Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2ª SECÇÃO | ||
Relator: | ABRANTES GERALDES | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO CONCORRÊNCIA DE CULPAS SINAL STOP E VELOCIDADE EXCESSIVA | ||
Data do Acordão: | 04/11/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO ESTRADAL – TRANSITO DE VEÍCULOS E ANIMAIS / VELOCIDADE / ALGUMAS MANOBRAS EM ESPECIAL / MUDANÇA DE DIRECÇÃO. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DA ESTRADA (CEST): - ARTIGOS 24.º, N.º 1 E 44.º. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 05-07-2018, PROCESSO N.º 46/03, RELATORA MARIA DA GRAÇA TRIGO. | ||
Sumário : | I. Em acidentes de viação, a repartição da responsabilidade entre os diversos intervenientes deve ser feita mediante a avaliação global das circunstâncias e da sua interferência causal no acidente. II. Num acidente de viação correspondente a um embate de dois veículos em que: a) O condutor de um veículo ligeiro realizava a mudança de direção para a sua esquerda mas, apesar de ter parado no sinal STOP, não se percebeu da aproximação de um velocípede com motor que se apresentava pela sua direita e ao qual deveria ter cedido a prioridade; b) O velocípede com motor circulava a uma velocidade superior a 100kms/h e, apesar de o respetivo condutor ter travado, não conseguiu imobiliza-lo a tempo de evitar o embate; c) O local era uma alameda situada numa cidade (localidade), formando uma reta, tendo ambos os condutores boa visibilidade mútua revela-se ajustada a repartição das responsabilidades pela colisão em 30% para o condutor do veículo ligeiro e 70% para o condutor do velocípede com motor. III. Em tais circunstâncias, sem embargo de o condutor do veículo ligeiro ter infringido a regra que o obrigava a ceder a prioridade ao velocípede com motor, a ocorrência do embate foi essencialmente motivada pelo facto de este seguir a uma velocidade muito superior (mais do que o dobro) ao máximo permitido numa via dentro de uma localidade, o que tornava previsível a ocorrência de algum obstáculo, mesmo quando este correspondesse a veículo cujo condutor não respeitou a prioridade. A.G. | ||
Decisão Texto Integral: |
I - AA demandou BB SEGUROS, S.A., em ação declarativa de condenação emergente de acidente de viação, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 159.982,77, acrescidos de juros de mora taxa legal em vigor, desde a citação e até efetivo e integral pagamento e no pagamento das quantias a liquidar em execução de sentença, pelos danos futuros previsíveis emergentes dos tratamentos a que vier a ser submetido, sejam cirúrgicos, sejam de fisioterapia, medicação, consultas, deslocações, despesas com os mesmos e consequências definitivas. Alegou a ocorrência em 8-12-14 de um acidente de viação em que o A. foi interveniente quando conduzia um velocípede com motor (...-NF), assim como a condutora de um veículo automóvel (...-IN-...), segurado pela R., que foi a única responsável pelo sinistro, ao violar um sinal STOP. Desse acidente resultaram para o A. lesões físicas e na saúde, apresentando danos estéticos, tendo sofrido fortes dores. O Instituto de Segurança Social, I.P., invocando que o AA. é beneficiário da Segurança Social e que, em consequência do acidente, esteve com baixa médica subsidiada, tendo-lhe pago € 5.106,06, pediu o pagamento desta quantia, com juros de mora legais, desde a citação até efetivo pagamento. A R. contestou e impugnou a versão do acidente indicada na petição, sustentando que a sua segurada imobilizou o veículo antes do referido sinal STOP, circulando e ocupando a hemi-faixa esquerda da via que tomou, tendo aí sido embatida pelo velocípede com motor conduzido pelo AA., o qual seguia com excesso de velocidade. Foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a R. do pedido. O A. apelou e a Relação, concedendo parcial provimento ao recurso, condenou a R. a pagar ao AA. a quantia de € 29.786,30, acrescidos de juros à taxa legal de 4% ao ano até integral e efetivo pagamento, sendo o valor de € 2.786,30 desde a citação da RR. (22/ago./2016) e € 27.000,00 desde a data da sentença proferida em 1ª instância (12/jan./2018). Para o efeito, a Relação distribuiu a responsabilidade pelo acidente entre o A. e a segurada da R., na proporção de 70% e 30% respetivamente. O A. interpôs recurso de revista, impugnando a repartição da responsabilidade pela colisão, concluindo que a mesma deve ser imputada em exclusivo à condutora do veículo segurado, por não ter respeitado o sinal de STOP. Subsidiariamente entende que, a existir concorrência de culpa, deve ser atribuída a essa condutora um grau mais elevado de responsabilidade. A R. contra-alegou, defendendo a solução que foi dada no acórdão recorrido. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Factos provados: 29. Apresentando ainda um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 18 pontos, em resultado dos seguintes danos de carácter permanente: - Limitação na mobilidade da coluna dorsal; - Omalgia direita em relação com clavícula homolateral (status pós-fratura com pseudoartrose operada); - Rigidez na extensão do punho direito; - Subluxação da 4ª articulação metacarpofalângica (MTF) direita; - Rigidez na pronação do antebraço esquerdo; - Rigidez na supinação do antebraço esquerdo; - Rigidez na extensão do punho esquerdo; - Rigidez na flexão do punho esquerdo. 30. O dano estético resultante das cicatrizes/deformidades referidas em 28. foi fixado no grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente. 31. A R. considerou o A. totalmente incapaz para todo o trabalho desde a data do acidente até 17-8-15 data em que passou a considerá-lo numa situação de incapacidade permanente parcial e apto a retomar o trabalho. 32. O A. ficou totalmente incapacitado para o trabalho durante 422 dias, a que acrescem 30 dias referentes à operação cirúrgica para extração de material de oesteossíntese e recuperação funcional. 33. A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer, decorrente das sequelas supra-descritas, foi fixada no grau 4, numa escala de 7 graus de gravidade crescente. 34. As sequelas que o autor apresenta são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual à data do acidente, mas implicam esforços acrescidos, sendo, no entanto, incompatíveis com o exercício da atividade profissional de bombeiro. 35. O quantum doloris foi fixado no grau 5, numa escala de 7 graus de gravidade crescente, tendo o A. necessidade de mediação analgésica em SOS. 36. À data do acidente era um homem saudável, era voluntário nos Bombeiros em ..., tendo nascido a 5-10-80 e trabalhava como caixeiro-viajante na ..., auferindo o salário mensal de € 550,00. 37. Durante o período em que não trabalhou, deixou de auferir, pelo menos a quantia de € 7.315,00, em farmácias, com medicação e artigos ortopédicos, gastou não menos de € 88,48 e na aquisição de um pulso imobilizador com tala, gastou € 34,19. 38. O vestuário e equipamento que usava, próprio para a circulação em velocípede com motor, igualmente ficou inutilizado (ou porque se rasgou com o impacto ou porque foi cortado para lhe ser prestada assistência). 39. Por força do embate, o ciclomotor de matrícula ...-NF, propriedade do A. sofreu danos, determinando a sua perda total; era de marca Susuki, modelo GSX 600 F, a gasolina. 40. O A. reclamou da R., no concerne ao velocípede com motor, a verba de € 2.000,00, em contraproposta ao valor por esta adiantado, mas sem qualquer resposta da R.; a R. avaliou o veículo do A. e chegou à quantia de 1.850,00 €, sem o desconto do salvado. 41. O A. é beneficiário do Centro Distrital de ..., com o n.º .... 42. Em consequência das lesões sofridas no acidente, o A. esteve com baixa médica subsidiada de 14-12-14 a 9-1-16 e por tal facto, o ISS, IP, pagou-lhe, a título de subsídio de doença, a quantia de e 5.106,06. 43. Na certidão que constitui o doc. junto com a p.i., o A gastou € 20,00.
III – Decidindo: 1. É questionada unicamente a repartição da responsabilidade entre os condutores cujos veículos colidiram. Considera o A. que a mesma é de imputar em exclusivo à condutora do veículo segurado, por não ter respeitado o sinal de STOP e, além disso, pretender mudar de direção, por forma a passar a circular na via por onde o A. circulava com o velocípede com motor. Subsidiariamente considera que deve ser atribuída a tal condutora uma quota superior à do A.
2. Os factos mais relevantes acerca da dinâmica do acidente revelam que: - O acidente ocorreu numa alameda localizada na cidade de Aveiro, a qual constituía uma reta com dois sentidos de marcha separados entre si por um separador central; cada sentido de marcha tinha duas pistas de trânsito, delimitadas entre si por uma linha descontínua que passava a contínua da zona do entroncamento onde ocorreu o embate; - Na via por onde anteriormente circulara o veículo segurado a faixa de trânsito desdobrava-se em três pistas, sendo a da esquerda destinada a quem pretendia virar à esquerda no entroncamento e as outras duas para quem seguia em frente; - No topo da pista mais à esquerda encontrava-se pintada no pavimento, em letras grandes, a palavra STOP; - Tratava-se de uma zona de boa visibilidade, sendo marginada, em ambos os sentidos de trânsito, por terrenos descampados e algumas casas de habitação e prédios habitacionais; - Na altura do acidente estava bom tempo e era de dia; - A condutora do veículo segurado perante o sinal de STOP imobilizou o veículo para verificar o trânsito que circulava no sentido oposto e, após ter ensaiado a ausência de veículos, iniciou a marcha de mudança de direção à esquerda, mas não se apercebeu da deslocação da mota conduzida pelo AA. que advinha do seu lado direito, quando o podia fazer, entrando na via por onde circulava o A.; - O A., por seu lado, circulava a uma velocidade não inferior a 100 kms/h, pela hemi-faixa esquerda da sua via, embatendo no veículo seguro no exato momento em que este ocupava a via da esquerda destinada ao trânsito oposto. Apesar de ter travado, o A. não conseguiu evitar o embate, tendo colidido com a parte lateral (lado do passageiro), quase na frente, junto à roda, do veículo segurado, deixando um rasto de travagem de 15 metros; - O acidente ocorreu na pista de trânsito mais à esquerda da ..., tendo em conta o sentido ..., mas próximo ao eixo da via.
3. Em face da dinâmica do acidente, não existem motivos para excluir a responsabilidade do A., o que é induzido de imediato pelo facto de circular a mais de 100 kms/h dentro de uma localidade, numa via ladeada por habitações e edifícios habitacionais. Tal responsabilidade não é exclusiva, como, aliás, decidiram as instâncias, sem que R. o tenha impugnado. Com efeito, a condutora do veículo segurado fora confrontada com um sinal de STOP e, apesar de ter parado, não cedeu a prioridade a quem vinha pela sua direita, intrometendo-se na hemi-faixa de rodagem pela qual circulava o A. sem atentar na sua aproximação. Decorre do art. 29º do Cód. da Estrada, que, perante um sinal de STOP, o condutor de veículo, para além de o imobilizar, deve ceder a passagem a outros veículos que se apresentem com prioridade. O facto de a condutora do veículo ligeiro pretender mudar de direção levou-a aproximar-se da via mais à sua esquerda e, perante o sinal de STOP, parou o seu veículo, como o determina o art. 44º do Cód. da Estrada. Mas antes de ocupar algum segmento da faixa contrária não poderia deixar de prestar atenção ao trânsito que circulava por essa via e que, além do mais, se apresentava pela sua direita. Porém, também não pode ser desconsiderado de modo algum o comportamento do A. que, de modo muito mais acentuado, esteve na causa da colisão de veículos. É verdade que seguia numa via que lhe atribuía prioridade relativamente ao tráfego que, como o veículo segurado, se apresentava pela sua esquerda. Porém, ao circular numa via dentro de uma localidade a uma velocidade que excedia duas vezes o limite máximo objetivo a que estava obrigado (50 kms/h), agiu com um elevado grau de desconsideração pelos deveres inerentes à circulação automóvel. Com efeito, nos termos do art. 24º, nº 1, do Cód. da Estrada, para além de o A. estar obrigado a respeitar o limite objetivo de velocidade que vigorava dentro de uma localidade, deveria regulá-la de modo a atender designadamente à presença de outros utilizadores, ao facto de na via por onde circulava entroncaram outras vias, como aquele de que precedia a condutora do veículo segurado e ao facto de se tratar de uma via que, embora ladeada de alguns terrenos descampados, também tinha habitações e prédios habitacionais. Tais circunstâncias conjugadas impunham que circulasse a uma velocidade muito inferior àquele a que seguia, tomando atenção a outras incidências, tanto mais que se tratava de uma reta com boa visibilidade e era de dia.
4. O A. procura afastar ou reduzir a sua responsabilidade mediante a contabilização dos deveres que terão sido incumpridos, apontando à condutora do veículo segurado duas infrações: a de não ter respeitado o sinal de STOP e a de não ter tomado as providências exigíveis para quem pretenda mudar de direção. Já no que lhe diz respeito invoca que “só” seguia a uma velocidade não inferior a 100 kms/h. Ora, como já se referiu, a matéria de facto revela que a condutora do veículo segurado começou por respeitar o sinal de STOP, imobilizando o seu veículo, de modo que a sua infração restringiu-se ao desrespeito da regra da prioridade. De qualquer modo, a metodologia indicada pelo recorrente não se mostra a mais ajustada nesta ou noutras circunstâncias, sendo relevante apreciar a dinâmica dos acidentes e o comportamento dos intervenientes numa perspetiva global que ponha o foco na causalidade relativamente aos sinistros. Sem ocultar que também a condutora do veículo segurado estava obrigada a acautelar algum embate com veículos que advinham da sua direita, a solução ajustada ao caso passa pela atribuição ao A. de um grau de responsabilidade mais elevado, tendo em conta o grau de culpa inerente ao facto de circular a uma velocidade superior a 100 kms/h com um velocípede com motor dentro de uma localidade. É na verdade esta a infração que emerge como a causa principal do acidente, o qual era evitável e poderia ter sido evitado se, apesar de a condutora do outro veículo não ter detetado a aproximação do velocípede com motor, o A. tivesse respeitado a velocidade máximo de 50 kms/h que lhe era imposta ou seguisse a uma velocidade ainda mais moderada, em face das circunstâncias. Repare-se que um velocípede com motor, pelas suas características, comporta um maior risco de acidentes em situações em que a velocidade máxima não é respeitada, tendo em conta o facto de a aderência ao solo se fazer apenas com dois rodados, importando na redução do atrito necessário a uma travagem a tempo de evitar o embate com outros veículos ou obstáculos que se anteponham. Acresce ainda a reduzida estabilidade de tal veículo e o facto de a reduzida massa influir na capacidade de absorção da energia em caso de embate com outro veículo, fatores que conjugadamente apelavam a uma condução mais prudente. Afinal, tratava-se de uma via urbana em que era antecipável a probabilidade de existirem obstáculos, mesmo quando estes pudessem derivar do incumprimento de deveres estradais, como ocorreu no caso com a condutora do veículo segurado e como acontece frequentemente com o atravessamento na via de pessoas ou de animais.
5. O A. invoca em seu apoio alguns arestos deste Supremo (um deles, de 5-7-18, 46/03, foi relatado pela Cons. Maria da Graça Trigo, ora adjunta). A enunciação desses arestos é útil mas não é decisiva para modificar o resultado, já que cada acidente é integrado por circunstâncias diversas, sendo a repartição de responsabilidades o resultado de uma avaliação global dos comportamentos e das circunstâncias relevantes. Pelo exposto, avaliando globalmente as circunstâncias que se apresentavam na ocasião em que ocorreu o acidente, consideramos ser de confirmar a repartição de responsabilidades que foi decidida pela Relação, ou seja de 70% para o A. e de 30% para a condutora do veículo segurado. Em face desta solução, mais não resta do que confirmar o acórdão recorrido, já que nenhuma outra questão foi suscitada.
IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando o acórdão recorrido. Custas da revista a cargo do recorrente. Notifique. Lisboa, 11-4-19
Abrantes Geraldes (Relator) Tomé Gomes Maria da Graça Trigo |