Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
159/16.5T8PRT-A.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
EMBARGOS DE EXECUTADO
ADMISSIBILIDADE DA REVISTA
AÇÃO EXECUTIVA
AVALISTA
LIVRANÇA
DIREITO DE REGRESSO
REGIME APLICÁVEL
TÍTULO EXECUTIVO
QUIRÓGRAFO
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
Data do Acordão: 01/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário : I - O que releva para efeitos de cabimento da revista reportado ao mérito da causa, em sede de embargos de executado, nos termos conjugados dos arts. 671.º, n.º 1, e 854.º, do CPC, é o conhecimento pelo acórdão da Relação do mérito dos embargos, seja ele respeitante a fundamentos de natureza adjetiva, seja ele referente a fundamentos de matriz substantiva.

II - As relações entre coavalistas do mesmo avalizado não revestem natureza cambiária, pelo que o direito de regresso entre eles segue o regime previsto para a pluralidade de fiadores no art. 650.º com remissão para os arts. 516.º e 524.º do CC.

III - O direito de regresso entre avalistas do mesmo avalizado reger-se-á, em primeira linha, pelo que tiver sido convencionado extracartularmente entre eles e, na falta de convenção, pelo regime das obrigações civis solidárias, dada a sua conexão funcional com o regime cartular, conforme a orientação jurisprudencial estabelecida no AUJ do STJ n.º 7/2012, de 05-12-2012.

IV - Uma vez que o direito de regresso entre coavalistas do mesmo avalizado em livrança não reveste natureza cambiária, essa livrança não detém, para tais efeitos, eficácia cartular, não podendo valer como título executivo sob a categoria de título de crédito propriamente dito.

V - Todavia, essa livrança poderá constituir título executivo como mero quirógrafo, desde que alicerçada em consentânea relação causal, nos termos previstos na al. c) do n.º 1 do art. 703.º do CPC.

Decisão Texto Integral:            

Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório 


1. AA (executado/embargante), em 02/05/2016, deduziu embargos contra a execução para pagamento da quantia total de € 122.637,64 instaurada contra aquele por BB e cônjuge CC (exequentes/embargados) com base numa escritura de constituição de hipoteca, outorgada em 18/09/2012, e documentos complementares, invocando, em síntese, o seguinte:  

. A inexequibilidade do título dado à execução, por considerar que a referida escritura contém apenas a constituição de uma garantia hipotecária sem dela resultar a constituição ou reconhecimento de qualquer dívida certa, líquida e exigível do executado para com os exequentes, conforme o já decidido no processo que correu termos sob n.º 1862/13……;

. A inexistência de qualquer obrigação assumida pelo executado perante os exequentes, tornando também inexistente a hipoteca;

. A omissão, na sobredita escritura, de qualquer medida de responsabilidade do executado como avalista perante vários outros avalistas, sendo necessário liquidar previamente essa quota de responsabilidade;

. O desconhecimento do embargante de que tenha sido efetuado algum pagamento aos bancos e dos custos alegadamente suportados pelos exequentes.   

2. Os exequentes contestaram os embargos, sustentando a exequibilidade do título, invocando a seu favor o caso julgado formado no indicado processo n.º 1862/13…, e impugnando o alegado pelo embargante no respeitante à inexistência da obrigação exequenda.  

3. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador tabelar, seguido da identificação do objeto do litígio e da enunciação dos temas da prova, conforme fls. 130-131.

4. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 396-400/v.º, de 13/07/2017, na qual se concluiu pela inexequibilidade do título dado à execução e pela não verificação da exceção de caso julgado invocada pelos exequentes, considerando-se, por isso, prejudicadas as demais questões suscitadas e julgando-se procedentes os embargos com a consequente declaração de extinção da execução. 

5. Inconformados, os exequentes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, tendo sido proferido o acórdão de fls. 442-451, de 11/04/2019, no qual foram equacionadas as seguintes questões:

a) – saber se ocorre nulidade da sentença recorrida por falta de fixação dos factos provados e não provados e da respetiva motivação, bem como falta de aplicação da lei a tais factos;

b) – saber se existe caso julgado formal quanto à inexistência do título executivo, em face do teor do despacho saneador na parte relativa à inexistência de nulidades;

c) – saber se inexiste fundamento para que tivesse sido declarada a inexequibilidade do título executivo consistente na escritura de constituição de hipoteca.

No referido acórdão, conclui-se que não ocorria a invocada nulidade da sentença recorrida nem a pretensa exceção de caso julgado formal, mas que não podia subsistir o ali decidido sobre a inexequibilidade do título, já que a escritura de constituição da hipoteca se encontrava complementada por livranças dotadas de força executiva nos termos do artigo 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC.

Não obstante isso, foi considerado que cumpria conhecer das questões de iliquidez e do não pagamento ou de pagamento indevido da obrigação exequenda, para o que se tornava necessário, no âmbito da matéria de facto controvertida, fixar os factos provados e não provados para tal efeito relevantes.

Nessa base, decidiu-se julgar parcialmente procedente a apelação e anular a decisão recorrida a fim de serem fixados os factos provados e não provados, alegados pelas partes, relativos à forma como foi liquidada, no petitório executivo, a obrigação exequenda e decorrentes da integralidade dos temas da prova, sem prejuízo dos factos já estabelecidos como provados nos autos.

6. Desta feita, vêm os exequentes pedir revista, para o que formularam as seguintes conclusões:

1.ª – No caso dos presentes autos verificam-se os requisitos de que depende a instauração da revista nos termos do art.º 671.º, n.º 1, do CPC, posto que a decisão recorrida apreciou do mérito da causa, anulando a sentença proferida em 1.ª instância, a fim de serem fixados os factos provados e não provados, alegados pelas partes relativos à forma como foi liquidada, no petitório executivo, a obrigação exequenda, considerando que os documentos que complementam a escritura, na alegação dos exequentes, são as livranças dadas à execução pelo Banco, em execuções nas quais o devedor e ora   embargante também foi executado e, como  tal,  são  títulos  dotados de  força  executiva  própria – art.º 703º, n.º 1, al. c), do CPC;

2.ª - Porém, as livranças que o Tribunal “a quo” refere como título executivo dotado de força própria, que complementam a escritura dada à execução, não foram sequer juntas aos autos pelos exequentes.

3.ª – Tal circunstancialismo é corroborado pela lista de documentos que os exequentes redigiram nas suas alegações, donde, relativamente aos processos de execução titulados por essas livranças, consta que somente os seguintes documentos foram juntos: “Citação no âmbito dos processos de execução n.º 2381... e n.º 2382…. respeitantes aos contratos de mútuo identificados na escritura de hipoteca e posterior junção de certidões judiciais desses dois processos (a comprovar o incumprimento desses contratos e acionamento em juízo)”.

4.ª – Daqui se depreende que, em oposição ao decidido no acórdão recorrido, tais livranças são inexistentes nos presentes autos, pelo que nunca poderão ser tidas como título executivo com força executiva própria complementar da escritura dada à execução.

5.ª - Ou seja, dos documentos juntos aos autos relativos à demanda em juízo dos exequentes e executado, apenas foi junto aos autos a citação e as certidões judiciais, não tendo, em momento algum, sido junta, como documento complementar do título dado à execução, cópia das referidas livranças.

6.ª - Assim, andou mal o Tribunal recorrido ao considerar que os documentos que complementam a escritura são as livranças dadas à execução pelo Banco em outras execuções, porquanto tais livranças são  inexistentes nos presentes autos.

7.ª - Pelo exposto, o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 703.º, n.º 1, al. b) e c), e 707.º do CPC.

8.ª - Sem prescindir, inexiste qualquer direito dos exequentes sobre o executado de reclamar deste o pagamento das quantias de € 65.565,16 e € 40.454,04, porquanto não são esses os valores apostos nos contratos cujo cumprimento a hipoteca garante, sendo certo que também não resultam da escritura dada à execução.

9.ª - Nem sequer se pode considerar que tais valores correspondem a 50% do valor de cada uma das dívidas relativas a cada um dos contratos, em virtude de neles figurarem vários avalistas.

10.ª – O pagamento que os exequentes alegam, não os desonerou de suportar essa obrigação pelos avales que prestaram, nem perante a entidade bancária, nem perante os ora recorrentes nem perante nenhum dos outros garantes.

11.ª - Pelo exposto, é manifesta a inexigibilidade da prestação, bem como a inexequibilidade do título executivo, pelo que o acórdão   recorrido viola o disposto no art.º 703º, n.º 1, al. b), do CPC;

12.ª - Ainda e sem conceder, quanto às questões que o Tribunal “a   quo” entende que deveriam ter sido apreciadas, apenas não o foram na medida em que o seu conhecimento foi prejudicado pela inexequibilidade do título dado à execução.

7. Os Recorridos apresentaram contra-alegações, começando por arguir a inadmissibilidade da revista, dado não se enquadrar em qualquer das situações previstas no artigo 671.º, n.º 1, do CPC, no mais, pugnando pela sua improcedência.


II – Questão prévia sobre a admissibilidade da revista


Segundo a 1.ª conclusão do Recorrente, a interposição da presente revista estriba-se no disposto no artigo 671.º, n.º 1, do CPC, por entender que o acórdão recorrido conheceu do mérito da causa, ao considerar que os documentos complementares da escritura de constituição de hipoteca aqui dada à execução são as livranças dadas à execução pelo Banco noutras execuções em que o devedor e ora embargante também foi executado, sendo, como  tal, títulos dotados de força  executiva  própria, nos termos do art.º 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC.

Por seu lado, os Recorridos sustentaram, em primeira linha, a inadmissibilidade da mesma por considerarem que o acórdão recorrido não apreciou o mérito da causa, não pôs termo ao processo nem absolveu nenhuma das partes.

Ora, segundo o preceituado no artigo 854.º do CPC, no que aqui releva, cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de oposição contra a execução.

E o n.º 1 do artigo 671.º do mesmo Código dispões que:

Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre a decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos.

Neste quadro normativo, o cabimento da revista pautado pelo conhecimento do mérito da causa deve ser aferido em função do que for julgado pelo acórdão da Relação, o que significa que tal cabimento ocorrerá nos casos em que o acórdão da Relação tenha conhecido do mérito da causa, independentemente do teor da decisão da 1.ª instância.

Assim, no âmbito das ações declarativas, o conhecimento do mérito da causa incidirá sobre o objeto das pretensões ajuizadas ou sobre questões respeitantes a exceções perentórias e, portanto, sobre matéria de direito substantivo.

Porém, em sede do procedimento declarativo de embargos de executado, o seu objeto tanto pode incidir sobre questões de natureza adjetiva ou processual, como são os fundamentos previstos nas alíneas a) a f) do artigo 729.º do CPC, como pode recair sobre fundamentos de matriz substantiva, conforme os previstos nas alíneas g) a h) do mesmo normativo. 

Para tal efeito, importa distinguir: por um lado, as questões relativas à falta de pressupostos processuais da execução – por exemplo, a inexistência ou inexequibilidade do título ou a falta de qualquer outro pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva –, matéria obviamente de direito processual, mas que constitui objeto da pretensão de embargos; por outro lado, as questões respeitantes à falta de pressupostos processuais/exceções dilatórias do próprio procedimento de embargos e que são, como tal, obstativas do conhecimento sobre o respetivo objeto.

Nesta linha, o cabimento da revista de acórdão da Relação que conheça do mérito da causa, a que se refere o artigo 671.º, n.º 1, do CPC, quando se trate de acórdão que conheça do objeto dos embargos de executado, deve ser aferido em função da sua incidência sobre este objeto, independentemente de respeitar a matéria de direito adjetivo ou substantivo. 

Assim sendo, o que releva para efeitos do cabimento da revista reportado ao mérito da causa, em sede de embargos de executado, é o conhecimento, no acórdão da Relação, do mérito dos embargos, seja ele respeitante a fundamentos de natureza adjetiva – nomeadamente, a falta de pressupostos processuais da instância executiva -, seja ele referente a fundamentos de matriz substantiva, como são os relativos à existência, validade ou subsistência da obrigação exequenda.

No caso vertente, o acórdão recorrido ocupou-se, além do mais, da questão da inexequibilidade do título dado à execução, suscitada como um dos fundamentos dos embargos, previsto na alínea a) do artigo 729.º do CPC, considerando que os documentos complementares da escritura de constituição da hipoteca dada à execução eram as livranças dadas à execução pelo Banco noutras execuções em que o devedor e ora embargante também fora executado, sendo, como  tal, títulos dotados de força  executiva  própria, nos termos do art.º 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC.

Nessa base, a Relação divergiu da decisão da 1.ª instância, que considerara verificada a inexequibilidade do título, concluindo que o assim decidido não podia subsistir e, por isso mesmo, julgando parcialmente procedente a apelação.

E foi nessa decorrência que, tendo em conta as demais questões tidas por prejudicadas pela 1.ª instância, como as respeitantes à existência e à liquidação da obrigação exequenda, em consonância, de resto, com os temas da prova enunciados, se decidiu “anular” a decisão recorrida a fim de serem fixados os factos provados e não provados, alegados pelas partes, relativos a tais questões.

Muito embora se afigure tecnicamente pouco rigorosa a fórmula empregue de “anular a decisão recorrida” para ordenar o prosseguimento dos embargos para efeitos do conhecimento das questões tidas por prejudicadas, mas, de todo o modo, não tendo o acórdão recorrido posto termo ao processo, o certo é que ali foi tomado conhecimento de questão incidente sobre o objeto dos embargos como é a respeitante ao invocado fundamento da inexequibilidade do título, perfeitamente distinto dos demais fundamentos também alegados, relativos à existência e liquidação da obrigação exequenda.      

Assim, à luz do critério acima exposto, estamos perante acórdão da Relação que conheceu, em parte, do mérito dos embargos, o que torna a revista admissível nos termos do artigo 671.º, n.º 1, ex vi do art.º 854.º do CPC.


III – Delimitação do objeto da revista


Em face do teor das conclusões recursórias em função das quais se delimita o objeto do recurso, a questão de direito fundamental consiste em saber se a escritura de constituição de hipoteca dada à execução, em conjugação como os documentos complementares que a acompanham, reúne os requisitos necessários e suficientes de exequibilidade para a realização coativa da prestação exequenda, nos termos dos artigos 703.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 707.º do CPC. 

IV - Fundamentação


1. Factualidade dada como provada


Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. Nos autos principais de execução, em que são exequentes BB e CC e executado o embargante AA foi apresentado como título executivo a escritura pública de “Hipoteca” celebrada em 18/09/ 2012, na qual intervieram como Primeiro Outorgante o aqui embargado e como Segundos Outorgantes os aqui exequentes, junta de fls. 23 a 27, da qual consta:

“(…) Que o primeiro outorgante constitui hipoteca a favor dos segundos outorgantes, sobre o seu identificado bem imóvel.

Que a presente hipoteca se destina a garantir o bom e integral pagamento de:

a) Todas e quaisquer responsabilidades decorrentes dos seguintes contratos, no valor global de duzentos e trinta e um mil oitocentos e trinta e seis euros e quarenta e um cêntimos:

1. Mútuo com aval, no valor de cinquenta mil euros, datado de Fevereiro de dois mil e doze, pelo prazo de dez anos;

2. Mútuo com aval, no valor de oitenta mil euros, datado de Fevereiro de dois mil e dez, pelo prazo de doze anos;

3. Contrato de Locação financeira mobiliária número treze mil e vinte e três e respectivo aditamento, no valor de dez mil e novecentos euros, datado de Junho de dois mil e dez, pelo prazo de cinco anos;

4. Contrato de Locação financeira mobiliária número treze mil e vinte e quatro, no valor de sessenta e um mil cento e trinta euros, datado de Junho de dois mil e dez, pelo prazo de cinco anos;

5. Contrato de Locação financeira mobiliária número treze mil e vinte cinco, no valor de dezassete mil cento e quarenta e dois euros e oitenta cêntimos, datado de Junho de dois mil e dez, pelo prazo de cinco anos.

Os dois primeiros actos foram celebrados com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo …, …. e …, CRL e os restantes com a Caixa Central – Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, CRL;

Nos actos descritos, os segundos outorgantes são avalistas, em virtude de o segundo outorgante marido ter sido sócio da sociedade S…, Ld.ª.

b) Das despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogados e solicitadores que os segundos outorgantes houverem de fazer para garantir e assegurar o bom cumprimento das responsabilidades referenciadas na alínea precedente, fixadas para efeito de registo em dez mil euros, sendo assim o total garantido fixado até ao limite de duzentos e quarenta e um mil oitocentos e trinta e seis euros e quarenta e um cêntimo.

O incumprimento, por parte do primeiro outorgante, de qualquer dos actos descritos nos seis pontos da alínea a) apenas poderá dar lugar à execução desta hipoteca na data em que o primeiro outorgante seja accionado em juízo, ou quando tal incumprimento, por parte do primeiro outorgante, de qualquer um dos actos referidos na mesma alínea, seja superior a noventa dias.”

1.2. Os exequentes juntaram com a escritura referida em 1.1 os contratos de mútuo e de locação financeira juntos de fls. 10 a 22 e 33 a 43 e os documentos de fls. 45 a 60 dos autos de execução, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

1.3. O teor do acórdão da Relação do Porto proferido no processo 1862/13… do 0.º Juízo Cível da Comarca …, junto de fls. 110 a 120 destes autos, dado como reproduzido.


2. Outros elementos constantes dos autos


A par desta factualidade acima consignada e no seu contexto, importa considerar que, na sequência do despacho proferido na ata da 1.ª sessão da audiência final a fls. 166, os exequentes juntaram duas certidões, a saber:

i) - A certidão de fls. 223-269, respeitante execução ordinária que correu termos no processo n.º 2381/13…, em que foi exequente a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, …, …. e …, e executados, entre outros, os ora exequentes BB e CC e o ora executado/ embargante AA, da qual consta, além de mais, cópias:

- de uma livrança (fls. 225), com a data de emissão de 24/02/2012, no valor de € 50.000,00 e data de vencimento de 24/12/2013, subscrita pela sociedade S…., Ld.ª, a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e com vários avales à subscritora pelos ora exequentes e pelo ora executado, além de outros;

- de um contrato de mútuo com aval (fls. 226-228/v.º), no valor de € 50.000,00, em que figura como mutuante a Caixa Agrícola – Caixa de Crédito Agrícola Mútuo …, ….. e …., CRL, como mutuária a sociedade S…., Ld.ª, e como terceiros avalistas desta, além de outros, os ora exequentes e executado;

ii) - A certidão de fls. 270 e seguintes, respeitante à execução ordinária que correu termos no processo n.º 2382/13…, em que foi exequente a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo… e executados, entre outros, os ora exequentes BB e CC e o ora executado/embargante AA, da qual consta, além de mais, cópias:

- de uma livrança (fls. 273), com a data de emissão de 24/02/2010, no valor de € 67.938,37 e data de vencimento de 24/12/2013, subscrita pela sociedade S…, Ld.ª, a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e com vários avales à subscritora pelos ora exequentes e pelo ora executado, além de outros;

- de um pacto de preenchimento (fls. 274), datado de 24/02/2010, firmado pela sobredita sociedade e pelos avalistas da mesma livrança, a autorizar o preenchimento da referida livrança reportada a um empréstimo no valor de € 80.000,00. 


Não foi impugnada a junção nem a eficácia probatória das sobreditas certidões.


3. Do mérito do recurso


Antes de mais, importa reter que a 1.ª instância, ocupando-se do fundamento dos embargos respeitante à alegada inexequibilidade do título, depois de convocar e equacionar o alcance do disposto nos artigos 703.º, n.º 1 alínea b), e 707.º do CPC, considerou o seguinte:

   «No caso em apreço, se analisarmos a escritura, vemos que a mesma é omissa quanto à previsão daquele tipo de documentos [referidos no art.º 707.º do CPC]. Assim, os executados só poderiam fazer a prova complementar do título – da escritura – se juntassem com a mesma documentos com força executiva própria susceptíveis de provar a constituição da obrigação por parte do executado.

   Ora, os documentos com força executiva própria são os previstos no artigo 703.º do CPC.

   Os documentos complementares juntos pelos exequentes para aquele efeito são dois avisos de incumprimento de fls. 45 e 46 a interpelação de fls. 47, as cópias das execuções instauradas pela CCA contra os exequentes e as declarações emitidas pela CCA relativamente ao pagamento efectuados pelos exequentes.

   Acontece que nenhum destes documentos tem, quer à luz do actual artigo 703.º do CPC quer mesmo à luz do anterior art.º 46.º do CPC, força executiva própria.

   Note-se que mesmo as declarações de desoneração e de recebimento juntas são documentos emitidos por terceiro (a CCA) relativamente à constituição da obrigação em causa, os quais deverão e terão que ser valorados em sede própria, mas que não têm a virtualidade de poder complementar a escritura de constituição de hipoteca, no sentido de lhe poder conferir exequibilidade.

   Os documentos que os exequentes juntam para conferir exequibilidade ao título (escritura) não têm força executiva própria.

   Aqui chegados vemos que pese embora a junção daqueles documentos, a inexequibilidade do título dado à execução se mantém.

   Os exequentes, pese embora beneficiem da garantia constituída pela hipoteca, por não beneficiarem de documento complementar com força executiva própria, têm que recorrer à acção declarativa prévia para ali verem declarada, reconhecida e liquidada a responsabilidade do executado no âmbito dos contratos identificados na escritura.»         


Sucede que os exequentes apelaram daquela sentença, sustentando a exequibilidade do título, em relação ao que o executado/recorrido, a dado passo, secundando a tese adotada na sentença, contrapôs que a escritura dada à execução era omissa quanto à previsão dos documentos complementares juntos, nomeadamente dois avisos de incumprimento, uma interpelação, cópias das execuções instauradas pela CCA contra os exequentes e declarações emitidas pela CCA relativamente a pagamentos efetuados por estes.

Por sua vez, no acórdão recorrido, no que aqui releva, foi considerado o seguinte:             

«É dada à execução uma escritura pública de constituição de hipoteca – e a questão que se coloca é a de saber se a escritura em causa cabe no âmbito do disposto nas disposições conjugadas dos artºs 703º nº 1 al. b) e 707º CPCiv – documentos exarados ou autenticados por notário (…) que importem a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação, sendo que se convencionada ou prevista a existência de obrigações futuras ou a futura constituição das mesmas, terá de se comprovar, por documento passado em conformidade com as cláusulas do acordo, ou, sendo ele omisso, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída, na sequência da previsão das partes.

Estas prestações futuras a que alude o artº 707º são as que devem ser efectuadas pelo credor e não as que o devedor tenha de satisfazer – assim, Prof. J. Alberto dos Reis, CPC Anotado, I/163, cit. in Ac. S.T.J. 11/2/99 Col.I/106, relatado pelo Consº Ferreira de Almeida.

No mesmo sentido, Consº Eurico Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, pg. 76 (1986), nota 3.

O artº 707º contempla, portanto, dois tipos de casos:

   - a convenção de prestações futuras e

   - a constituição de obrigações futuras.

No caso dos autos, previu-se que a hipoteca se destinava a garantir o integral pagamento das responsabilidades decorrentes de determinados contratos.

Portanto, convencionaram-se prestações futuras a cargo dos Exequentes, que o Executado se comprometeu a solver, perante esses mesmos Exequentes.

Tornava-se necessário demonstrar que alguma prestação tinha sido realizada para conclusão do negócio (Consº Amâncio Ferreira, Curso, 5.ª ed., pg. 32).

A douta sentença recorrida sustenta que, fundamentada a constituição da hipoteca na garantia de obrigações futuras, o documento complementar é omisso quanto à previsão do tipo de documento e, por seu lado, os documentos juntos para complementar a escritura não possuem força executiva própria.

Mas temos para nós que os documentos que complementam a escritura, na alegação dos Exequentes, são as livranças dadas à execução pelo Banco, em execuções nas quais o devedor e ora Embargante também foi executado, e, como tal, são títulos dotados de força executiva própria – artº 703º nº 1 al. c) CPCiv.

Na verdade, conforme estabelecido na escritura, a hipoteca garantia o pagamento das responsabilidades decorrentes de determinados contratos, nos quais era mutuante o Banco, e vencer-se-ia na data em que o ora Embargante (primeiro outorgante) fosse accionado em juízo, ou quando o incumprimento, por parte desse primeiro outorgante, fosse superior a 90 dias.

Quer o Embargante devedor, quer os Embargados credores foram demandados em juízo, com fundamento nas livranças que fundamentaram os processos executivos invocados pelos Exequentes/Embargados, preenchidas, na alegação dos Exequentes, com base nos mesmos contratos já previstos na constituição da hipoteca e invocada confissão ou reconhecimento de dívida e é fora de dúvida que são os invocados pagamentos efectuados pelos Exequentes, no âmbito dos processos executivos, aquilo em que consiste o crédito dos Exequentes sobre o Embargante.

Portanto, pese o devido respeito, aquilo que vem decidido de 1ª instância não pode subsistir.»

Questionando o assim julgado, o embargante/recorrente, sustenta agora que as livranças que o Tribunal a quo refere como título executivo dotadas de força própria, que complementam a escritura dada à execução, não foram sequer juntas aos autos pelos exequentes, constando apenas os seguintes documentos: “citação no âmbito dos processos de execução n.º 2381… e n.º 2382…. respeitantes aos contratos de mútuo identificados na escritura de hipoteca e posterior junção de certidões judiciais desses dois processos (a comprovar o incumprimento desses contratos e acionamento em juízo)”.

E argumenta que dos documentos juntos aos autos relativos à demanda em juízo dos exequentes e executado, apenas foi junto a citação e as certidões judiciais, não tendo, em momento algum, sido junta, como documento complementar do título dado à execução, cópia das referidas livranças, pelo que o tribunal recorrido não as poderia ter considerado, por serem inexistentes nos presentes autos.

Sucede, porém, que o embargante não questionou dantes a junção das referidas certidões de que constam cópias das mencionadas livranças, limitando-se a contrapor que se tratava de documentos omissos na escritura de constituição da hipoteca e que, por isso, não lhe podiam servir de documento complementar, de resto, na linha do entendimento adotado na sentença da 1.ª instância.

Foi, pois, nesse quadro, que o tribunal a quo entendeu que as livranças em referência, que constam das certidões juntas aos autos, constituíam documento complementar bastante da escritura de constituição da hipoteca dada à execução, sendo dotadas de exequibilidade própria.

Nestas circunstâncias, o que importa agora saber é se, juntas que foram as certidões das referidas livranças, sem que o embargante, oportunamente, se tivesse oposto a tal junção nem impugnado a sua eficácia probatória, podem elas ser consideradas como documentos complementares da escritura de constituição da hipoteca dada à execução com força executiva própria, tal como foi entendido no acórdão recorrido.


Vejamos.


Nos termos do artigo 10.º, n.º 5, do CPC, “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determina o fim e os limites da ação executiva”.

E as categorias de títulos executivos legalmente admissíveis encontram-se taxativamente definidas no artigo 703.º, n.º 1, do mesmo Código, em que figuram, além de outros: os documentos exarados por notário que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação patrimonial (alínea b); os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo (alínea c).

Por sua vez, o artigo 707.º do referido diploma (CPC) prescreve o seguinte:

Os documentos exarados ou autenticado, por notário ou por entidades ou profissionais com competência para tal, em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigação futura podem servir de base à execução, desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes.

Trata-se de uma disposição a estender a exequibilidade dos documentos autênticos ou autenticados a elementos documentais adminiculares ou complementares definidores da obrigação exequenda naqueles preconizada, em dois tipos de casos:

a) – quando, no documento autêntico ou autenticado, sejam convencionadas prestações futuras para a conclusão do negócio ali formalizado;

b) – quando, na mesma espécie de documento, se preveja a constituição de obrigação futura.

A primeira hipótese ocorrerá, em regra, no domínio de contratos preliminares ou dos denominados contratos-quadro (por exemplo, contratos de abertura de crédito, de fornecimento, de promessa de mútuo, etc.), em que o programa do contrato de base se concretiza por via de ulteriores contratos singulares de execução.

Neste tipo de casos, a exequibilidade do documento autêntico ou autenticado de que conste o contrato de base depende de documento adminicular, elaborado em conformidade com as cláusulas desse contrato ou, sendo estas omissas, revestido de força executiva própria, que comprove a realização da prestação negocial concretizadora daquele contrato, ou seja, os ditos negócios singulares de execução (por exemplo, no contrato de abertura de crédito ou na promessa de mútuo, os extratos de conta comprovativos da disponibilização do capital; no contrato de fornecimento, as faturas comprovativas das vendas concretamente realizadas).

A segunda hipótese respeita aos casos em que do negócio celebrado em documento autêntico ou autenticado não emerge ainda a constituição da obrigação ali visada, mas apenas a previsão da sua constituição futura, como sucede no domínio de negócio de constituição de hipoteca para garantir obrigação que se venha a constituir posteriormente.

Também aqui a exequibilidade do documento autêntico ou autenticado depende de documento complementar, elaborado em conformidade com as cláusulas do negócio ali celebrado ou, sendo estas omissas, revestido de força executiva própria, que comprove a constituição da obrigação preconizada naquele negócio. É o que sucede, por exemplo, no âmbito dos negócios de constituição de hipoteca para garantir uma obrigação futura, em que esta obrigação poderá ser comprovada por título de crédito que a contemple.

Em qualquer dos casos referidos, o título executivo assume feição complexa, posto que integrado pelo documento autêntico ou autenticado e pelos respetivos documentos adminiculares ou complementares.

 Foi neste quadro normativo que, no acórdão recorrido, se considerou que a escritura dada à execução de constituição de hipoteca, por parte do ora executado/embargante, AA, continha a convenção de prestações futuras a cargo dos aqui exequentes/embargados, BB e CC mas que aquele executado/embargante se comprometera a solver a coberto da garantia hipotecária constituída a favor daqueles exequentes. E que a realização dessas prestações futuras se encontrava comprovada pelas livranças, providas de força executiva própria, em que uns e outros deram os seus avales à subscritora S…., Ld.ª, no âmbito dos contratos de mútuo celebrado por esta sociedade com a CCA e identificados, como tal, na própria escritura de constituição da hipoteca.

Vejamos se assim é.

Da factualidade provada resulta que, através da escritura pública dada à execução, outorgada em 18/09/2012, o embargante AA constituiu uma hipoteca sobre um bem imóvel a ele pertencente a favor dos exequentes BB e CC para garantir o integral pagamento de todas e quaisquer responsabilidades decorrentes, no que ora releva, dos mútuos com aval respetivamente, no valor de € 50.000,00, datado de fevereiro de 2012, pelo prazo de dez anos, e no valor de € 80.000,00, datado de fevereiro de 2010, pelo prazo de doze anos, mútuos estes celebrados pela sociedade S….., Ld.ª, como mutuária, com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo …,…. e …, CRL, como mutuante. E da mesma escritura consta que o exequente BB interveio nesses mútuos como avalista da S…, Ld.ª, em virtude de ter sido sócio desta sociedade.

Da mesma escritura consta ainda que a garantia hipotecária prestada a favor dos exequentes cobre as “despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogados e solicitadores que os segundos outorgantes, aqui exequentes, houvesse de fazer para garantir e assegurar o bom cumprimento das responsabilidades acima referenciadas, fixadas para efeito de registo em € 10.000,00, sendo o total garantido fixado até ao limite de € 241.836,40.


A par disso, da certidão junta a fls. 223-269, já acima identificada, consta a livrança reproduzida a fls. 225, com a data de emissão de 24/02/ 2012, no valor de € 50.000,00 e data de vencimento de 24/12/2013, subscrita pela sociedade S…, Ld.ª, a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e com vários avales à subscritora prestados pelos ora exequentes e pelo ora executado, além de outros. E consta ainda o documento reproduzido a fls. 226-228/v.º respeitante a um contrato de mútuo com aval, no valor de € 50.000,00, em que figura como mutuante a Caixa Agrícola – Caixa de Crédito Agrícola Mútuo …, …. e …, CRL, como mutuária a sociedade S…, Ld.ª, e como terceiros avalistas desta, além de outros, ora exequentes e pelo ora executado.

E também da certidão junta a fls. 270 e seguintes consta a livrança reproduzida a fls. fls. 273, com a data de emissão de 24/02/2010, no valor de € 67.938,37 e data de vencimento de 24/12/2013, subscrita pela sociedade S…., Ld.ª, a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e com avales à subscritora dados pelos ora exequentes e executado, além de outros. E consta ainda o documento reproduzido a fls. 274, datado de 24/02/2010, firmado pela sobredita sociedade e pelos avalistas da mesma livrança reportada a um empréstimo no valor de € 80.000,00, a autorizar o seu preenchimento pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo …, …. e …, CRL.

Tais documentos serviram de base às execuções ordinárias que correram termos, respetivamente nos processos n.º 2381/13… e n.º 2382/13…, em que foi exequente a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, …., ….. e …, e executados, entre outros, os ora exequentes e executado/embargante.

Assim, da conjugação da escritura de constituição de hipoteca dada à execução com os sobreditos elementos documentais resulta que a hipoteca constituída pelo embargante AA, a favor dos exequentes BB e CC, se destinou a garantir, integralmente, a obrigação que para estes decorria da qualidade de avalistas da subscritora S…., Ld.ª, das mencionadas livranças, no âmbito dos referidos contratos de mútuo celebrados por esta sociedade como mutuária da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, ….., ….. e …, livranças essas em que o embargante figura também como coavalista da mesma subscritora.

Significa isto que tal garantia hipotecária visou cobrir o direito de regresso dos coavalistas BB e CC sobre o coavalista AA pela integralidade do que aqueles viessem a suportar por virtude dos seus avales, conforme o expressamente consignado na escritura de constituição da hipoteca.

Posto isto, não se afigura inteiramente rigorosa a subsunção algo linear feita, no acórdão recorrido, à previsão do artigo 707.º do CPC, porquanto o contrato de constituição de hipoteca dado à execução, celebrado em 18/09/2012, não contém propriamente convenção de prestação futura para a conclusão do negócio, mas sim a constituição da hipoteca para garantir, como foi referido, o direito de regresso dos exequentes BB e CC sobre AA, no quadro relacional de coavalistas nas livranças emitidas em 24/02/2012.

Ou seja, o contrato de constituição de hipoteca, celebrado em 18/09/ 2012, destinou-se a garantir o direito de regresso dos exequentes pelo eventual pagamento dos seus avales sobre o também coavalista AA, avales estes dados à sociedade subscritora aquando da emissão das livranças em 24/02/2012 e, portanto, antes da própria constituição da hipoteca.

Nestas circunstâncias, a obrigação de regresso assim garantida, quando muito, tem-se por expressamente assumida no contrato de constituição da hipoteca, não dependendo, por isso, de ulterior prestação a realizar em conclusão do negócio celebrado, muito embora aquela obrigação ficasse sujeita à condição suspensiva consistente na posterior satisfação dos avales prestados pelos exequentes.

Seja como for, à semelhança do que sucede no caso de prestação futura para conclusão do negócio, a que se refere o artigo 707.º do CPC, por maioria de razão, no caso, como o dos autos, em que a obrigação garantida foi, desde logo, assumida no contrato de constituição da hipoteca, a exequibilidade extrínseca desta obrigação depende da sua titulação em documento dotado de tais características de exequibilidade.

Sucede que o contrato de constituição da hipoteca em referência remete simplesmente para os contratos de mútuo com aval já celebrados em fevereiro de 2010 e, consequentemente, para os avales prestados nas livranças emitidas no seu âmbito.

Resta saber se estas livranças são providas de exequibilidade própria, já que não parece que a exequibilidade da obrigação de regresso assumida no contrato de constituição da hipoteca possa advir, sem mais, dos termos consignados neste contrato.

Ora é pacífico o entendimento de que as relações internas entre coavalistas do mesmo avalizado, mormente em sede de direito de regresso, não se regem pelo direito cambiário, designadamente pela Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças (LULL) aprovada pela Convenção de Genebra de 07/06/1930, mas antes pelas normas do direito comum.

Este tema encontra-se proficientemente tratado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ n.º 7/2012, de 05/12/2012, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 17/07/2012.

Conforme o ali explanado, as relações entre coavalistas do mesmo avalizado não revestem natureza cambiária, pelo que o direito de regresso entre eles segue o regime previsto para a pluralidade de fiadores no artigo 650.º com remissão para os artigos 516.º e 524.º do CC.

Todavia, no referido AUJ, foi uniformizada a orientação jurisprudencial no sentido de que: sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias.

Assim, o direito de regresso entre avalistas do mesmo avalizado reger-se-á, em primeira linha, pelo que tiver sido convencionado extracartularmente entre eles e, na falta de convenção, pelo regime das obrigações civis solidárias, dada a sua conexão funcional com o regime cartular.

No caso presente, como já ficou dito, no contrato de constituição de hipoteca dado à execução, o coavalista AA, ora embargante, assumiu a garantia hipotecária a favor dos exequentes BB e CC pela integralidade do que estes viessem a suportar por virtude dos seus avales prestados mesma avalizada, o que afasta, nessa medida, a aplicação do regime da solidariedade.

De qualquer modo, esse direito de regresso pressupõe a validade formal ou cartular dos avales prestados no âmbito dos quais se estabeleceu o direito de regresso entre os referidos coavalistas.

Mas será que as livranças em referência são providas de exequibilidade própria em termos de completar a exequibilidade da escritura pública de constituição da hipoteca dada à execução?

Ora, uma vez que o direito de regresso entre coavalistas do mesmo avalizado não reveste natureza cambiária, essas livranças não detêm, para tais efeitos, eficácia cartular, não podendo valer como título executivo sob a categoria de títulos de crédito propriamente ditos.

Todavia, poderão constituir título executivo como meros quirógrafos, desde que alicerçadas em consentânea relação causal, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC.

No caso em análise, a relação entre os coavalistas BB e CC, ora exequentes, e o coavalista AA, ora embargante, da mesma subscritora avalizada S.…, Ld.ª, evidenciada nas livranças acima identificadas, enquanto quirógrafos, passou a ficar agregada à relação causal decorrente da convenção do direito de regresso coberto pela garantia hipotecária, estabelecida na escritura de constituição da hipoteca dada à execução.    

Em tal medida, a referida escritura pública, enquanto título executivo em conformidade com o disposto no artigo 703.º, n.º 1, alínea b), do CPC, complementada por aquelas livranças como meros quirógrafos suportados na sobredita relação causal, providos também de exequibilidade própria nos termos da alínea c) do mesmo normativo, traduz-se num título executivo complexo, à semelhança dos previstos no artigo 707.º do mesmo Código.

Como já foi acima referido, o Recorrente argumentou que os elementos documentais complementares consistentes das livranças em referência não foram logo juntos com a escritura dada à execução e que, por isso, devem ser tidos por inexistentes nos autos.

A este propósito, importa ter presente que, no caso de título executivos complexos, a falta de apresentação de tais elementos complementares não implica, sem mais, a verificação de inexistência ou inexequibilidade do título, devendo essa falta ser suprida por via de convite para o efeito.

Sucede que tais documentos acabaram por ser juntos aos autos, nos termos acima descritos, não se tendo o embargante, oportunamente, oposto a essa junção nem impugnado a respetiva eficácia probatória, pelo que nada impede o seu aproveitamento em ordem a considerar sanada a falta inicial de apresentação.

É também certo que não foram juntos os originais das livranças como se prescreve no artigo 724.º, n.º 5, do CPC.

No entanto, a junção de certidão das mesmas mostra-se suficiente, dado que elas não se encontram em poder dos exequentes – estando porventura juntas nos processos de execução instaurados pela sua beneficiária -, além de que são aqui apenas relevantes não como títulos de crédito com eficácia cartular, mas enquanto meros quirógrafos da prestação dos avales em referência.


Em suma, do título dado à execução constam assim os fins e os limites subjetivos e objetivos da obrigação exequenda, o que tanto basta para assegurar a exequibilidade extrínseca dessa obrigação. Isto sem prejuízo do apuramento, que agora se impõe, fazer sobre o pagamento alegadamente efetuado pelos exequentes à entidade bancária beneficiária das referidas livranças e sobre a liquidez da obrigação de regresso, matéria esta controvertida, a qual já não diz respeito à exequibilidade da obrigação, mas à sua existência efetiva ou substancial.

Termos em que se impõe concluir no sentido da verificação da exequibilidade do título dado à execução e, consequentemente, pela improcedência dos embargos neste particular, como se decidiu no acórdão recorrido ainda que com fundamentação não totalmente coincidente.


V – Decisão

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se a decisão recorrida ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente.

As custas do recurso são da responsabilidade do Recorrente. 

           

Lisboa, 14 de janeiro de 2021


Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

 

Nos termos do artigo 15.º-A do Dec.-Lei n.º 10-A/2020, de 13-03, aditado pelo Dec.-Lei n.º 20/20, de 01-05, para os efeitos do disposto no artigo 153.º, n.º 1, do CPC, atesto que o presente acórdão foi aprovado com o voto de conformidade das Exm.ªs Juízas-Adjuntas Maria da Graça Trigo e Maria Rosa Tching, que não assinam pelo facto de a sessão de julgamento (virtual) ter decorrido mediante teleconferência. 

                                              

Lisboa, 14 de janeiro de 2021

O Juiz Relator

Manuel Tomé Soares Gomes