Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S3405
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
GRAVAÇÃO DA PROVA
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
Nº do Documento: SJ200703010034054
Data do Acordão: 03/01/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1. O artigo 690.º-A do Código de Processo Civil impõe um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, que envolve a indicação dos concretos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios em que se baseia a impugnação, e que se destina a garantir que a parte fundamente a sua discordância em relação ao decidido, identificando os erros de julgamento que ocorreram na apreciação da matéria de facto.
2. Se um dos fundamentos do recurso é o erro de julgamento da matéria de facto, compreende-se que os concretos pontos de facto sobre que recaiu o alegado erro de julgamento tenham de ser devidamente especificados nas conclusões da alegação do recurso, mas já não faz qualquer sentido que o recorrente tenha de indicar, nessas mesmas conclusões, os meios probatórios em que fundamenta a impugnação da matéria de facto.
3. Tendo o recorrente indicado com suficiência, no corpo da alegação e na síntese conclusiva, os pontos de facto que pretendia ver reapreciados e, bem assim, os concretos meios probatórios em que fundava a sua discordância relativamente ao decidido na primeira instância, o recurso de apelação na parte referente à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto não deveria ter sido rejeitado.*

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I

1. Em 17 de Outubro de 2002, no Tribunal do Trabalho do Funchal, AA intentou acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra Empresa-A, em que pediu que a ré fosse condenada a pagar-lhe a importância de € 59.865,45 referente a trabalho suplementar prestado, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a partir da data da citação.

Alegou, no essencial, que entre as partes vigorou um contrato de trabalho, desde 1997, ao abrigo do qual foi chefe de redacção, até 28 de Fevereiro de 2001, e depois subdirector, até 13 de Fevereiro de 2002, auferindo por último a retribuição mensal de 834.992$00, competindo-lhe substituir o director, bem como o subchefe de redacção, pelo que, gozando aqueles férias nos meses de Julho e Agosto, prestou, entre 1997 a 2001, trabalho em todos os dias desses meses, dado que nenhum deles se encontrava em serviço, e, de igual forma, prestou trabalho nos dias feriados desses meses, sendo que em nenhum dos casos lhe foi efectuado qualquer pagamento a esse título, nem lhe foi concedido o gozo futuro dos dias correspondentes ao seu descanso semanal e feriados; acresce que, em 2001, foi responsável pela implementação do site do Jornal, não gozando nesse período o dia de descanso.

A ré contestou, alegando que a substituição de colegas nunca prejudicou as férias e folgas do autor e que este sempre recebeu a retribuição correspondente, sendo as férias dos dois trabalhadores referidos pelo autor alternadas e intercaladas, sem comprometerem as suas folgas, tal como é assegurado por um registo interno, além de que o autor não prestou trabalho suplementar, nem foi responsável pelo site do Jornal da Madeira, estando isento de horário de trabalho, pelo que dispunha, na empresa, de total liberdade de acção, sem controlo de tempo por parte da ré.

Posteriormente, o autor veio aditar novo pedido respeitante a diferenças salariais, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe € 16.958,85, o qual foi admitido parcialmente, nos termos do despacho de fls. 413.

Realizada audiência de julgamento com gravação da prova, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar ao autor as quantias que se apurassem em liquidação da sentença quanto à retribuição do trabalho por ele prestado em dias de descanso e de feriado entre 1997 e 2001 inclusive e nos dias de descanso de 2001 em que desenvolveu o site da ré, e quanto à diferença entre o valor da retribuição e o subsídio recebido da Segurança Social no período de baixa médica do autor, ocorrido depois de 17 de Outubro de 2002.

2. Inconformados, autor e ré interpuseram recurso de apelação, tendo o autor sustentado o direito à manutenção da retribuição mensal que auferia como chefe de redacção, no valor de 834.992$00, e a ré, além de ter impugnado a matéria de facto, defendeu que autor não tinha direito ao pagamento das quantias reclamadas a título de trabalho suplementar e de diferença de valores entre a retribuição e o subsídio recebido pela Segurança Social, no período de baixa médica.

Apreciando os recursos, a Relação, quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, considerando que a ré não discriminou quais os pontos da matéria de facto que considera viciados por erro de julgamento, indeferiu-a in limine, ao abrigo do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, tendo julgado improcedente o recurso interposto pela ré e julgado parcialmente procedente a apelação do autor, decidindo «que o autor tem direito ao vencimento actualizado correspondente ao de Chefe de Redacção em 14.2.02, até que esse valor seja atingido pelo vencimento correspondente ao da categoria de jornalista do Grupo V, mas sem direito ao subsídio de isenção de horário de trabalho que lhe foi pago até 14.02.02», condenando a ré «no pagamento ao autor das diferenças salariais daí resultantes, a liquidar em execução da sentença».
É contra esta decisão que agora a ré se insurge, mediante recurso de revista, em que formula, em substância, as seguintes conclusões:

- O acórdão recorrido ao não conhecer a impugnação da matéria de facto omitiu uma questão essencial do processo que não podia deixar de conhecer e como tal cometeu uma nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, ex vi alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Código de Processo do Trabalho;
- A ré cumpriu, tanto no corpo das suas alegações, como nas respectivas conclusões, com as diversas exigências processuais referidas no artigo 690.º-A, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, em conjugação com o artigo 712.º do mesmo Código;
- Quando nas suas alegações/conclusões refere os concretos pontos de facto, teve em conta não a redacção originária dos articulados, mas a redacção considerada provada ou não provada no despacho de resposta à matéria de facto/sentença, sendo que, nas páginas 5 a 7 das respectivas alegações, transcreveu os concretos pontos de facto que considera erradamente julgados, na versão dada como provada pelo tribunal de 1.ª instância;
- Mas ainda que se entendesse que não cumpriu devidamente o exigido no artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, sempre deveria a Relação convidar a ré a apresentar e/ou completar as suas alegações de forma a suprir a alegada incorrecção, convite que, embora não expressamente referido no artigo 690.º-A citado, decorre do princípio do aproveitamento dos actos jurídicos (artigo 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), do princípio da adequação formal (artigo 265.º-A do Código de Processo Civil) e do princípio da cooperação entre as partes (artigo 266.º do Código de Processo Civil), os quais têm tutela constitucional por via dos princípios do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consignados no artigo 20.º da Constituição, sendo inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais referidos, qualquer interpretação contrária a esta, inconstitucionalidade que expressamente se argúi;
- Sem prescindir da arguição da referida nulidade, sempre se dirá que ainda que tal omissão não configurasse uma omissão de pronúncia, constituiria uma situação de erro de julgamento por errada interpretação e aplicação do artigo 690.º-A citado, pelos mesmos fundamentos invocados;
- O acórdão recorrido não conheceu da questão do abuso de direito aduzida na conclusão IX) da apelação e com isso cometeu uma omissão de pronúncia, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, ex vi alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Código de Processo do Trabalho;
- O acórdão recorrido fez uma incorrecta interpretação das cláusulas 2.ª e 3.ª do contrato de trabalho celebrado entre as partes em 29/04/1998, pois, qualquer declaratário normal, colocado na posição do autor, conforme artigo 236.º do Código Civil, deduziria da cláusula 3.ª que a remuneração mensal de 634.282$00 só seria paga ao autor enquanto durasse a comissão de serviço de chefe de redacção, assim, tendo o autor deixado de exercer tais funções de chefia, nada justifica que se pague uma retribuição superior à categoria que actualmente exerce;
- Qualquer interpretação em sentido contrário, além de ser injustificada, configura uma situação de claro abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, e é inconstitucional, por violação do princípio constitucional "a trabalho igual, salário igual", consignado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, porquanto o autor passaria a receber um salário especial correspondente às funções de chefe de redacção que já não exerce, em desigualdade com os trabalhadores que desempenham iguais funções de jornalistas de Grupo V e que não recebem essa retribuição especial, inconstitucionalidade que expressamente se argúi;
- O acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação do artigo 7.º, n.º 4, do DL n.º 421/83, de 2/12, na redacção do DL n.º 398/91, de 16/10, pois, se ficou provado que a ré não havia exigido, no período em causa, a prestação de trabalho suplementar, então não seria exigível à ré o pagamento do alegado trabalho suplementar;
- E nem a norma do artigo 7.º, n.º 4, do DL n.º 421/83, pode ser entendida no sentido de ser exigível o pagamento do trabalho suplementar prestado com conhecimento implícito do empregador e sem a sua oposição, pois tal interpretação levaria ao absurdo de se obrigar a entidade patronal a proibir expressamente tal prestação de trabalho quando os trabalhadores espontaneamente o quisessem fazer, impedindo que os trabalhadores permanecessem no local de trabalho para além dos horários normais, invertendo toda a lógica em que o comando legal assenta;
- Tal interpretação é inconstitucional por violação dos princípios de justiça e proporcionalidade ínsitos na ideia de Estado de Direito, que decorre dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição, o que expressamente se argúi;
- No caso dos autos, o autor sabia da necessidade de respeitar os trâmites e procedimentos relativos à prestação de trabalho suplementar para evitar situações semelhantes às ocorridas inclusivamente com outro trabalhador da ré, pelo que, o simples facto do autor vir solicitar trabalho suplementar acumulado ao longo de vários anos, que note-se não lhe foi sequer exigido pela ré, descaracteriza inclusivamente a natureza excepcional do trabalho suplementar e demonstra que se o autor deixou que durante anos tal situação se mantivesse aproveitando-se de uma situação que o próprio criou, agiu em claro abuso de direito;
- Por outro lado, ficou provado (ponto 26 dos factos provados) que a ré conhecia da necessidade de que o autor substituísse o director-adjunto ou o subchefe de redacção, mas não se provou que essa necessidade de substituição coincidia com os dias de folga do autor, ora, se nem sequer se provou que essa necessidade de substituição coincidia com os dias de folga do autor, então não se pode sequer concluir pela aplicação do artigo 7.º, n.º 4, do DL n.º 421/83, na redacção do DL n.º 398/91, de 16/10, no sentido que lhe é dado pelo acórdão recorrido;
- Não é pelo simples facto de ter ficado provado nos autos que o autor prestou trabalho suplementar que necessariamente tal trabalho tenha sido efectuado com conhecimento e sem oposição da entidade patronal, sendo que ao autor caberia ter provado que em cada um dos dias que alega ter prestado trabalho suplementar tenha sido com conhecimento e sem oposição da entidade patronal, ora, não resulta da matéria de facto provada que o trabalho suplementar prestado pelo autor tenha sido com conhecimento e sem oposição da ré;
- Não tendo o autor feito tal alegação e prova nos autos, quando tais ónus lhe caberiam, não poderá ser o tribunal a substituir-se à parte e assumir factos que não estão sequer alegados pelo autor, tal como lhe caberia nos termos do artigo 342.º do Código Civil, sob pena de violação deste citado preceito e dos artigos 264.º, n.º 1, do CPC e do artigo 72.º do CPT;
- O acórdão recorrido fez errada interpretação das normas de direito aplicáveis, ao considerar que o autor está abrangido pela cláusula 70.ª da CCT que prevê o pagamento da diferença de valores entre a retribuição e o subsídio recebido da Segurança Social, por situação de baixa médica do autor no período de 17/10/2002 até 18/2/2003;
- O referido no artigo 26.º, n.º 2, alínea b), da LFFF, actual artigo 230.º, n.º 2, alínea a), do Código do Trabalho, assume carácter imperativo, não podendo ser afastado por convenção colectiva ou contrato individual de trabalho, pois a não ser assim, ficaria sem sentido o fim pretendido pelo legislador, que é o combate ao absentismo e por isso está vedado às entidades patronais pagar aos seus trabalhadores qualquer complemento de subsídio de doença, quando estes o recebam da Segurança Social;
- Por outro lado, o artigo 6.º, n.º 1, alínea e), do DL n.º 519-C/79, de 29/12 (LRCT), estabelece que os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho não podem «estabelecer e regular benefícios complementares dos assegurados pelo sistema de segurança social salvo se ao abrigo e nos termos da legislação relativa aos regimes profissionais complementares de segurança social ou equivalentes, bem como aqueles em que a responsabilidade pela sua atribuição tenha sido transferida para instituições seguradoras»;
- De resto, ainda que fosse aplicável este instrumento de regulamentação colectiva, sempre seria necessário que o autor tivesse alegado que cada uma das partes estava filiada no sindicato ou associação patronal que o subscreveu, o que não fez;
- E ainda que se considere que a proibição resultante da norma da versão originária do artigo 6.º, n.º 1, alínea e), do DL n.º 519-C1/79 de 29/79 padece de inconstitucionalidade orgânica, sempre se dirá que considerar que qualquer instrumento de regulamentação colectiva possa estabelecer e regular benefícios complementares assegurados pelas instituições, como o faz a cláusula 70.ª da CCT em causa, deverá ser julgado inconstitucional, o que desde já se argúi expressamente, por violação dos princípios de justiça e proporcionalidade, nos termos dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição, e do princípio de iniciativa privada nos termos do artigo 61.º da Constituição, pois a manter-se tal encargo para as entidades patronais, seria sempre um encargo económico injusto e dissuasor da iniciativa privada, consubstanciando um enriquecimento sem causa do trabalhador em contrapartida com o empobrecimento injusto das entidades patronais;
- E ainda que a ré tivesse anteriormente cumprido com tal norma (cláusula 70.ª do CCT) relativamente ao autor, tal teria sido feito por mero desconhecimento da lei, não sendo considerados usos as práticas da empresa contrárias à lei, mesmo que mais favoráveis ao trabalhador;
- O acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação dos artigos 690.º-A, n.º 1 e n.º 2, do CPC, em conjugação com o artigo 712.º do mesmo Código, 265.º, n.º 2, 265.º-A e 266.º do CPC, 20.º da CRP, 236.º, 237.º, 239.º e 334.º do CC, 59.º, n.º 1, alínea a), da CRP, 7.º, n.º 4, do DL n.º 421/83, na redacção dada pelo DL n.º 398/91, 2.º e 18.º, n.º 2, da CRP, 342.º do CC, 264.º, n.º 1, do CPC e 72.º do CPT, 26.º, n.º 2, alínea b), da LFFF (actual artigo 230.º, n.º 2, alínea a), do Código do Trabalho), 6.º, n.º 1, alínea e), do DL n.º 519-C/79, e 61.º da CRP.

O autor contra-alegou, defendendo a manutenção do julgado.

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta entende que a revista deve ser negada, parecer que, notificado às partes, não suscitou resposta.

3. No caso vertente, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar, segundo a ordem lógica que entre as mesmas intercede:

- Nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto [conclusões I) a III) e XXVIII), na parte atinente];
- Nulidade do acórdão recorrido por não ter conhecido da questão do abuso de direito aduzida na conclusão IX) da alegação do recurso de apelação [conclusões VI) e XXVIII), na parte atinente];
- Se há fundamento para indeferir a impugnação da decisão proferida na 1.ª instância sobre a matéria de facto, ao abrigo do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil [conclusões V) e XXVIII), na parte atinente];
- Se haveria fundamento para que o tribunal recorrido convidasse a ré a aperfeiçoar as suas alegações quanto à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto [conclusões IV) e XXVIII), na parte atinente];
- Inconstitucionalidade do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, por violação dos princípios do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consignados no artigo 20.º da Constituição, se interpretado no sentido de que não haveria lugar a convite para aperfeiçoar a respectiva alegação de recurso [conclusões IV) e XXVIII), na parte atinente];
- Incorrecta interpretação das cláusulas 2.ª e 3.ª do contrato de trabalho celebrado entre as partes em 29 de Abril de 1998 [conclusões VII) a XI), XIII) e XXVIII), na parte atinente];
- Se o pedido de manutenção da retribuição mensal do autor como chefe de redacção configura um abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil [conclusões XII) e XXVIII), na parte atinente];
- Se é inconstitucional qualquer interpretação no sentido de reconhecer ao autor uma retribuição mensal correspondente às funções de chefe de redacção, por violação do princípio constitucional "a trabalho igual, salário igual", consignado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição [conclusões XII) e XXVIII), na parte atinente];
- Se o autor tem ou não direito ao pagamento das quantias reclamadas a título de trabalho suplementar [conclusões XIV), XV), XVIII) a XX) e XXVIII), na parte atinente];
- Se a interpretação do artigo 7.º, n.º 4, do DL n.º 421/83, acolhida no acórdão recorrido é inconstitucional por violação dos princípios de justiça e proporcionalidade ínsitos na ideia de Estado de Direito, que decorre dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição [conclusões XVI) e XXVIII), na parte atinente];
- Se o autor, ao pedir o pagamento do trabalho suplementar acumulado ao longo de vários anos, agiu em claro abuso de direito [conclusões XVII) e XXVIII), na parte atinente];
- Se o autor tem ou não direito ao pagamento das quantias reclamadas a título de diferença de valores entre a retribuição e o subsídio recebido da Segurança Social, por situação de baixa médica no período entre 17 de Outubro de 2002 e 18 de Fevereiro de 2003 [conclusões XXI) a XXIV), XXVI), XXVII) e XXVIII), na parte atinente];
- Se é inconstitucional a interpretação acolhida no acórdão recorrido quanto à cláusula 70.ª do CCT em causa, por violação dos princípios de justiça e proporcionalidade, nos termos dos artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da Constituição, e do princípio de iniciativa privada nos termos do artigo 61.º da Constituição [conclusões XXV) e XXVIII), na parte atinente].

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II
1. As instâncias deram como provada a seguinte matéria de facto:

1) Entre [o] Autor e Ré vigora um contrato individual de trabalho, ao abrigo do qual foi atribuída ao Autor a categoria profissional de Chefe de Redacção até 30/11/2000 e de Subdirector a partir de 1/12/2000 até 13/2/2002;
2) O Autor auferiu as retribuições mensais de 616.181$00 até 30/6/1997, 622.222$00 até 31/3/1998, 637.778$00 até 30/4/1999, 656.912$00 até 30/9/1999, de 666.100$00 até 30/4/2000, 805.200$00 até 31/6/2001 e de 834.992$00 a partir dessa altura;
3) Ao A. incumbia, necessariamente, a substituição do Director Dr. BB, ou do anterior Subchefe [de] Redacção CC. E, nesses períodos, o A. tinha que executar as correspondentes tarefas à sua exclusiva responsabilidade;
4) Como por exemplo, elaborar todos os dias o «artigo de fundo» que era publicado na terceira página de cada edição;
5) O que significa que, nesses períodos, não podia gozar o seu descanso semanal, por não existir quem o substituísse;
6) Sendo bem sabido que o Director não «fecha a edição», nem o Subchefe de Redacção substitui o Director;
7) Entre 1997 e 2001, inclusive, o Autor prestou trabalho em todos os dias desses meses, dado que um desses colegas não se encontrava de serviço, de acordo com o mapa anexo ao artigo 24.º da contestação [corresponde ao facto assente 15)],
8) Com exclusão de parte do mês de Julho/99, em que se encontrou na situação de «baixa»;
9) De igual forma e por iguais razões, o A. devia prestar trabalho nos dias feriados desses meses;
10) Em nenhum dos casos lhe foi efectuado qualquer pagamento a esse título, nem lhe foi concedido o gozo futuro do trabalho prestado nesses dias que correspondiam ao seu descanso semanal e feriados;
11) O A. prestou trabalho nestas condições nos feriados de 5/10/97, 1/12/97, 1/1/98, 12/4/98, 1/5/98, 1/7/98, 21/8/98, 8/12/98, 16/2/99, 25/4/99, 10/6/99, 14/10/99, 5/10/99, 1/12/99, 1/1/2000, 23/4/00, 1/5/00, 1/7/00, 21/8/00, 5/10/00, 1/11/00, 1/12/00, 8/12/000, 1/1/01, 27/02/01, 15/4/01, 25/4/01, 1/05/01, 10/06/01, 1/7/01, 15/07/01, 5/10/01, 1/11/01, 1/12/01 e 8/12/01;
12) Com excepção dos meses de Julho de 1999, Julho de 2000 e Agosto de 2001, tendo-se provado [sic], respectivamente, que o Autor prestou trabalho nos dias de folga de Junho de 1999, entre 1 de Setembro e 2 de Outubro de 2000 e entre 6 de Agosto e 27 de Agosto de 2001;
13) No ano de 2002, o Autor foi responsável pela implementação do conteúdo do «site» do jornal e que executou essa tarefa sozinho ou, por vezes, com a mera colaboração de um ou dois técnicos de informática;
14) Porque, obviamente, se tratava de uma tarefa realizada diariamente, também não lhe foi possível gozar o dia [de] descanso no período de implementação desse «site»;
15) O Dr. BB, o Sr. CC e o A. gozaram férias nos seguintes períodos:

- Férias relativas a 1996, gozadas em 1997:
BB: Agosto/Setembro (04/08/97 a 04/09/97);
AUTOR: Setembro (01/09/97 a 30/09/97);
CC: Junho (02/06/97 a 30/06/97);
- Férias relativas a 1997, gozadas em 1998:
BB: Agosto (01/08/98 a 31/08/98);
AUTOR: Maio/Junho (06/05/98 a 02/06/98);
CC: Julho (01/07/98 a 30/07/98);
- Férias relativas a 1998, gozadas em 1999:
BB: Agosto (01/08/99 a 31/08/99);
AUTOR: Maio (01/05/99 a 31/05/99);
CC: Junho (02/06/99 a 30/06/99);
- Férias relativas a 1999, gozadas em 2000:
BB: Agosto (01/08/00 a 31/08/00);
AUTOR: Abril/Maio (03/04/00 a 05/05/00);
CC: Setembro/Outubro (01/09/00 a 02/10/00);
- Férias relativas a 2000, gozadas em 2001:
BB: Agosto/Setembro (06/08/01 a 06/09/01);
AUTOR: Abril/Maio (07/04/01 a 09/05/01);
CC: Julho (02/07/01 a 31/07/01);
- Férias relativas a 2001, gozadas em 2002:
BB: Fevereiro (15/02/02 a 27/02/02) e Abril (01/04/02 a 02/04/02);
AUTOR: Agosto/Setembro (01/08/02 a 03/09/02);
CC: Setembro/Outubro (02/09/02 a 01/10/02);
16) O que significa que as férias do A., do Dr. BB e do Sr. CC no período de 1997 a 2001, inclusive, não eram coincidentes;
17) As férias dos 3 funcionários da R. eram alternadas e intercaladas, não se sobrepondo [por lapso manifesto, na enunciação da matéria de facto, repete-se o número 17), passando a designar-se o número repetido por 17A)];
17A) Exemplificando, quando o Dr. BB estava de férias (em Agosto), o A. e o Sr. CC estavam a trabalhar;
18) Quando o Sr. CC estava de folga, substituía-o o A.;
19) Aliás, desde 1994 que existe na R. um sistema de registo interno, formulários, para controlar as folgas, descanso compensatório e trocas entre funcionários do JM para impedir que haja sobreposição de folgas ou restrições quanto ao gozo das mesmas;
20) Formulários esses que são do conhecimento do A., tal como dos restantes funcionários do JM;
21) Tanto são do conhecimento do A. que esses mesmos formulários são dirigidos ao Chefe de Redacção;
22) E esses mesmos formulários nunca foram preenchidos pelo A.;
23) Quanto ao artigo 5.º da p.i., o denominado «artigo de fundo» pode ser preparado na véspera, ou até com maior antecedência, e publicado no dia, ou dias seguintes;
24) O JM não exigiu ao Autor, no período em causa, a prestação de trabalho suplementar;
25) A Ré tinha conhecimento dos dias em que o Director-adjunto ou o Subchefe de Redacção não se encontravam ao serviço;
26) A Ré conhecia da necessidade de que o Autor os substituísse;
27) De 22/4/2002, pelo menos, até 18/2/2003, o Autor esteve na situação de «baixa»;
28) Ao regressar, foi-lhe paga mensalmente a retribuição de € 2.406,24, que ainda se mantém;
29) A R. anteriormente cumpria com tal norma (cláusula 70.ª do CCT) relativamente ao A., porém, no período referido no artigo 3.º deste articulado [no qual o autor aditou novo pedido - fls. 348], nada lhe pagou;
30) O Autor foi contratado pela Ré em 1/10/1993, conforme contrato designado de trabalho a termo certo;
31) Em 29/4/1998, a Ré celebrou com o Autor contrato designado de trabalho por tempo indeterminado;
32) Do referido contrato de trabalho consta o seguinte:
«PRIMEIRA - O segundo outorgante (entenda-se o A.) é contratado pela primeira para prestar trabalho como jornalista do IV Grupo, na sequência do contrato de trabalho a termo certo celebrado anteriormente e no reconhecimento dos direitos adquiridos por aquele contrato.
SEGUNDA - a) Pelo presente o primeiro (entenda-se a R.) mantém a nomeação do segundo como Chefe de Redacção do Jornal da Madeira; b) A nomeação é feita em comissão de serviço e cessa por declaração unilateral da primeira. Em caso de cessação o segundo não goza do direito a indemnização; c) Neste caso o segundo retoma as funções da sua categoria, mantendo a respectiva remuneração de Chefe de Redacção expressa na cláusula III [Terceira], até que se efectue a correspondência de valores com a categoria de Jornalista de Grau IV ou outra que o segundo venha a exercer.
TERCEIRA - O primeiro outorgante obriga-se a pagar ao segundo a remuneração mensal de Esc. 634.282$00, ajustável, anualmente, por acordo das partes enquanto perdurar a comissão de serviço de Chefe de Redacção.
QUARTA - O segundo outorgante, no desempenho das funções e competências que lhe são atribuídas no âmbito deste contrato, e designadamente no exercício das funções de Chefe de Redacção, obriga-se a realizar o trabalho de direcção em cooperação com o Director ou Director-Adjunto.
QUINTA - O segundo outorgante no exercício das suas funções e competências, só responde, no quadro das normas legais e regulamentares, perante a Direcção do Jornal da Madeira e o Conselho de Gerência.
SEXTA - a) O local de trabalho é no Funchal; b) O horário de trabalho é composto por período diário de trabalho, de sete horas, com meia hora de descanso integrada, durante cinco dias, seguido de dois dias de folga, a prestar de acordo com a Regulamentação de Trabalho em vigor e o horário de trabalho afixado; c) É acordada a isenção de horário de trabalho nos termos da Lei. A remuneração da isenção já está compreendida na retribuição sobredita.»
32A) Em 30/11/2000, o A. cessou as suas funções de Chefe de Redacção do Jornal da Madeira;
33) Por deliberação da R. de 30/11/2000 o A. foi nomeado Subdirector do Jornal da Madeira, com efeitos a partir de 1 de Dezembro, inclusive;
34) Em 13/02/2002, o A. por sua iniciativa demitiu-se das suas funções de Subdirector do Jornal da Madeira;
35) Conforme consta do referido pedido de demissão do A., a R. aceitou o pedido do mesmo e ordenou que a partir dessa altura fossem tomadas «as medidas necessárias no sentido de agir em conformidade com as implicações daqui resultantes, designadamente no que diz respeito ao vencimento praticado e a praticar a partir deste momento»;
36) Em 14/02/02, o A. regressou à categoria de Jornalista de V - Grupo do Jornal da Madeira;
37) Desde 14/02/02 que o A. não beneficia de isenção de horário de trabalho, em virtude de já não exercer as funções de direcção que a tanto justificavam;
38) Ao ordenado do Autor, no valor de Esc. 680.200$00/€ 3.392,82, retirou--se a quantia de Esc. 197.791$00/ € 986,58, a título de retribuição especial de isenção de horário de trabalho.

2. A recorrente considera que o acórdão recorrido, ao não conhecer da impugnação da decisão proferida na primeira instância sobre a matéria de facto, omitiu uma questão essencial do processo que não podia deixar de conhecer e como tal cometeu uma nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, ex vi alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º do Código de Processo do Trabalho.

Segundo o preceituado na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil, é nula a sentença, «[q]uando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento», norma aplicável aos acórdãos proferidos pela Relação, nos termos do n.º 1 do artigo 716.º do mesmo Código.

Ora, a Relação apreciou aquela questão em concreto, tendo entendido que a recorrente não discriminou «os pontos da matéria de facto que considera viciados por erro de julgamento, já que a sua impugnação geral (ou, com mera remissão para os artigos da PI) não permite ao tribunal apreciar quais os pontos em concreto que são considerados indevidamente julgados, até porque os factos não foram considerados provados na versão alegada na petição inicial, um[a] vez que na maior parte deles foi dada uma resposta restritiva, ou adicionando-se a eles elementos factuais que davam melhor concretização à matéria inicialmente alegada, tal como decorre do despacho de resposta à matéria de facto».

E logo se acrescentou no acórdão recorrido:

«Deste modo, sendo a impugnação da ré tão maximalista é impossível a este tribunal perceber, concretamente, quais os pontos que tendo sido dados como provados a ré pretende que sejam não provados e quais os que pretende ver provados.
O Tribunal da Relação tem competência para alterar pontos da matéria de facto devidamente discriminados, conforme decorre dos dispositivos legais acima citados, mas não para fazer um novo julgamento.
Face ao exposto, ao abrigo do art. 690-A do CPC, indefere-se in limine a impugnação da matéria de facto.»

Tanto basta para concluir que não se verifica a invocada nulidade.

Na verdade, não se configura no segmento transcrito qualquer vício interno da decisão recorrida subsumível à figura da nulidade por omissão de pronúncia a que se refere o artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.

Isto é, apenas se poderia aduzir um eventual erro de julgamento, resultante de se ter indeferido a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto por incumprimento do ónus alegatório da parte, quando esse ónus se mostraria cumprido ou porque se justificaria o convite para completar ou esclarecer as alegações, questão que, no entanto, só poderá relevar no âmbito da apreciação do mérito da decisão.

Nesta conformidade, improcedem as conclusões I) a III) e XXVIII), na parte atinente, da alegação do recurso de revista.

3. Importa, agora, indagar se o acórdão recorrido padece de omissão de pronúncia, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, por não conhecer da questão do abuso de direito invocada no recurso de apelação.

Na conclusão IX) da alegação do recurso de apelação, a ré referiu que «[o] Autor sabia de antemão e em qualquer caso não podia ignorar, tendo em conta que tinha perfeito conhecimento da existência dos formulários internos de registo de trabalho suplementar e do parecer da Direcção-Geral do Trabalho (documento n.º 23 junto à contestação), quais os procedimentos necessários da prestação de trabalho suplementar acumulado, não os observando por sua única e exclusiva vontade, e quer agora o Autor aproveitar-se de uma situação que o próprio criou, agindo, assim, em claro ABUSO DE DIREITO».

A nulidade por omissão de pronúncia só ocorre, conforme já se referiu, quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que deveria apreciar [artigo 668.º, n.º 1, alínea d), citado], assim se cominando a eventual inobservância do artigo 660.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, segundo o qual «[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».

Ora, a recorrente confunde «questão a resolver», para efeitos de delimitação objectiva do recurso, com argumentos, considerações, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes no âmbito da apreciação da «questão a resolver», sendo que a alegada existência de abuso de direito não respeita, no caso, à substanciação da causa de pedir e do pedido, antes assume essa dimensão jurídica a enunciada e resolvida questão de saber se o autor tinha ou não direito ao recebimento das quantias reclamadas a título de trabalho suplementar.

Como bem resulta do teor do acórdão recorrido, este apreciou detalhadamente o núcleo essencial da questão relativa ao direito do autor ao recebimento das quantias a título de trabalho suplementar e pronunciou-se sobre o respectivo mérito.

Aliás, o acórdão recorrido pronunciou-se sobre o não preenchimento por parte do autor dos formulários internos de registo de trabalho suplementar, tendo entendido que «os formulários que a ré alega serem necessários preencher e que o autor não fez, não podem ser impeditivos do pagamento desse trabalho, pois tal como se considerou na sentença recorrida, uma vez que sendo o autor elemento de chefia não estava sujeito às mesmas regras que os seus subordinados, tanto mais que beneficiava de isenção de horário de trabalho, não sendo pois com tal argumentação que a ré pode deixar de pagar o trabalho suplementar prestado pelo autor».

O acórdão recorrido não enferma, pois, daquela nulidade, logo, improcedem as conclusões VI) e XXVIII), na parte atinente, da alegação do recurso de revista.

4. A recorrente alega que cumpriu, tanto no corpo das suas alegações, como nas respectivas conclusões, com as exigências processuais aludidas no artigo 690.º--A, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, em conjugação com o artigo 712.º do mesmo Código, e que, quando nas suas alegações/conclusões refere os concretos pontos de facto, teve em conta não a redacção originária dos articulados, mas a redacção considerada provada ou não provada no despacho de resposta à matéria de facto/sentença, sendo que, nas páginas 5 a 7 da alegação do recurso de apelação, transcreveu os concretos pontos de facto que considerava erradamente julgados, na versão dada como provada pelo tribunal de 1.ª instância.

E prossegue, mas ainda que se entendesse que não cumpriu devidamente o exigido no artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, sempre deveria a Relação convidar a ré a apresentar e/ou completar as suas alegações de forma a suprir a alegada incorrecção, convite que, embora não expressamente referido no artigo 690.º-A citado, decorre do princípio do aproveitamento dos actos jurídicos (artigo 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), do princípio da adequação formal (artigo 265.º-A do Código de Processo Civil) e do princípio da cooperação entre as partes (artigo 266.º do Código de Processo Civil), os quais têm tutela constitucional por via dos princípios do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, consignados no artigo 20.º da Constituição, sendo inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais referidos, qualquer interpretação contrária a esta.

A Relação indeferiu in limine a impugnação da decisão sobre a matéria de facto por entender que a recorrente «não discriminou quais os pontos da matéria de facto que considera viciados por erro de julgamento, já que a sua impugnação geral (ou, com mera remissão para os artigos da petição inicial) não permite ao tribunal apreciar quais os pontos em concreto que são considerados indevidamente julgados, até porque os factos não foram considerados provados na versão alegada na petição inicial, um[a] vez que na maior parte deles foi dada uma resposta restritiva, ou adicionando-se a eles elementos factuais que davam melhor concretização à matéria inicialmente alegada, tal como decorre do despacho de resposta à matéria de facto».

4.1. Há, pois, que ajuizar se a recorrente cumpriu ou não o ónus de alegação previsto no artigo 690.º-A do Código de Processo Civil, em termos de se justificar o indeferimento in limine do recurso de apelação que tinha em vista a impugnação da decisão proferida em primeira instância sobre a matéria de facto.

O artigo 690.º-A do Código de Processo Civil foi aditado pelo Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, na sequência da admissibilidade do registo das provas produzidas em audiência de julgamento - medida inovadora que havia sido introduzida por esse diploma em vista a garantir um efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto -, e veio impor ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto um especial ónus de alegação no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à sua fundamentação (do respectivo preâmbulo).

Na sua primitiva redacção, o sobredito preceito dispunha:
«Artigo 690.º-A
(Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto)
1 - Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.»
Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, no propósito de implementar algumas medidas simplificadoras ao nível do processo civil declarativo comum que pudessem, de algum modo, favorecer a celeridade processual, veio substituir aquele regime de transcrição das passagens da gravação, por um novo sistema de indicação dos depoimentos por mera remissão para o início e termo da respectiva audição que estiver assinalado na acta.

Assim, o n.º 2 daquele artigo 690.º-A passou a estatuir que, «[n]o caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º [do Código de Processo Civil]».

Sendo a acção intentada em 17 de Outubro de 2002, aplica-se esta redacção.

O artigo 690.º-A impõe, portanto, um ónus específico de alegação quando se pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, que envolve a indicação dos concretos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados e dos concretos meios probatórios em que se baseia a impugnação, e que se destina a garantir que a parte fundamente a sua discordância em relação ao decidido, identificando os erros de julgamento que ocorreram na apreciação da matéria de facto.

Pretende-se, deste modo, evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância, expediente que ademais poderia ser utilizado pelas partes apenas com intuitos dilatórios (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, Coimbra, p. 465).

É claro que esse ónus, tratando-se de um ónus alegatório, terá de ser satisfeito no próprio texto da alegação do recurso, sendo que o citado artigo 690.º-A não faz qualquer menção à obrigatoriedade da apresentação de conclusões. E ainda que se entenda, por aplicação do princípio geral ínsito no artigo 690.º do Código de Processo Civil, que o recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, não está dispensado de formular conclusões, estas apenas poderão ter o efeito de delimitar, de forma precisa e sintética, o objecto do recurso, identificando as questões que nele se pretendem ver discutidas.

Poderá ainda discutir-se se, ocorrendo um deficiente cumprimento daquele ónus de alegação, a Relação deve, antes de rejeitar o recurso, convidar a recorrente ao correspondente suprimento, por aplicação analógica do n.º 4 do citado artigo 690.º

Neste plano de consideração, o acórdão deste Supremo Tribunal de 16 de Outubro de 2002, Processo n.º 2244/02 da 4.ª Secção, cuja orientação foi, entretanto, reafirmada em diversos arestos deste Supremo Tribunal, definiu como solução mais equilibrada aquela que passa pela distinção entre a falta total de menção das especificações exigidas e da transcrição das passagens relevantes e o mero cumprimento defeituoso desses ónus, referindo a este propósito:

« Na primeira hipótese, o recorrente desprezou completamente os encargos que a lei lhe atribuiu como requisito para poder beneficiar de um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto; na segunda hipótese, tentou cumprir esse ónus, mas fê-lo de forma incorrecta ou incompleta. As sanções a essas falhas devem ser proporcionais à sua gravidade: na primeira hipótese, parece claro que o legislador cominou a "rejeição" imediata do recurso da decisão da matéria de facto, à semelhança da imediata declaração de deserção do recurso no caso de falta (absoluta) de alegação (n.º 3 do artigo 690.º); na segunda hipótese, justificar-se-á a prévia formulação de convite para completamento ou correcção da alegação ou da transcrição, à semelhança do que ocorre quando a alegação apresente irregularidades (n.º 4 do artigo 690.º).»

4.2. No caso vertente, quer o despacho que decidiu a matéria de facto, quer a sentença proferida em primeira instância, não adoptaram uma ordenação numérica ou alfabética próprias para a discriminação da matéria de facto assente, tendo antes optado por enunciar essa matéria de facto com referência aos artigos da petição inicial, contestação, resposta, aditamento ao pedido e resposta a esse aditamento.

Ora, examinada a alegação do recurso de apelação da ré (fls. 615-645), constata-se que, no corpo da alegação [ponto I) «Vícios da Decisão da Matéria de Facto»], são indicados os concretos pontos de facto que considerava erradamente julgados, segundo a metodologia e a redacção acolhidas pelo tribunal de primeira instância, ou seja, com referência aos itens dos sobreditos articulados.

São, pois, indicados como pontos de facto que se consideravam erradamente julgados, os factos que o tribunal de primeira instância considerou provados sob os artigos 3.º a 6.º, 8.º a 13.º, 16.º a 18.º da petição inicial, 11.º e 12.º da resposta, e 7.º do aditamento ao pedido, os quais correspondem, na ordenação acolhida no acórdão recorrido aos factos assentes 3) a 14), 25, 26) e 29).

Por outro lado, a recorrente indica quais os documentos que impunham uma resposta negativa dos indicados pontos de facto (documentos n.os 9 a 14, 15 a 18, 19 a 22 e 23 juntos com a contestação, documento referido no artigo 45.º da contestação, documentos n.os 1 a 8, 9 a 14, 15 e 18, 16, 17, 19, 20 e 21 juntos aos autos na sessão da audiência de julgamento de 7 de Junho de 2004, e documentos n.os 1 e 2 juntos aos autos na sessão da audiência de julgamento de 22 de Junho de 2004), bem como os depoimentos das testemunhas que conduziam à mesma percepção (BB, «depoimento gravado na totalidade do lado A e de rotações 0000 a 0319 do lado B da cassete I», DD, «depoimento gravado de rotações 0320 a 0691 do lado B da cassete I», EE, «depoimento gravado de rotações 0692 a 1419 do lado B da cassete I», FF, «depoimento gravado na cassete III, de rotações 0000 a 1709 do lado A e de rotações 0000 a 0731 do lado B», GG, «depoimento gravado na cassete III, de rotações 0732 a 1711 do lado B e de rotações 0000 a 0693 do lado A da cassete IV», HH, «depoimento gravado na cassete IV, de rotações 0694 a 1452 do lado A», II, «depoimento gravado na cassete IV, de rotações 1453 a 1708 do lado A e de rotações 0000 a 0684 do lado B»), fazendo expressa menção dos trechos desses depoimentos que apoiavam tal entendimento.

Igualmente menciona os factos que, em sua opinião, o tribunal de primeira instância deveria ter dado como provados, com base nos assinalados documentos e depoimentos, concretamente, os alegados nos artigos 9.º, 11.º, 15.º, 16.º, 27.º, 29.º, 30.º, 32.º, 33.º, 35.º, 40.º, 44.º, 46.º, 47.º, 50.º, 93.º e 95.º, todos da contestação.

Enfim, na correspondente síntese conclusiva, refere que, «[a]tendendo à prova documental junta aos autos e aos depoimentos das testemunhas, o Tribunal a quo julgou indevidamente provados os factos alegados sob os artigos 3.º a 6.º, 8.º a 13.º, 16.º a 18.º da petição inicial, sob os artigos 11.º e 12.º da resposta e sob o artigo 7.º do aditamento ao pedido» (conclusão I), e que, «[n]os termos do disposto nos artigos 690.º-A e 712.º, ambos do CPC, ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do CPT, deve ser modificada a decisão de facto, eliminando-se da matéria tida por provada o constante sob os artigos 3.º a 6.º, 8.º a 13.º, 16.º a 18.º da petição inicial, sob os artigos 11.º e 12.º da resposta e sob o artigo 7.º do aditamento ao pedido, que deverão passar à matéria não provada, adicionando-se, correspondentemente, à matéria provada os factos alegados nos artigos 9.º, 11.º, 15.º, 16.º, 27.º, 29.º, 30.º, 32.º, 33.º, 35.º, 40.º, 44.º, 46.º, 47.º, 50.º, 93.º e 95.º, todos da contestação» (conclusão II).

4.3. Portanto, em sede de recurso de apelação, a recorrente indicou no corpo da respectiva alegação os concretos pontos de facto que considerava mal julgados e os meios de prova (documentos e depoimentos) que, relativamente a cada um daqueles pontos, justificavam, na sua opinião, uma decisão diversa da proferida pelo tribunal de primeira instância, sendo que, na atinente síntese conclusiva, especificou os concretos pontos da matéria de facto que considerava incorrectamente julgados e aludiu, em termos genéricos, aos meios de prova em que se apoiava.

Tal como se decidiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 24 de Maio de 2005, Processo n.º 1334/05 da 6.ª Secção, «[a] especificação dos concretos meios probatórios não integra uma autêntica questão, mas simples indicação dos elementos susceptíveis de conduzir à procedência da impugnação da matéria de facto, pelo que não tem de constar das conclusões das alegações do apelante, bastando que conste do corpo das mesmas alegações».

No mesmo sentido, se concluiu no acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de Março de 2006, Processo n.º 3823/05 da 4.ª Secção, que afirmou a este propósito:

«Ora, se um dos fundamentos do recurso é o erro de julgamento da matéria de facto, compreende-se que os concretos pontos de facto sobre que recaiu o alegado erro de julgamento tenham de ser devidamente especificados nas conclusões do recurso. Na verdade, sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, importa que os pontos de facto que ele considera incorrectamente julgados sejam devidamente concretizados nas conclusões, pois se aí não forem indicados o tribunal de recurso não poderá tomar conhecimento deles.
O mesmo não acontece, porém, com a obrigatoriedade de indicar os meios probatórios em que a impugnação da matéria de facto se fundamenta, uma vez que esses meios de prova não constituem um verdadeiro fundamento do recurso. Não são uma verdadeira questão. Mais não são do que os argumentos invocados pelo recorrente para que a questão da impugnação da matéria de facto seja resolvida no sentido por ele pretendido.»
Nesta conformidade, tendo a recorrente indicado com suficiência, no corpo da alegação e nas conclusões do recurso de apelação, os pontos de facto que pretendia ver reapreciados, bem como os concretos meios probatórios em que fundava a sua discordância relativamente ao decidido na primeira instância, o recurso de apelação na parte referente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto não deveria ter sido rejeitado.

Sendo assim, impõe-se que os autos sejam remetidos ao tribunal recorrido para que aí se proceda à apreciação da sobredita impugnação, ficando prejudicado o conhecimento das questões relativas ao pagamento das quantias reclamadas a título de trabalho suplementar e de diferença de valores entre a retribuição e o subsídio recebido pela Segurança Social, por situação de baixa médica.

5. Resta, então, conhecer da interpretação das cláusulas 2.ª e 3.ª do contrato de trabalho celebrado entre as partes em 29 de Abril de 1998.

Como resulta do facto assente 32), aquelas cláusulas têm o seguinte teor:

«SEGUNDA - a) Pelo presente o primeiro (entenda-se a R.) mantém a nomeação do segundo como Chefe de Redacção do Jornal da Madeira;
b) A nomeação é feita em comissão de serviço e cessa por declaração unilateral da primeira. Em caso de cessação o segundo não goza do direito a indemnização;
c) Neste caso o segundo retoma as funções da sua categoria, mantendo a respectiva remuneração de Chefe de Redacção expressa na cláusula III [Terceira], até que se efectue a correspondência de valores com a categoria de Jornalista de Grau IV ou outra que o segundo venha a exercer.
TERCEIRA - O primeiro outorgante obriga-se a pagar ao segundo a remuneração mensal de Esc. 634.282$00, ajustável, anualmente, por acordo das partes enquanto perdurar a comissão de serviço de Chefe de Redacção.»

5.1. As regras da interpretação negocial constam dos artigos 236.º e seguintes do Código Civil, regime claramente voltado para os negócios bilaterais (ou plurilaterais) ou, de uma maneira geral, para todos os que tenham um destinatário, sendo a tutela deste que se visa com o disposto no n.º 1 do citado artigo 236.º, segundo o qual «[a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele».

O sentido objectivo do negócio cede, porém, quando o destinatário da declaração conhecer a vontade real do declaratário; neste caso, «é de acordo com ela que vale a declaração emitida» (artigo 236.º, n.º 2, do Código Civil).

Sendo o negócio oneroso e havendo dúvidas sobre o sentido do negócio, prevalece o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (artigo 237.º do Código Civil), e, nos negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento ainda que imperfeitamente expresso, a não ser que corresponda à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a essa validade (artigo 238.º, n.os 1 e 2, do Código Civil).

No caso, conforme se entendeu no acórdão recorrido:

« [...], por força da [alínea] c) da cláusula segunda do contrato celebrado, o autor, ao regressar às funções de jornalista para as quais havia sido inicialmente contratado, tem direito a manter o vencimento correspondente ao de Chefe de Redacção até que se efectue a correspondência de valores com a retribuição da categoria de jornalista de grau V, que entretanto assumiu. Na altura da celebração do contrato a retribuição do Chefe de Redacção correspondia, face à sua cláusula terceira, à remuneração 634.282$00, ajustável anualmente, a qual incluía o subsídio de isenção de horário de trabalho [cfr. cl.ª sexta, al. c)].
Na verdade, resulta da referida cláusula 2.ª, que apesar de se admitir, aquando da celebração do contrato, a possibilidade da cessação das funções de Chefe de Redacção por parte do autor, pretendia-se, no entanto, quando tal sucedesse, salvaguardar-lhe aquela remuneração, assumindo-se o compromisso de não baixar a retribuição que este vencia naquela data, actualizada anualmente.
Afigura-se-nos, assim, que o autor tem direito ao vencimento actualizado correspondente à categoria de Chefe de Redacção a partir da altura em que cessou as funções de Subdirector, ou seja, a partir de 14.2.002, até que o vencimento da categoria de jornalista de grau V atinja o valor da retribuição de Chefe de Redacção em 14.2.02.
Face ao exposto, procedem os fundamentos do autor no sentido de que tem direito ao valor de retribuição que corresponde à de Chefe de Redacção nos termos referidos.
Todavia, já não concordamos quanto ao valor que o autor lhe atribuiu, no montante de 834.992$00, pois que esse valor corresponde ao vencimento que [o] autor auferiu enquanto exerceu as funções de Subdirector, acrescido do subsídio de isenção do horário de trabalho (factos n.os 2 e 32).
Como se justificou na sentença recorrida, e bem, tendo o autor, desde 13.02.02, cessado o exercício das funções de Subdirector e de Chefe de Redacção que, pelas características de coordenação e chefia, beneficiavam da atribuição de isenção de horário de trabalho, cessa igualmente o direito a auferir o respectivo subsídio, entendimento [que] tem sido, aliás, pacífico na doutrina e jurisprudência, remetendo-se para as citações que a propósito são enunciadas na sentença recorrida, ver ainda Acórdão do STJ de 13.11.1996, in AD, 425 - 684.
Deste modo, julgamos que o autor tem efectivamente direito, por força da cláusula 2.ª do contrato celebrado com a ré, ao vencimento actualizado correspondente ao de Chefe de Redacção em 14.2.02, até que esse valor seja atingido pelo vencimento correspondente ao da categoria de jornalista do Grupo V, mas sem direito ao subsídio de isenção de horário de trabalho que lhe foi pago até 14.02.02.
Procede assim parcialmente o recurso interposto pelo autor, devendo a ré ser condenada no pagamento das diferenças salariais daí resultantes a liquidar em execução de sentença, por se desconhecer o montante actualizável do vencimento do Chefe de Redacção na referida data.»

Tudo ponderado, considera-se que o entendimento acabado de transcrever observa os enunciados ditames relativos à interpretação da declaração negocial.

A recorrente alega, porém, que tal interpretação, além de ser injustificada, configura uma situação de abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, e é inconstitucional, por violação do princípio constitucional «a trabalho igual, salário igual», consignado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, porquanto o autor passaria a receber um salário especial correspondente às funções de chefe de redacção que já não exerce em desigualdade com os trabalhadores que desempenham iguais funções de jornalistas de Grupo V e que não recebem essa retribuição especial.

5.2. O abuso do direito, como se extrai do artigo 334.º do Código Civil, traduz-se no exercício ilegítimo de determinado direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular, ao exercê-lo, exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

A figura do abuso do direito ocorrerá, pois, quando o modo como determinado direito é exercido ofende o sentimento de justiça dominante na comunidade social, o que sucederá, segundo o critério legal, quando, nesse exercício, o titular do direito exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito em causa.
Ora, incumbe àquele que invoca o abuso de direito demonstrar os factos em que assenta a conclusão de que existiu uma actuação manifestamente violadora da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito (n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil), sendo que, atentos os factos materiais fixados, esse ónus não se mostra cumprido.

Com efeito, do acervo factual já assente, não resulta provado que o autor tenha assumido qualquer actuação que, objectivamente considerada, fosse passível de constituir uma ofensa grave e patente das regras da boa fé e do fim social e económico do direito, por isso, não se verifica o alegado abuso de direito.

5.3. Como é sabido, o princípio da igualdade acolhido no artigo 13.º da nossa Constituição acha-se concretizado, no que concerne à retribuição, no seu artigo 59.º, n.º 1, alínea a), onde se estatui que «[t]odos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito à retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna».

Tal preceito visa, no fundo, assegurar uma justa retribuição do trabalho.

Como se escreveu no Acórdão n.º 313/89 do Tribunal Constitucional (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º volume, tomo II, pp. 917 e seguintes), «o princípio "a trabalho igual salário igual" não proíbe, naturalmente, que o mesmo tipo de trabalho seja remunerado em termos quantitativamente diferentes, conforme seja feito por pessoas com mais ou menos habilitações e com mais ou menos tempo de serviço, pagando-se mais, naturalmente, aos que maiores habilitações possuem e mais tempo de serviço têm. O que o princípio proíbe é que se pague de maneira diferente a trabalhadores que prestam o mesmo tipo de trabalho, têm iguais habilitações e o mesmo tempo de serviço. O que, pois, se proíbe são as discriminações, as distinções sem fundamento material, designadamente porque assentes em meras categorias subjectivas. Se as diferenças de remuneração assentarem em critérios objectivos, então elas são materialmente fundadas, e não discriminatórias».

No dizer de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, pp. 127--128), a proibição de discriminação ínsita no âmbito de protecção do princípio da igualdade «não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento», o que se exige «é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio».

Isto é, deve tratar-se por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual.

No caso, entre o autor e a ré vigorou um contrato individual de trabalho, ao abrigo do qual foi atribuída ao autor a categoria profissional de Chefe de Redacção até 30/11/2000 e de Subdirector a partir de 1/12/2000 até 13/2/2002 [facto assente 1)], sendo que, em 29 de Abril de 1998, a ré celebrou com o autor um contrato designado por tempo indeterminado, em que, mantendo a nomeação do autor como Chefe de Redacção, se estipularam as sobreditas cláusulas [factos assentes 31) e 32)], pelo que, uma vez que a estipulação da questionada retribuição visou salvaguardar o estatuto remuneratório do autor aquando da cessação das funções de Chefe de Redacção e porque é bem diversa a situação jurídica do autor em confronto com os trabalhadores que desempenham iguais funções de jornalistas de Grupo V, mas não exerceram antes funções de Chefe de Redacção, jamais se poderia configurar a pretendida violação do princípio de que para trabalho igual, salário igual, aflorado no artigo 22.º da LCT e concretizado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição.
Improcedem, pois, as conclusões VII) a XIII) e XXVIII), na parte atinente, da alegação do recurso de revista.

III

Pelo exposto, decide-se conceder parcialmente a revista, revogando-se o acórdão recorrido no que se refere ao indeferimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e ordenar a remessa do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa, para que aí seja apreciada a impugnação da decisão proferida em primeira instância sobre a matéria de facto e lavrada nova decisão de mérito, no que respeita às questões relativas ao pagamento das quantias reclamadas a título de trabalho suplementar e de diferença de valores entre a retribuição e o subsídio recebido pela Segurança Social, por situação de baixa médica.

Custas do recurso de revista, a cargo do autor e da ré, na proporção de 1/4 e 3/4, respectivamente.

Lisboa, 1 de Março de 2007
Pinto Hespanhol (relator)
Vasques Dinis
Fernandes Cadilha