Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B4064
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: JULGAMENTO
DECISÃO
REMISSÃO PARA OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: SJ20071204040647
Data do Acordão: 12/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O ACORDÃO
Sumário :
1. Havendo impugnação da decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância, não pode a Relação limitar-se no recurso a negar provimento ao recurso e a remeter para os fundamentos da decisão impugnada.
2. Afirmando a Relação o seu entendimento dissonante quanto a algum ponto do fundamento do julgado na primeira instância, vedada lhe estava a decisão nos termos do nº 5 do artigo 713º do Código de Processo Civil.
3. Suscitada no recurso, além de várias outras, a questão jurídica da inconstitucionalidade normativa, de que o tribunal recorrido não conhecera, vedado estava à Relação, só por isso, o julgamento nos termos daquele normativo.
4. A referida infracção processual consubstancia-se na violação do normativo mencionado sob 2 e na omissão de pronúncia a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
AA intentou, no dia 6 de Dezembro de 1996, contra BB e CC, acção declarativa constitutiva e condenatória, pedindo a execução específica de identificado contrato promessa de dação em cumprimento celebrado com o primeiro e suprimento da autorização da segunda, a concessão de um prazo não inferior a 120 dias para registo provisório da hipoteca a favor do banco financiador e a condenação de ambos a indemnizá-lo pelos prejuízos resultantes da dilação temporal no cumprimento da promessa, a liquidar em execução de sentença, previamente retidos no valor a consignar em depósito.
Motivou a sua pretensão no não cumprimento pelo réu do referido contrato-promessa relativo a identificada fracção predial dito celebrado com o réu no dia 23 Julho de 1996, registado provisoriamente, contra o recebimento de 5 000 000$, ser aquela fracção predial, penhorada a seu favor para garantia de quantia exequenda de 1 294 657$50, bem próprio do réu e necessária autorização da ré, seu cônjuge.
A ré, em contestação, invocou a excepção do erro na forma de processo quanto ao suprimento do consentimento, não ter o autor tido posse da fracção predial, existir anterior contrato-promessa celebrado entre o réu e IC e ter sido levantada a penhora da fracção predial na sequência do pagamento da quantia exequenda.
E deduziu reconvenção, pedindo a declaração de ter dado consentimento ao réu, no dia 19 de Setembro de 1994, para venda da fracção predial a IC, e da resolução do contrato-promessa celebrado com o autor por se ter verificado a condição resolutiva de pagamento nele prevista, a nulidade da aquisição provisória por falta do seu consentimento, a condenação daquele a requerer o levantamento da penhora e o cancelamento dos respectivos registos, e a pagar-lhe 1 000 000$ de indemnização por litigância de má fé.
IC deduziu, no dia 11 de Junho de 1997, incidente de oposição, formulando pedidos idênticos aos formulados pela ré e o de declaração de nulidade do referido contrato-promessa por simulação, e subsidiariamente, para a hipótese de se entender que as regras registais a favor do autor inviabilizam a possibilidade de exercício do seu direito à execução específica deduzido na acção que ia intentar contra o réu, que o autor seja condenado a indemnizá-la no montante de 12 000 000$, 11 000 000$ a título de danos não matrimoniais e 1 000 000$ por litigância de má fé.
Replicou o autor, invocando a não verificação da excepção dilatória do erro na forma de processo e da falta de fundamento do pedido reconvencional, e a ré treplicou no sentido da petição inicial.
IC intentou, no dia 12 de Junho de 1997, contra BB, acção declarativa constitutiva, com processo ordinário, pedindo a execução específica do contrato-promessa de compra e venda com ele celebrado concernente à mencionada fracção predial, ou, subsidiariamente, a sua resolução por incumprimento e a condenação daquele a pagar-lhe a indemnização de 20 000 000$, correspondentes ao dobro do que lhe entregou e juros de mora, e, em qualquer caso, a declaração da nulidade e o cancelamento dos registos de aquisição em nome de AA.
Invocou que o réu, depois de celebrado consigo o mencionado contrato-promessa de compra e venda, de ter recebido o preço e de haver autorização de venda de CC e de ter negado celebrar o contrato, outorgou com AA o outro contrato-promessa.
O réu não contestou a acção, e a autora requereu a intervenção principal de CC, na posição passiva, mas ela não apresentou a contestação, e as acções foram mandadas apensar.
Na fase da condensação, foi julgada improcedente a excepção dilatória invocada pela ré CC, foi admitida a reconvenção, e o autor agravou da admissão da intervenção de CC requerida pela autora.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, no dia 15 de Março de 2006, por via da qual foi julgado procedente o pedido de execução específica do contrato- promessa formulado por IC contra BB e CC e julgados improcedentes todos os demais pedidos constantes de as acções.
Interpôs AA recurso de apelação, e a Relação, por acórdão proferido no dia 31 de Maio de 2007, julgou-o improcedente, tal como julgou improcedente o mencionado recurso de agravo.

Interpôs o apelante recurso de revista, formulando, em síntese útil, as seguintes conclusões de alegação:
- o acórdão está afectado de erro na identificação do sujeito a que se reporta, e prejudicando-o no concurso de direitos conflituantes, não apreciados, gerando a nulidade prevista nos artigos 668º, nº 3, 716º, nº 1 e 721º, nº 2, do Código de Processo Civil;
- a imputação ao recorrente de inexistentes actos de incumprimento contratual fragilizam a sua posição processual e prejudicaram a apreciação da causa em julgamento;
- o seu direito é anterior ao arrogado por IC quanto à data da fonte, à prioridade do registo da penhora e da aquisição provisória da posse e à ordem de recurso à execução específica em juízo;
- não se trata de registo de simples direitos de crédito emergentes da promessa contratada, mas da posse da fracção predial e da promessa de alienação que a sustenta, é obrigatório o respectivo registo, o que justifica a sua prioridade e efeitos perante terceiros com interesses idênticos e conflituantes sobre ela;
- a antiguidade da promessa a IC cede em razão do registo da posse e da aquisição provisória da fracção predial pelo recorrente e da penhora em execução de obrigação anterior àquela promessa, e o registo provisório convertido em definitivo prevalece sobre os que se lhe seguirem, por força dos artigos 5º, nº 1, e 6º, nºs 1 e 3, do
Código do Registo Predial;
- o exercício dos direitos do recorrente é agravado pela inércia de IC, mormente a notificação à inquilina preferente na alienação;
- não há má fé susceptível de inquinar a dação em cumprimento com a posse imediata da fracção predial, designadamente os efeitos aludidos no que tange ao dispositivo do artigo 291º do Código do Registo Predial;
- o acórdão recorrido, aderindo à sentença, violou o disposto na alínea e) do artigo 2º do Código do Registo Predial, que impõe o registo da mera posse, conforme o convencionado no contrato-promessa;
- BB e IC não podiam cumprir a promessa sem expurgo ou transmissão da dívida, se aceite pelo recorrente, nos precisos termos dos artigos 34º, nº 2, do Código do Registo Predial e 595º do Código Civil;
- os recorridos devem indemnizar o recorrente nos termos do artigo 227º do Código Civil pela demora na realização do seu direito sobre a fracção predial e o desgaste psicológico inerente à complexa demanda e empate de capital correspondente;
- devem condenar-se BB, CC e IC como litigantes de má fé, por faltarem à verdade, sonegarem prova e entorpecerem a justiça, em multa e indemnização ao recorrente pelos danos emergentes, de acordo com os artigos 456º e 457º do Código de Processo Civil;
- a interpretação dos artigos 2º, nº 1, 6º, nºs 1 e 3, 92º, nº 1, alínea g), todos do Código do Registo Predial, no sentido do carácter não obrigatório do registo de posse para produzir efeitos perante terceiros viola os imperativos dos artigos 62º, nº 1, 202º, nº 1, 202º, nº 2 e 203º da Constituição;
- a interpretação diferente do artigo 34º, nº 2, do Código do Registo Predial e 227º e 595º do Código Civil viola os imperativos constitucionais dos artigos 13º, 20º, nºs 1, 4 e 5, 62º, nº 1, 202º, nº 2 e 203º da Constituição;
- deve ser declarada a execução específica do contrato-promessa celebrado entre o recorrente e BB, e condenado solidariamente com CC a indemnizá-lo pelos danos causados pela mora no cumprimento das obrigações emergentes do contrato e da penhora que o antecedeu;


II
É a seguinte a factualidade considerada assente no acórdão recorrido:
1. BB, casado com CC no regime de comunhão de adquiridos, é proprietário da fracção autónoma designada pela letra "B", correspondente ao 1º andar do prédio urbano, construído em data anterior a 1951, sito na Rua .... nº.0, na Freguesia de S. Mamede, do concelho de Évora, inscrita na respectiva matriz predial sob o artigo 1306 - B e descrito na Conservatória do Registo Predial na ficha 31/850509 e inscrita no regiato a seu favor como bem próprio por ter sido adquirida por sucessão pela inscrição G1 de 1995.
2. A fracção predial mencionada sob 1 foi penhorada a favor de AA como garantia da quantia exequenda de 1 294 657$50, na execução nº. 50/95 que correu termos no Tribunal da Comarca de Moura, registada pela inscrição F1, de 12 de Outubro de 1995, processo em que aquele declarou, no dia 27 de Junho 1996, ter recebido a totalidade da quantia exequenda, e requereu o levantamento da penhora.
3. IC, na posição de promitente compradora, e BB, na posição de promitente vendedor, declararam, por escrito, em Moura, no dia 19 de Setembro de 1994:
- o segundo ser o único e universal herdeiro de..e ...., conforme escritura de habilitação de herdeiros lavrada em 29 de Junho de 1994 a folhas 57- verso do Livro 43- B do Cartório Notarial do Concelho de Portel;
- os referidos autores das heranças, pais de BB foram proprietários da fracção autónoma designada pela letra B correspondente ao 1º andar, em regime de propriedade horizontal, sito à Rua ..., nº ., freguesia de São Mamede, concelho de Évora, inscrito na matriz sob o artigo 1306, descrito na Conservatória Predial do Concelho de Évora sob o nº. 00031, com inscrição a favor do defunto varão pela inscrição G1/300968.
- ter BB a decorrer o processo para a inscrição, em seu nome, do imóvel atrás indicado, na Repartição de Finanças competente e na Conservatória do Registo Predial do concelho de Évora;
- as despesas relacionadas com a legalização do imóvel, em nome do promitente vendedor, são da sua inteira e exclusiva responsabilidade;
- pelo preço de dez mil contos, já recebido, BB e CC prometem vender a IC a fracção autónoma, designada pela Letra B atrás identificada, arrendada a MN, com residência habitual na Rua ....., número.. , em Évora, livre de quaisquer encargos, hipotecas, não se encontrando cativa de usufruto;
- na falta de cumprimento desta promessa de compra e venda por parte do BB, promitente vendedor, poderá a promitente compradora exigir-lhe a execução específica desta promessa;
- ser a escritura notarial de compra e venda celebrada em data a acordar entre as partes aqui contratantes, e para os diferendos daqui resultantes apenas é competente o Tribunal Judicial da Comarca de Moura.
4. CC declarou no documento mencionado sob 3 aceitar a promessa da compra e venda nos termos atrás exarados, e que o imóvel aqui prometido vender é próprio de seu marido de BB, e que, na qualidade de cônjuge, consentia naquela promessa.
5. IC notificou, através de carta registada com aviso de recepção, em 24 de Fevereiro de 1995, recebida no dia 2 de Março de 1995, o réu BB, a fim de este marcar a respectiva escritura notarial de compra e Venda, resultante do identificado contrato promessa, entre os dias 15 e 31 de Março de 1995, mas ele não a marcou nem a contactou.
6. Está inscrita na Conservatória do Registo Predial de Évora desde 12 de Outubro de 1995, a penhora da fracção predial mencionada sob 1, realizada no dia 12 de Outubro de 1995, para garantia da quantia exequenda no montante de 1 294 657$50, com a menção de ser sujeito activo AA, casado com CR e sujeito passivo BB, casado com CC .
7. Por carta registada com aviso de recepção, que BB recebeu no dia 14 de Abril de 1997, foi novamente este notificado, por IC, a fim de marcar a referida escritura até ao dia 16 de Maio de 1997, mas ele não a marcou nem contactou IC ou o seu mandatário, e ela continua interessada na celebração da escritura do contrato prometido.
8. BB, por um lado, enquanto devedor, e AA, na qualidade de credor, por outro, declararam em 23 de Julho de 1996, por escrito, designado contrato promessa de dação em cumprimento com tornas:
- receber o último em dação em cumprimento a mesma fracção - que tinha sido objecto, em 1994 do contrato-promessa supra identificado;
- ser celebrado de boa fé e livre vontade o presente contrato-promessa de dação em cumprimento com tornas, sujeito às seguintes condições e termos:
- ser BB legítimo proprietário da fracção autónoma designada pela letra B, correspondente ao primeiro andar do prédio urbano sito na Rua ..., nº.0, freguesia de S. Mamede, concelho de Évora, que se encontra inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo nº 1306- B e descrito na Conservatória de Registo Predial de Évora sob a ficha nº 31/850509-6.
- estar a propriedade de tal prédio devidamente inscrita a seu favor com a inscrição G-1 da sobredita descrição registal que lhe adveio de sucessão hereditária sendo, por isso, bem próprio;
- ser AA exequente em acção executiva, que corre no Tribunal Judicial da comarca de Moura com o nº. 50/95, em que é executado BB, e a quantia exequenda de 1 294 657$50, acrescida de juros vincendos à taxa legal, com penhora sobre a mencionada fracção predial, registada como F-1, em fase de citação de credores, para posterior venda
- ter BB em curso no Tribunal de Círculo de Beja, sob o nº 31/96 acção de divórcio litigioso, em que é réu reconvinte, que deu entrada na secretaria judicial em 8 de Fevereiro de 1996;
- a fim de evitar venda judicial de valor previsivelmente abaixo do seu valor real, BB entregar como dação em cumprimento a AA a fracção autónoma referida na cláusula 1ª, para quitação completa da sua dívida acima referida e o acrescido legalmente, incluindo custas e despesas do presente contrato-promessa definitivo e despesas acessórias previsivelmente orçadas em dois milhões de escudos, no total;
- sendo o valor do prédio, por acordo entre as partes, de sete milhões de escudos, AA dará tornas a BB do remanescente, isto é, cinco milhões de escudos, para tanto fará entrega de quinhentos mil escudos até ao final do corrente mês de Julho de 1996 e de igual quantia até ao fim do mês seguinte, ou seja, Agosto de 1996;
- o restante das tornas acordadas será entregue no acto da escritura pública de dação em cumprimento a realizar em cartório notarial a acordar com a instituição bancária financiadora, no prazo máximo de 90 dias contados da última entrega mencionada na cláusula anterior, salvo caso de força maior;
- darem ao presente contrato-promessa de compra e venda a natureza de execução específica, podendo AA outorgante ceder a sua posição a terceiros sem que BB se possa opor.
- entrar AA nessa data na tradição de fracção prometida em dação com plena posse dela e seus frutos.
9. Está inscrito na Conservatória do Registo Predial de Évora, relativamente à fracção predial mencionada sob 1, desde 29 de Julho de 1996, em sequência de apresentação nº 16 dessa data, com a menção provisório por natureza e da alínea g) do nº 1 do artigo 92º do Código do Registo Predial, o facto dação em cumprimento, sujeito activo AA, casado com CR, no regime de comunhão de adquiridos, e sujeito passivo BB, casado com CC, celebrado com base em contrato-promessa de dação em cumprimento com tornas.
10. No dia 30 de Julho de 1996, ocorreu o averbamento oficioso da apresentação mencionada sob 9, ficando a constar aquisição, provisório por natureza, também pela alínea e) do nº 1 do artigo 92º.
11. AA, que exerce a actividade de compra para revenda de imóveis, necessitava de recorrer a crédito bancário para proceder ao pagamento do remanescente do preço, no montante de quatro milhões de escudos.
12. BB, em 31 de Março de 1995, passou procuração a AA para em seu nome e por sua conta tratar de todos e quaisquer assuntos referentes ao seu património mobiliário, imobiliário e financeiro, representando-o junto de sua esposa CC e de sua sogra, IC.
13. AA enviou uma carta registada com aviso de recepção a CC para proceder, por qualquer forma, à necessária autorização para a dação prometida com base na procuração referida sob 12, com a advertência de que responderia civilmente pelos danos subjacentes à injustificada recusa de autorização, e o aviso de recepção em causa foi assinado por IC.
14. AA, aquando da celebração do contrato referido sob 8, tinha conhecimento do anterior contrato-promessa de compra e venda referido sob 3, e de que, nesse contrato promessa de compra e venda, CC deu o seu consentimento para a promessa e consequente venda.
15. AA enviou, no dia 1 de Agosto de 1996, uma carta registada com aviso de recepção a JC, e, no dia 19 de Agosto de 1996, enviou uma carta registada a BB, e, no dia 8 de Novembro de 1996, àquele, uma carta registada com aviso de recepção.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se o recorrente tem ou não direito à aquisição do direito de propriedade sobre a fracção predial em causa com base no contrato que celebrou com BB.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e as conclusões de alegação formuladas pelo recorrente, sem prejuízo de a solução de uma prejudicar a solução de outra ou outras, a resposta à mencionada questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- lei adjectiva aplicável nas acções e nos recursos;
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade?
- natureza e efeitos dos contratos celebrados entre BB e o recorrente e entre o primeiro e IC?
- o registo predial relativo ao segundo dos referidos contratos confere-lhe relevo prioritário em relação ao primeiro?
- deve ou não declarar-se a aquisição pelo recorrente do direito de propriedade sobre a fracção predial em causa?
- tem ou não o recorrente direito a exigir de BB e de CC indemnização por danos?
- tem ou não o recorrente direito a indemnização por litigância de má fé de BB, CC e IC?
- a interpretação normativa no sentido do acórdão recorrido está ou não afectada de inconstitucionalidade ?
Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos pela determinação da lei adjectiva aplicável nas acções e nos recursos.
Estamos no caso vertente perante duas acções, apensadas, uma intentada no dia 6 de Dezembro de 1996 por AA contra BB e CC, e a outra intentada por IC contra BB no dia 12 de Junho de 1997, na qual foi chamada e admitida a intervir do lado passivo CC.
À primeira das referidas acções são aplicáveis, salvo quanto a prazos, as normas do Código de Processo Civil anteriores à revisão que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997 (artigos 6º, nº 1 e 16º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).
À segunda das mencionadas acções é, por seu turno, aplicável o regime processual que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997 (artigo 16º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Todavia, na dinâmica processual que deva ser comum a ambas as acções apensadas é aplicável, como é natural, o regime processual anterior ao que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997.
Como a sentença do tribunal da primeira instância foi proferida no dia 15 de Março de 2006, aos recursos de apelação e de revista são aplicáveis as pertinentes normas do Código de Processo Civil Revisto, ou seja, o regime que entrou vigor no dia 1 de Janeiro de 2007 (artigo 25º, nº 1, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).

2.
Prossigamos com a análise da subquestão de saber se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade.
Alegou o recorrente, em remate de conclusão, estar o acórdão recorrido afectado de erro na identificação do sujeito a que se reporta, prejudicando-o no concurso de direitos conflituantes, não apreciados, gerando a nulidade prevista nos artigos 668º, nº 3, 716º, nº 1 e 721º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Interpretando a referida conclusão de alegação de harmonia com o que se prescreve nos artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, extrai-se dela que o recorrente pretende expressar estar o acórdão recorrido afectado de nulidade por omissão de pronúncia, a que se reportam os artigos 668º, nº 1, alínea d), e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil.
O mencionado sentido é, aliás, confirmado pela expressão do recorrente no corpo das alegações, da qual resulta a afirmação de o acórdão recorrido estar afectado da nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil por omissão de pronúncia sobre a sua posição contratual trazida a juízo, prejudicada pelo erro grosseiro advindo da confusão de litigantes na sua posição processual.
Resulta da lei ser o acórdão da Relação nulo quando deixe de se pronunciar sobre questões de que devia conhecer (artigos 668º, nº 1, alínea d), e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O juiz deve, com efeito, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito, e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito.
As questões a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
Julgada procedente a nulidade decorrente de omissão de pronúncia pela Relação, se for caso disso, impõe-se a baixa do processo a fim de aquele Tribunal operar a reforma do acórdão (artigo 731º do Código de Processo Civil).
O recorrente submeteu à Relação o conhecimento de dois recursos, um de agravo do despacho que admitiu o pedido reconvencional formulado por CC, e outro de apelação e, âmbito deste último, impugnou a decisão da matéria de facto e a decisão de direito.
A Relação negou provimento ao recurso de agravo, sob o fundamento de a admissão do pedido reconvencional o não ter prejudicado, por não ter sido julgado procedente, e, conhecendo da impugnação da decisão da matéria de facto no recurso de apelação, julgou-a improcedente.
No que concerne à matéria de direito, a Relação refere-se na fundamentação ao apelante, naturalmente pretendendo referir-se à sua contraparte, ou seja, a BB.
Afirmou, por um lado, mostrar-se correcta a decisão não obstante entender que o incumprimento a que alude o artigo 830º do Código Civil é o definitivo, tendo por isso de se fixar um prazo para o cumprimento da obrigação sob cominação de a prestação deixar de interessar.
E, por outro, que o facto de IC não haver notificado judicialmente o recorrente sob a cominação de a prestação deixar de lhe interessar não tinha no caso enquadramento específico na medida em que aquela lhe tinha entregue, na data do contrato-promessa, 10 000 000$.
Expressou, ademais, por um lado, ser notório por via do conjunto da prova que o recorrente se furtava ao cumprimento dos seus compromissos, utilizando a mesma fracção para negócio posterior ao contrato firmado com IC, não obstante há muito ter recebido o preço.
E, por outro, ser ainda a fracção predial propriedade do relapso promitente vendedor, à promitente compradora interessar a escritura que ele insistia em não marcar e dever confirmar-se a transferência para aquela do respectivo direito de propriedade.
Finalmente, expressou que, sem necessidade de mais considerações, julgava a apelação improcedente, e que, com a explicação expendida, concordava com os fundamentos de facto e de direito da sentença, e para ela remetia, confirmando-a, nos termos do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil.
O recorrente colocou à Relação, nas conclusões de alegação do recurso de apelação, várias questões que não foram decididas, por virtude de se ter proferido em relação a elas decisão de conformidade, nos termos do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil.
As referidas questões são, essencialmente, por um lado, a da prevalência do contrato-promessa que outorgou por virtude da prioridade derivada do registo predial, a da irrelevância do consentimento de CC para a procedência da sua pretensão de execução específica daquele contrato.
E, por outro, as relativas ao seu direito de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais no quadro da responsabilidade pré-contratual e por litigância de má fé e à de a interpretação normativa em sentido inverso das suas alegações enfermar de inconstitucionalidade.
Acontece, porém, que o recorrente suscitou, no recurso de apelação, a modificação do quadro de facto, bem como várias e complexas questões de direito, e impugnou, em recurso de agravo, uma decisão interlocutória sobre a questão processual acima referida.
A estrutura do acórdão que resulta da lei é no sentido de que ao relatório se seguem os fundamentos, no âmbito dos quais o juiz deve discriminar os factos que considera provados (artigos 659º, nº 2, e 713º, nº 2, do Código de Processo Civil).
A Relação só pode limitar-se a remeter para os termos da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da 1ª instância se no recurso dela não houver impugnação nem fundamento para a sua alteração oficiosa (artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil).
Acresce que a Relação só pode remeter para decisão proferida pelo tribunal da primeira instância e para os respectivos fundamentos no caso de os confirmar inteiramente (artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil).
Da conjugação do que se prescreve nos nºs 5 e 6 do artigo 713º do Código de Processo Civil resulta que, tendo havido impugnação da decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância, não pode a Relação decidir nos termos do primeiro dos referidos normativos.
No caso vertente, não podia a Relação limitar-se a remeter para a decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância, porque, no recurso de apelação, foi a mesma impugnada.
Daí que não podia julgar o recurso de apelação por via da remissão para os fundamentos de facto e de direito envolventes da sentença proferida pelo tribunal da primeira instância.
Acresce que a Relação não confirmou inteiramente o julgado na primeira instância, certo que afirmou o seu entendimento dissonante no sentido de que a simples mora do promitente comprador não bastava à procedência do pedido de execução específica do contrato promessa.
Ademais, como uma das questões suscitadas no recurso de apelação foi a da inconstitucionalidade normativa, que o tribunal da primeira instância não tinha apreciado, não podia a Relação deixar de sobre ela se pronunciar expressamente.
Perante o referido quadro, não podia a Relação limitar-se a decidir por remissão para os termos da decisão proferida pelo tribunal da primeira instância, ou seja, omitiu o conhecimento das questões acima referidas que o recorrente enunciou nas conclusões do recurso de apelação.
Assim, remetendo ilegalmente para a motivação para a decisão e os fundamentos da sentença proferida pelo tribunal da primeira instância, infringiu a Relação o disposto no nº 5 do artigo 713º e incorreu na omissão de pronúncia a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º, todos do Código de Processo Civil.
A conclusão é, por isso, no sentido da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.

3.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.
O acórdão recorrido está afectado de nulidade por omissão pronúncia, pelo que se impõe a sua anulação a fim de a Relação conhecer das questões cujo conhecimento omitiu.
Em consequência prejudicado fica o conhecimento por este Tribunal das questões terceira a oitava acima enunciadas que o recorrente suscitou no recurso de revista.
Procede, nos referidos termos, o recurso de revista interposto por AA.
Dada a natureza formal desta procedência, é responsável pelo pagamento das custas respectivas a parte que ficar vencida a final, na proporção em que o for, salvo se beneficiar do apoio judiciário da modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e de demais encargos com o processo (artigos 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, 15º, nº 1, 37º, nº 1 e 54º, nºs 1 a 3, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, 57º, nºs 1 e 2, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nº 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho).
IV
Pelo exposto, anula-se o acórdão recorrido e determina-se que a Relação o reforme por via do conhecimento das questões de direito suscitadas pelo apelante no recurso de apelação, e condena-se a parte vencida a final no pagamento das custas respectivas, salvo se beneficiar do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e de outros encargos com o processo.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2007.

Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis