário.
Mas - está expresso nos factos provados - ela agiu admitindo a possibilidade de produzir a morte, conformando-se com ela. Temos aqui o dolo eventual.

VI -
Sendo eventual o dolo do homicídio, levanta-se a debatida questão da punibilidade da tentativa (" qua tale ", não interessando o caso de subsistir o crime de ofensas corporais).

Entende a grande maioria dos autores e da jurisprudência que a natureza de eventual do dolo não obsta à consideração da tentativa.
Assim, Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal II, 240, Prof. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, 4.ª ed., 404, Prof. Germano Marques da Silva, Direito Criminal II, 241, Prof. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, 225 a 229, Jeschek, Tratado De Direito Penal, ed. de 1993, 466 (1) e, na Jurisprudência, exemplificativamente, os Ac.s deste tribunal de 21.11.1984, ( BMJ n.º 341, 260), 6.3.1985, (BMJ 345, 222), 12.11.1986 (BMJ 361, 244), 14.6.95 (BMJ 448,136), 27.1.1993 (CJ STJ, Ano I, I, 173), 10.11.93, (CJ STJ, Ano I, III, 228), 3.3.1994 (BMJ, 435, 509), 14.6.2000 ( CJ STJ VIII, II, 211 ), 31.3.04 ( processo n.º 4032/03 ), 11.9.1994, (processo n.º 44876), e 2.6.2005 ( processo n.º 543/05 ). (2)

Cremos nós que as dificuldades que se possam levantar, relativamente à punibilidade da tentativa, se situam no domínio da intenção relativamente aos casos de tentativa inacabada, para usarmos a linguagem de Roxin (Problemas Fundamentais de Direito Penal, 302 e seguintes). Nestes casos, o conformar-se com o resultado próprio do dolo eventual pode tornar-se algo discutível porque não se chegou ao momento em que poderia ter lugar a produção desse resultado. Assim, no exemplo deste autor (ob. cit. pag. 298 ) que parece muito semelhante ao nosso - e, afinal, não é - o agente puxou da pistola para ameaçar o padrasto, contando com a possibilidade de disparar sobre a vítima e, neste caso aceitava a consequência da morte. O tribunal alemão rejeitou - com aplauso geral - a resolução do facto e, consequentemente, a tentativa punível de homicídio.
Mas, no nosso caso, a figura que se nos depara é a da tentativa acabada, porque a arguida disparou mesmo e até atingiu o antagonista. Ou seja, para usarmos as palavras ainda deste autor (pag. 323), ela desafectou "da sua esfera de domínio o acontecimento que, de acordo com o plano deverá prosseguir até ao resultado." Nestes casos, a conformação com o resultado, própria do dolo eventual, não foi truncada. A nível subjectivo ficou completa, falhando só a verificação objectiva desse mesmo resultado, mas esta é estranha ao dolo.
Aliás, se abandonarmos a terminologia de Roxin e nos lembramos da do Código Penal de oitocentos, afastamos a ideia de tentativa e entramos no domínio do que, então, se chamava "homicídio frustrado" ( art. 10.º ). A respeito do qual não se levantava a mínima dúvida sobre o acolhimento da figura do dolo eventual.

VII -
A nulidade invocada na motivação do recurso centra-se na ideia de omissão de pronúncia relativamente aos fundamentos da suspensão da pena.
Vemos, todavia, de folhas 577, que o tribunal recorrido fundamentou tal suspensão, aludindo ao arrependimento e à interiorização do desvalor da conduta da arguida.
Temos aqui uma fundamentação que afasta de "per si" a invocada nulidade, independentemente de se determinar se é completa ou pertinente.

VIII -
Insurge-se a Digna Recorrente também com a medida da pena, pretendendo a sua majoração para quatro anos de prisão.
Não se nos oferecem dúvidas de que estamos perante um homicídio simples na forma tentada.
Pelo caminho do n.º 2 do art. 23.º chegamos à moldura resultante da conjugação dos art.ºs 131.º e 73.º, n.º1 a) e b), todos do Código Penal. Ou seja, aos limites de 10 anos e oito meses e 19 meses e seis dias.

IX -
Na fixação da medida da pena dentro destes limites temos que atentar no art. 71.º, primeiro, n.º1 e, depois, n.º2.
Interessando, portanto, a análise da culpa ( também considerando o princípio geral do n.º2 do art. 40.º ) e, depois, das exigências de prevenção, quer especial, quer geral.

VIII -
A questão da culpa subdivide-se, a nosso ver, em dois pontos, aliás, em consonância com as alíneas a) e c) daquele n.º2 do art. 71.º:
Um atinente ao modo de execução do crime;
Outro reportado aos fins e motivos que o determinaram.

No modo de execução do crime há a considera todo o " iter " seguido pela arguida.
Confirmou a infidelidade e a mentira quando se encontrava a trabalhar, saiu da empresa, telefonou ao BB para saber onde estava, foi a casa, muniu-se da carabina e dos projécteis, dirigiu-se, de carro, ao local onde ele trabalhava, carregou a arma e quando se encontrava a cerca de 15 metros dele, disparou para o assustar, mas atingiu-o no peito.
Encerra esta conduta dois pontos a reter:
Um relativo ao tempo que teve a arguida para se acalmar, reflectir ou pedir eventualmente apoio ou aconselhamento. Uma perturbação que conduz ao caminho que conduziu é reveladora, perante o próprio, mesmo de necessidade de aconselhamento psicológico ou psiquiátrico que podia ser obtido, em tempo útil, em instituições próprias.
O outro reportado ao atingimento com o tiro. Não questionamos, nem temos que questionar, a versão, vinda da 1.ª instância, de que ela agiu para assustar e que só admitiu a morte como possível. Mas - temos de o reconhecer - foi um susto particularmente concretizado. Ao tiro intencionalmente elevado ou baixo de que se lança mão, por regra, nestes casos, a arguida contrapôs um tiro que atingiu o visado no peito. Isto com uma carabina, a cerca de 15 metros de distância. Dito em termos vulgares, o arguido não morreu por uma sorte incrível.
Tudo confere, à partida, uma intensidade muito grande ao dolo, ainda que sem sairmos, como é evidente, dos limites, particularmente mais atenuativos, próprios do dolo eventual.
IX -
Dizemos "à partida " porque entendemos dever enquadrar a actuação dela no quadro de infidelidade e de ciúme que a envolveu. Conforme refere o autor brasileiro Ivair Itagiba (Homicídio, Exclusão de Crime e Isenção de Pena, Tomo I, 351 ) "... é preciso não deslembrar que os seres humanos se deixam escravizar pelas paixões. Uns mais, outros menos, segundo o temperamento, as resistências psíquicas, o grau de sensibilidade, a constituição emotiva, os hábitos, o conceito de honra, os distúrbios somáticos. Todos esses elementos, acrescidos de circunstâncias outras, devem ser pesados cautelosamente pelo julgador. O preconceito de honra não isenta o uxoricida ou amanticida de responsabilidade penal, nem lhe justifica o acto desesperado. Mas esse preconceito, para o fim de diminuição da pena, deve ser meditado de longada, e não atarantadamente, de afogadilho. Há valores sociais que a consciência colectiva ou grupal admite e aplaude; são sentimentos estes que se enraízam na alma e podem levar a extremos, sem o necessário refreamento. Nada é insignificante na vida do homem; as impressões se somam, sobrecarregando o poder da auto-inibição; surge a representação, a ideia que, tornada fixa e ardida, acaba falseando o mecanismo normal da consciência."
Do mesmo modo, entendemos trazer para aqui as palavras de Enrico Altavilla em o Delinquente e a Lei Penal, vol. II, 203, 212 e 217. Começa, a propósito deste tema, por citar Jung ( o "pai " da psicologia moderna ) quando escreveu que " o primeiro suspiro de amor, é o último da prudência ", para depois traçar um perfil do ciumento : " Da suspeita - do ciumento - nasce uma atenção concentrada, no sentido de conseguir a certeza e inicia-se uma investigação afanosa, feita do exame dos gestos mais insignificantes para neles encontrar uma prova... efectivamente dum estado de expectativa e de concentração da atenção, deriva uma fatal deformação que, sem chegar a verdadeiros fenómenos ilusórios, leva a um erro de juízo... O delito mais frequente (do ciumento) é o homicídio, frequentemente sob formas muito cruéis..."
Decerto que o julgador atento deve procurar enquadrar todos estes valores dentro do leque - ele particularmente amplo, é evidente - correspondente aos parâmetros tidos como normais na sociedade dentro da qual o crime se verifica. Assim, há que estar atento a que o adultério não tem hoje o significado que tinha há dezenas de anos. E a comprová-lo está a sua descriminalização que não se põe já em causa (Cfr-se, Prof.s Figueiredo Dias e Costa Andrade, Criminologia, O Homem Delinquente e a Sociedade Criminogéna, 429 ).

Do que vimos expondo e sempre sem perder de vista que estamos perante um caso de dolo eventual, resulta, em nosso entender, que a culpa, não suporta uma pena particularmente elevada dentro da moldura penal.

X -
O crime de homicídio atinge o bem mais caro da nossa sociedade, traduzido pela vida humana. A prevenção geral, mormente no que respeita aos casos de homicídio voluntário, deve ser particularmente acutilante.
De qualquer modo, afastando as penas da ideia de retribuição, temos, como corolário, o englobar nas molduras penas já de, pelo menos grande parte da ideia de prevenção geral. Parafraseando o Dr. Sousa Brito ( Estudos em Homenagem ao Prof. Eduardo Correia, III, 585 ) "deve considerar-se que, sendo as necessidades de prevenção geral determinantes da própria medida legal da pena, enquanto a pena se mantiver dentro desses limites, e é esse o âmbito de aplicação do art. 72.º, está em princípio garantida a satisfação daquelas necessidades. Só não será assim quando seja de admitir que a própria lei quis deixar ao juiz, dentro de certos limites, a medida das necessidades de prevenção geral... Mas, mesmo então a prevenção geral nunca pode aprovar a pena acima da medida da culpa..."
Daí que as necessidades de prevenção geral se encontrem relativamente ao caso presente e, em grande medida, absorvidas pela moldura penal que referimos supra.

XI -
Já a abordagem da questão da prevenção especial beneficia intensamente a arguida.
O crime foi muito grave, mas " a relação entre a gravidade do facto e a socialização não é, de maneira alguma, sempre directamente proporcional " - Prof. Anabela Rodrigues, A Determinação Da Medida da Pena Privativa de Liberdade, 372, nota 201, abordando precisamente um caso de marido ciumento que mata a mulher.
No caso presente, o que esteve na base do crime foi a infidelidade que tinha como pressuposto uma relação a partir da qual ela era normalmente exigível.
Com o crime essa relação truncou-se como seria de esperar.
Curiosamente, arguida e vítima voltaram a viver juntos e ele voltou a ser-lhe infiel, tendo esta nova infidelidade determinada apenas nova separação.
Caiu por terra um dos pressupostos para ela se sentir traída e já tendo sido sujeita a nova infidelidade foi para a separação, não se tendo provado qualquer violência.
Logo por aqui, se vê que a prevenção especial está conseguida pela própria personalidade da arguida. Se, por um lado, esta a levou a agir como agiu não cremos que volte a estar na base de nova actuação semelhante. Nem que, no outro extremo, não esqueçamos que ela já disparara contra a porta dum vizinho que a andava a perseguir.

Para além da natureza dos factos que directamente conduziram ao crime agora apreciado, devemos ainda atentar no quadro sem o mínimo reparo que resulta da vivência, em geral, dela, reveladora de impecável socialização. Tem uma empresa, vive com os filhos, não tem passado criminal, telefonou logo para propiciar socorro àquele que alvejara e está muito arrependida.

XII -
Sopesando todos os elementos que referimos a propósito da medida da pena, entendemos que a pena que nos chega da 1.ª instância é a adequada.

XIII -
Vem ela suspensa na sua execução por quatro anos.
Para a suspensão - resulta " prima facie " do n.º1 do art. 50.º do Código Penal - é necessário, primeiro, um juízo de prognose favorável. Com os elementos de que dispõem, os juízes hão ter como provável que a pena suspensa seja suficientemente intimidadora para o agente, de sorte que ele não voltará, provavelmente, ao cometimento de crimes.

Este juízo de prognose é altamente favorável e assenta nas mesmas considerações que fizemos a propósito da prevenção especial, no número anterior.
Não ficam dúvidas por aqui.

XIV -
Mas, como bem salienta a Digna Magistrada Recorrente, para que as penas sejam suspensas, mantém-se na lei a exigência de que com tal suspensão se não atinjam as necessidades de reprovação e de prevenção dos crimes.
A lei actual suprimiu a referência expressa a tal, mas isso não significa que não se mantenham.
Usa agora a expressão " realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição." Contudo, como salienta o Dr. Gonçalves da Costa (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, 351), os pressupostos da suspensão são os mesmos da lei anterior.
Voltamos, pois, às considerações de prevenção geral agora "sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico " ( Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 344 )
Estas exigências mínimas apontam, no caso de crime de homicídio voluntário, para a não suspensão da pena. Já se disse o que representava a vida humana e como é imperiosa a necessidade de optar por um regime punitivo que assegure uma protecção particularmente eficaz desse valor.
Só que, o caso presente parece-nos de excepção, conducente ao um esbatimento das exigências mínimas. Tratou-se dum caso de amor e ciúme, com a alteração psicológica que se referiu e que levou a que uma pessoa passasse tangencialmente à morte. Mas essa mesma pessoa foi visitar a arguida à prisão, reatou com ela a vivência em comum e voltou a traí-la. Há aqui todo um circunstancialismo que se situa bem no íntimo duma relação afectiva e menos no mundo objectivo das relações sociais. Uma situação em que as exigências de defesa do ordenamento jurídico - naturalmente existentes - cedem algo da sua relevância à especificidade resultante dum modo de sentir entre duas pessoas. Com a consequente dificuldade de apreensão e consequente valoração no plano objectivo, onde se situam as ditas exigências mínimas e irrenunciáveis de prevenção geral.

XV -
Este tribunal tem acentuado a relutância na suspensão das penas nos crimes de homicídio, mas no acórdão de 5.5.05 (que se pode ver em www.dgsi.pt ) foi para a suspensão. O caso apreciado, ainda que de homicídio tentado, era bem diferente do nosso, mas fica sempre, de interesse para aqui, a negação da rigidez consistente no afastamento da suspensão. Aliás, a absoluta rigidez só poderia constar da lei e não consta.

XVI -
Nestes termos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Sem tributação.

Lisboa, 8 de Março de 2006
João Bernardo
Pires Salpico
Henriques Gaspar
Políbio Flor
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(1) Note-se, todavia, que, a posição não é unânime. Contra, tem-se manifestado o Prof. Faria e Costa ( Tentativa e Dolo Eventual, Estudos em Homenagem ao Prof. Eduardo Correia, I, vol. 674 e seg.s, Formas do Crime, Jornadas de Direito Criminal, CEJ, 157 e seguintes e RLJ, 132.º n.ºs 3903 e 3907 ), Dr. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 17.ª ed., 123 e, em Espanha, Joseph Maria Tamarito Sumalla, La Tentativa Con Dolo Eventual, 557.

(2) Também aqui, todavia, sem absoluta consonância - veja-se o Ac. deste tribunal de 13.7.2005 ( processo n.º 2122/05 - 3 ).