Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A4381
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FARIA ANTUNES
Descritores: APRECIAÇÃO DA PROVA
LEGITIMIDADE PASSIVA
CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: SJ200403160043811
Data do Acordão: 03/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7955/02
Data: 07/09/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1- O artº. 659º, nº. 3 do CPC ao aludir ao exame crítico das provas a que o juiz deve proceder na sentença refere-se apenas às provas que devam ser tidas em conta aquando da elaboração da sentença, não às consideradas aquando das respostas aos quesitos, pois quanto a estas o exame crítico é feito logo após as respostas aos mesmos, nos termos do artº. 653º, nº. 2 do mesmo código.
2- Numa acção para destituição de gerente de um dos sócios de uma sociedade intentada apenas contra esta, em que, por força do assento do STJ de 1.2.1963 a legitimidade processual passiva ficou definitivamente fixada no saneador meramente tabelar transitado em julgado anteriormente à reforma adjectiva de 95/96, inexiste a legitimação substantiva passiva que é condição de procedência da demanda, o que conduz só por si à sucumbência da acção.
3- Na verdade, é inadmissível a destituição do gerente de uma sociedade sem que ao visado tenha sido dada a possibilidade de exercer o contraditório, princípio jurídico cuja observância é fundamental nas sociedades modernas e civilizadas (artº. 3º, nº. 1 do CPC).
4- A circunstância de ter sido reconhecida a legitimidade processual passiva da ré sociedade, isoladamente demandada nos autos, não significa que ao sócio autor tenha de ser reconhecido o direito que se arroga de ver o gerente, também sócio, destituído.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" intentou, em 24.01.1995, acção ordinária contra "Stand B, Lda." pedindo a destituição de gerente da Ré do sócio desta C.
Alegou que a Ré é uma sociedade por quotas cujo objecto é a compra e venda de automóveis novos e usados, sendo o capital social, de 400.000$00, distribuído por duas quotas de 200.000$00 cada, uma do Autor e a outra de C, ambos gerentes, obrigando-se a sociedade com a assinatura de ambos, acrescentado que o sócio C vinha a exerce por conta própria actividade concorrente com a da Ré, comprando e vendendo para si carros que expunha e reparava nas instalações desta, e que o mesmo em vez de proceder ao depósito bancário do produto da venda das viaturas da sociedade apenas deixa para o A. uma suposta quota-parte de 50%, factos que constituem justa causa de destituição desse gerente C ao abrigo do disposto no artº. 257º do Código das Sociedades Comerciais.
Contestou a Ré, impugnando a maior parte dos factos e invocando que dadas as divergências existentes entre os dois sócios quanto ao modo de gerir a sociedade, acordaram que a sociedade não adquiriria mais carros, podendo qualquer deles proceder à venda dos veículos existentes, fazendo logo de seguida as contas, continuando os empregados da demandada a dar assistência às viaturas vendidas no período de garantia, e que cada um dos sócios podia desenvolver a título pessoal a mesma actividade, não tendo o A. angariado clientes para a Ré, nem deixado cheques assinados, não tendo a Ré parado ainda a sua actividade porque o seu sócio C tem estado a pagar todas as despesas "do seu bolso", devendo-lhe por isso a sociedade cerca de 2.000.000$00.
O Autor deduziu réplica.
Após o saneador, meramente tabelar, foi proferido o despacho de fls. 420, no qual a Ré foi julgada parte ilegítima e absolvida do pedido.
O A. agravou desse despacho para a Relação de Lisboa que, concedendo provimento ao agravo, ordenou o prosseguimento normal dos autos, decisão que transitou em julgado.
A final foi proferida sentença que absolveu a Ré do pedido.
O A. apelou para a Relação de Lisboa, que confirmou a decisão.

Recorre agora o A. de revista, formulando as seguintes Conclusões:
1ª- Quer a sentença quer o acórdão da Relação sofrem da violação dos princípios fundamentais do Código das Sociedades Comerciais, mormente no tocante às sociedades por quotas;
2ª- É um facto reconhecido na sentença que o sócio C não está na acção por si e em seu nome mas sim em nome e representação da sociedade;
3ª- Esta é uma entidade e tem uma personalidade diferente da personalidade dos seus sócios, o que resulta de inúmeros textos do CSC tais como os artºs. 55º, 58º, 64º, 65º e salientemente o 63º;
4ª- Todos esses textos impõem as regras de funcionamento para defender os interesses da sociedade, ela própria, dos sócios e de terceiros;
5ª- Não existiu, como foi dado como provado, qualquer acordo entre os sócios para comercialização e venda de automóveis e não em nome da sociedade;
6ª- Tal acordo, a existir, seria sempre passível de lesar o outro sócio, mas necessariamente lesava a sociedade que ficava desprovida de meios para financiar as suas actividades e ainda lesava o Estado e a Segurança Social;
7ª- Consequentemente, não podiam as decisões dar guarida a um facto não provado, deveriam sim, aplicar a lei substancial e dar procedência a acção, com fundamento na lesão patrimonial da sociedade, de terceiros e até de um dos sócios, matéria de direito substantivo que pode ser apreciada pelo tribunal de revista;
8ª- Mas também é lícito e processualmente correcto alegar qualquer das nulidades previstas no artº. 668º do CPC;
9ª- A sentença não analisou nem fundamentou as respostas negativas dadas a vários quesitos e afirma não carecerem tais respostas de fundamentação;
10ª- O primeiro problema a esse propósito é o da admissibilidade da reclamação em sede de recurso, e esse parece não suscitar dúvidas face ao nº. 5 do artº. 712º do CPC anterior, igual no seu texto ao CPC de 1975;
11ª- A formulação dos textos em ambos os códigos parece impor o deferimento da reclamação ou a baixa do processo à 1ª instância;
12ª- De qualquer modo a sentença é nula por falta de fundamentação das respostas negativas dadas aos quesitos respectivos;
13ª- Há contradição nas respostas aos quesitos em confronto com a matéria contida na especificação;
14ª- Finalmente por não impugnados deveriam ser tomados em consideração os conteúdos imputados ao sócio C como vendedor autónomo de várias viaturas;
15ª- Estão assim violados os artºs. 56º, 58º, 64º, 65º e 63º do CSC e 653º, 659º e 712° do CPC, vigentes ao tempo, e ainda o artº. 668º alíneas b) e d) do CPC quer na versão actual quer na versão de 1975.
Contra-alegou a Ré, pugnando pela manutenção do decidido.
Com os vistos legais, cumpre decidir.

As instâncias deram como provados os seguintes factos:
Por escritura de 06.04.1989, celebrada no 12º Cartório Notarial de Lisboa, foi constituída a sociedade Ré com sede na Estrada Salvador Allende, ..., Reboleira, Amadora, tendo como objecto a compra e venda de automóveis novos e usados (A));
0 seu capital social é de 400.000$00, repartido por duas quotas de 200.000$00, uma pertencente ao Autor e outra a C, ambos sócios gerentes, sendo necessária a assinatura dos dois para obrigar a sociedade (B));
C vendeu por vezes alguns automóveis da sociedade Ré, ficando com 50% das mesmas vendas, e deixando na mesa do autor os outros 50% (C));
A Ré tem duas contas bancárias, uma no BCP, em nome do autor, e a outra no Barklays Bank, que em 31.03.1995, apresentavam saldo positivo, de, respectivamente 711.511$50 e 248.712$00 (D)).

Compulsados os autos, não se constata qualquer das ressalvas a que se reporta o segmento final do artº. 722º, nº. 2 do CPC, não podendo por isso sindicar-se qualquer erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa.
Também não se mostram reunidas condições para ordenar a remessa do processo ao tribunal recorrido nos termos do artº. 729º, nº. 3 do CPC.
Inexiste, nomeadamente, contradição entre as respostas aos quesitos e a especificação (conclusão 13ª), pois aquelas respostas foram todas elas negativas, o que desde logo afasta a possibilidade de haver qualquer contradição.
Por outro lado, a sentença não assentou na existência do acordo que segundo a Ré teria sido feito pelos sócios no sentido de esta não adquirir mais viaturas, devendo os seus veículos serem vendidos por qualquer dos sócios com lucros repartidos entre ambos, podendo qualquer deles desenvolver a actividade de compra e venda de carros usados, a título meramente pessoal.
Essa matéria foi vertida nos quesitos 18º e 20º, quedou-se improvada, como se disse, e não teve qualquer valia na decisão da 1ª instância.
Tão-pouco se divisam no processo actos imputados ao sócio C como vendedor autónomo de várias viaturas e que, por não impugnados se devam considerar especificados (conclusão 14ª).
Os factos articulados, controvertidos e com possível relevância para a decisão da lide foram levados ao questionário, quedando-se improvados, já que todas as respostas aos quesitos foram negativas.
Tem por isso o STJ de acatar o quadro factual acima descrito.
Por outro lado ainda, como todos os 21 quesitos receberam resposta negativa, e a acção foi proposta em 24.1.95, era aplicável a norma constante do nº. 2 do artº. 653º do CPC na redacção anterior aos Decretos-Leis nºs. 39/95, de 15/2, 329-A/95, de 12/12 e 180/06, de 25/9, que só obrigava a fundamentar as respostas positivas (e restritivas) aos quesitos, e não também as respostas negativas, o que, como se decidiu no acórdão do Tribunal Constitucional nº. 56/97, de 23/1 (BMJ 463, págs. 179 e segs.), cumpria, em termos bastantes, a funcionalidade endoprocessual e extraprocessual inerente à norma do artigo 208º, nº. 1 da Constituição da República Portuguesa, não sendo portanto inconstitucional.

Bem andou pois o colectivo da 1ª instância ao, no acórdão decisório da matéria de facto, consignar que as respostas aos quesitos não careciam de fundamentação.
E a haver carência de motivação do julgamento de facto - o que já vimos não suceder! - tal não consubstanciaria uma nulidade da sentença, visto as nulidades da sentença serem apenas as constantes do artº. 668º do CPC.
A confabulada falta de motivação (ou a sua insuficiência) poderia alicerçar, quando muito, em sede de recurso para a Relação, o pedido de devolução dos autos à 1ª instância para que se procedesse á fundamentação em falta (artº. 712º, nº. 3, na redacção anterior à reforma adjectiva de 95/96, agora nº. 5 do mesmo artigo).
Acresce que o artº. 659º, nº. 3 do CPC ao aludir ao exame crítico das provas a que o juiz deve proceder na sentença refere-se apenas às provas que devam ser tidas em conta aquando da elaboração da sentença, não às consideradas aquando das respostas aos quesitos, pois quanto a essas o exame crítico é feito logo após as respostas aos mesmos, nos termos do aludido artº. 653º, nº. 2.
Improcedem por conseguinte, igualmente, as 8ª a 12ª conclusões recursórias.

Sustenta o recorrente que a acção deve proceder com fundamento na lesão patrimonial da sociedade, de terceiros e até de um dos sócios (conclusões 1ª a 7ª, mormente esta última).
Todavia, não se vislumbra no elenco dos escassos factos especificados qualquer efectiva lesão patrimonial da sociedade Ré, de qualquer dos seus dois sócios ou de terceiros.
Da circunstância de o sócio C ter vendido por vezes alguns automóveis da Ré, ficando com 50% dessas vendas e deixando na mesa do Autor os outros 50% não é forçoso concluir pela existência de prejuízos quer para a Ré quer para o Autor, já que, como bem se expendeu no acórdão em crise, está por apurar se esses valores activos foram ou não lançados na contabilidade da demandada.
Da factualidade vertida na al. D) também não redunda comprovadamente qualquer prejuízo para quem quer que seja, motivado pelo C.
Naufragam destarte as demais conclusões da minuta de recurso.
Não tendo o Autor provado os quesitos que continham os factos essenciais constitutivos da causa de pedir, tinha a acção de improceder.
E tinha também de naufragar, desde logo, por outro e decisivo fundamento.
Por força do assento do STJ de 1.2.1963 (D.G., I Série, de 21.2.63 e BMJ 124, pág. 414), a legitimidade processual da Ré ficou definitivamente fixada no saneador meramente tabelar proferido nos autos e transitado anteriormente à reforma adjectiva de 95/96, como decidiu a Relação de Lisboa no já mencionado acórdão transitado em julgado.
Sem embargo, pese embora a questão da legitimidade processual passiva se encontrar definitivamente resolvida, inexiste no caso vertente a imprescindível legitimação substantiva passiva, condição de procedência da acção.
Na verdade, a pretensão da destituição de gerente do sócio C é no fundo dirigida contra ele, que não é parte no processo, donde jamais poderia ser destituído de gerente da Ré visto não ter sido chamado a deduzir oposição (artº. 3º, nº. 1 do CPC).
A circunstância de ter sido reconhecida a legitimidade processual passiva da Ré sociedade, não significa necessariamente que ao Autor possa ser reconhecido o direito que se arroga (em sentido idêntico, cfr. o acórdão do STJ, de 18.11.1998, no BMJ 481, págs. 234 e segs.).
Nesta conformidade, nunca a pretensão deduzida nos autos poderia proceder, por ser inadmissível a destituição do gerente de uma sociedade sem que ao visado tenha sido dada a possibilidade de exercer o contraditório, princípio jurídico cuja observância é fundamental nas sociedades modernas e civilizadas.

Termos em que, na improcedência de todas as conclusões recursórias, acordam em não conceder a revista, condenando o recorrente nas custas.

Lisboa, 16 de Março de 2004
Faria Antunes
Moreira Alves
Alves Velho