Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B2957
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INCAPACIDADE PARCIAL PERMANENTE
DANOS PATRIMONIAIS
INDEMNIZAÇÃO
DANOS FUTUROS
JUROS DE MORA
Nº do Documento: 20071004029577
Data do Acordão: 10/04/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. O dano biológico derivado de incapacidade geral permanente, de cariz patrimonial, é susceptível de justificar a indemnização por danos patrimoniais futuros, independentemente de o mesmo se repercutir na vertente do respectivo rendimento salarial.
2. De harmonia com o acórdão de uniformização de jurisprudência nº 4/2002, de 9 de Maio, se na sentença proferida no tribunal da primeira instância ou no acórdão da Relação não constar a referência ao cálculo da indemnização por via de actualização à data da referida sentença, os juros de mora devidos pela entidade responsável são contados desde a data da citação.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
AA intentou, no dia 27 de Maio de 1998, contra BB, acção declarativa de condenação, com processo sumário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe 19 675 627$ e juros desde a citação, com fundamento em danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos na colisão entre o seu veículo automóvel com a matrícula nº 00-00-AF, por ela conduzido, e o veículo automóvel com a matrícula nº 00-00-JE, pertencente e conduzido por CC, no dia 4 de Dezembro de 1997, na Rua do Ouro, em Lisboa, dito exclusivamente imputável à última, e em contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado entre a última e a ré.
A ré, em contestação, afirmou ser o evento em causa exclusivamente imputável à autora e exagerados os valores indemnizatórios por ela pedidos.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 21 de Agosto de 2006, por via da qual a ré foi condenada a pagar à autora € 21 943,07 e juros de mora desde a a data citação.
Apelou a ré, e a Relação, por acórdão proferido no dia 29 de Maio de 2007, negou-lhe provimento ao recurso.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- a compensação de € 5 000 por danos morais é excessiva, porque o sofrimento da recorrida foi moderado;
- embora com esforço acrescido, a incapacidade para o trabalho da recorrida é compatível com o exercício da sua actividade profissional, pelo que não ficou prejudicada economicamente, não havendo danos materiais;
- não foi tido em conta a antecipação do pagamento e a indemnização, salvo quanto a € 337,63, sempre seria fixada por critérios actuais, e os juros só podem ser contados desde a sentença;
- foi violado, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no artigo 483º, nº 1, do Código Civil.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão:
- o recurso deve ser rejeitado por inexistência de fundamentos;
- urge alterar o miserabilismo na fixação da indemnização por danos não patrimoniais em salvaguarda de valores superiores da dignidade da pessoa humana, da saúde, da integridade física, do conforto e bem-estar, não raro superiores aos dos bens materiais;
- dados os danos morais que a recorrida sofreu, é justo e adequado o valor fixado pelas instâncias;
- a recorrida ficou prejudicada economicamente por virtude da incapacidade porque para obter o mesmo resultado tem fazer esforço suplementar que lhe implica dor e cansaço físico que se reflecte no seu desempenho profissional, o qual seja de praticar exercício físico;
- o seu esforço suplementar é acrescido em virtude das sequelas com que ficou em consequência do acidente, pelo que é justa e adequada a indemnização fixada a este título;

