Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
120/14.4T8EPS.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: USUCAPIÃO
REGISTO PREDIAL
DESCRIÇÃO PREDIAL
POSSE
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / POSSE / USUCAPIÃO.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO - REGISTO PREDIAL / PRESUNÇÃO DERIVADA DO REGISTO.
Doutrina:
- P. Lima e A. Varela, “Código Civil” Anotado, III, 2.ª ed., 29; 4.ª ed., 306.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1251.º, 1252.º, 1256.º, 1257.º, 1263.º, 1264.º, 1268.º, 1288.º, 1296.º.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRGP): - ARTIGO 7.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 12-02-2008, PROC. N.º 08A055; EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - O significado essencial das regras sobre o ónus da prova está em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer a prova de certo facto.

II - Sendo a usucapião a base da nossa ordem jurídica, o que releva para alcançar as realidades prediais, objecto de direitos reais, são os actos possessórios verificados ao longo dos tempos, que incidam sobre tais realidades, físicas e concretas, e não os elementos identificativos em poder de entidades ou serviços públicos, como as descrições prediais ou as inscrições matriciais – estas, por maioria de razão –, que podem ser úteis na identificação ou localização daquelas realidades, mas não podem ter qualquer repercussão nas relações jurídico-privadas, nomeadamente delimitando o objecto sobre que incindem tais direitos, nada provando, por si só, quanto a esse objecto, designadamente quanto à respectiva área concreta.

III - A posse adquire-se, nomeadamente, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, mantém-se enquanto durar essa actuação ou a possibilidade de a continuar, podendo aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte juntar à sua a posse do antecessor (arts. 1251.º, 1252.º, 1256.º, 1257.º e 1263.º do CC). E, por via do constituto possessório, se o titular do direito real transmitir esse direito a outrem, a sua posse não deixa de considerar-se transferida para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa ou esta, à data do negócio translativo do direito, for detida/ocupada por um terceiro (art. 1264.º do CC).

IV - Por isso, não existindo, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início dessa posse, o possuidor sempre gozaria da presunção da titularidade do direito (de propriedade) sobre a discutida parcela, a qual teria de ser abalada por factos tidos por provados (art. 1268.º do CC).

V - Por outro lado, se a presunção gerada pela inscrição da aquisição do direito no registo predial, ao abrigo do art. 7.º do CRgP, abrange apenas os factos jurídicos inscritos e não também a totalidade dos elementos de identificação física, económica e fiscal dos prédios, os elementos que fazem parte do núcleo essencial da descrição, no sentido de, sem eles, não se saber sobre que coisa incide o facto inscrito – que não limites, áreas precisas, valores, identificação fiscal e âmbito –, tal presunção não pode deixar de se estender à (crucial) existência do próprio prédio objecto do direito, ainda que não à respectiva área, ou, pelo menos, à exactidão desta, sob pena de se presumir o direito sobre coisa nenhuma.

Decisão Texto Integral:

Revista 120/14.4T8EPS.G1.S1

           

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

           

AA intentou a presente acção que designou de «declarativa de simples apreciação negativa (artº 10º/3/a) CPC e 343º/2 CC)» contra (1ºs) BB e CC e (2ª) “DD, Lda”, pedindo que se declare que:

a) os réus não são donos nem detêm qualquer direito que lhes permita ocupar o prédio definido nos artigos 1º a 4º [da petição inicial], i.é, a área delimitada a cor amarela no doc. de fls. 16 da PC [providência cautelar] (ou igual área a tracejado cruzado do doc. 4, desta PI, correspondente à área do prédio descrito sob o nº 4868/... e inscrito sob o artigo R-3435 (correspondente ao artigo 2387 da matriz anterior), situado a poente e sul do prédio descrito sob o nº 1967/... (e artigo U-1341>>U-2507);

b) a área do dito prédio nº 1967 (e artigo U-1341>>U-2507) não é superior a 1.428m2 ou, pelo menos, não inclui a área de 1.380m2, uma vez que esta última área constitui o aludido prédio nº 4868/..., declarando-se nula e de nenhum efeito a rectificação matricial entregue em 13.01.2014 ao prédio U-2507 (mod. 1 IMI 6410931), ordenando-se a respectiva rectificação junto das finanças.

Para tanto, o A alegou, muito em suma:

- por compra celebrada por escritura de 20-06-2014 adquiriu (e registou) a propriedade sobre o prédio rústico referido em a), com a área de 1.380 m2, a sua irmã EE; esta, por escritura outorgada em 14-01-2009, adquirira (e registara) tal propriedade por doação de seu pai FF, que, por sua vez, mediante essa mesma escritura, justificara notarialmente a aquisição de tal prédio por usucapião, uma vez que o possuía desde pelo menos 1987, na sequência de doação verbal de sua mãe GG, nunca formalizada;

- assim, o A e os seus antepossuidores vêm exercendo em tal prédio os actos de posse que descreveu, conducentes à aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre o mesmo;

- os 1ºs RR adquiriram o aludido prédio urbano descrito na Conservatória sob o nº 1967 e inscrito na Matriz sob o artº 1341, com a área de 1.428m2, por compra, em processo de execução, tendo registado essa aquisição em 23-07-2009, o qual lhes foi entregue em 30-05-2014, quando já tinham transmitido a respectiva propriedade para a  2ª R sociedade (do 1º R):

- após tal entrega, os RR ocuparam toda a área (1.380m2) do referido prédio rústico  do A, impediram este de nele entrar, cortaram árvores, fizeram desaparecer os marcos existentes, arrasando e desfigurando o prédio, para dificultar a prova por parte do A;

- assim, tendo apenas comprado um prédio urbano com área total de 1428m2, obtiveram a extensão desta nas Finanças, nela englobando a correspondente à área do prédio rústico do A.

Apenas os 1ºs RR contestaram, refutando a classificação da acção como de simples apreciação negativa e negando que o prédio de cuja titularidade o A se arroga tenha existência física, por fraccionamento ou destaque em relação ao conjunto predial que pertenceu à avó do A.

O A apresentou réplica, acto que o Sr. Juiz reputou de não permitido e, por isso, nulo, por ter entendido que a acção não se enquadraria na qualificação de «simples apreciação negativa».

Foi proferida sentença, absolvendo os RR do pedido.

O A interpôs apelação dessa sentença, requerendo a junção de uma procuração (fls. 429) outorgada por GG a favor de FF e suscitando as seguintes questões:

1) A falta de interesse em agir dos 1ºs RR e a falta de contestação da 2ª R;

2) A qualificação da ação;

3) A não admissão de parte axial do objecto factual da ação;

4) A necessidade da alteração da decisão sobre a matéria de facto;

5) A inversão do ónus de alegação e prova;

6) O erro de subsunção dos factos ao direito.

Os 1ºs RR contra-alegaram e opuseram-se à requerida junção, ao que o apelante retorquiu que o documento se tornou necessário em virtude do julgamento e para dissipar dúvidas do tribunal.

A Relação de …, com um voto de vencida, não admitiu a requerida junção e confirmou integralmente a decisão recorrida, tendo rejeitado a pretendida alteração dos respectivos pressupostos fácticos, assim os mantendo, por ter entendido que o apelante não cumprira os ónus preceituados no art. 640º do CPC.

O A interpôs recurso de revista desse acórdão, cujo objecto delimitou suscitando a questão do erro de subsunção dos factos ao direito, bem como questionando:

- a rejeição do documento junto com a apelação;

- a falta de interesse em agir dos 1ºs RR e a falta de contestação da 2ª R;

- as nulidades da decisão recorrida por omissão de pronúncia quanto à qualificação da ação, à não admissão de parte axial do objecto factual da ação e à alteração da decisão proferida em 1ª instância sobre a matéria de facto – em cuja impugnação o recorrente, segundo também sustenta, teria dado satisfação aos ónus impostos pelo art. 640º do CPC – e por falta de fundamentação para a conclusão de que o prédio rústico do A não seria autónomo do prédio urbano da 2ª R.

Os 1ºs RR contra-alegaram, defendendo a manutenção do decidido.

*

Importa apreciar e decidir as enunciadas questões, para o que relevam os seguintes factos tidos por provados pelas instâncias:

1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº 4868/20090518-Freguesia de ..., um prédio rústico, situado em ..., com a área descoberta total de 1380 m2, composto de terra de cultura de regadio e videiras em ramada, a confrontar do Norte com caminho, do Sul com HH e outros, do Nascente com GG e do Poente com estrada nacional.

2. Esse prédio encontra-se actualmente inscrito, sob o artigo 3435º, na matriz predial rústica da união de freguesias de ..., ... e ..., tendo tido origem no artigo 2387º da extinta matriz predial rústica da freguesia de ....

3. A aquisição desse prédio a favor do aqui autor, por compra a EE, mostra-se definitivamente registada na Conservatória do Registo Predial de ... pela apresentação nº 1907, de 20/06/2014.

4. Por título de compra e venda datado de 20 de Junho de 2014, EE declarou vender ao aqui autor, AA, pelo preço de € 200,00, um prédio misto, denominado “...”, sito no Lugar de ..., da união de freguesias de ..., ... e ..., concelho de ..., inscrito sob o artigo 3435º dessa união de freguesias, antigo artigo 2387º da freguesia de ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 4868/Freguesia de ....

5. Por escritura de justificação e doação outorgada no dia 14 de Janeiro de 2009, FF, declarou, além do mais, doar à sua filha EE o prédio rústico constituído por cultura de regadio e videiras em ramada, com a área de 1380 m2, situado no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 2387º, a confrontar do Norte com caminho, do Sul com HH e outros, do Nascente com GG e do Poente com Estrada Nacional, não descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., tendo aquela EE declarado aceitar a doação.

6. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº 1967/19940131-Freguesia de ... (anteriormente descrito sob o nº 14.267, Livro nº 37), um prédio urbano, situado em lugar do ..., união de freguesias de ..., ... e ..., composto de casa com dois pavimentos, para habitação, com logradouro, com a superfície coberta de 248 m2 e área descoberta de 1180 m2, a confrontar do Norte com estrada camarária, do Sul com II, do Nascente com GG e do Poente com estrada nacional, actualmente inscrito na matriz predial urbana dessa união de freguesias sob o artigo 2507º.

7. Por escritura pública outorgada no dia 8 de Agosto de 2008, JJ, intervindo na qualidade de gerente da sociedade KK, Lda., esta por sua vez na qualidade de encarregada da venda nomeada no processo de execução ordinária nº 414/1997 do 2º Juízo do Tribunal Judicial de ..., declarou vender aos aqui réus BB e CC, pelo preço de € 120.000,00, o prédio urbano composto de casa de dois pavimentos e logradouro, sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 1341º, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 1967/Freguesia de ..., tendo os réus declarado aceitar essa venda.

8. Mostra-se averbado a essa descrição nº 1967/19940131-Freguesia de ..., pela apresentação nº 3217, de 23/07/2009, o registo da aquisição desse prédio urbano pelos aqui réus BB e CC, através de compra por negociação particular em processo de execução, a GG.

9. Por escritura pública outorgada no dia 31 de Dezembro de 2013, os aqui réus BB e CC declararam vender à sociedade DD, Lda., pelo preço de € 120.000,00, o prédio urbano composto de casa com dois pavimentos para habitação e logradouro, sito no lugar de ..., união de freguesias de ..., ... e ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 1967/Freguesia de ..., e inscrito na respectiva na matriz sob o artigo 2307º [será 2507º, segundo fls. 158] (antigo artigo 1341º da matriz urbana da extinta freguesia de ...), tendo aquela sociedade declarado aceitar essa venda.

10. No ano de 1972, foi construída por GG no prédio rústico então descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 14.267, Livro nº 37, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4514º, uma casa com dois pavimentos, para habitação, com logradouro, a qual se encontra hoje descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 1967/Freguesia de ..., e inscrita na respectiva na matriz sob o artigo 2507º.

11. Através de requerimento de 13 de Janeiro de 2014, o aqui réu BB entregou no Serviço de Finanças de ... mod. 1. de IMI, solicitando a correcção da área do prédio inscrito sob o artigo 2307º [será 2507º] da matriz predial urbana da união de freguesias de ..., ... e ..., concelho de ..., de 1428 m2 para 2541 m2, invocando que “(…) quando procedeu à aquisição do prédio por arrematação judicial no processo 414/1997 do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ..., a área total não se encontrar correcta, pelo que só agora, após ter efectuado um levantamento topográfico, o qual se junta, ter verificado que a área correcta é efectivamente 2541 m2 (…)”.

12. A parcela de terreno em discussão nestes autos encontrava-se delimitada, pelo menos desde 1972, pelo sul e pelo poente, por um muro de pedra existente há várias décadas.

13. A parcela de terreno em discussão nestes autos foi durante décadas utilizada e fruída por antecessores do autor, de forma continuada, à vista de todos, sem oposição de ninguém, fazendo-o na convicção de exercerem um direito de propriedade sobre coisa sua.

14. Durante décadas, antecessores do autor plantaram nesse terreno e nele mantiveram videiras distribuídas em ramadas ou latadas, e depois também plantando e mantendo outras árvores de fruto, tais como macieiras, pereiras, limoeiros, ou laranjeiras, daí colhendo os respectivos frutos que consumiam.

15. Antecessores do autor contratavam jornaleiros para podar, amarrar, tratar e adubar tais árvores, fazendo no final as colheitas anuais dos respectivos frutos.

16. Na parcela de terreno em discussão nestes autos, antecessores do autor cultivaram ainda diversas hortaliças.

17. No ano de 1972 foi construída na parte norte/nascente do prédio então descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 14.267, Livro nº 37, e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 4514º, uma casa com 2 pavimentos, para habitação com logradouro.

18. Após a construção dessa casa em 1972, não se procedeu à desanexação desse prédio urbano, criando um nº próprio, autonomizando-o do então descrito na Conservatória sob o nº 14.267, tendo sido criado um artigo urbano (1341º), fazendo-se constar em tal descrição da Conservatória, através do av. 03 – ap. 5, de 02-01-94, uma área coberta de 248 m2 e logradouro com 280 m2.

19. Em consequência desse averbamento, o nº 14.267 da Conservatória do Registo Predial de passou a descrever a área do urbano, de 528 m2, deixando de fazer-se referência nessa descrição a restante área correspondente ao prédio rústico anteriormente aí descrito.

20. O prédio rústico então descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 14.267, Livro nº 37, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 4514º, com a área indicada na matriz de 3600 m2, tinha uma área real de aproximadamente 2541 m2.

E os seguintes factos tidos por não provados:

a) O prédio referido em 1. a 5. tem, pelo menos desde 1972, a mesma configuração física que consta dos documentos nºs 4 e 5 juntos com a petição inicial, encontrando-se delimitado, como identificado a linha amarela no documento nº 5 junto com a petição, sendo-o pelo norte e nascente por uma vedação de esteios e arame junto a um caminho de pedra de xisto, localizada e identificada como linha amarela na parte sobreposta à linha vermelha da planta que constitui o referido doc. 5.

b) Pelo menos desde 1972, o autor, por si e antepossuidores, vem utilizando e fruindo o prédio a que se alude em 1. a 5. com os limites referidos na alínea anterior.

c) Desde há décadas, ou, pelo menos, desde 1987, o autor e os seus antepossuidores utilizaram sempre o único acesso do prédio a que se alude em 1. a 5. - um portão junto à E.M. nº 00 – e pagaram a contribuição autárquica (IMI) de tal prédio rústico, correspondente ao artigo 2387º.

d) O prédio rústico a que se alude em 1. a 5., hoje com 1380 m2 e com a configuração física que consta dos documentos nºs 4 e 5 juntos com a petição inicial, tinha, antes de 1972, uma área aproximada de 2800 m2 ou, pelo menos, superior a 2000 m2.

e) Apesar de, inicialmente, tal prédio urbano ter uma área total de 528 m2, poucos anos após a sua construção e porque a sua proprietária, GG, queria ver a sua casa mais “desafogada”, resolveu alterar a área do logradouro, aumentando-a de 280 m2 para 1180 m2, ficando assim tal prédio com uma área de 1428 m2, como actualmente.

f) Fê-lo, porém, à custa de uma área situada a norte e nascente da casa, ocupando parte de um outro prédio rústico que pertencia à mesma GG, e não à custa da área situada a sul ou poente de tal prédio urbano.

g) Desde há mais de 40 anos, aquando da construção da casa em 1972, que cada um dos prédios têm entradas diferentes, sendo que:

• o prédio rústico nº 4868 tem um único acesso pelo portão existente a poente, à face da Estrada Nacional nº 13; e

• o prédio urbano nº 1967 tem acesso pela estrada camarária, agora denominada Av.ª ..., com porta de serventia e ainda um porta de acesso a veículos situado a nascente do prédio.

*

Nos presentes autos, desenrolou-se uma intensa celeuma quanto à repartição do ónus probatório nesta acção, decorrente da igualmente debatida qualificação (processual) a esta atribuída pelo demandante.

Contudo, «O significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe fazer a prova do facto como em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer essa prova» ([1]). Foi o que também reconheceu o acórdão recorrido ([2]), embora, segundo pensamos, sem retirar todas as consequências consentidas pela factualidade assente, analisada sob essa perspectiva. Realmente, do que aqui se trata é saber se estamos perante um non liquet que careça de ser solvido com recurso a tais regras, ou seja, se a factualidade provada não contém os elementos bastantes para o reconhecimento da pretensão formulada pelo A na acção, atendendo ao modo como a mesma foi por ele estruturada.

Relembrando: o A pediu que fosse declarado que os RR não detêm qualquer direito sobre a parcela de terreno com a área de 1.380m2 por estes entretanto ocupada e que constitui o prédio descrito sob o nº 4868/... e inscrito sob o artigo R-3435 (2387 na matriz anterior), situado a poente e sul do prédio descrito sob o nº 1967/... (e artigo U-1341>U-2507).

Tal como a factualidade assente permite inferir, os 1ºs RR adquiriram, em 8-08-2008, no processo de execução movida a GG (referenciada nos autos como sendo a avó do A), a propriedade – que, em 31-12-2013, retransmitiram à 2ª R sociedade unipessoal – sobre o prédio identificado para efeitos registrais e fiscais na descrição sob o nº 1967 e no artigo U-1341>U-2507 da matriz, respectivamente, como tendo (apenas) a área coberta de 248 m2 e descoberta de 1.180 m2 (perfazendo a área total de 1.428 m2). E também não pode omitir-se que os RR nada mais pagaram do que o preço estabelecido em avaliação feita em função da área constitutiva da realidade identificada nessas descrição e inscrição.

Sucedeu que, através de requerimento de 13-01-2014, o aqui 1º R declarou nas Finanças que os RR tinham adquirido na «arrematação judicial» uma realidade física com uma área superior à equivalente ao preço que pagaram, invocando que, afinal, lhe corresponderia a área («correcta») total de 2.541 m2 e não de 1.428 m2, o «que só agora, após ter efectuado um levantamento topográfico», teria verificado.

Ora, as realidades prediais objecto de direitos reais não se alcançam com o recurso a elementos identificativos dos prédios em poder de serviços ou entidades públicas porque a base da nossa ordem jurídica é a usucapião. As descrições prediais, as informações de quaisquer entes públicos, como as autarquias, ou as inscrições matriciais – estas, por maioria de razão – podem ser úteis na identificação ou localização daquelas realidades, mas não podem ter qualquer repercussão nas relações jurídico-privadas, nomeadamente delimitando o objecto sobre que incindem tais direitos, nada provando, por si só, quanto a esse objecto, designadamente quanto à respectiva área concreta.

O que releva, sim, são os actos possessórios, verificados ao longo dos tempos, incidentes sobre aquelas realidades físicas e concretas.

Porém, para além da (irrelevante) declaração do próprio R junto das Finanças, nada se extrai da factualidade assente que aponte ou, sequer, indicie que, na data em que os RR adquiriam o aludido prédio descrito sob o nº 1967, ainda estaria na posse da transmitente (a executada GG) toda a realidade predial referenciada em tal declaração, a qual, claramente, teria de abarcar a parcela de terreno em discussão nestes autos.

Pelo contrário, os termos em que foi fixada tal factualidade permitem afirmar, com segurança, que a dita parcela foi adquirida pelo A, mediante compra e venda, numa data em que sobre a mesma, constituindo uma realidade física autónoma, incidira, durante décadas – necessariamente, 20 anos ou mais –, a posse da transmitente (EE) e de, pelo menos, um antecessor desta (FF).

E assim é, não tanto por se retirar dos factos que foi transmitida ao A a propriedade sobre um imóvel que já detinha autonomia registral e matricial desde data não concretamente determinável, mas, essencialmente, porque tais antecessores do A, durante décadas, praticaram sobre essa realidade corpórea autónoma – a parcela de terreno em discussão – os actos materiais descritos nos pontos 13 e seguintes, fazendo-o na convicção de exercerem um direito de propriedade sobre coisa sua, de forma continuada, à vista de todos e sem oposição de ninguém.

 Como é sabido, a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1251º do Código Civil ([3])), nela se distinguindo um elemento material – a actuação material praticada sobre a coisa – e um elemento intelectual – a intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados ([4]) – e adquire-se, nomeadamente, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito e mantém-se enquanto durar essa actuação ou a possibilidade de a continuar, podendo aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte juntar à sua a posse do antecessor (arts. 1251º, 1252º, 1256º, 1257º e 1263º).

E se não consta que também o próprio A tenha tido tal actuação material sobre a dita parcela de terreno, o certo é que «Se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa», mas, «Se o detentor da coisa, à data do negócio translativo do direito, for um terceiro, não deixa de considerar-se igualmente transferida a posse, ainda que essa detenção haja de continuar» (art. 1264º) ([5]).

O que vale por dizer que o A, por via do constituto possessório, adquiriu a posse da parcela em questão, há, pelo menos, 20 anos, não obstante a detenção/ocupação que os RR dela venham fazendo.

Por conseguinte, a factualidade assente permitiria concluir que decorreu o período de tempo a que alude o art. 1296º para a aquisição por usucapião da questionada parcela por banda do A, sendo certo que os efeitos da respectiva invocação retroagem à data do início da posse (art.1288º).

Mesmo que assim não fosse, uma vez que não existe, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início dessa posse, o A, enquanto possuidor, sempre gozaria da presunção da titularidade do direito de propriedade sobre a discutida parcela (art. 1268º), a qual, de modo algum, é abalada por qualquer dos factos tidos por provados.

Por outro lado, se, como se disse, as realidades prediais objecto de direitos reais não se alcançam com o recurso a elementos identificativos dos prédios constantes nas descrições prediais, já não é completamente certeira a conclusão de que o teor destas é absolutamente inócuo para vir a ter por assente a existência dum prédio ([6]). É que, como já se advertiu no Acórdão desta Secção de 12-02-2008 ([7]), «este entendimento não pode ser acolhido acriticamente, antes devendo ser ponderado em termos hábeis», porque, «mau grado os limites da presunção resultante do registo é certo que, sob pena de se esvaziar completamente o seu conteúdo, há que atentar nos precisos termos da inscrição e verificar se foram provados, ou improvados, quesitos em sentido oposto».

Acrescenta esse aresto, evocando duas anteriores decisões desta mesma Secção ([8]):

«A descrição reporta-se a uma realidade física, ostensiva e deve conter todos os elementos essenciais dessa realidade que terão de estar abrangidos por ela. Só não estão os elementos acessórios e acidentais.

(…) “assim sendo, há-de haver nela (descrição) um conjunto de elementos identificativos, que constituirão um âmbito mínimo ou núcleo essencial indispensável à definição ou identificação da coisa sobre a qual incide a inscrição do direito, sob pena de não se saber sobre que coisa incide o facto inscrito.”.

(…) “Não se contesta que a presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial abrange apenas os factos jurídicos inscritos de onde se deduzem as situações jurídicas publicitadas pelo registo e não também a totalidade dos elementos de identificação física, económica e fiscal dos prédios, objecto da descrição predial e a sua única finalidade.

(…) Só que, uma coisa são as confrontações, a área, as estremas ou o valor dos prédios, outra aquilo que os define ou identifica na sua essencialidade.

Assim, da descrição fazem parte não só os elementos materiais essenciais à identificação dos prédios como os elementos meramente complementares ou acessórios.

Os primeiros, como que são inerentes à própria inscrição, pelo que só os segundos devem estar fora do alcance da presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial, sob pena de esta não ter qualquer relevância prática.”

(…) “Portanto, das inscrições constam os factos jurídicos sujeitos a registo, conforme o elencado no artigo 2.º do C.R. Predial, ou sejam, constam deles os factos da vida real, que, por força da lei produzem determinados efeitos jurídicos, no caso, constitutivos, aquisitivos, modificativos ou extintivos do direito de propriedade.

Ora, como tal direito incide sobre coisas a inscrição tem de as identificar, o que faz por referência à descrição, sendo certo que alguns desses elementos identificativos são essenciais, no sentido de que, sem eles, não se saber sobre que coisa incide a inscrição (ou melhor, o facto inscrito).

Esse núcleo essencial da descrição não pode deixar de estar protegido pela presunção do artigo 7.º sob pena de se presumir a propriedade de coisa nenhuma.”

Daí que se no registo um prédio vem descrito como tendo uma área descoberta, ou logradouro, ou como tendo, apenas, um terraço descoberto, tais elementos, – que não limites, áreas precisas, valores, identificação fiscal, confrontações e âmbito – fazem parte do referido núcleo essencial descritivo, que, no fundo são marcas diferenciadoras, ou de identificação, do prédio, que estão a coberto da presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial.».

Donde, perfilhando esta interpretação, se «O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define», tal presunção não pode deixar de se estender à (crucial) existência do próprio prédio objecto do direito, ainda que não à respectiva área, ou, pelo menos, à exactidão desta.

E o certo é que não consta da matéria de facto provada qualquer elemento que possa, eficazmente, contribuir para a elisão da presunção da existência (autónoma) do prédio adquirido pelo A, descrito na Conservatória sob o nº 4868 (e inscrito na matriz sob o artigo 3435º).

Ora, os argumentos atinentes à repartição do ónus da prova, que foram sendo esgrimidos nesta acção no âmbito da polémica travada sobre a qualificação da sua natureza processual, nada bolem contra essa presunção – que, com os estritos contornos acabados de elucidar, beneficia o A – e o mesmo se deve concluir relativamente à já mencionada presunção estribada na posse e imposta pela norma do citado art. 1268º.

Advém do exposto que, no essencial, procedem o recurso e o pedido pelo A formulado, só assim não sucedendo quanto à pretendida alusão à área da questionada parcela – e, por consequência, à declaração atinente à «rectificação matricial» – na medida em que a sua delimitação não é facultada pelos factos provados, ou, mais rigorosamente, apenas se colheria das meras declarações dos interessados constantes das descrições registrais ou matriciais e daí que, pelas razões por último alinhadas, mostra-se inviabilizada a sua asseveração nestes autos. De todo o modo, cumpre esclarecer que não caberia nas atribuições deste Supremo Tribunal a rogada intervenção junto da Administração Pública visando a rectificação matricial, para mais, no contexto de uma pretensão que o A delineou para esta acção como sendo – rememore-se – de simples apreciação negativa.

Por assim ser, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas na revista.

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Síntese conclusiva:

1. O significado essencial das regras sobre o ónus da prova está em determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de se não fazer a prova de certo facto.

2. Sendo a usucapião a base da nossa ordem jurídica, o que releva para alcançar as realidades prediais, objecto de direitos reais, são os actos possessórios verificados ao longo dos tempos, que incidam sobre tais realidades, físicas e concretas, e não os elementos identificativos em poder de entidades ou serviços públicos, como as descrições prediais ou as inscrições matriciais – estas, por maioria de razão –, que podem ser úteis na identificação ou localização daquelas realidades, mas não podem ter qualquer repercussão nas relações jurídico-privadas, nomeadamente delimitando o objecto sobre que incindem tais direitos, nada provando, por si só, quanto a esse objecto, designadamente quanto à respectiva área concreta.

3. A posse adquire-se, nomeadamente, pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, mantém-se enquanto durar essa actuação ou a possibilidade de a continuar, podendo aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte juntar à sua a posse do antecessor (arts. 1251º, 1252º, 1256º, 1257º e 1263º do CC). E, por via do constituto possessório, se o titular do direito real transmitir esse direito a outrem, a sua posse não deixa de considerar-se transferida para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa ou esta, à data do negócio translativo do direito, for detida/ocupada por um terceiro (art. 1264º do CC).

4. Por isso, não existindo, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início dessa posse, o possuidor sempre gozaria da presunção da titularidade do direito (de propriedade) sobre a discutida parcela, a qual teria de ser abalada por factos tidos por provados (art. 1268º do CC).

5. Por outro lado, se a presunção gerada pela inscrição da aquisição do direito no registo predial, ao abrigo do art. 7º do C. Registo Predial, abrange apenas os factos jurídicos inscritos e não também a totalidade dos elementos de identificação física, económica e fiscal dos prédios, os elementos que fazem parte do núcleo essencial da descrição, no sentido de, sem eles, não se saber sobre que coisa incide o facto inscrito – que não limites, áreas precisas, valores, identificação fiscal e âmbito –, tal presunção não pode deixar de se estender à (crucial) existência do próprio prédio objecto do direito, ainda que não à respectiva área, ou, pelo menos, à exactidão desta, sob pena de se presumir o direito sobre coisa nenhuma.

 

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Decisão:

Pelo exposto, concedendo em parte a revista, acorda-se em julgar parcialmente procedente a acção e, por consequência, em declarar que os RR não detêm qualquer direito sobre a área da parcela de terreno que constitui o prédio descrito sob o nº 4868/... e inscrito sob o artigo R-3435 (2387 na matriz anterior), situado a poente e sul do prédio descrito sob o nº 1967/... (e artigo U-1341>U-2507), o qual, consequentemente, não inclui aquela área.

As custas deste recurso e do processado em ambas as instâncias serão suportadas pelo A e pelos RR nas proporções de 1/5 e 4/5, respectivamente.          

Lisboa, 19/9/2017

Alexandre Reis - Relator

Pedro Lima Gonçalves

Cabral Tavares

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[1] P. Lima e A. Varela CC Anot. 4ª ed., p. 306.

[2] Ao afirmar que «o ónus da prova não significa propriamente que sobre uma parte impende em exclusivo a obrigação de apresentar e produzir meios destinados a demonstrar a realidade de certos factos mas apenas a de que, se ao cabo da actividade instrutória e probatória que ambas podem desenvolver, subsistir um non liquet então o litígio se resolve contra a parte onerada».

[3] Diploma a que pertencem as normas que vierem a ser invocadas sem outra menção.

[4] Que, em caso de dúvida, se presume naquele que exerce o poder de facto (art. 1252º nº2).

[5] Como referem P. Lima e A. Varela, in CC Anot., III, 2ª ed., p. 29, o constituto possessório é uma forma de aquisição solo consensu da posse, isto é, uma aquisição sem necessidade de um acto material ou simbólico que a revele.

[6] Ideia que perpassa tanto na decisão recorrida como na da 1ª instância, em que se colhem as seguintes passagens: «(…) a presunção decorrente do artigo 7º do Código do Registo Predial (…) não se estende aos elementos identificativos que constam das descrições registrais ou matriciais. Tal presunção não se estende aos limites ou confrontações, à área dos prédios, às inscrições matriciais (com finalidade essencialmente fiscal, como se disse), numa palavra, à identificação física dos imóveis, porque tais descrições podem assentar, como se sabe, em meras declarações dos interessados, escapando ao controlo do conservador ou da competente repartição de finanças. A existência dos prédios, de prédios distintos não se afere em função das inscrições matriciais ou das descrições prediais, mas sim em função da realidade material e jurídica verificada em cada caso concreto. E assim, na situação em apreço, não é o facto de ter sido criado a dada altura um artigo rústico, hoje correspondente ao 3435º da união de freguesias de ..., ... e ..., ou de ter sido levada ao registo predial uma nova descrição na sequência da escritura de justificação notarial a que se alude no ponto 5. dos factos provados, que confere sustentação factual à tese do autor. Na realidade, o fraccionamento de prédios pode ocorrer em consequência de actos materiais com relevância jurídica, de actos possessórios que mantidos durante certo lapso de tempo conduzam a uma divisão por usucapião. Ou pode ser obtido esse fraccionamento por actos exclusivamente jurídicos, através de operações urbanísticas de loteamento ou de operações de destaque, mas nestes casos sujeito a condicionantes de natureza legal e administrativa.».

[7] P. 08A055 - relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas.

[8] De 22-02-2005 e de 31-03-2004 (relatadas pelos Conselheiros Alves Velho e Moreira Alves, respectivamente).