Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B4164
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
NOVO JULGAMENTO
CASO JULGADO FORMAL
VONTADE DOS CONTRAENTES
RESPOSTAS AOS QUESITOS
ABUSO DE DIREITO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: SJ200502240041642
Data do Acordão: 02/24/2005
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 11653/01
Data: 04/25/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1. O Supremo, ao ordenar a ampliação da matéria de facto e mandar repetir o julgamento, com base no disposto no artigo 729º, nº 3, do C.Proc.Civil, profere decisão que fixa o thema decidendum, constituindo caso julgado formal, pelo que não podem ser (ou voltar a ser) discutidas questões que se não enquadrem no estrito âmbito por ele definido.
2. A resposta de não provado dada pelo tribunal a um quesito em que se perguntava, visando descortinar a vontade real das partes, se "a fiança prestada pelos executados só subsistiria caso os bens hipotecados e dados de penhor não satisfizessem o montante da dívida" em nada contraria o teor de uma cláusula constante da escritura de fiança de que constava que "a indicada fiança será extinta satisfeitos que sejam os pagamentos até aos montantes afiançados e desde que os bens da sociedade devedora aqui onerados sejam suficientes para garantir o remanescente do débito em falta".
3. O exercício de um direito só poderá taxar-se de abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou, o mesmo é dizer, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Por apenso à execução que contra eles e "Sociedade A, L.da" foi, no Tribunal Cível de Lisboa, instaurada pela "B, Empresa para Agro-Alimentação e Cereais, SA", vieram os executados C e mulher D deduzir embargos de executado, alegando, em síntese, que:

- no âmbito de um processo especial de recuperação de empresa requerido pela executada sociedade, a embargada apresentou e fez aprovar uma proposta, em consequência da qual foi constituída uma nova sociedade, produzindo-se a extinção e modificação dos créditos sobre aquela sociedade, razão pela qual se extinguiram as garantias dadas pelos embargantes, como fiadores;

- por outro lado, a sua obrigação é acessória, pelo que lhes é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito.

Contestou a embargada, pugnando pela improcedência dos embargos porque, como sustenta, da medida de recuperação de empresa subsistiu ainda o montante de 51.796.573$10, com as garantias dadas por terceiros, tendo os embargantes assumido as suas obrigações de principais pagadores.

Decidida a causa no despacho saneador, houve recurso na sequência do qual resultou a anulação da decisão (Ac. STJ de 02/07/96), prosseguindo esta com elaboração de especificação e o questionário, de que não houve qualquer reclamação.

Procedeu-se a julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, vindo, depois, a ser proferida sentença que julgou os embargos improcedentes, por não provados, condenando ainda os embargantes na multa de 200.000$00 por litigância de má fé.

Inconformados, apelaram os embargantes, sem êxito embora, já que o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 25 de Junho de 2002, decidiu julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.

Interpuseram, então, os mesmos embargantes recurso de revista, pretendendo o provimento do recurso.

A embargada, através do Ministério Público, apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do julgado.

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Nas alegações da revista formularam os recorrentes as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690, nº 1 e 684, nº 3, do C.Proc.Civil):

1. A resposta negativa dada ao quesito 1º e único não pode subsistir face ao texto da cláusula 4ª da escritura de 12 de Maio de 1989 que foi levada à especificação (cfr. alínea E) da especificação).

2. Com efeito, tal resposta negativa contraria o sentido inequívoco da vontade das partes vertido na aludida cláusula 4ª levado à alínea E) da Especificação.

3. Na verdade, dizer-se que a fiança seria extinta" desde que os bens onerados fossem suficientes para garantir o débito em falta tem o mesmo e único sentido e conteúdo, ainda que formulado de modo negativo, da expressão utilizada no quesito "a fiança só subsistiria (não se extingue) se os bens onerados não satisfizerem..."

4. Dando-se como provado, como se deu o sentido e conteúdo da cláusula 4ª vertido na alínea E) da Especificação tanto basta para demonstrar o carácter subsidiário atribuído pelas partes à fiança dependendo esta da prévia execução dos bens onerados (com a hipoteca e com o penhor mercantil).

5. Só assim fazendo sentido a expressão utilizada pelas partes contratantes na aludida cláusula 4ª: "desde que os bens da sociedade devedora aqui onerados sejam suficientes para garantir o remanescente do débito em falta".

6. Não sendo possível, face ao disposto no n° 1 do art. 238° do C.Civil, extrair qualquer outra conclusão, dêem-se as voltas que se derem.

7. As providências de recuperação da empresa "Sociedade A, L.da" aprovadas na Assembleia de Credores, homologadas por sentença, não constituem caso julgado em relação aos recorrentes, designadamente quanto à proposta da recorrida B, na medida em que, ao propor, votar e fazer aprovar aquele conjunto de medidas pretendeu manter a fiança dada pelos terceiros fiadores, contra a disposição legal expressa que implicava no caso dos autos a extinção das fianças por força da aplicação do art. 13° do Dec.lei nº 10/90.

8. Tais medidas levaram à extinção da quase totalidade do crédito da recorrida B que converteu em capital social da nova sociedade 297.000.000$00 do seu crédito que ultrapassava à data de 25 de Setembro de 1992 o montante da dívida exequenda pela qual era responsável a "Sociedade A, Lda", mostrando-se assim também verificados os pressupostos de que embargante e embargada B fizeram, nos termos da aludida cláusula 4ª, depender a extinção da fiança.

9. Com efeito, a recorrida B ao propor e fazer aprovar o conjunto de medidas de recuperação que constam da sua proposta, designadamente a constituição de uma nova sociedade por quotas, que passou a dominar em absoluto nela e a deter quase em exclusivo a totalidade do capital social, reservando ainda a prerrogativa de admitir parceiro para a sociedade por si escolhida, ficando a nova sociedade com todo o activo da sociedade devedora, inclusive com todos os bens onerados, a recorrida B faz extinguir o seu crédito no exacto montante do que foi convertido em capital social e que excedeu largamente os valores afiançados, nos termos previstos na cláusula 4ª da escritura de confissão de dívida e penhor junto com a execução, modificou quer quantitativamente o seu crédito, quer qualitativamente, transferindo para a sociedade por si constituída o remanescente do seu crédito, através de novação subjectiva.

10. Através da aludida conversão em capital da nova sociedade, foram efectuados pagamentos que ultrapassaram não só os montantes afiançados, mas também como se disse a quantia exequenda.

11. E, transferindo, como transferiu, para a nova sociedade todo o activo da "Sociedade A, Lda", incluindo todos os bens onerados na escritura referida na alínea A) da especificação, a embargada B renunciou à verificação do segundo pressuposto previsto naquela cláusula na medida em que com tal decisão homologada por sentença retirou a B da esfera jurídica da sociedade devedora tais bens que transferiu para a nova sociedade livres de quaisquer ónus ou encargos.

12. Passando como passou o remanescente do crédito da B a ser devido pela nova sociedade por aquela constituída, extinguiu-se a dívida da "Sociedade A, Lda", através de novação subjectiva por substituição do devedor, pelo que também por esta via teria sempre que considerar-se extinta a fiança: é o que resulta da interpretação e aplicação do disposto do art. 13°, n° 1 do Dec.lei nº 10/90 conjugado com o disposto no art. 9° do C.Civil e 861 do mesmo diploma.

13. As medidas de recuperação propostas pela recorrida B, e que esta fez aprovar, são as medidas previstas nos arts. 26° e seguintes do Dec.lei nº 177/86, que nada têm a ver com a concordata, pelo que por força do disposto no art. 13º do Dec.lei nº 10/90 a recorrida ao propô-las, votá-las e fazendo-as aprovar viu extinguir as fianças dos co-obrigados e consequentemente dos recorrentes.

14. Se fosse necessário que para a aplicação da aludida norma fosse necessário que todo o crédito se extinguisse e não parte, então a norma tornar-se-ia absolutamente inútil.

15. Por outro lado e esta é uma questão nova suscitada nos autos quanto à aplicação do direito, verifica-se que a B ao converter o remanescente do seu crédito reclamado em crédito comum a pagar pela nova sociedade, nos termos da proposta que fez aprovar, impediu os fiadores caso viessem ou venham a pagar a quantia afiançada de ficarem sub-rogados contra a sociedade devedora nos direitos que a esta competiam em consequência do pagamento e consequentemente impedidos de exercerem contra a sociedade devedora o seu direito de regresso.

16. Pelo que, também por esta via os embargantes teriam sempre que considerar-se desonerados das obrigações contraídas por via da fiança, atento o disposto no art. 633° do C.Civil.

17. Manter a fiança, nas circunstâncias descritas já sobejamente referidas, constituiria manifesto abuso de direito como aliás ainda que ao de leve foi sugerido pelo Supremo, já que passando a B, como passou através das mediadas que fez aprovar de recuperação de empresa devedora a dominar praticamente em exclusivo a nova sociedade para onde transferiu todo o património da sociedade devedora, incluindo os bens onerados que respondiam pela divida afiançada, impedindo os embargante caso efectuassem o pagamento da quantia afiançada, de exercerem o seu direito de regresso contra o devedor.

18. Excederia a B manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito, caso subsistisse a fiança.

19. A decisão recorrida fez assim ilegal interpretação e aplicação das normas já invocadas, designadamente, art. 13º do Dec.lei nº 10/90 de 5 de Janeiro, art. 26° e ss. do Dec.lei nº 177/86 de 2 de Julho, arts. 861°, 638°, 653° e 334º do C.Civil e art. 456, n° s 1 e 2, do Código de Processo Civil.

20. Não tendo a mínima consistência a sustentação legal da decisão proferida em primeira instância e confirmada pela Relação que condena os recorrentes como litigantes de má-fé, porquanto, como ficou supra demonstrado, estes pugnaram pela correcta aplicação do direito, defendendo teses que seriamente entendem estar consagradas nas disposições legais que entendem violadas. Nem sequer temerária se poderá considerar a litigância dos recorrentes, sendo inquestionável também no plano ético a justeza das suas teses.

Foram tidos por assentes, no acórdão recorrido, os seguintes factos:

i) - por escritura de 12/05/1999, a "Sociedade A, L.da" confessou-se devedora à embargada do montante de 180.052.227$00, que se obrigou a pagar, nos termos constantes da mesma (fls. 10 a 27 da execução);

ii) - para garantia do bom e pontual pagamento, a mesma sociedade deu de hipoteca três imóveis, identificados na mesma escritura;

iii) - de acordo com a mesma escritura, os embargantes constituíram-se fiadores e principais pagadores da sociedade devedora, respondendo, solidariamente, com ela, até ao montante de 22.860.250$00;

iv) - para reforço e garantia do cumprimento da fiança, os embargantes deram de penhor à embargada a respectiva quota, no valor de 22.860.250$00;

v) - nos termos da mesma escritura, a indicada fiança seria extinta, satisfeitos que fossem os pagamentos até aos montantes afiançados e desde que os bens da sociedade devedora aqui onerados fossem suficientes para garantir o remanescente do débito em falta;

vi) - a referida sociedade encontrava-se, à data da propositura de execução, devedora à embargada de 211.332.699$00, acrescido do juro diário de 68.870$31, a partir de 08/04/91;

vii) - os créditos dados à execução foram reclamados, reconhecidos e aprovados pela assembleia de credores no processo especial de recuperação de empresa nº 114/91, que corre termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Ovar, em que era requerente a sociedade executada;

viii) - no âmbito do referido processo de recuperação de empresa, a embargada apresentou a proposta de fls. 51 a 55, com as alterações referidas a fls. 56 vº e 57, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;

ix) - tal proposta foi aprovada pela assembleia de credores e homologada por sentença, transitada em julgado em 25/09/92;

x) - nos termos dessa proposta, a embargada disponibilizaria para a realização da sua quota (na nova sociedade a constituir) parte do seu crédito, até ao montante de 297.000.000$00, ficando o remanescente do seu crédito com a natureza de comum, distribuído da seguinte forma: 50.000.000$00, imputado à dívida não titulada por hipoteca; e 51.796.573$10, imputado à dívida hipotecária, com todas as garantias adicionais, com excepção da hipoteca.

Perante as conclusões das alegações dos recorrentes deparam-se-nos as seguintes questões que importa analisar (sem embargo de, desde já se adiantar que a sua enunciação e apreciação terão que se conformar com o já decidido no Acórdão deste STJ, proferido nestes autos em 2 de Julho de 1996 (fls. 170 a 183) que, não obstante haver mandado julgar novamente a causa, com a necessária ampliação da matéria de facto, conheceu, em concreto, de algumas das questões então suscitadas).

I. A recorrida B, ao propor e fazer aprovar o conjunto de medidas de recuperação que constam da sua proposta, designadamente a constituição de uma nova sociedade por quotas, que passou a dominar em absoluto e a deter quase em exclusivo a totalidade do capital social, reservando ainda a prerrogativa de admitir parceiro para a sociedade por si escolhida, ficando a nova sociedade com todo o activo da sociedade devedora, inclusive com todos os bens onerados (medidas que não constituem caso julgado em relação aos recorrentes) fez extinguir o seu crédito no exacto montante do que foi convertido em capital social e que excedeu largamente os valores afiançados, modificou quer quantitativamente o seu crédito, quer qualitativamente, transferindo para a sociedade por si constituída o remanescente do seu crédito, através de novação subjectiva por substituição do devedor.

II. A resposta negativa dada pelo tribunal ao quesito 1º, porque contraria o sentido inequívoco do texto da cláusula 4ª do contrato celebrado pela escritura de 12 de Maio de 1989, não pode subsistir, devendo, antes, ter-se por demonstrado o carácter subsidiário atribuído pelas partes à fiança, cuja concretização dependeria da prévia execução da hipoteca.

III. A B ao converter o remanescente do seu crédito reclamado em crédito comum a pagar pela nova sociedade, nos termos da proposta que fez aprovar, impediu os fiadores caso viessem ou venham a pagar a quantia afiançada de ficarem sub-rogados contra a sociedade devedora nos direitos que a esta competiam em consequência do pagamento e consequentemente impedidos de exercerem contra a sociedade devedora o seu direito de regresso, o que constitui manifesto abuso de direito.

IV. Não tem consistência a sustentação legal da decisão proferida em primeira instância e confirmada pela Relação que condena os recorrentes como litigantes de má-fé.

Quanto à primeira questão suscitada, e como acima se afirmou, não pode deixar de se ter em conta o teor do acórdão deste STJ de fls. 170 a 183, na exacta medida em que, pronunciando-se expressamente acerca dela, a decidiu em conformidade com as soluções a que chegou.

Ora, o caso julgado abrange, em princípio, a parte decisória, ou seja, o comando impositivo que a final o julgador fixa às partes (sendo certo que se na mesma sentença houver várias decisões forma-se caso julgado sobre cada uma delas).
Mas abrange também todas as questões antecedentes decididas, abordadas expressa ou implicitamente, que constituem um pressuposto lógico e necessário para a decisão final, porquanto formam o complexo de pressupostos fundadores da decisão e integram obviamente o conteúdo dela adquirindo com a decisão o estatuto de intocabilidade que o caso julgado fornece. (1)
Doutro passo, o Supremo, ao ordenar a ampliação da matéria de facto e mandar repetir o julgamento, com base no disposto no art. 729º, nº 3, do C.Proc.Civil, profere decisão que fixa o thema decidendum, constituindo caso julgado formal, pelo que não podem ser (ou voltar a ser) discutidas questões que se não enquadrem no estrito âmbito por ele definido. ( 2)

Serve isto para, antes de mais, esclarecer que o Acórdão deste STJ, proferido nestes autos em 2 de Julho de 1996 (fls. 170 a 183) decidiu, em concreto, algumas questões que ainda hoje (passados 8 anos) se pretende ver discutidas.
Na verdade, desde logo, aquele aresto considerou improcedentes algumas questões suscitadas pelos então apelantes:

a) - a quantia exequenda que se compreendia também naquele crédito inicialmente reclamado na acção de recuperação de empresa manteve-se com autonomia creditória, pois não foi deliberadamente convertido em capital social, nem perdeu a identidade que sempre teve;

b) - não existiu novação subjectiva desse crédito; quando muito ocorreu transmissão de dívida para o novo devedor, sem consentimento de terceiro fiador, embora mesmo em tal caso, a fiança se tenha mantido;

c) - não é possível concluir que foram efectuados pagamentos através da conversão em capital social que excedem largamente os montantes afiançados.

E apenas mandou julgar novamente a causa, com a necessária ampliação da matéria de facto, para, em sede de interpretação, pelo recurso ao disposto no art. 238º do C.Civil, se fixar o sentido da cláusula 4ª do contrato constante da escritura de 12 de Maio de 1989 (em que os recorrentes se constituíram fiadores e principais pagadores) em ordem a saber se a concretização da fiança ali prevista estaria dependente da prévia execução da hipoteca, melhor dizendo, se havia uma relação de subalternidade da fiança relativamente à hipoteca ali também prestada pela sociedade devedora.

Ademais, e quanto ao invocado pelos recorrentes abuso de direito e no respeitante à litigância de má fé, não se pronunciou aquele acórdão por entender não ser o momento adequado (por falta de elementos) para esse efeito.
Está, assim, naturalmente afastada da pronúncia a primeira questão suscitada, por concretamente abrangida pelo teor do acórdão de fls. 2 de Julho de 1996 (fls. 170 a 183).
Na sequência do determinado no mesmo acórdão referido, foi aditado à matéria de facto o quesito 1º, com a seguinte redacção: "a fiança referida em C) só subsistiria caso os bens hipotecados e dados de penhor não satisfizessem o montante da dívida?". (3)
Quesito esse cuja matéria o tribunal considerou não provada.

Pretendem agora os recorrentes que a resposta negativa dada pelo tribunal a esse quesito contraria o sentido inequívoco do texto da cláusula 4ª do contrato celebrado pela escritura de 12 de Maio de 1989, razão pela qual não pode subsistir, devendo ter-se por demonstrado o carácter subsidiário atribuído pelas partes à fiança, cuja concretização dependeria da prévia execução da hipoteca.

Não existe, no entanto, qualquer contradição ou incompatibilidade entre a resposta dada ao quesito e o texto da cláusula 4ª da escritura de 12 de Maio de 1989 - "a indicada fiança será extinta satisfeitos que sejam os pagamentos até aos montantes afiançados e desde que os bens da sociedade devedora aqui onerados sejam suficientes para garantir o remanescente do débito em falta".

No acórdão de fls. 170 a 183, a questão atinente ao teor daquela cláusula 4ª foi assim explicitada:
"Para os recorrentes a concretização da fiança estaria dependente, de acordo com a cláusula em referência, da prévia execução da hipoteca que incidia sobre certos bens da sociedade devedora, garantindo, assim, em primeira linha, o crédito da agravada.

Como, porém, estes bens foram integrados no património da nova sociedade criada ao abrigo do art. 26º do Dec.lei nº 177/86 sob proposta da própria sociedade credora, agora agravada, isto postularia a extinção da hipoteca, e da própria fiança por ter desaparecido o pressuposto de que dependia a sua efectivação.

A recorrida discorda desta interpretação, mas nem contrapôs factos que a invalidem.
É claro que mormente a última questão suscitada pelos recorrentes, ao equacionarem uma possível subalternidade da fiança em relação à aludida hipoteca, implica uma tomada de posição, em sede interpretativa, relativamente ao sentido ou alcance da cláusula 4ª do contrato outorgado pela escritura pública lavrada em 12 de Maio de 1989.

Ora, o resultado interpretativo proposto pelos recorrentes pode caber no texto da cláusula, mas não é indubitável que o seja. É que pode nela também caber a versão de que a fiança ainda funcionaria no caso de eventualmente se ter executado previamente a hipoteca, mas não só quando isso sucedesse.
Trata-se, portanto, de um texto duvidoso.

Urge, por isso, fixar o seu verdadeiro sentido, através da actividade interpretativa possibilitada pelo art. 238º do Código Civil, sendo para tanto admissível o recurso a elementos exteriores ao contexto do documento.

Ora, a interpretação das cláusulas contratuais, em ordem a se determinar o exacto alcance do acordo das partes delas constante, constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias.

É evidente, por outro lado, que a exigência de tal actividade resulta da necessidade de se ampliar a matéria de facto com vista a obter base suficiente para a decisão de direito (art. 729º, nº 3, do C.Proc.Civil)".

Como claramente se infere do transcrito, entendeu o STJ que o sentido da cláusula não indubitável. Havia, por isso, que averiguar da vontade das partes, mesmo até pelo recurso a elementos exteriores ao documento, actividade própria das instâncias.

E foi precisamente essa averiguação que se teve em vista com a formulação do quesito 1º: saber se, como pretendiam os embargantes (a eles caberia o ónus da prova - art. 342º, nº 2, do C.Civil - pelo que o quesito foi elaborado na forma positiva) fora convencionada uma subalternidade da fiança em relação à hipoteca, ou seja, que a concretização da fiança estaria dependente, de acordo com a cláusula em referência, da prévia execução da hipoteca que incidia sobre determinados (três prédios) bens da sociedade executada.

Ora, não se tendo provado que a vontade das partes contraentes havia sido a propugnada pelos embargantes (e já se constatou que da análise gramatical do texto da cláusula não era possível extrair uma conclusão interpretativa) restaria decidir da questão sem que ao teor da cláusula fosse atribuído o significado por eles pretendido.

Improcede, assim, a segunda questão suscitada, porquanto, como se disse, a resposta negativa ao quesito em nada contraria (apenas o não complementa) o teor da cláusula 4ª da escritura.

Sustentam, ainda, os recorrentes que a exequente, ao converter o remanescente do seu crédito reclamado em crédito comum a pagar pela nova sociedade, nos termos da proposta que fez aprovar, impediu os fiadores caso viessem ou venham a pagar a quantia afiançada de ficarem sub-rogados contra a sociedade devedora nos direitos que a esta competiam em consequência do pagamento e consequentemente impedidos de exercerem contra a sociedade devedora o seu direito de regresso, o que constitui manifesto abuso de direito.

Nos termos do art. 334º do C.Civil ocorre abuso de direito quando o respectivo titular o exerce excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo respectivo fim social ou económico.

Daí se infere, por isso, que o exercício de um direito só poderá taxar-se de abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou, o mesmo é dizer, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante. (4)

Prevê o citado art. 334°, sobremaneira, a boa fé objectiva: "não versa sobre factores atinentes, directamente, ao sujeito, mas antes elementos que, enquadrando o seu comportamento, se lhe contrapõem. Nessa qualidade, concorre com outros elementos normativos, na previsão legal dos actos abusivos: o sujeito exerce um direito - move-se dentro de uma permissão normativa de aproveitamento específico - o que, já por si, implica a incidência de realidades normativas e deve, além disso, observar limites impostos pelos três factores acima isolados, dos quais um a boa fé (os demais serão os bons costumes e o fim social e económico do direito). O sentido desta implica a determinação do conjunto". (5)

E assenta, essencialmente, no princípio (cláusula geral) de que "as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros". (6)

Princípio esse que reside no pressuposto ético-jurídico fundamental de que "a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem. Assim tem de ser, pois poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens. Mais ainda: esse poder confiar é logo condição básica da própria possibilidade da comunicação dirigida ao entendimento, ao consenso e à cooperação (logo, da paz jurídica)" (7).

Consequentemente, o abuso de direito supõe a existência de um lesado pelo respectivo exercício, tendo este o poder de exigir que o exercício do direito se exerça com moderação, equilíbrio, lógica e racionalidade, mas não o de requerer que o direito não seja reconhecido. (8)

No caso sub judice, antes de mais, e como já se diz no acórdão recorrido, não vislumbramos em que medida é que o acordo de credores aprovado nos autos de recuperação de empresa pode impedir os fiadores de ficarem subrogados contra a sociedade, também executada pelo valor do que vierem a pagar à exequente (seria mais difícil, pensamos, efectivar o direito e regresso contra uma empresa que, naturalmente em situação económica deficitária, requereu a sua recuperação).

Com efeito, parece evidente que aquele acordo de credores não afastou, nem o podia fazer (tanto mais quanto nenhuma convenção houve em sentido contrário) o preceituado no art. 592º, nº 1, do C.Civil, que confere ao garante do cumprimento a sub-rogação nos direitos do credor (sub-rogação legal).

Doutro passo, igualmente não se vê que a manutenção da fiança, não obstante o acordo de credores, constitua algo de intolerável pela ordem jurídica ou pelos princípios da boa fé negocial, pelo que não pode afirmar-se que o exercício pela exequente do direito de exigir a quantia de que é credora seja desproporcionado ou exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico desse direito.
Não pode, em vista do exposto, sustentar-se que é abusivo o exercício por parte da autora do seu direito de receber a quantia de 22.860.250$00 cujo pagamento os embargantes garantiram através da fiança, prestada com renúncia ao benefício da excussão.

Improcede, assim, também nesta parte, o recurso interposto.

Colocam, por último, os recorrentes a questão da sua condenação como litigantes de má fé.
E, em nosso entender, assiste-lhes razão neste particular aspecto.
A decisão da 1ª instância (o acórdão recorrido nem sequer se pronunciou acerca da questão) limitou-se a concluir, de forma ligeira, que "os embargantes deduziram fundamento cuja oposição não ignoravam, designadamente fazendo-o contra lei expressa".
Seria, pensamos, muito mais importante justificar essa afirmação em termos aceitáveis, sobretudo através da análise dos factos assentes e do direito aplicável.
A verdade é que o art. 456º, nº 2, do C.Proc.Civil, qualifica como litigante de má fé apenas "quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; tiver alterado a verdade dos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão".
Não subsistem dúvidas de que, no caso em apreço, os embargantes se defenderam de forma tenaz e persistente, mas não ocultaram verdadeiramente factos decisivos para a decisão do litígio nem alteraram a verdade dos factos, se bem que lhes tenham dado uma conotação e interpretação diferente da que veio a ser entendida pelos tribunais.

Todavia, "para a condenação como litigante de má fé não basta o fundamento da persistência do litigante em reclamar. É necessário, ainda, demonstrar que as reclamações eram absurdas ou infundadas, de tal sorte que o reclamante não podia deixar de ignorar a falta de fundamentação". (9)
Sendo, ainda, verdade que, desde o princípio, os embargantes deduziram uma pretensão destinada ao insucesso, por razões jurídicas diversas das que invocaram, que não obtiveram, nessa medida, acolhimento pelas instâncias.

Só que uma coisa é a falta de cuidado grosseira na formulação das pretensões e na apreciação dos factos ou do direito, outra a actuação processual que exprima uma dificuldade de pendor exclusivamente jurídico, no campo do direito processual ou substantivo. O operador judiciário que representa a parte, pode estar animado das melhores intenções mas claudicar, de boa fé, no seu ponto de vista jurídico, não se afigurando que a ampliação do conceito de litigância maliciosa, operada pela Reforma de 1995 (Dec.lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro) vá ao ponto de penalizar a parte por uma concepção jurídica menos acertada do advogado que não previu que com a orientação processual imprimida se podia alcançar um dos fins proibidos pela al. d) do nº 2 do art. 456º da lei adjectiva.

É que, sem dúvida, "a apreciação da má fé processual deve ser apreciada tendo em vista a não limitação do direito de defesa". (10)
Por isso, a litigância de má fé não pode ser uma mera decorrência, como é o caso, do insucesso da oposição e do correspondente sucesso da acção. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico. Assim, haverá sempre de basear-se num convencimento assente em dados irrefutáveis. (11).

Nesta medida, e porque considerámos que a actuação das recorrentes não excedeu, mediante grosseira negligência, a conduta que se esperaria de qualquer outro litigante situado na sua posição, não se nos afigura aquela enquadrável na disposição do nº 2 do art. 456º do C.Proc.Civil.

Em consequência do exposto, temos que concluir que a decisão recorrida não pode, nesta parte, manter-se, assim se justificando a pretensão dos recorrentes.

Pelo exposto, decide-se:
a) - julgar o recurso de revista interposto pelos embargantes C e mulher D apenas procedente no que respeita à questão da litigância de má fé;
b) - revogar, apenas nessa parte, o acórdão recorrido; confirmando-o quanto ao demais;

c) - condenar os recorrentes nas custas do recurso.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2005
Araújo Barros,
Salvador da Costa,
Oliveira Barros. (Vencido: a meu ver o quesito que este Tribunal mandou aditar diz respeito à vontade oral das partes - cfr. nº2 do art. 236; podendo, ainda assim, suscitar-se dúvida sobre a sua utilidade em vista do disposto no art. 238º, nº1, ambos do C.civ. Em meu entender, a recorrente tem razão quanto à justa interpretação da cláusula 4ª, procedendo as conclusões 2ª a 4ª e 6ª da alegação respectiva. Não houve novação, mas houve redução, e a garantia pessoal e subsidiária da de carácter oral.)
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(1) Ac. STJ de 20/05/2004, no Proc. 281/04 da 2ª secção (relator Noronha Nascimento
(2) Cfr. Acs. STJ de 01/06/83, in BMJ nº 328, pag. 500 (relator Rodrigues Bastos); de 110/04/84, no Proc. 71407 da 2ª secção (relator Solano Viana); de 03/05/90, in BMJ nº 397, pag. 400 (relator Baltazar Coelho); e de 25/06/92, in BMJ nº 418, pag. 726 (relator Cabral de Andrade).
(3) Constava da Alínea C) da especificação que "de acordo com a mesma escritura, os embargantes constituíram-se fiadores e principais pagadores da sociedade devedora, respondendo, solidariamente, com ela, até ao montante de 22.860.250$00".
(4) Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pag. 299; Vaz Serra, "Abuso de Direito", in BMJ nº 85, pag. 253.
(5) Menezes Cordeiro, in "Da Boa Fé no Direito Civil", vol. II, Coimbra 1984, pag. 662.
(6) Coutinho de Abreu, in "Do Abuso de Direito", Coimbra, 1983, pag. 55.
(7) Batista Machado, "Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium", in Obras Dispersas, vol. I, Braga, 1991, pag. 352.
(8) Ac. STJ de 29/06/89, in BMJ nº 388, pag. 250 (relator Sousa Macedo).
(9) Ac. STJ de 09/12/99, no Proc. 719/99 da 1ª secção (relator Pais de Sousa).
(10) Ac. STJ de 26/06/2001, no Proc. 1245/01 da 1ª secção (relator Pinto Monteiro).
(11) Ac. STJ de 19/09/2002, no Proc. 1949/02 da 7ª secção (relator Quirino Soares