II
É a seguinte a factualidade considerada assente no acórdão recorrido:
1. Representantes da ré e a autora declararam, por escrito consubstanciado na apólice nº 832 480, com início de cobertura no dia 2 de Dezembro de 1997, a primeira, mediante prémio a pagar pela última, assumir a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o veículo automóvel com a matrícula nº 00-00-JE e a cobertura de danos próprios.
2. No dia 4 de Dezembro de 1997, cerca das 23 horas e 40 minutos, ocorreu um acidente na Rua do Ouro em Lisboa, em que foram intervenientes o veículo automóvel com a matricula nº 00-00-AF, conduzido pala autora, nascida no dia 10 de Maio de 1955, àquela pertencente, e o veículo com matrícula nº 00-00-JE, conduzido por CC.
3. As Ruas do Ouro e da Conceição cruzam-se, encontrando-se o respectivo cruzamento sinalizado por semáforos, e a autora circulava com o veículo automóvel com a matrícula nº 00-00-AF na primeira, no sentido Norte- Sul, e CC na última, no sentido Nascente-Poente.
4. Os veículos embateram um no outro quando a autora atravessava o cruzamento, tendo e o veículo automóvel com matrícula nº 00-00-JE embatido com a parte da frente lateral direita, primeiro na parte da frente lateral esquerda do veículo automóvel com a matrícula nº 00-00-AF, e, depois, na sua parte lateral esquerda traseira.
5. A autora e CC seguiam a uma velocidade não apurada, tendo a última avançado com o veículo automóvel com a matrícula nº 00-00-JE no cruzamento, e já transpunha a segunda metade de faixa de rodagem da Rua do Ouro quando foi embatida pelo veículo automóvel com a matrícula nº 00-00-AF.
6. A autora sofreu cervicalgia com irradiação a membro superior direito de que lhe resultou hérnia discal da C-6 e C-7 com compromisso da raiz C-direita, e, em consequência do impacto do embate, sofreu dores na coluna, na cabeça, no pescoço e nos braços durante mais de três meses.
7. Foi assistida no Hospital de São José, em Lisboa, onde lhe efectuaram radiografias, as lesões descritas sob 6 determinaram-lhe incapacidade permanente de dez por cento, teve que efectuar sessões de fisioterapia para tratamento das lesões, e nesta data, ainda tem que as efectuar.
8. É professora de educação física, e, nessa qualidade, auferia, à data do sinistro, a quantia mensal de 342 200$, despendeu em exames e medicamentos a quantia de 54 177$, e, em transportes, enquanto o seu veículo automóvel esteve a ser reparado, gastou 81 200$.
9. Pagou 16 000$ de franquia aquando da reparação do seu veículo automóvel, e o seu prémio de seguro era de 87 310$00, e, agora, é de 111 560$.


III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrida tem ou não direito a exigir da recorrente a indemnização/compensação que lhe foi arbitrada pelas instâncias.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- delimitação negativa do objecto do recurso;
- cálculo do dano futuro da recorrente por virtude da incapacidade permanente de que ficou afectada;
- cálculo da compensação devida à recorrente por danos não patrimoniais;
- devem os juros de mora ser contados desde a data da citação da recorrente para a acção?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos pela delimitação negativa do objecto do recurso de que importa conhecer
O objecto dos recursos é delimitado pelo conteúdo das alegações do recorrente (artigos 664º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
A recorrente não põe em causa nas alegações do recurso a divisão por igual da responsabilidade pelo risco entre a recorrida e CC, nem o valor da indemnização relativa ao dispêndio em exames médicos, medicamentos e transportes.
Ademais, também a recorrente não põe em causa ter assumido a responsabilidade envolvente dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela recorrida em virtude do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel que celebrou com CC, nos termos dos artigos 427º do Código Comercial e 5º, alínea a) e 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro.
Assim, o que essencialmente está em causa no recurso, ao que limitaremos a nossa análise, é o quantum da indemnização por danos futuros por virtude da incapacidade permanente de dez por cento de que a recorrida ficou afectada e da compensação relativa a danos não patrimoniais e o momento a partir do qual são devidos juros de mora.

2.
Atentemos agora no cálculo do quantum indemnizatório devido à recorrida por virtude da incapacidade permanente de que ficou afectada.
As instâncias, embora tenham considerado que a incapacidade de dez por cento de que a recorrida ficou afectada não a impedia de trabalhar nem lhe afectava a capacidade de ganho, com base na sua idade de 41 anos ao tempo do sinistro, no prolongamento da sua actividade laboral durante 24 anos, no seu salário mensal de € 1705,89 durante 14 meses e abatimento de um terço desse valor relativo ao dispêndio consigo própria, calcularam esta indemnização em 38 212,08
Consideram que a inexistência de incapacidade de ganho não exclui a indemnização por danos patrimoniais por virtude do dano físico determinante da incapacidade exigir do lesado um esforço suplementar físico e psíquico para obter o mesmo resultado do trabalho, do que a recorrente discorda.
O ressarcimento dos danos futuros, como é o caso vertente, por cálculo imediato, depende da sua previsibilidade e determinabilidade (artigo 564º, n.º 2, 1ª parte, do Código Civil).
Os conceitos de determinabilidade e de indeterminabilidade reportam-se aos danos certos, ou seja, àqueles em que os factos permitam ou não de imediato a precisão do seu montante.
No caso de não serem imediatamente determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (artigo 564º, nº 2, 2ª parte, do Código Civil).
Assim, na fixação da indemnização devem ser atendidos os danos futuros – danos emergentes ou lucros cessantes – desde que previsíveis, isto é, razoavelmente prognosticáveis, naturalmente em quadro de antecipação do tempo em que irão ocorrer.
Entre os danos futuros previsíveis demarcam-se os certos, razoavelmente prognosticáveis, e os que são meramente eventuais, isto é, os que comportam maior ou menor grau de certeza de ocorrência.
A referência da lei à previsibilidade do dano implica que não sejam susceptíveis de indemnização os danos futuros imprevisíveis, ou seja, quando, face aos factos provados, não sejam razoavelmente prognosticáveis, aos quais são assimilados os eventuais com intenso grau de incerteza de verificação.
Os danos futuros previsíveis, a que a lei se reporta, são essencialmente os certos ou suficientemente prováveis, como é o caso, por exemplo, da perda ou diminuição da capacidade produtiva de quem trabalha e, consequentemente, de auferir o rendimento inerente, por virtude de lesão corporal.
A regra é no sentido de que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que se verificaria se não tivesse ocorrido o evento que obriga à reparação, a fixar em dinheiro no caso de inviabilidade de reconstituição em espécie (artigos 562º e 566º, n.º 1, do Código Civil).
A indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que ele teria então se não tivesse ocorrido o dano, e, não podendo ser determinado o seu valor exacto, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (artigo 566º, nºs 2 e 3, do Código Civil).
A incapacidade permanente é susceptível de afectar e diminuir a potencialidade de ganho por via da perda ou diminuição da remuneração ou da implicação para o lesado de um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho ou para exercer as várias tarefas e actividades gerais quotidianas.
No primeiro caso, procurando atingir a justiça do caso, têm os tribunais vindo a acolher a solução de a indemnização do lesado por danos futuros dever representar um capital que se extinga ao fim da sua vida activa e seja susceptível de lhe garantir, durante ela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.
Têm sido utilizadas para o efeito pela jurisprudência fórmulas e tabelas financeiras várias, na tentativa de se conseguir um critério tanto quanto possível uniforme. Mas as referidas fórmulas não se conformam com a própria realidade das coisas, avessa a operações matemáticas, certo que não é possível determinar o tempo de vida útil, a evolução dos rendimentos, da taxa de juro e do custo de vida.
Acresce não existir uma relação proporcional entre a incapacidade funcional e o vencimento auferido pelo exercício de uma profissão em termos de se poder afirmar que ocorre sempre uma diminuição dos proventos na medida exactamente proporcional à da incapacidade funcional em causa.
Assim, nesse caso, as mencionadas tabelas só podem ser utilizadas como meramente orientadoras e explicativas do juízo de equidade a que a lei se reporta.
Como se trata de dano futuro no âmbito de um longo período de previsão, a solução mais ajustada é a de conseguir a sua quantificação imediata, embora, face à inerente dificuldade de cálculo, com ampla utilização de juízos de equidade.
Assim, a partir dos pertinentes elementos de facto apurados, independentemente do seu desenvolvimento no quadro das referidas fórmulas de cariz instrumental, deve calcular-se o montante da indemnização em termos de equidade, no quadro de juízos de verosimilhança e de probabilidade, tendo em conta o curso normal das coisas e as particulares circunstâncias do caso.
E apesar do longo período de funcionamento da previsão, a quantificação deve ser imediata, sob a atenuação da fluidez do cálculo no confronto da referida previsibilidade, no âmbito da variável inatingível da trajectória futura do lesado, quanto ao tempo de vida e de trabalho e à espécie deste, por via dos referidos juízos de equidade.
Devem, pois, utilizar-se juízos lógicos de probabilidade ou de verosimilhança, segundo o princípio id quod plerumque accidit, com a equidade a impor a correcção, em regra por defeito, dos valores resultantes do cálculo baseado nas referidas fórmulas de cariz instrumental.
No fundo, a indemnização por dano patrimonial futuro deve corresponder à quantificação da vantagem que, segundo o curso normal das coisas ou de harmonia com as circunstâncias especiais do caso, o lesado teria obtido não fora a acção e ou a omissão lesiva em causa.
No caso vertente, os factos provados não revelam se a incapacidade de grau médio inferior de que a recorrente ficou a sofrer lhe vai ou não implicar redução do salário normal correspondente ao exercício da sua profissão.
Todavia, importa considerar que a mera afectação da pessoa do ponto de vista funcional, isto é, sem se traduzir em perda de rendimento de trabalho, releva para efeitos indemnizatórios, como dano biológico, porque determinante de consequências negativas a nível da actividade geral do lesado.
O referido dano biológico, de cariz patrimonial, justifica, com efeito, a indemnização, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial. Mas as regras de cálculo da indemnização por via das mencionadas tabelas não se ajustam, como é natural, a essa situação.
Todavia, perante o mencionado quadro de facto – profissão, idade, rendimento de trabalho, grau de incapacidade geral – e a equidade a operar, mostra-se adequado o cálculo do dano patrimonial futuro operado nas instâncias.

3.
Vejamos agora o cálculo da compensação devida à recorrente por danos não patrimoniais.
As instâncias, apesar da recorrida não ter sido submetida a intervenção cirúrgica nem sofrido fractura, fixaram o montante compensatório que lhe era devido no montante de € 5 000.
Os danos não patrimoniais não são avaliáveis em dinheiro, certo que não atingem bens integrantes do património do lesado, antes incidindo em bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, o bom nome e a beleza.
O seu ressarcimento assume, por isso, uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória.
Expressa a lei que na fixação da indemnização se deve atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, aferida em termos objectivos, mereçam a tutela do direito (artigo 496º, n.º 1, do Código Civil).
O montante pecuniário da compensação deve fixar-se equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias a que se reporta o artigo 494º do Código Civil (artigo 496º, n.º 3, 1ª parte, do Código Civil).
No caso de a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e a do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem (artigo 494º do Código Civil).
Assim, as circunstâncias a que, em qualquer caso, o artigo 496º, nº 3, do Código Civil manda atender são o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objectivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.
Está assente, por um lado, ter a recorrida sofrido cervicalgia com irradiação ao membro superior direito de que lhe resultou hérnia discal da C-6 e C-7 com compromisso da raiz C-direita e dores na coluna, na cabeça, no pescoço e nos braços durante mais de três meses, derivadas do impacto do embate.
E, por outro, ter sido assistida no hospital e sujeita a fisioterapia para tratamento das lesões, a qual, cinco meses depois do evento, ainda tem que efectuar.
Estamos perante um quadro de sofrimento físico-psiquico que, embora de grau reduzido, assume gravidade merecedora da tutela do direito, e não se provou a culpa de CC.
Não se conhece exactamente a situação financeira da recorrida, salvo a que decorre da configuração da sua situação profissional, e ignora-se a situação económica de CC.
Mas esta circunstância não releva porque está a ser accionada uma empresa em virtude de funcionar a cobertura de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.
Tendo em conta o referido quadro de dano não patrimonial a que acima se fez referência, usando do juízo de equidade a que se reporta o artigo 496º, nº 3, 1ª parte, do Código Civil, julga-se adequada a compensação de € 5 000 que à recorrente foi fixada nas instâncias.

4.
Atentemos agora na subquestão de saber se a indemnização moratória em causa deve operar desde a data da citação da recorrente ou desde a data da sentença proferida no tribunal da primeira instância.
A recorrente alegou que os juros de mora sobre a indemnização mencionada sob 2 e 3 apenas devem ser contados desde a data da sentença proferida no tribunal da primeira instância.
Nas instâncias foi apenas declarado que a recorrida pedia juros desde a citação e que tinha direito aos mesmos, atento o disposto nos artigos 559º, 804º a 806º do Código Civil.
Releva neste ponto a interpretação dos artigos 566º, n.º 2, e 805º, n.º 3, segunda parte, do Código Civil operada no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2002, de 9 de Maio, publicado no Diário da República, I Série A, n.º 146, de 27 de Junho de 2002.
No recurso de revista ampliada em que foi preferido o referido acórdão uniformizador de jurisprudência, na sequência de no acórdão da Relação se haver fixado a compensação por danos não patrimoniais actualizada à data da sentença, os recorrentes alegaram que sobre o montante global da indemnização devia incidir a actualização em função dos valores da inflação entre a data do acidente e a da propositura da acção, e que, a partir da data da citação e até ao pagamento, deviam incidir juros moratórios sobre o montante global da indemnização.
No referido acórdão afirmou-se, além do mais que aqui não releva, que o valor da compensação a título de danos não patrimoniais havia sido actualizado à data da sentença, em conformidade com o disposto no artigo 566º, n.º 2, do Código Civil, e que a questão de direito a resolver se prendia com a determinação do momento do início da contagem de juros de mora sobre os quantitativos da indemnização arbitrada a título de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, designadamente os respeitantes a danos não patrimoniais.
Referiu-se, ademais, tratar-se de interpretar a segunda parte do n.º 3 do artigo 805º na sua ligação sistemática com o artigo 566º, n.º 2, ambos do Código Civil, e que, conforme se adoptasse uma ou outra das orientações em confronto, adquirida que estivesse a atribuição de uma indemnização actualizada, ou seja, objecto de correcção monetária, o sentido do primeiro dos referidos normativos, na sua necessária articulação com o segundo, teria de ser objecto de interpretação literal ou restritiva.
Colocou-se em confronto a orientação que entendia a compatibilidade dos mencionados normativos, ou seja, da acumulação de juros de mora desde a citação com a actualização da indemnização em função da taxa da inflação, fundada no argumento do distinto objecto e da diversa natureza que preside à actualização da expressão monetária da indemnização entre as datas da citação e da decisão actualizadora, e a da não cumulatividade de juros de mora desde a citação com a actualização da indemnização, fundada no facto de ambas as providências influenciadoras do cálculo obedecerem à mesma finalidade de fazer face à erosão do valor da moeda entre o evento danoso e a satisfação da obrigação indemnizatória.
Referiu-se que se o juiz fizer apelo ao critério actualizador previsto no artigo 566º, n.º 2, do Código Civil, atribuindo a indemnização monetária aferida pelo valor da moeda à data da sentença da primeira instância, não podia, sem se repetir, mandar acrescer a tal montante os juros de mora desde a citação, por força do n.º 3 do artigo 805º daquele diploma.
Salientou-se ainda, por um lado, que a intenção do legislador de 1983 só foi a de compensar o prejuízo da inflação relativamente ao que falhava na previsão do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil quando, por efeito dela, o valor do pedido se depreciava em termos tais que a actualização com referência à data da sentença conduzia a um valor superior ao do pedido que o tribunal não podia considerar, atenta a limitação decorrente do artigo 661º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
E, por outro, expressou-se que no caso de o juiz não poder valer-se do n.º 2 do artigo 566º, por o pedido estar muito desactualizado e não ter sido ampliado, os juros de mora podiam e deviam ser contados desde a citação, por aplicação do n.º 3 do artigo 805º, ambos do Código Civil.
Essencialmente com base na mencionada argumentação é que foi votado maioritariamente o acórdão de uniformização de jurisprudência em causa, segundo o qual, sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo, nos termos do n.º 2 do artigo 566º, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3, interpretado restritivamente, e 806º, n.º 1, todos do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.
Dele resulta, tendo em conta o seu conteúdo e o das alegações de recurso sobre as quais se pronunciou, a ideia de uma decisão actualizadora da indemnização em razão da inflação no período compreendido entre ela e o momento do evento danoso causador do dano, sob a invocação do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, que consagra o critério derivado do confronto da efectiva situação patrimonial do lesado na data mais recente atendível pelo tribunal e a que teria nessa data se não tivesse ocorrido o dano.
A prolação dessa decisão actualizadora, tendo em conta a motivação do referido acórdão de uniformização de jurisprudência, tem que ter alguma expressão nesse sentido, designadamente a referência à utilização no cálculo do critério chamado da diferença na esfera jurídico-patrimonial constante no artigo 566º, n.º 2, do Código Civil e à consideração, no cômputo da indemnização ou da compensação, da desvalorização do valor da moeda.
O tribunal da primeira instância, quanto à indemnização devida aos recorridos por danos futuros não se referiu minimamente a qualquer actualização por referência à data da prolação da sentença.
Uma decisão actualizadora da indemnização, em rigor, pressupõe que sobre algo já quantificado incida algum elemento ou índice de actualização, situação que se não reconduz necessariamente ao cálculo da indemnização com base no princípio da diferença da esfera patrimonial ou em danos não patrimoniais.
Todavia, o tribunal da primeira instância, teve em conta o referido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência e o disposto no nº 2 do artigo 566º do Código Civil e não se referiu ao cálculo das referidas indemnização e compensação ora em causa por referência temporal à data da sentença.
Em consequência, tal como foi considerado na sentença e no acórdão recorrido, os juros relativos à quantia relativa à mencionada indemnização, ao invés do alegado pela recorrente, devem ser contados desde a sua citação para a acção.


5.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
O que está em causa no recurso é o quantum da indemnização por danos futuros por virtude da incapacidade permanente de dez por cento de que ficou afectada e da compensação relativa a danos não patrimoniais, e o momento a partir do qual são devidos juros de mora.
O referido dano biológico derivado de incapacidade geral permanente, independentemente de se repercutir na vertente do rendimento salarial, de cariz patrimonial, justifica a indemnização por danos patrimoniais futuros.
É adequada aos factos assentes, à luz de juízo de equidade, a indemnização pelo dano biológico e a compensação por danos não patrimoniais que as instâncias atribuíram a recorrida.
Como as instâncias não se referiram a decisão de actualização das referidas indemnização e actualização por referência à data da sentença, os juros de mora devidos pela recorrente à recorrida devem ser contados desde a data da sua citação para a acção.

Improcede, por isso, o recurso.

Vencida no recurso, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV


Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 4 de Outubro de 2007.



Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis