Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A3624
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PONCE DE LEÃO
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
RESPONSABILIDADE DO PROPRIETÁRIO DO NAVIO
Nº do Documento: SJ200311250036246
Data do Acordão: 11/25/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 10583/02
Data: 03/20/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : - O contrato de transporte de mercadorias por mar é um contrato formal, titulado através dos conhecimentos de carga, que funcionam como recibo do recebimento da mesma, em que o transportador se vincula perante o destinatário a fazer o transporte de determinada mercadoria de um porto para outro, e ainda a entregá-la no local que convencionarem.
- Nos termos da Convenção de Bruxelas, as operações de carga e descarga são, no plano contratual, da responsabilidade do transportador.
- Conhecida, com base nas menções constantes dos conhecimentos de carga, a identidade do trans-portador, não será aplicável o disposto no artigo 28º do Dec-Lei 352/86, que prevê a responsabilidade, perante os interessados na carga, do próprio navio que efectuou o transporte.
- Em conformidade com o artigo 1º alª a) da Convenção de Bruxelas, o transportador é o proprietário do navio ou o afretador que foi parte num contrato de transporte com um carregador e não os dois simultaneamente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

"A- Transportes e Navegação, SA" veio intentar a presente acção, contra
"B - Companhia de Navegação, SA,"
- "C",
- "D", e
- Navio "Sajo", representado por "E - Agência de Navegação, SA," pedindo a condenação das RR. a pagar-lhe a quantia de 10.287.118$00, acrescida de juros legais, desde a citação, bem como daquela que se vier a liquidar em execução de sentença, referentes aos prejuízos por si sofridos, em consequência do extravio de mercadorias objecto de transporte, contratado com a 1ª R., e alegadamente da responsabilidade das 2ª e 3ª RR., esta na qualidade de proprietária respectiva, efectuado pelo referido navio.
Devidamente citadas, apenas a Ré proprietária do navio D e navio "Sajo" vieram contestar, excepcionando a sua ilegitimidade e sustentando não se acharem, por qualquer forma, obrigadas a ressarcir a A. pela alegada falta de mercadorias.
Ambas concluem pela improcedência da acção, na parte a si respeitante.
Efectuado julgamento, foi proferida sentença, onde se julgou o navio "Sajo" parte ilegítima, que, como tal, foi absolvido da instância, tendo sido conde-nados todas as demais RR. no pagamento das quantias peticionadas.
Inconformada, veio a R. D interpor o presente recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que viria a proferir acórdão dando provimento ao recurso, assim absolvendo a Ré recorrente do pedido, mantendo no mais o decidido pela 1ª instância.
Foram dados como provados os factos seguintes:
1. A A. é uma empresa que se dedica à actividade de transitário.
2. A 1ª R. é uma empresa de navegação que exerce a actividade de transportes marítimos.
3. A 2ª R. é uma empresa de nacionalidade espanhola que se dedica a actividades relacionadas com o transporte marítimo de mercadorias.
4. A 3ª R. é uma companhia de navegação, de nacionalidade húngara, que exerce a actividade de transportes marítimos de mercadorias.
5. Para o efeito, possui uma frota composta por vários navios, entre os quais o navio denominado "Y".
6. O 4º R. é um navio de transporte de mercadorias cujas características principais são as que constam da respectiva folha do "Lloyd's Register of Ships".
7. No exercício normal da sua actividade de transitário, a A. angariou junto de vários exportadores diversas mercadorias destinadas a Angola.
8. Para transporte destas mercadorias, a A. entrou em negociações com a "E - Agência de Navegação, Lda."
9. A E é uma empresa que exerce a actividade de agente de navegação no porto de Lisboa e que, neste caso, actuava na qualidade de agente da 1ª R. B.
10. Todos os actos praticados pela aludida E foram praticados em nome e representação da 1ª R. B.
11. Entre a A. e a 1ª R. B foi então acordado que as mercadorias em questão fossem transportadas do porto de Lisboa para o porto de Luanda pelo navio "Sajo".
12. Para concretização desta operação de transporte e acondicionamento das mercadorias, a 1ª R. B entregou à A. 5 contentores de 20, vazios, com os seguintes nºs de identificação: ITLU 670187/8; ITLU 671430/3; ITLU 190558/6; CTIU 162628/3; ITLU 967970/7.
13.Destinavam-se estes contentores ao acondicionamento das mercadorias angariadas pela A. que seguidamente se discriminam:
a) Da Sociedade de Construções F
6 volumes com mobiliário
2 volumes com central e banheira de hidromassagens ITLU 671430/3
1 volume com grupo electrogéneo
263 volumes com produtos alimentares ITLU 670187/8
80 volumes com tabaco manufacturado.
b) Da "G - Importação e Exportação, Lda"
22 volumes com azulejos, mosaicos, têxteis, filtros, ferramentas e panelas LUSU 190558/6
c) Da "H - Comércio Internacional e Participações, Lda"
33 volumes com peças de acessórios para automóveis ITLU 670187/8
d) Da "I - Comércio e Indústria, Lda"
5 volumes com máquinas de assar e acessórios ITLU 670187/8.
e) Da "J - Indústrias Metalomecânicas X. Damião, Lda"
4 volumes com lavadoras de alta pressão ITLU 670187/8.
f) Da L
20 volumes com portas e mobiliário ITLU 670187/8
12 volumes com material de escritório e mobiliário
- Do mesmo lote de mercadoria fazia parte um automóvel BMW com a matrícula EL-, pertencente a M
- Também um auto Renault Express L.
- Conforme acordado com a 1ª B, a A. entregou-lhe para embarque os cinco contentores referidos contendo as mercadorias acima discriminadas e entregou também as duas viaturas indicadas nos artigos anteriores.
- Conforme acordado, os contentores e as viaturas foram carregados no navio "Sajo".
- Após o carregamento, a 1ª R. B emitiu os conhecimentos de carga constantes de fls. 3 a 8, juntos com a p.i.
- Esses conhecimentos de carga, nos quais a A. figura como carregador, foram entregues pela R. B à A.
- A Autora pagou o respectivo frete.
- O navio "Sajo" largou de Lisboa no dia 9/12/92.
- Não foram as mercadorias referidas transportadas para Luanda, seu porto de destino, em cumprimento do contrato de transporte dos autos.
- Porquanto o navio "Sajo", após sair de Lisboa, rumou para o porto espanhol de Cádis e descarregou neste porto todos os contentores mencionados antes, bem como as viaturas referidas.
- Posteriormente os mesmos contendores foram reembarcados no navio "Marseille" que largou de Cádis em 30/3/93.
- E os transportou para o porto de Bissau, República da Guiné-Bissau.
- Onde todas as mercadorias acondicionadas nos aludidos contentores foram vendidas por um residente na cidade de Bissau.
- De toda a mercadoria só não reembarcaram no navio "Marseille" as viaturas referidas.
- O que possibilitou a sua recuperação pela A.
- Foram também emitidos, igualmente em Lisboa, com a mesma data e para o mesmo navio outros conhecimentos de carga, que a seguir se indicam :
a) conhecimento de carga nº1, titulando o transporte de 2 viaturas auto;
b) conhecimento de carga nº1, titulando o transporte de 34 contentores de 20, entre os quais os já referidos.
- Estes conhecimentos de carga têm também a data de 9/12/92, referem o mesmo porto de carga - Lisboa - e o mesmo porto de descarga - Luanda, dizem respeito ao mesmo navio "Sajo" e titulam o transporte da mesma mercadoria.
- Figura neles como transportador a 2ª R.C.
- Estão assinados pelo capitão do navio "Sajo" sobre o carimbo deste navio, carimbo do qual consta a denominação abreviada da 3ª R. D.
- Logo que, em 22/4/93, teve conhecimento de que a mercadoria em causa nos presentes autos havia sido descarregada no porto espanhol de Cádis, a A. diligenciou no sentido de obter reexpedição para o seu destino - Luanda.
- A A. desenvolveu também em Bissau diligências para recuperar a mercadoria.
- Os clientes da A. referidos ficaram assim desapossados das suas mercadorias.
- Impossibilitados de dar cumprimento aos contratos de venda daquelas mercadorias a que se tinham obrigado.
- Logo que tomaram conhecimento da realidade da situação os clientes da A. responsabilizaram-na pelas consequências da mesma.
- Conhecida a presença das 2 viaturas auto ainda no porto de Cádis, a A. tomou as providências necessárias para as recuperar, nomeando localmente advogado e através da sua intervenção fez reexpedir as 2 viaturas para o porto de Lisboa, em 9/7/93.
- As viaturas Renault Express e BMW foram transportadas de Cádis para Lisboa pelo navio "TMP Taurus".
- A viatura Renault Express foi reexpedida pela A. de Lisboa para o seu destino final - Luanda - para onde foi transportada pelo navio "Tagama".
- A viatura BMW encontra-se ainda no porto de Lisboa, aguardando instruções do seu proprietário quanto à reexpedição para Luanda.
- Com a recuperação de viaturas em Cádis e a reexpedição para Luanda, a A. teve de incorrer nas seguintes despesas :
Despesas em Cádis e frete Cádis/Lisboa - 471.197$00 + 2.320$00;
Transporte da viatura Renault Express do Entreposto de Xabregas para o terminal da Liscont -17.000$00;
Despacho de exportação da viatura Renault Express de Lisboa para Luanda - 122.786$00;
Frete marítimo Lisboa/Luanda e outras despesas portuárias e taxa de conhecimento de carga -155.910$00;
Despesas e honorários de advogado em Cádis - 152.775$00;
Total - 921.988$00.
- A A. desenvolveu com a sua cliente F, um processo negocial para resolução deste caso, que se concluiu com a celebração de um acordo.
- No cumprimento do referido acordo a A. pagou a esta sua cliente a quantia de 5.238.030$00, correspondente ao valor da mercadoria perdida pela F.
- E pagou-lhe ainda a quantia de 4.127.100$00, a título de reembolso do preço que a F, teve de despender em Bissau para recuperar a central hidropneumática e a banheira de hidro-massagem, do despacho e frete marítimo das mesmas de Bissau para Luanda.
- A A. terá, para cumprimento do contrato que celebrou, que suportar todas as despesas, custos e encargos com a expedição para Luanda de viatura BMW EL, incluindo despacho, frete marítimo e outros encargos.
- A empresa "I - Comércio e Indústria, Lda", reclamou à A. o pagamento de indemnização de USD 22.659, pela perda de 5 volumes com máquinas de assar e acessórios.
- Mercadoria esta acondicionada no contentor ITLU 67018718, titulado pelo conhecimento de carga nº7 CONT, emitido pela 1ª R. B.
- Também a "H - Comércio Internacional e Participações, Lda", reclamou junto da A. a perda de 39 volumes de peças e acessórios para automóveis.
- Mercadoria esta acondicionada no contentor ITLU 67018718, titulado pelo conhecimento de carga nº7 CONT, emitido pela 1ª R. B.
- A H não quantificou o montante da sua reclamação pelas razões que refere na sua carta nº 3121193/ASI, de 21/6/93, e que residem no esforço que alega estar a fazer no sentido de reduzir os prejuízos no mínimo possível.
- Do mesmo modo, a empresa L, Lda, reclamou junto da A. a perda das mercadorias referidas.
- Mercadorias estas acondicionadas no contentor ITLU 67018718, titulado pelo conhecimento de carga nº 7 CONT, emitido pela 1ª R. B.
- O montante desta reclamação deduzido o valor da viatura Renault Express entretanto recuperada não será inferior a USD 48.937,35 (61.307,46 - 12.370,11).
- A "J - Indústrias Metalomecânicas X. Damião, Lda", reclamou junto da A. pela perda da sua mercadoria constituída por 4 volumes de lavadores de alta pressão.
- Mercadoria esta acondicionada no contentor 67018718, titulada pelo conhecimento de carga nº 7 CONT, emitido pela 1ª R. B, cujo valor CFR não é inferior a 12.251 USD.
- Recentemente, a J que efectuava periodicamente pagamentos por conta deixou de efectuar o pagamento dos saldos em dívida à A., alegando a ocorrência dos factos descritos na p.i.
- O ocorrido com as mercadorias referidas afectou gravemente a imagem comercial da A. perante os seus clientes.
- Com efeito, a I em Agosto de 1993 e a J em Outubro de 1993 deixaram, após verificação dos factos objecto da presente acção, de recorrer aos serviços da A.
- Os restantes clientes atingidos têm igualmente vindo a informar a A. de que, se não forem devida-mente indemnizados, deixarão de recorrer aos seus serviços.
- No exercício da sua actividade, a co-R. D, fretou (deu em aluguer) por carta-partida a tempo, datada de 3/12/92, em La Coruna, o referido navio "Sajo" à co-Ré espanhola C, contrato titulado pelo doc. de fls.132 a 144.
- Era esta companhia de navegação espanhola quem detinha a gestão comercial do navio.
- Os co-Réus D e Sajo não encetaram ou mantiveram quaisquer negociações com a A., nem com os clientes da mesma referidos nos autos.
- Foi a co-Ré C, que deu instruções ao comandante para rumar para o porto espanhol de Cádis.
- A Ré B não dispunha da gestão comercial do navio "Sajo".
A parte decisória do acórdão recorrido, que, diga-se, desde já, não merece qualquer censura, é do seguinte teor:
"A questão a decidir resume-se, pois, à apreciação da responsabilidade da Ré D, ora apelante, na sua qualidade de proprietária do navio transportador, pelos prejuízos cujo ressarcimento se reclama.
Resulta, a tal respeito, da factualidade dada como provada que, havendo a apelante fretado, a tempo, esse navio, à Ré C, detinha esta a gestão comercial respectiva - tendo sido a mesma Ré C quem, na referida qualidade, deu instruções ao comandante da embarcação para rumar ao porto de Cádis, onde veio a ser feita a descarga das mercadorias em causa.
Define o art. 22º do Dec-Lei 191/87, de 29/4, como contrato de fretamento a tempo aquele em que o fretador se obriga a pôr à disposição do afretador um navio, para que este o utilize durante certo período de tempo.
Em caso de afretamento, pertence, de acordo com os arts. 25º e 26º, a gestão náutica do navio ao fretador e a sua gestão comercial ao afretador.
Dispondo o art. 28º desse diploma que, em tudo quanto se relacione com a gestão comercial do navio, deve o capitão, dentro dos limites da carta-partida, e sem prejuízo do cumprimento das obrigações específicas da sua função, obedecer às ordens e instruções do afretador.
"O contrato de transporte de mercadorias por mar é um contrato formalizado através do conhecimento de embarque ou carga em que uma das partes (o transportador) se obriga perante a outra parte (o destinatário) às operações de carga e descarga de determinada mercadoria, transportada de um porto para outro, e ainda a entregá-la no local que convencionarem.
Ao contrato de transporte de mercadorias por mar, sujeito ao regime do Dec-Lei 352/86, de 21/10, aplica-se, imperativamente, a Convenção de Bruxelas de 23/8/24, quer se trate de transporte internacional, quer de transporte interno.
Nos termos da Convenção de Bruxelas, as operações de carga e descarga são, no plano contratual, da responsabilidade do transportador" (ac.STJ, de 23/9/97, BMJ nº 469, pág. 598).
Conhecida, com base nas menções constantes dos conhecimentos de carga, a identidade do trans-portador, não será ao caso aplicável (como se decidiu em 1ª instância) o disposto no art. 28º do Dec-Lei 352/86, ao prever a responsabilidade, perante os interessados na carga, do próprio navio que efectuou o transporte.
E, assente ter o seu extravio decorrido da descarga de mercadorias no porto de Cádis, resultante de instruções, nesse sentido, emanadas da Ré C, afigura-se de igual modo evidente que tão somente a esta, e não também à apelante - a qual não foi, aliás, parte no contrato celebrado com a apelada - deverá imputar-se responsabilidade pelos danos daí emergentes.
Ilação a que não pode obstar a alegada circunstância de terem os conhecimentos de carga sido assinados pelo capitão do navio transportador - uma vez que, desses títulos, de forma alguma se pode extrair hajam tais assinaturas sido apostas em representação do proprietário, em lugar do afretador respectivo.
Não se vislumbrando, perante a factualidade descrita e à luz do direito vigente, qualquer fundamento para a sua imputação à apelante, se haverá, assim, ao invés do decidido, de concluir não ter aquela de responder pelos invocados danos.
Pelo acima exposto, se acorda em, concedendo provimento ao recurso, alterar a decisão recorrida, absolvendo-se a Ré apelante do pedido contra si formulado - mantendo-a, em tudo o restante.".

Inconformada, veio a Autora interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo, atempadamente, apresentado as respectivas alegações, que concluiu pela forma seguinte:
1ª) Para que as condições da carta-partida pudessem ser oponíveis à A. ora Recorrente, teria sido necessário alegar e provar que esta tinha conhecimento da carta-partida e das suas clausulas.
2ª) O ónus de produção desta prova recaía sobre a Ré D.
3ª) A Ré D, porém, nem sequer alegou, e muito menos provou que a A. ora Recorrente tinha conhecimento da carta-partida e do seu conteúdo à data em que foi celebrado o contrato de transporte das mercadorias em causa.
4ª) Tem que se concluir que a A., ora Recorrente, não tinha conhecimento daquele contrato, uma vez que só a partir da apresentação da Contestação é que teve possibilidade de tal, pelo que o contrato de fretamento não é oponível à A. Recorrente.
5ª) As relações desta com a R. Recorrida D regulam-se, exclusivamente, pelos conhecimentos de carga, não podendo ser invocado contra a A. que a gestão comercial do navio havia sido transferida por via do contrato de fretamento para a Ré D (cfr. art. 28º do Dec.Lei nº 352/86, de 21/10).
6ª) Os conhecimentos assinados pelo capitão do navio "SAJO" foram-no em cumprimento do estipulado na cláusula 46. da carta-partida que estipula, em resumo, que todos os conhecimentos ainda que assinados pelo afretador se consideram assinados em nome do capitão.
7ª) É também verdade que o capitão dispõe de um poder geral para assinar conhecimentos em nome dos armadores.
8ª) Ainda que os armadores pretendam impor limitações a este poder geral do capitão do navio, esta limitação só terá valor contra terceiros se o armador provar que estes tinham conhecimento de tal limitação.
9ª) Por isso, quando os conhecimentos de carga são assinados pelo capitão o contrato que eles materializam considera-se celebrado entre os portadores dos conhecimentos e o armador do navio.
10ª) Nestas condições, tem que se reconhecer que no presente caso a cláusula 17. dos conhecimentos de carga ("Identity of carrier") não pode deixar de ser considerada válida, porque está em total consonância com a cláusula 46. da carta-partida, realidade da qual a A. só teve conhecimento após a apresentação da contestação.
11ª) Os conhecimentos dos presentes autos assinados pelo capitão do navio "SAJO" materializam, pois, um contrato de transporte de mercadorias por mar ao abrigo de conhecimento de carga, celebrado entre a R. D, armadora do navio "SAJO" e a A. ora Recorrente.
12ª) O capitão do "SAJO" assinou os conhecimentos de carga de acordo com a cláusula 46. da carta-partida, em seu próprio nome.
13ª) O capitão era o representante da R. Recorrida "D" e o encarregado do governo e da expedição do navio (Cfr. art. 5º nº 1 do Dec.Lei 384/99, de 23/9), sendo a Ré D responsável pelos actos por este praticados, designadamente pela assinatura dos conhecimentos de carga.
14ª) O crédito peticionado pela A. recorrente goza de privilégio sobre o navio "SAJO", por força do disposto no art. 579º nº 14º do Código Comercial Português e do art. 2º nº 4 da Convenção de Bruxelas de 1926 sobre privilégios e hipotecas marítimas, da qual tanto Portugal como a Hungria, país da nacionalidade do navio, são Parte Contratante.
15ª) Sendo a Ré D a proprietária do navio, era ela quem tinha que responder pelo ónus que recaía sobre o navio "SAJO", razão por que também, por esta circunstância, a indemnização privilegiada que constitui o pedido nos presentes autos, podia ser exigida à Ré ora Recorrida D.
16ª) A Ré D deve ser condenada no pedido deduzido na presente acção.
Foram apresentadas contra-alegações, onde se defendeu a bondade e manutenção do Julgado.
Os autos correram os vistos legais. Cumpre decidir.
Decidindo:
Tal como supra já se deixou referido o acórdão recorrido, ainda que sucinto, merece o nosso pleno acolhimento, pelo que não poderá deixar de ser confirmado, usando até da faculdade prevista no artigo 713º nº 5 do Código Processo Civil, por se não justificarem outras grandes considerações.
Apenas se farão alguns comentários, no sentido de melhor ficar evidenciada a bondade da decisão tomada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Desde logo, importará que não percamos de vista que a causa de pedir na presente acção é o incumprimento de um contrato de transporte de mercadorias por mar, titulado por conhecimentos de carga.
Ora, o contrato de transporte de mercadorias por mar é "aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar determinada mercadoria de um ponto para outro diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominado frete" - cfr. artigo 1º do Decreto-Lei nº 352/86, de 21 de Outubro.
Temos, pois, que neste tipo de contrato, emerge para o transportador fundamentalmente a obrigação de fazer chegar uma certa mercadoria a determinado destino.
Caso tal não aconteça, seja, caso se verifique o incumprimento desse contrato e daí derivem danos, importará apreciar quem foi, em concreto, o transportador.
A disciplina do contrato sub judicie consta, no essencial, do Decreto-Lei nº 352/86, na senda do preceituado pela Convenção de Bruxelas de 1924 sobre conhecimentos de carga, isto, quer se trate de transporte internacional, quer de transporte interno, como se deixou assinalado no acórdão recorrido.
Ora, em conformidade com a referida Convenção de Bruxelas, "o armador (1) é o proprietário do navio ou o afretador que foi parte num contrato de transporte com um carregador" - cfr. artigo 1º alª a).
No caso, o carregador será a Autora.
Interpretando esta alínea, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.1979, publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 292º-398, entendeu que a disjuntiva "ou" aí aplicada é exclusiva e não inclusiva e, por isso, armador será o proprietário ou o afretador, "um ou outro e não um e outro, simultaneamente".
"Por conseguinte, o que ali se quer dizer é que armador e, portanto, parte no contrato de transporte, é o proprietário do navio ou o afretador, quando um ou outro tenha sido parte num contrato de transporte com um carregador e não os dois simultaneamente".
Ora, no caso sub judice não restam quaisquer dúvidas que quem actuou como "transportador" (2) foi a afretadora do "Sajo" e não a sua verdadeira proprietária, no caso, a recorrida.
Para tanto, recorde-se alguns dos factos dados como provados:
- No exercício da sua actividade, a D fretou, por carta-partida a tempo, datada de 3.12.92, em La Coruna, o seu navio "Sajo" à C., que era quem detinha a gestão comercial do navio.
- A D não encetou ou manteve quaisquer negociações com a A (carregadora) nem com os clientes da mesma referidos nos autos.
- Foi a C. que deu instruções ao comandante para rumar para o porto espanhol de Cádis.
- A Ré B não dispunha da gestão comercial do navio "Sajo".
Verificamos, assim, que se celebrou um contrato de fretamento entre a ora recorrida e a empresa espanhola C; e contrato de fretamento é "aquele em que uma das partes (fretador) se obriga em relação à outra (afretador) a pôr à sua disposição um navio, para fins de navegação marítima, mediante uma retribuição pecuniária, denominada frete" - cfr. al. 1º do Decreto-Lei nº 191/87, de 29 de Abril.
Como se disse, tendo havido contrato de fretamento do navio, o "transportador" deixou de ser o proprietário do navio para passar a ser o afretador, que, assim, ficou perfeitamente determinado.
E por assim ser, deixou de haver lugar à aplicação do nº 1 do artigo 28º do Decreto-Lei nº 352/86, que determina: "Se ocorrer a nulidade prevista no nº 1 do artigo 10º ou se o transportador marítimo não for identificável com base nas menções constantes do conhecimento de carga, o navio que efectua o transporte responde perante os interessados na carga nos mesmos termos em que responderia o transportador.".
Acresce que - está provado - no rosto dos conhecimentos de carga figura como transportador a Ré C e ainda que inexistiu qualquer relação contratual entra a ora recorrente e a proprietária do "Sajo".
E são os conhecimentos de carga que contêm as condições do transporte e fazem prova da existência de um contrato de transporte marítimo, tendo ainda a função de recibo (3), porquanto é pela assinatura do capitão do navio que se confirma o embarque da mercadoria.
E o § 4 do artigo 3º da Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924, para unificação de certas regras em matéria de conhecimento, refere que o conhecimento de carga constituirá presunção, salvo prova em contrário, da recepção pelo armador das mercadorias tais como foram descritas naquele documento (cfr. Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 133, Pág. 189).
E o certo é que os mencionados conhecimentos de carga, que foram emitidos pela afretadora C, tendo sido de facto assinados pelo capitão do "Sajo", indicam com clareza que a empresa transportadora era a dita C, sendo também inquestionável, face à prova produzida, que, jamais, as assinaturas do capitão foram feitas enquanto e na qualidade de representante da proprietária do navio que tripulava.
Situação diferente seria aquela em que os conhecimentos de carga não indicassem, com precisão, quem era a transportadora ou quem actuava como tal; como supra já se referiu, em tal caso, seria responsável o navio e poderia ser responsabilizada também a proprietária do mesmo, nos termos do referido artigo 28º do Decreto-Lei nº 352/86.
De facto, para os efeitos deste comando legal, é atribuída ao navio personalidade judiciária, cabendo a sua responsabilidade em juízo ao proprietário, ao capitão ou seu substituto, ou ao agente de navegação que requereu o despacho do navio - cfr. artigo 28º nº 2 do Decreto-Lei nº 352/86.
Esta necessidade de responsabilizar o navio, resulta do facto de nem sempre a responsabilização pura do seu proprietário se revelar suficiente, porquanto os registos oficiais são, por vezes, deficientes quanto à identidade do armador, sobretudo nos casos das "single-ships companies", que mais se assemelham a sociedades fantasmas, com sede na Libéria ou no Panamá (4).
Daí a necessidade de responsabilização do navio o que no direito marítimo não deixa de ser frequente. Neste, para além da acção in personam contra o seu proprietário, torna-se assim possível exercer uma acção in rem contra o navio.
Porém, no caso presente, nem uma, nem outra, se justificam, já que, com segurança se conhece quem actuava como armador/transportador, como responsável, em suma. Isto, face ao demonstrado contrato de afretamento, em que actuou como fretador a ora recorrida e como afretadora a Ré C, que era quem detinha, na oportunidade, a gestão comercial do navio.
Em suma:
O acórdão recorrido é de uma total clareza, sendo certo que nele se fez um adequado enquadramento jurídico dos factos dados como assentes e se encontra suficientemente fundamentado, pelo que nenhuma censura entendemos dever ser-lhe feita, já que com o mesmo nos identificamos na plenitude, não só no que concerne à decisão stricto sensu, mas também quanto aos respectivos fundamentos.
Assim sendo, fazendo uso do que é preceituado no nº 5 do artigo 713º do Código de Processo Civil, ACORDAM os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e se decide confirmar in totum o acórdão recorrido
Custas pela Recorrente.

Lisboa, 25 de Novembro de 2003
Ponce de Leão
Afonso Correia
Ribeiro de Almeida
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(1) "Armador" constitui a expressão utilizada na tradução da convenção; nesta falava-se em "transporteur", pelo que a mesma deverá ser entendida como "transportador".
(2) "O transportador será aquele que se obriga a transportar determinada mercadoria, pouco importando saber se ele é proprietário ou afretador do navio" - cfr. Contratos de utilização do navio, vol. II, pág. 83, Lisboa, 1988.
(3) Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 15.6.99 in Colectânea de Jurisprudência, Ano 1999, Tomo III, Pág.214.
(4) Cfr. Sobre o Contrato de Transporte de Mercadorias por Mar, estudo de Mário Raposo publicado no Boletim do Ministério da Justiça nº 376, pág. 5 e segs.