Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3056
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
TÍTULO DE CRÉDITO
LETRA DE CÂMBIO
OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
PRESCRIÇÃO
DOCUMENTO PARTICULAR
RELAÇÃO CAMBIÁRIA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200310300030562
Data do Acordão: 10/30/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 2377/02
Data: 06/09/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : I. Sem prejuízo da ampliação - efectuada pela reforma processual de 1995 - do elenco dos títulos executivos, com introdução de uma fórmula abrangente para designar os documentos particulares dotados de exequibilidade (artº. 46º, al. c), do CPC 95), não esteve na mente do legislador alterar o clausulado normativo da LULL.
II. Uma vez prescrita a obrigação cartular constante de uma letra, nos termos do artº. 70º da LULL, não poderá tal título de crédito valer como título executivo para os efeitos da al. d) do artº. 46º do CPC 95.
III. Poderá, todavia, a letra valer como título executivo, mas enquanto escrito particular consubstanciando a respectiva obrigação subjacente, causal ou fundamental, desde que:
- mencione a causa da relação jurídica subjacente; ou desde que:
- tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo;
IV. Se o exequente-embargado houver estruturado o seu requerimento executivo, no que se refere às letras dadas à execução, com mero apelo aos puros princípios da abstracção e literalidade, sem que esse documento possa consubstanciar um reconhecimento de dívida por parte do embargante para com ele nos termos do artº. 458º do C. Civil, não pode o mesmo valer como título executivo.
V. Tendo-se feito na letra menção expressa e literal a "transacção comercial/reforma de outras letras", dúvidas não restam de que, quer representem o valor de transacções comerciais propriamente ditas, quer respeitem a reformas de letras anteriores com as mesmas conexionadas, respeitam a dívidas de quem se obrigou a pagá-las e a obrigações de natureza comercial entre os sujeitos subscritores previamente estabelecidas
VI. Haverá, nesta sede, que fazer funcionar (a favor do credor-exequente) o princípio da presunção de existência da relação fundamental, competindo, por isso, ao devedor-executado o encargo de demonstrar que, apesar dessa menção/alusão nos questionados documentos das respectivas fontes obrigacionais, tal relação fundamental era afinal, e na realidade, inexistente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A, Lda.", instaurou, com data de 11-7-01, execução ordinária contra B, alegando, no respectivo requerimento, e resumidamente, o seguinte:
- é dona e legítima portadora de três letras de câmbio, aceites pelo executado, nos valores de 1.075.000$00, 795.000$00 e 570.000$00, totalizando a quantia global de 2.440.000$00;
- essas letras venceram-se em 5-12-96, 6-9-97 e 11-9-97, respectivamente, não foram pagas nem no vencimento, nem posteriormente, apesar das insistências da exequente e constituem título executivo de harmonia com o artº. 46º, al. c), do CPC.
Solicitou, a final, o pagamento da quantia de 2.440.000$00, acrescida da quantia de 1.213.000$00 de juros vencidos à taxa de 12% ao ano, contados até 28-6-01, e de juros vincendos à mesma taxa.

2. Por despacho de 18-9-01, foi liminarmente indeferido o pedido de juros na parte em que excediam os juros legais, prosseguindo a acção quanto ao montante titulado pelas letras e quanto aos juros à taxa de 10% (Port. 1171/95 de 25/9) e de 7% (Port. 263/99 de 12/4).

3. Deduziu o executado oposição à execução por embargos, o qual, sem pôr em causa a sua posição de aceitante nos títulos dados à execução, opôs ao respectivo portador (a exequente-embargada) a prescrição da obrigação cambiária.
E isto fazendo apelo ao disposto no artº. 70º da LULL, sob a alegação de que a execução foi intentada após o decurso do prazo de três anos a contar da data do vencimento de qualquer das letras dadas à execução.

4. Na sua contestação, a exequente-embargada, aceitando embora que se encontrava ultrapassado o aludido prazo de três anos e, como tal, prescrito o direito de accionar com base nessas letras enquanto títulos de crédito, obtemperou, todavia, que, uma vez prescrita a acção cambiária, as consideradas letras possuíam o valor de documento particular, como quirógrafo da obrigação principal, servindo, como tais, de títulos executivos nos termos e para os efeitos da al. c) do artº. 46 do CPC.

5. No despacho saneador datado de 15-2-02, o Mmo. Juiz da Comarca de Alcobaça considerou que as letras dadas à execução possuíam a natureza de títulos executivos, como documentos particulares, assim julgando improcedente a excepção deduzida, com a consequente improcedência dos embargos.

6. Inconformado com tal decisão, dela veio o embargante-executado apelar, tendo porém o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 18-2-03, negado provimento ao recurso.

7. De novo irresignado, desta feita com tal aresto, dele veio o mesmo executado-embargante recorrer de revista, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
1ª- A análise efectuada pelo Tribunal da Relação de Coimbra... foi contraditória em relação à LULL, LUC e CPC, pois, ao atribuir força executiva aos títulos dados à execução, não teve em atenção a unanimidade da jurisprudência que se manifesta em sentido contrário;
2ª- O Tribunal da Relação de Coimbra fez uma interpretação da causa ou causas da obrigação exequenda contrária à lei, considerando, pelo menos implicitamente, que a causa da obrigação exequenda se encontra nas letras juntas na petição e não na própria petição, o que viola claramente o artigo 467º, nº. 1, alínea d), do CPC, que impõe ao exequente a obrigação de "expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção";
3ª- Igualmente o Tribunal da Relação de Coimbra fez uma interpretação extensiva das letras dadas à execução, pois as mesmas só por si não manifestam objectivamente a relação jurídica subjacente, não se podendo considerar, em absoluto, se se trata de uma transacção comercial ou reforma de letras;
4ª- O legislador, aquando da reforma processual de 1995, apesar da ampliação do elenco dos títulos executivos, não teve em mente bulir com o regime consagrado na LULL, pelo que não se assistiu a uma modificação dos requisitos necessários para que uma letra possa ser considerada título executivo, pelo que este regime se mantém inalterado sempre que o título seja uma letra de câmbio neste sentido;
5ª- Deveria a excepção deduzida ser julgada procedente e consequentemente, os embargos procedentes, bem como a recorrida condenada no pedido formulado;
6ª- Por tudo, tais títulos executivos devem ser considerados prescritos, nos termos do artº. 70º da LULL, não podendo os mesmos só por si e por falta de alegação, pela recorrida, da respectiva relação causal, valer como títulos executivos nos termos do artº. 46º, al. c), do CPC.

8. Não houve contra-alegações.

9. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.

10. Em matéria de facto relevante, deu a Relação como assentes os seguintes pontos:
1º- A exequente é dona e legítima portadora das seguintes letras de câmbio:
-a)- letra datada de 9-9-96 (com vencimento em 5-12-96), no montante de 1.075.000$00, com a indicação "Trans. comercial - Reforma Letra 1.500.000$00";
-b)- letra datada de 6-8-97 (com vencimento em 6-9-97), no montante de 795.000$00, com a indicação "Transacção Comercial - Ref. Letra 1.006.000$00";
-c)- letra datada de 13-8-97 (com vencimento em 11-9-97), no montante de 570.000$00, com a indicação " Transacção Comercial - Ref. Valor 770.000$00";
2º- Em todas aquelas letras figuram como sacadora a firma exequente (ora embargada), com assinaturas com indicação de serem da gerência, e como sacado o executado (ora embargante) que as assina transversalmente na parte anterior de cada uma das referidas letras;
3º- Tais letras não foram pagas no vencimento, nem posteriormente, apesar das insistências da exequente.

Passemos ao direito aplicável.
11. Não vem posto em causa, quanto às letras dadas à execução, encontrar-se decorrido o prazo prescricional de três anos contemplado no artº. 70 da LULL aquando da data da instauração da execução apensa.
Apesar dessa constatação, o Mmo. juiz «a quo» entendeu que essas letras reuniam os requisitos bastantes para servirem de base à execução nos termos do disposto na al. c) do artº. 46º do CPC - entendimento este também coonestado pela Relação.
Terão as instâncias decidido bem?
Sem prejuízo da ampliação - efectuada pela reforma processual de 1995 - do elenco dos títulos executivos, e da utilização, na redacção actualmente em vigor, de uma fórmula abrangente para designar os documentos particulares dotados de exequibilidade (artº. 46º, al. c), do CPC 95), é manifesto que não esteve na mente, nem dos propósitos do legislador, alterar o clausulado normativo da LULL.
Assim, uma vez prescrita a obrigação cartular constante de uma letra, livrança ou cheque nos termos do artº. 70º da LULL, não poderão tais títulos de crédito valer como títulos executivos para os efeitos da al. d) do artº. 46º do CPC 95.
Poderão, todavia, valer como título executivos, mas enquanto escritos particulares consubstanciando a respectiva obrigação subjacente, causal ou fundamental, nos termos e para os efeitos da al. c) do mesmo artº. 46º desde que:
- as letras dadas à execução mencionem a causa da relação jurídica subjacente; ou desde que:
- tal causa de pedir seja invocada no requerimento de execução e venha a demonstrar-se ser verdadeira, seja porque não impugnada pelo executado, seja porque em audiência de julgamento se apure a realidade da sua existência.
Se o título não fizer qualquer referência à relação causal, encontrar-se-á o exequente obrigado a alegar a causa/fonte da obrigação, se pretender que a letra, apesar de prescrita a obrigação cartular, valha, ainda assim, como título executivo.
Deste modo, se a exequente-embargada houver estruturado o seu requerimento executivo, no que se refere às letras dadas à execução, com mero apelo aos puros princípios da abstracção e literalidade, sem que esse documento possa consubstanciar um reconhecimento de dívida por parte do embargante para com ele nos termos do artº. 458º do C. Civil, não pode aceitar-se que o mesmo valha como título executivo ao abrigo do disposto na al. c) do artº. 46º do CPC - conf., neste sentido, o Ac do STJ de 30-1-01, in Proc 3656/00 - 1ª SEC.- CJSTJ, Tomo I, pág 85.
Ora, não se pode afirmar que as letras dadas à execução a que se reportam os presentes autos não façam qualquer referência à relação causal. Esta consistiu declaradamente - e também para qualquer destinatário médio (artº. 236º do C. Civil) - em "transacções comerciais" e/ou em "reforma de outras letras" com as mesmas conexionadas. Não se tratou pois de declarações negociais ou de negócios puramente abstractos.
A exequente, ora recorrida, no seu requerimento executivo, não obstante aceitar a prescrição dos títulos cambiários dados à execução, invocou expressamente a estatuição da al. c) do citado artº. 46º do CPC 95 por reporte ao conteúdo dos títulos que a tal requerimento juntou.
De harmonia com esse preceito, podem servir de base à execução "os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável nos termos do artigo 805º, ou de obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestação de facto" (sic).
No caso das letras dadas à execução a que se referem os presentes autos, encontram-se em causa quantias certas e determinadas ou determináveis por simples cálculo aritmético; documentos esses que inquestionavelmente foram pessoalmente subscritos pelo executado neles indicado como pretenso devedor, sendo que o mesmo reconheceu «ex-professo» na petição inicial dos embargos essa sua condição de "aceitante".
É certo que em tal articulado não se chegaram a explicitar, de forma directa, as concretas fontes da obrigação exequenda (v.g, compra e venda, troca ou empréstimo), mas, ao remeter-se (pelo menos implicitamente) para as letras "juntas com a petição" e tendo-se feito nas mesmas menção expressa e literal a "transacção comercial/reforma de outras letras", dúvidas não restam de que, quer representem o valor de transacções comerciais propriamente ditas, quer respeitem a reformas de letras anteriores com as mesmas conexionadas, respeitam a dívidas de quem se obrigou a pagá-las e a obrigações de natureza comercial entre os sujeitos susbcritores previamente estabelecidas.
Ademais, de qualquer desses "documentos particulares " consta a expressão seguinte: "No seu vencimento pagará(ão) V. Exa(s) por esta única via de letra a nós ou à nossa ordem a quantia de..."; a seguir a essa expressão encontra-se escrita por extenso a quantia respeitante a cada uma dessas letras, apenas com um lapso na letra de 795.000$00 (que não cumpre aqui apreciar por não fazer parte do objecto deste recurso ). Consta ainda o nome da pessoa a quem devem ser pagas («sacadora») e da pessoa a quem é dada a ordem de pagamento e que aceitou pagá-las («o sacado»).
Essa referência expressa a "transacções comerciais" e "reforma de outras letras", aliada aos demais dizeres do preenchimento dos títulos em apreço, ultrapassa sem dúvida as características da mera abstracção e literalidade.
Bem se pode, assim, brandir com o argumento de maioria de razão ou «a fortiori» extraído da própria estatuição-previsão do já citado artº. 458º do C. Civil: se a simples declaração unilateral de reconhecimento de dívida, sem indicação da respectiva causa, dispensa o credor da prova da relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário, como não atribuir idêntico valor de promessa de prestação e de reconhecimento de obrigação a um documento do qual conste (pelo menos implicitamente) uma real invocação da respectiva causa, ainda que sem uma exaustiva concretização da respectiva fonte?
Haveria, destarte, em casos idênticos àquele de que ora curamos, que fazer funcionar (a favor do credor-exequente) o princípio da presunção de existência da relação fundamental, competindo, por isso, ao devedor-executado o encargo de demonstrar que, apesar dessa menção/alusão nos questionados documentos às respectivas fontes obrigacionais, tal relação fundamental era afinal, e na realidade, inexistente.
De qualquer modo, só uma apreciação casuística das concretas situações que se deparem poderá conduzir a uma solução simultaneamente «legal» e «justa».
No caso «sub-specie», o devedor/executado/embargante, e ora recorrente, apenas se quedou pela invocação da prescrição dos títulos cambiários em causa sem pôr em crise a causa/fonte exarada no respectivos documentos.
Assim sendo, como questionar que desses títulos, ou melhor, desses documentos, deriva a constituição e reconhecimento das obrigações pecuniárias correspondentes aos montantes neles inscritos?
Deste jeito, e face ao reconhecimento directo (pelo executado) das dívidas exequendas face à credora-exequente ora recorrida, devem considerar-se as «letras» a que se reportam os autos como «títulos executivos» nos termos e para os efeitos da citada al. c) do artº. 46º do CPC.

12. Assim havendo decidido neste pendor, não merece o acórdão recorrido qualquer censura, assim improcedendo as conclusões da alegação do recorrente.

13. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão revidendo.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 30 de Outubro de 2003
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares