Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
148/03.0TBPNC.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
SERVIDÃO DE PASSAGEM
PRÉDIO ENCRAVADO
COMPROPRIEDADE
ALIENAÇÃO DE PARTE ALÍQUOTA DO PRÉDIO
Data do Acordão: 06/30/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
1. O nº1 do art. 1550º do CC deve ser interpretado, segundo critérios funcionais ou teleológicos, no sentido de que o direito legal de preferência, aí outorgado ao proprietário do prédio serviente, não tem lugar em caso de alienação por um dos comproprietários a terceiro de parte alíquota do prédio dominante:

2. Na verdade, ocorrendo mera alienação a terceiro do direito de compropriedade, não são alcançáveis os fins que estão na base de tal direito real de aquisição, já que, neste caso, o exercício da preferência não poderia conduzir ao termo do ónus imposto ao prédio serviente - ditando ainda o ingresso forçado do preferente na compropriedade do prédio dominante uma presumível litigiosidade acrescida na fruição e exploração deste pelos vários comproprietários.
Decisão Texto Integral:

    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


    1. AA e BB intentaram acção declarativa, na forma de processo ordinário, contra CC, DD e esposa, EE, FF e marido, GG, e HH e marido, II, pedindo a condenação dos réus:
    - a reconhecerem os autores como legítimos e únicos proprietários do prédio urbano que identificam, sito em Penamacor;
    - a reconhecerem a existência de uma servidão legal de passagem constituída sobre o prédio dos autores, confinante com o dos réus, a favor do último, ou, caso assim não se entenda, em termos subsidiários, que a referida passagem está constituída por usucapião;
    - a reconhecerem que o prédio dos réus, não fora a existência da dita passagem, estava total ou parcialmente encravado;
    - a reconhecerem que os autores são titulares de preferência no caso de venda do prédio dos réus; e,
    - consequentemente, serem os quartos réus substituídos na venda referida no artigo 6.º da PI pelos autores, configurando-se estes como compradores do referido prédio, cancelando-se o registo efectuado na Conservatória do Registo Predial da mencionada compra e venda.

    Para tanto, alegaram os AA. – após estabelecer os factos conducentes à aquisição da propriedade sobre o seu prédio, para o que invocaram, quer a usucapião, quer a presunção decorrente do registo – que a primeira, os segundos e os terceiros RR. venderam, em 06/12/2002, aos quartos RR. metade indivisa de um prédio rústico de que eram proprietários.
    Ora, devido à irregular topografia do terreno, o prédio dos AA. ficou e está onerado com uma servidão de passagem a favor do prédio transmitido pelos RR., por se encontrar encravado ( situação que , aliás, já levou os ora 4ºs RR. a intentarem procedimento judicial contra os AA).

    Mais alegaram os AA. que a dita passagem foi exercida pelos antepossuidores dos 4ºs réus, de forma pacífica e continuada, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem violência e oposição de ninguém e na convicção de que exerciam um direito próprio, pelo que sempre teria sido adquirida, por usucapião, tal servidão de passagem a favor do prédio transmitido aos 4.º RR.
    Alegaram ainda que tomaram conhecimento da referida compra e venda de metade indivisa do prédio dominante e conteúdo do negócio apenas quando, em 29/04/2003, foram citados para o procedimento judicial acima referido, já que nunca lhes foi comunicada qualquer intenção de venda: assim, porque o prédio dos AA. está onerado com uma servidão legal de passagem a favor do prédio transmitido entre os RR. têm aqueles direito de preferência na venda efectuada; o qual vêm exercer através da presente acção.

    Contestaram todos os RR., alegando, em síntese, que não existe direito de preferência quando, como foi o caso, se procede à alienação de uma parte alíquota ou ideal do prédio dominante., já que a razão determinante de tal preferência legal – colocar termo ao encargo excepcional que recai sobre o prédio serviente – não seria , nessa situação, alcançável, uma vez que sempre subsistiria o encargo da servidão relativamente à quota ideal da propriedade, não alienada.
    Aliás, com a venda em causa ter-se-ia pretendido a manutenção da propriedade do imóvel na família, tendo havido, concomitantemente, partilha de outros bens, tendo os réus vendedores recebido bens de valor considerável e sentimental; daí que o preço da venda, constante da escritura, tivesse sido um preço simbólico, entre familiares e de conveniência; pelo que, se não fossem estes factos, o valor a atribuir ao negócio estaria compreendido entre os montantes de € 90.000/100.000, para alienação da totalidade do imóvel, pelo que, a ser procedente a pretensão dos AA., teria de ser este o valor a considerar .
    Impugnaram ainda o facto do prédio transmitido se encontrar encravado.
    E deduziram pedido reconvencional, pedindo, caso a acção seja julgada procedente, a condenação dos autores a:
    - depositarem a favor dos réus as quantias em falta do depósito obrigatório, designadamente, o preço da alienação e aquisição do imóvel de € 45.000,00;
    - pagarem aos réus adquirentes uma indemnização, a título de benfeitorias, de montante não inferior a € 8.500,00.

    Os AA replicaram, defendendo existir preferência na alienação de uma parte aliquota ou ideal; salientando ainda que o encravamento do prédio transmitido foi invocado pelos 4.º RR., numa acção que estes intentaram contra os AA., com vista, precisamente, ao reconhecimento de uma servidão de passagem a favor do seu prédio e sobre o imóvel dos AA.; e impugnando também os factos respeitantes ao pedido reconvencional , pedindo a sua total improcedência.

    Foi proferido despacho saneador, em que se julgou improcedente a excepção de caducidade da acção, por intempestividade do depósito do preço, e se indeferiu o pedido de intervenção principal dos comproprietários; tendo a instância sido julgada completamente regular, organizando-se a base instrutória da causa.
    .
    Entretanto, vieram JJ e KK – na qualidade de comproprietários do prédio transmitido – deduzir incidente de oposição espontânea; o qual não foi admitido, por se julgar caducado o direito de preferência invocado por tais opoentes, sendo tal decisão confirmada, em agravo apreciado separadamente na Relação.
    Finda a audiência, foi proferida sentença em que se julgou parcialmente procedente e provada a acção, condenando, em consequência, os réus a:
    - reconhecer os autores como legítimos e únicos proprietários do prédio urbano em causa;
    - reconhecer a existência de uma servidão legal de passagem constituída sobre o prédio dos autores, confinante com o dos réus, a favor do último, ou, em termos subsidiários que a referida passagem está constituída por usucapião;
    - reconhecer que o prédio dos réus, não fora a existência da dita passagem, estava total ou parcialmente encravado; mas
    - absolvendo os réus do demais peticionado – nomeadamente quanto ao pedido de exercício da preferência, por se considerar que o direito outorgado pelo art. 1555º do CC não abrange a alienação de uma parte alíquota do direito de propriedade sobre o prédio dominante, afirmando a sentença proferida:
    Assim, cumpre concluir que tal fim da norma, obviamente para além daquele fim de fazer cessar os ónus e regularizar a propriedade, só se alcança com a preferência exercida na venda e todo o prédio e não de parte dele. Neste último caso manter-se-ia a dita situação de potencial conflitualidade já que os comproprietários do prédio dominante manteriam o direito de passar pelo prédio serviente, acrescendo, no caso concreto, (a admitir-se a dita preferência de quota ideal) a criação de uma nova situação de potencial conflitualidade traduzia na constituição de uma compropriedade indesejada entre os autores e os restantes donos do prédio dominante( sendo certo que a lei encara com desfavor as situações de comunhão, tal como resulta do disposto nos arts. 1409º e 1412º do CC).

    Inconformados com tal decisão, interpuseram os AA. recurso de apelação, cujo objecto se mostrava circunscrito à questão de saber se o dono do prédio serviente – onerado com uma servidão legal de passagem a favor de prédio encravado – tem direito de preferência na venda feita por um comproprietário do prédio dominante. E a Relação, no acórdão recorrido, julgou procedente o recurso e, em consequência, revogou a sentença recorrida, na parte impugnada, declarando que os AA/apelantes gozam também do direito de preferência na compra e venda constante do ponto 7 dos factos provados, razão pela qual se substituem os AA/apelantes, como compradores, aos aqui 4.º RR., ali compradores.
    Para tal – e divergindo da interpretação normativa do art. 1555º, feita na 1ª instância - considerou que quando o art. 1555.º, n.º 1, do C. Civil alude à venda do prédio dominante, o que o legislador rigorosamente quer referir é a venda da propriedade de tal prédio. E “a compra e venda da propriedade da coisa, ou seja, a alienação do direito de propriedade da coisa mediante um preço tanto abrange o direito de propriedade na sua totalidade (a titularidade única e exclusiva sobre a coisa) como qualquer das fracções ideais em que o direito de domínio se pode decompor”.
    É a própria lei civil – 1403.º – que o confirma ao considerar a compropriedade como uma variante do direito de propriedade.
    Aliás, ponderada a exacta natureza jurídica da compropriedade – considera-se que quando o comproprietário transmite o seu direito, não é exacto que se possa dizer que a questão está em saber se também há direito de preferência na venda de parte “alíquota” do prédio dominante, uma vez que, em tal hipótese, quanto o comproprietário transmite o seu direito, é ainda todo o prédio dominante – e não apenas uma parte – que é transmitido, porém, com a ressalva de existirem outros direitos de propriedade (tantos quantos os comproprietários) sobre o mesmo prédio, direitos estes que, não sendo transmitidos, se mantêm a limitar o direito transmitido.
    Considerou ainda a Relação que, pela circunstância de os RR/apelados, ainda que a título meramente subsidiário, não terem solicitado a apreciação de qualquer outra questão, nem arguido a nulidade por omissão de pronúncia da sentença, - por esta ter omitido, de todo, qualquer pronúncia sobre o pedido reconvencional deduzido – tal matéria teria de considerar-se excluída do objecto da apelação ; porém, a título lateral ou subsidiário, não deixou de notar-se que tal pretensão, a ter sido apreciada quanto ao mérito, sempre teria de ser julgada improcedente.

    2. Inconformados com este sentido decisório, interpuseram os RR. HH , II, GG, FF, DD e EE a presente revista, que encerram com as seguintes conclusões que, como é sabido, lhe delimitam o objecto:
    A. No presente recurso suscita-se a apreciação de três questões jurídicas centrais e que são:
    I . A questão do exercício do direito de preferência em caso de alienação de aliquota de um imóvel rústico!
    II. A questão do reconhecimento do direito de preferência atribuído ao proprietário do prédio onerado com servidão legai de passagem, (no caso quando esse seu exercício da preferência não põe termo ao encargo excepcional que recai sobre a propriedade do prédio serviente).
    III. A questão relativa aos pressupostos (e requisitos) para o exercício do direito legal de preferência nos termos do disposto no artigo 1.555.° do C. Civ,
    B. Relativamente às três questões que ora se delimitam há jurisprudência abundante no Supremo Tribunal de Justiça, jurisprudência essa que, conforme mais adiante se concretizará, vai no sentido pugnado pelos ora Recorrentes e que é de não ser admissível o direito de preferência, quer quando em questão está à alienação de uma aliquota, quer, quando esse exercício da preferência não põe termo ao encargo excepcional que recai sobre a propriedade do prédio serviente, quer, ainda, quanto à inexistência do direito de preferência quando não se está perante uma servidão que possa ser judicialmente imposta.
    ORA,
    C. Com relevância para o presente recurso encontra-se fixada a seguinte matéria de facto(…)
    D. E, em face desta matéria, de facto dada por provada, designadamente em face dos factos referidos em 4, 5 e 6 - que determinam, designadamente, a manutenção da servidão de passagem mesmo que seja procedente a preferência - é entendimento dos Recorrentes que, desde logo por este fundamento, a pretensão dos Autores, ora Recorridos, deveria sempre de improceder.
    E. Por essa razão de base - e ainda pelo facto de, conforme adiante se notará, no entendimentos dos Recorrentes, na senda, aliás, do que vem sendo o entendimento do STJ de não haver direito de preferência na alienação de aliquotas - entendem os ora Recorrentes que o tribunal de primeira instância, além de ter feito uma correctíssima apreciação da matéria de facto dada por provada, fez, ainda, uma subsunção das normas aos factos que não merecem qualquer reparo, designadamente não merecem os reparos que lhe são feitos no acórdão recorrido, além de ter promovido aquilo que também se espera dos tribunais, que é a "justiça do caso concreto".
    F. A sentença do Tribunal a quo não reconheceu o direito legal de preferência dos Autores, ora Recorrentes, essencialmente porque, atento a letra e sentido da lei, a eventual preferência dos Recorrentes, por um lado não extinguia a servidão que onera o prédio de que são proprietários e, por outro lado, porque a eventual preferência ia indubitavelmente tornar-se num foco, ainda maior, de conflito entre as partes que, conforme resulta de forma clara e inequívoca dos autos, já se encontram desavindas.
    G. 0 acórdão Recorrido, por seu lado, revoga a sentença de primeira instância na parte em que esta declara não existir direito preferência na alienação da aliquota e, ao mesmo tempo, apesar de não se tratar de matéria suscitada pelas partes na apelação e resposta a esta, faz uma análise critica aos autos, especialmente à Reconvenção e ao facto dos ora Recorrentes não se terem insurgido contra a falta de apreciação desta Reconvenção pelo Tribunal a quo.
    H. Não desconhecem os ora Recorrentes que, conforme notado, não tendo essas questões sido suscitadas pelos Apelantes ou Apelados que, quanto a elas, existe, de facto, um excesso de pronuncia do tribunal,
    I. Situação (de excesso de pronuncia) tanto ou mais relevante quando é certo que outras questões, estas claramente mais centrais e pertinentes acabam por não merecer qualquer análise no referido acórdão, como é o caso da não verificação de um dos pressupostos para a preferência fundada no disposto no artigo 1.555.2 do C. civil (na situação em apreço, que a eventual procedência da preferência não extingue o ónus ou encargo ..que incide sobre o prédio propriedade dos preferentes).
    J. Efectivamente, uma das questões jurídicas subjacentes aos autos e que foi posta a nu na sentença revogada, era se a procedência do direito de preferência invocado pelos autos põe ou não termo ao encargo excepcional que recai sobre a propriedade do prédio serviente.
    K. E, conforme apreciado pela Sentença do Tribunal a quo, quer pelo facto de se tratar de uma aliquota, quer, ainda, pelo facto da servidão de passagem estar constituída também a favor de outro imóvel urbano (para além do rústico), é certo que o eventual exercido do direito de preferência não põe termo ao encargo excepcional que recai sobre o prédio serviente.
    L. Por outro lado, em termos puramente jurídicos, vem sendo pacífico em termos jurisprudenciais que o direito de preferência não tem lugar em caso de alienação de parte aliquota de determinado prédio rústico, (vide entre outros, os seguintes Aórdãos: Ac do STJ, Processo 03B671 de 06 de Novembro de 2002 e Ac STJ, Processo 99A731, de 19 Abril de 1999)
    M. A questão da não procedência da preferência em alienação de aliquotas ou partes indivisas de prédios rústicos é, conforme notado, pacífica em termos jurisprudenciais ao nível do Supremo Tribunal de Justiça e tem suporte, entre outros, nos acórdãos do Tribunal de 27 de Fevereiro de 1986, no BMJ, n°354, p.532, e de 19 de Abril de 1999, no BMJ, n°491, p.210.
    N. Como vem referido no sumário do Acórdão do STJ, Processo 71012, de 27 de Fevereiro de 1986, disponível em www.dgsi.pt "Com o artigo 1380 do Código Civil, o legislador teve em vista o emparcelamento do prédio com o fim de criar unidades de cultura de maiores dimensões e mais rentáveis, o que não sucederia se aos autores fosse reconhecido o direito de preferência individualmente, em virtude de não ser possível anexar a sua parte ideal do prédio ao prédio vendido, não sendo, deste modo, possível formar um todo. O direito de preferência não se radica em qualquer dos comproprietários individualmente, mas no conjunto, como unidade, e, portanto, cada um daqueles não tem um direito autónomo, pertencendo ele a todos os comproprietários.
    O. Ou seja, o exercício do direito de preferência tem em si mesmo um fim, que a lei protege e que é ou o emparcelamento dos imóveis rústicos ou, como seria a situação subjacente aos presentes autos, o por fim a um encargo excepcional que recai sobre um determinado imóvel.
    P. E, quanto a esta questão, é também pacífico em termos jurisprudenciais que a preferência do proprietário do prédio onerado com servidão legal de passagem para com o prédio dominante só é admissível e só se justifica na estrita medida em que, pelo seu exercício, se põe termo ao encargo sobre o prédio onerado.

    Q. Como refere o sumário do acórdão do STJ, Processo 073021, de 30 de Janeiro de 1986, disponível em www.dgsi.pt O direito de preferência atribuído ao proprietário do prédio onerado com servidão legal de passagem e relativo ao prédio dominante, em caso de venda, dação em pagamento ou aforamento deste (artigo 1555, n. 1, do Código Civil), só se justifica na medida em que pelo seu exercício se põe termo ao encargo excepcional que recai sobre a propriedade do prédio serviente. Nestes termos, não e de reconhecer o direito de preferência ao comproprietário de prédio serviente indiviso, se no exercício desse direito, não for acompanhado pelos restantes consortes uma vez que tal encargo subsistira
    R. Por outro lado, é, ainda, entendimentos dos Recorrentes, em termos jurídicos, que a previsão do disposto no artigo 1.555.e do C. Civil carece de ser interpretado á luz dos requisitos e pressupostos estabelecidos pelo artigo 1.550.º do C. Civ.
    S. Ou seja, se não estamos perante uma situação de prédio encravado e se não estamos perante uma situação em que a servidão de passagem pudesse ser coercivamente imposta, então faltam os pressupostos base que presidem ao exercício do direito de preferência, tal qual está previsto no artigo 1.555 do Código Civil.
    T. Na situação em apreço, a constituição da servidão adveio, certamente, de uma negociação entre as partes, em que o vendedor do prédio dominante e dominado - que conforme resulta do ponto 5 da matéria de facto provada foi o mesmo - constituiu, na escritura de venda do imóvel que é actualmente propriedade dos autores recorridos, uma servidão de passagem a favor de dois outros seus imóveis, o rústico, em apreço nos presentes autos, e o urbano.
    U. Ou seja, a servidão de passagem foi, com grande grau de certeza (prática), uma factor que determinou o estabelecimento do preço entre as partes, pois de outro modo, ou o prédio actualmente onerado não teria sido vendido, ou, pelo menos, não teria sido vendido pelo preço que o foi.
    V. E, sob a epígrafe "direito de preferência na alienação de prédio encravado", o art. 1.555s estabelece que "o proprietário de prédio onerado com a servidão legal de passagem, qualquer que tenha sido o título constitutivo, tem direito de preferência, no caso de venda (•••) do prédio dominante".
    W. E, apesar do referido preceito referir, expressamente, " qualquer que tenha sido o seu título", é entendimento dos Recorrentes que isso deve ser interpretado apenas no sentido "das (servidões) que possam ser judicialmente impostas", excluindo-se, assim, a preferência das servidões contratuais, como é o caso da que subjaz ao pedido dos Autores.
    X. De facto, aos requisitos de constituição de servidão legal de passagem refere-se o art. 1550º, atribuindo ao proprietário de prédio encravado (e não há quaisquer dúvidas que, nos termos da lei, é prédio encravado o que não tenha comunicação com a via pública), que tenha comunicação insuficiente ou que o seu estabelecimento seja excessivamente incómodo ou dispendioso (encrave absoluto ou relativo) - a faculdade de exigir a constituição da servidão sobre prédio vizinho.
    Y. E, claramente se vê, que não é essa nenhuma das situações em apreço nos presentes autos, até porque a lei faz depender o direito legal de preferência - que aqui importa pôr em evidência - de dois pressupostos essenciais:
    I. Que o prédio do proprietário preferente esteja onerado com servidão legal de passagem, ou seja, ao regime de servidão imposta por lei, ao abrigo do regime do art. 1550º, ou seja, devido à situação de encrave do prédio dominante que legitima ao seu proprietário a faculdade de exigir a constituição da servidão de passagem!
    II. E, Que a servidão de passagem esteja constituída, isto é, não bastará a situação de encrave e a possibilidade de exercício do direito de exigir a passagem; há-de haver já um título que legitima a passagem sobre o prédio do preferente para acesso ao prédio alienado.
    Z. E se na situação em apreço não haverá dúvidas quanto ao segundo dos pressupostos - que a servidão está constituída nos termos do artigo 1.574.º, 1 do C. Civ. - já assim não será quanto ao primeiro dos pressupostos, porquanto, relativamente a esse falta o requisito base, que é a previsão do artigo 1.550.s do CC, ou seja, falta da situação de encrave.
    AA. E, resulta do exposto, que o disposto no artigo 1.555.º, especialmente a expressão "qualquer que tenha sido o título constitutivo”, não pode deixar de ser apreciado à luz de todo o capítulo III em que se insere e, especificamente, da Secção I, o que implica, desde logo, que os pressupostos do referido preceito estejam, sistematicamente, no primeiro dos artigos desta secção, que no caso é o disposto no artigo 1.550.º.
    BB. No caso em concreto, por exemplo, o proprietário do prédio dos ora Recorrentes, estaria privado do direito potestativo de constituir a servidão se, por exemplo, o exercício daquela se tornasse impossível ou, por qualquer razão, v.g, o não uso (art. 1569º-l-b)), ocorresse outra causa de extinção.
    CC. E sendo o escopo da preferência legal "pôr cobro a situações em que se possa recorrer a meios de soberania para constituir servidões ou em que a ameaça a esse recurso conduza, ou possa conduzir, a uma «contratação» não inteiramente livre" (MENEZES CORDEIRO, "Servidões legais e direito de preferência, CJXVII-I-77), facilmente se depreende que, perante o que se deixou dito, essa ratio legis não está presente
    DD. Como sintetiza, a este respeito o acórdão do STJ, processo 07A767 de 08 de Maio de 2007, disponível em www.dgsi.pt, no sentido da jurisprudência largamente dominante, que "o conceito de servidão legal, para os fins previstos no art. 1555º, abrange as servidões constituídas por qualquer título, mas que, se não fosse a existência desse título, podiam ser judicialmente impostas, e não apenas as que tenham por título a sentença, (cfr., por todos, o ac. deste Supremo de 24/2/99, in BMJ 484s-389 (98A1016-ITU), o que, conforme notado, não é, de facto, a situação da servidão que onera o prédio dos Autores, ora Recorridos que, não fora o título constitutivo, não poderia ser judicialmente imposta,
    EE. Em face do que ficou exposto, é, pois, modesto entendimento dos Recorrentes que o acórdão recorrido merece os reparos que, com o necessário e devido respeito lhe são feitos no presente recurso e, consequentemente, deverá ser revogado, com as legais consequências., até pela incorrecta interpretação que faz, entre outros, dos artigos 1.380.º, 1.550.º e 1.555.º do Código Civil, para além de ir contra a Jurisprudência que vem sendo seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente contra a citada.

    Os recorridos pugnam pela manutenção do decidido no acórdão recorrido.

    3. As instâncias fizeram assentar a decisão do pleito na seguinte matéria de facto:
    1. Os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio urbano, sito na Estrada da ...........a, composto de casa com rés-do-chão e 1.º andar, com a superfície coberta de 245 m2 e logradouro com 655 m2, a confrontar do norte com estrada Nacional, sul e poente com DD, e nascente com caminho público, inscrito na matriz sob o artigo 1102, da freguesia e concelho de Penamacor, descrito na Conservatória do Registo Predial de Penamacor sob o n.º 000000, com inscrição de aquisição a favor dos autores - através da inscrição G-1, de 15/04/1999.
    2. Aquisição essa por doação feita por AA e BB, pais do autor.
    3. AA que, por sua vez, havia adquirido esse prédio por compra a LL e mulher MM e NN e mulher OO.
    4. Na escritura pública que titulou a compra e venda referida na alínea anterior, lavrada no cartório Notarial de Penamacor a 19-11-1958, ficou a constar o seguinte: «Que os outorgantes NN, esposa e comprador, estabeleceram o seguinte: «Que a entrada tanto para a casa e logradouro agora vendidos, como para uma propriedade dos outorgantes vendedores NNe esposa, que não é objecto desta escritura, dentro da qual fica situado o lagar, continua como já era, a ser comum, ficando ambos com o direito à servidão de pé, de animais e de carros, conforme o estipulado na escritura lavrada a folhas quarenta e três e seguintes do livro de notas para actos e contratos entre vivos número cinquenta e cinco, deste cartório. Que, o portão da entrada pela Estrada Nacional número duzentos trinta e três que fica comum para a casa que serve a lagar e a propriedade referida, terá duas chaves, ficando uma como pertença do outorgante vendedor NNe a outra como pertença do outorgante comprador.

    Que, devido à irregular topografia do terreno da já citada propriedade onde fica situada a casa que serve a lagar os outorgantes vendedores NN e esposa ficam com o direito de ter dois portões de acesso à servidão que será pelo logradouro dó lagar e desde a entrada da estrada aos referidos portões».
    5. O outro dos prédios referidos nessa escritura pública é o prédio rústico sito em "rabaça", freguesia e concelho de Penamacor, e encontra-se inscrito na matriz sob o artigo 42, secção AH, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Penamacor sob o número 0000, da freguesia de Penamacor.
    6. O prédio dos autores continua onerado em favor do prédio rústico identificado na alínea anterior, nos termos descritos na aludida escritura pública (alínea 4.), mantendo-se, no essencial, as razões topográficas que determinaram a constituição da passagem aí referida, pois que qualquer outra se revela excessivamente incómoda.
    7. Por escritura pública lavrada a 06-12-2002 no Cartório Notarial da Lousã, a primeira, os segundos e terceiros réus declararam vender aos quartos réus, que declararam comprar, pelo preço de € 500,00 (quinhentos euros), metade indivisa do prédio rústico identificado nas duas alíneas anteriores, da qual eram comproprietários.
    8. Os quartos réus são da família da primeira, segundos e terceiros réus.
    9. Em 29-04-2003, os autores foram citados para a providência cautelar inominada intentada pelos quartos réus e outra, que corre termos neste tribunal sob o n.º 70/03.0TBPNC, altura em que tomaram conhecimento da compra e venda referida na alínea 7., em virtude da junção, pelos aí requerentes, de certidão da respectiva escritura.
    10. Não foi comunicada aos autores qualquer intenção de venda da metade indivisa do prédio rústico em causa.
    11. A providência cautelar acima referida visava o estabelecimento da passagem referida nas alíneas 4. e 6.
    12. Na sequência desse procedimento cautelar, os aí requerentes intentaram a correspondente acção contra os aqueles autores, pedindo o reconhecimento da existência de uma servidão de passagem a favor do prédio identificado na alínea 5., que onera o prédio identificado em 1.

    13. Em 27-10-2003, os autores depositaram à ordem deste processo a quantia de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros).
    14. Foram efectuadas partilhas entre a primeira, os segundos e os terceiros réus e a mãe da quarta ré e, na sequência e depois destas, veio a ser celebrada a escritura referida em 7.
    15. Foram partilhadas loiças antigas, relógios e peças antigas.
    16. Bens esses que tinham valor sentimental e estimativo para o réus e a mãe da quarta ré.
    17. Após terem adquirido a metade indivisa do prédio em causa os quartos réus refizeram diversos dos seus muros de pedra.
    18. E podaram as suas árvores.
    19. Com o que despenderam a quantia de € 4.000 (quatro mil euros).

    4. Importa começar por referir liminarmente que algumas questões suscitadas pelos recorrentes se mostram manifestamente improcedentes, perante, por um lado, a matéria de facto definitivamente fixada e, por outro , o teor da sentença proferida em 1ª instância, já que, não tendo sido impugnados no recurso de apelação determinados segmentos de tal decisão – nomeadamente na parte que respeita ao reconhecimento da existência de uma servidão legal de passagem, onerando o prédio dos AA., e à circunstância de este estar total ou parcialmente encravado, se não fosse a existência da aludida servidão - o caso julgado material que sobre tal ponto se formou obsta naturalmente a que tais questões possam ser rediscutidas na presente revista, por força do disposto no art. 684º, nº4, do CPC. E, nesta perspectiva – aliás, já devidamente realçada pela Relação, no acórdão recorrido, ao delimitar o objecto da apelação – não é obviamente possível vir novamente pretender controverter, quer a existência da referida servidão legal, quer a situação de encravamento do prédio dominante, por expressamente reconhecidas na sentença proferida - e não impugnada quanto a tais parcelas ou segmentos decisório.
    Extravasa, por outro lado, o quadro factual definido para o litígio a existência de uma servidão de passagem constituída também a favor de outro imóvel urbano ( cfr. conclusão K), pelo que tal alegação não pode ser naturalmente considerada na presente revista, que tem apenas por objecto o enquadramento jurídico da matéria factual definitivamente apurada e fixada pelas instâncias.
    Finalmente, consideram os recorrentes que o acórdão recorrido teria incorrido em excesso de pronúncia, ao apreciar, de forma lateral e sumária, a matéria do pedido reconvencional, cuja apreciação tinha ficado prejudicada pela solução dada ao litígio em 1ª instância, ao não reconhecer aos AA. o direito de preferência exercido em juízo. Também quanto a este ponto não têm razão: é que, por um lado, na lógica do acórdão recorrido, tais considerações laterais e subsidiárias sobre o fundamento e consistência do pedido reconvencional, tecidas depois de se ter considerado que a respectiva matéria não integrava sequer, em rigor, o objecto da apelação, por os recorridos não terem suscitado subsidiariamente essa questão na respectiva contra alegação, constituiria, quando muito, um irrelevante «obter dictum», insusceptível de afectar negativamente a validade e regularidade do acórdão proferido.
    Acresce que temos como duvidoso que, neste concreto circunstancialismo, a Relação não tivesse de se pronunciar sobre a matéria do pedido reconvencional, cuja apreciação ficara óbvia e efectivamente prejudicada pela solução dada ao litígio na 1ª instância ( apesar de a sentença o não referenciar expressamente), por força do estatuído no nº 2 do art. 715º do CPC ( sobre a diferenciação entre esta hipótese normativa e o caso previsto no art.684º-A veja-se o recente ac. de 9/2/11, proferido pelo STJ no P. 202/08.1TBACN-A.C1.S1).

    5.Feita esta delimitação inicial, verifica-se que a única questão que realmente constitui objecto da presente revista é a que se traduz em – por interpretação da norma constante do nº1 do art. 1555º do CC – apurar quais são exactamente os pressupostos do direito legal de preferência ali outorgado ao proprietário do prédio serviente, onerado com servidão legal de passagem : constituirá venda do prédio dominante, para os efeitos desse artigo, o negócio jurídico através do qual algum dos respectivos comproprietários vende a terceiro, não comproprietário, a sua quota no imóvel comum ( no caso, a metade indivisa do prédio em causa)? Ou seja, pressupõe o referido direito legal de preferência a alienação onerosa de todos os direitos de compropriedade que incidem sobre o imóvel comum ou basta-se com a alienação a terceiro de um desses direitos de que são titulares cada um dos vários comproprietários?
    Note-se que esta questão interpretativa não pode resolver-se adequadamente apenas no plano semântico ou linguístico: na verdade, a expressão verbal «venda do prédio» tanto pode ser interpretada como só comportando a transmissão de todos os direitos de propriedade que incidem, de forma concorrente, sobre o imóvel comum, ou como envolvendo também a transmissão ou alienação onerosa do direito de compropriedade, - já que, em ambos os casos o que , afinal, é alienado é um direito de propriedade sobre determinado prédio.
    Do mesmo modo – e como dá nota o acórdão recorrido – não há, no plano dogmático, qualquer obstáculo relevante a considerar que – incidindo todos os direitos dos comproprietários, de forma directa e concorrente, sobre o imóvel a todos pertencente, mostrando-se todos eles simetricamente onerados, com vista a permitir-se o exercício igualitário dos poderes de gozo e fruição sobre o bem comum - a alienação de um direito de compropriedade traduz inelutavelmente a transmissão a terceiro do próprio direito de propriedade sobre o imóvel ( e não apenas sobre uma quota ou fracção ideal, dele distinta, como ocorre, pelo contrário, nas situações de contitularidade ou comunhão num património autónomo não partilhado).
    Ou seja: a dúvida interpretativa atrás enunciada terá que ser resolvida segundo critérios funcionais ou teleológicos, decorrentes da adequada ponderação dos interesses e valores jurídicos determinantes da concessão do direito legal de preferência : serão tais interesses alcançados quando apenas é alienado a terceiro um direito de compropriedade sobre o imóvel comum, nele sucedendo, por «subrogação», o preferente ; ou pelo contrário, os valores e interesses jurídicos determinantes desse direito real de aquisição só são realizados quando, tendo sido alienada, na totalidade, a propriedade do imóvel, o preferente possa ingressar nessa propriedade plena?
    Por outro lado – e ao contrário do que parece estar subjacente à alegação do recorrente – esta questão não pode resolver-se, de modo global e unitário, relativamente a todos os tipos normativos que conferem a determinado sujeito jurídico uma preferência legal, verificados os específicos pressupostos, definidos na «fattispecie» normativa – bem podendo suceder que, para o efeito de certa e determinada preferência legal, deva considerar-se como alienação do prédio a venda de um direito de compropriedade – enquanto para outra e diversa preferência apenas deva valer, face aos interesses e valores jurídicos tutelados, a transmissão onerosa da propriedade plena do prédio .
    Implica isto que, ao citar e invocar jurisprudência e doutrina, em apoio de um ou outro dos entendimentos sobre o âmbito do direito legal de preferência, não possa perder-se de vista a exacta situação normativa em que as posições invocadas se enquadram, não podendo, por exemplo, garantir-se à partida que deva ser dada uma resposta unitária para a situação dos autos, enquadrada no art. 1555º, para os casos em que a preferência legal se situa no domínio do emparcelamento rural ( art. 1380º do CC) ou para as situações que se reportam antes ao arrendamento rural ( vejam-se as dúvidas suscitadas acerca da interpretação da norma que constava do art. 29º da Lei 76/77).

    Foi esta última, aliás, a situação mais profundamente debatida e que maiores dúvidas suscitou na jurisprudência, durante o período temporal de vigência da norma constante do art. 29º da Lei nº 76/77 – tendo o Assento nº 5/93, de 9/2, dirimido este conflito jurisprudencial no sentido propugnado por A. Varela, em anotação a precedente aresto, proferido em 10/2/83 (RLJ, ano 119º, pags. 382 e segs.) – e prevalecendo o entendimento de que o direito de preferência concedido ao arrendatário rural pelo art. 29º da Lei nº76/77, de 29 de Setembro, abrange a venda de quota do prédio.
    Para tal solução normativa pesou decisivamente, por um lado, a intensidade da preferência outorgada ao arrendatário rural, colocando-o no primeiro lugar dos preferentes legais, inclusivamente antes da preferência legal identicamente outorgada pelo CC aos restantes comproprietários do imóvel arrendado; e, por outro, a ponderação das razões político-ideológicas que estiveram na base da outorga de tal preferência legal, perspectivada como via para a consagração dos princípios básicos da «Reforma Agrária», reforçando drasticamente a posição e o estatuto jurídico do efectivo e directo cultivador da terra.
    Como refere Agostinho Cardoso Guedes ( O Exercício do Direito de Preferência, 2006, pags. 196/197) pronunciando-se já sobre o regime legal ulteriormente editado em sede de arrendamento rural:
    Ao contrário do que sucede com outros direitos de prelação, a lei fornece aqui indicações fortes no sentido de a preferência ser reconhecida não apenas no caso de venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado mas ainda quando ocorra uma venda ou dação em cumprimento de uma quota de compropriedade detida sobre o mesmo prédio. Só neste contexto cobra sentido o nº2 do art. 28º do DL 385/88, norma que faz o direito de preferência do arrendatário ceder perante o exercício desse direito por co-herdeiro ou comproprietário – uma vez que estes direitos são exercidos na venda de quotas da compropriedade e de quinhões hereditários, só faz sentido admitir que o legislador pressupõe que o direito de prelação do arrendatário rural existe também na venda de fracções ideais da propriedade do terreno e, até, de quinhões hereditários onde o terreno arrendado se integre.
    Daí que se conclua pela advertência de que a sujeição da venda ou dação em cumprimento de fracções ideais da propriedade se funda em razões próprias do arrendamento rural, o que impede que este caso possa ser usado como argumento para sustentar igual possibilidade noutros contextos.

    Na verdade, e como é evidente, as razões que estão na base da amplitude e intensidade da preferência outorgada ao arrendatário rural não podem automaticamente ser transpostas para as restantes previsões legais de direitos de preferência na alienação de imóveis – desde logo, para o caso da que, em sede de emparcelamento, decorre da previsão normativa que consta do art. 1380º do CC, a que se reporta alguma jurisprudência citada pelos recorrentes: os objectivos prosseguidos por tal regime legal já não têm a mesma coloração político ideológica, visando antes – e tão somente – alcançar, no plano técnico e económico, uma exploração rentável e viável dos prédios rústicos, agregando vários imóveis contíguos, de área inferior à unidade de cultura vigente , de modo a propiciar uma exploração economicamente rentável da unidade resultante do emparcelamento alcançado através do exercício dessa preferência legal .
    Como afirmam Pires de Lima e A. Varela, em anotação ao referido preceito legal ( CC Anotado, vol. III, 2ªEdição , pag. 272), a propósito da questão de saber se, em caso de alienação de uma parte alíquota de determinado prédio rústico, deverá assistir aos proprietários confinantes direito de preferência:

    Importa considerar, relativamente a este problema, duas hipóteses: a de um prédio se encontrar em regime de compropriedade e um dos consortes transmitir a sua quota a um estranho que não seja comproprietário confinante; e a de , numa situação de propriedade plena, o respectivo titular alienar uma quota do seu direito, também a favor de um estranho que não seja comproprietário confinante.
    Em nenhuma destas hipóteses deve ser reconhecido o direito de preferência aos proprietários confinantes com o prédio a que respeita a quota alienada. Em primeiro lugar, a art. 1380º, que é uma norma de natureza excepcional, apenas atribui o direito de opção na alienação de todo o prédio, e não na alienação de partes alíquotas. Por outro lado, a preferência, na medida em que não proporcionaria a aquisição da propriedade plena do terreno, mas apenas de uma quota ideal, não permitiria alcançar o objectivo que está na base do art. 1380º, que é fomentar a exploração unitária de áreas que atinjam ou se aproximem da unidade de cultura considerada economicamente aconselhável. Acresce que a preferência iria fazer ingressar um estranho na compropriedade, com todos os inconvenientes que normalmente daí decorrem. Encarando a lei com desfavor as situações de comunhão ( arts 1409º e 1412) e sabendo-se que , mesmo quando estabelecidas voluntariamente, constituem uma fonte permanente de conflitos, estranho seria que, através da regra do art. 1380º, se permitisse a aquisição da qualidade de comproprietário sem o assentimento e até, em regra, contra a vontade dos demais consortes.

    Daí que se conclua que – sem prejuízo do sancionamento de actuações com escopo fraudatóriosó os consortes do alienante devam ser admitidos a preferir.

    Neste sentido se tem, aliás, orientado a jurisprudência do STJ – vide acs. de 19/4/99, proferido no P. 99A731 e de 6/11/02, no P. 03B671, em que claramente se afirma que o art. 1380º do CC deve ser interpretado no sentido de que o direito de preferência aí previsto não tem lugar em caso de alienação de parte alíquota de determinado prédio.


    7.Ora, considera-se que a situação de preferência legal controvertida no presente `processo apresenta muito maior proximidade e analogia com o caso, atrás referido, em que a lei outorga um direito de preferência ao proprietário de prédio confinante, visando realizar os fins típicos do emparcelamento rústico – pelo que deverá ser idêntica a interpretação a fazer da expressão «venda do prédio dominante», utilizada pelo art. 1555º do CC.

    Na verdade, não se trata aqui de privilegiar e reforçar a todo o custo, por razões político-ideológicas, a posição de um dos proprietários em relação ao outro ( como vimos que sucedia no âmbito do arrendamento rural), mas antes de potenciar um factor de racionalidade na exploração dos prédios, evitando, na medida do possível, a subsistência de relevantes ónus na fruição do prédio serviente, decorrentes da imposição forçada da servidão de passagem, destinada a possibilitar uma utilização minimamente adequada do prédio dominante.

    Ora, tais objectivos legais resultariam claramente frustrados pela outorga ao titular do prédio serviente de um direito legal de preferência que incidisse sobre a alienação de mera parte alíquota do prédio dominante, resultante, nomeadamente de, estando este em situação de compropriedade, um dos comproprietários ter alienado o seu direito sobre o bem comum a terceiro (porque desconsiderou a preferência prioritária dos demais comproprietários, que não reagiram tempestivamente a tal facto, ou porque estes, devidamente notificados, não quiseram exercitar o direito que lhes resulta do disposto no art. 1409º do CC). Na verdade:

    - por um lado, é evidente que, neste circunstancialismo, sempre teria de subsistir indemne a servidão de passagem, como condição «sine qua non» para os restantes comproprietários do prédio dominante exercitarem os direitos de uso, gozo e fruição da coisa comum que lhes concede o art. 1406º do CC – ou seja, o exercício da preferência no caso de mera alienação do direito do comproprietário do prédio indiviso nunca poderia conduzir ao fim legal subjacente a este instituto , ditando o termo do encargo ou ónus que excepcionalmente recai sobre a propriedade do prédio serviente ( cfr. Ac. do STJ de 30/1/86, proferido no P. 073021);

    - em segundo lugar, o exercício do direito de preferência, relativamente à mera alienação de quota alíquota do prédio dominante, produziria um efeito que, em termos de plausibilidade e normal previsibilidade, se configura como claramente nocivo quanto à utilização e exploração do próprio prédio dominante, ao fazer ingressar, contra a vontade dos seus titulares, por via forçada e litigiosa, um novo comproprietário, que passaria naturalmente a estar legitimado para o exercício dos direitos de uso e fruição que a lei civil confere a qualquer comproprietário, fomentando o surgimento de situações litigiosas quanto ao gozo e exploração do prédio comum - e culminando numa eventual divisão deste, sem que, todavia, à partida, se possa assegurar que, na sequência do juízo divisório, a totalidade do prédio sempre caberia ao titular do prédio serviente que tivesse sido admitido a exercer a preferência…

    Verifica-se. deste modo, que uma interpretação ampliativa do conceito legal «venda do prédio dominante», de modo a abarcar a mera alienação do direito de um dos comproprietários, para além de não permitir alcançar o escopo essencial do direito de preferência ínsito na norma do art. 1550º , potencia ainda, como relevante efeito colateral negativo, uma acrescida – e presumida - litigiosidade no uso e exploração do prédio dominante, decorrente do ingresso forçado de um terceiro na respectiva compropriedade – o que permite afirmar e concluir que os fins subjacentes à referida norma não seriam aqui alcançados ( como o não são no caso paralelo, regido pelo art. 1380º) através da outorga do referido direito real de aquisição.

    Para terminar, importa ainda realçar dois aspectos relevantes:

    - o primeiro deles traduz-se em fazer notar que este último efeito prejudicial, decorrente do ingresso forçado de um novo comproprietário na fruição do prédio dominante, está muito atenuado no caso, atrás analisado, da preferência legal do arrendatário rural ( como se viu, abarcando aqui, segundo entendimento dominante, a própria alienação da parte alíquota da propriedade pelo senhorio): é que, neste caso, o arrendatário, titular da preferência, não é um estranho relativamente ao prédio sobre que vai exercer o seu direito real de aquisição, uma vez que, na qualidade de titular de um direito pessoal de gozo, emergente do arrendamento, já anteriormente vinha fruindo e explorando em exclusividade o prédio arrendado ; deste modo, o tornar-se comproprietário deste, por via do exercício da referência, apenas reforça a situação jurídica que já detinha sobre o prédio arrendado, no âmbito da relação jurídica de arrendamento, sem que naturalmente os restantes comproprietários se possam, enquanto subsistir tal direito pessoal de gozo, arrogar qualquer direito concorrente de uso e fruição do imóvel arrendado;

    - a segunda nota relevante para um correcto entendimento do sistema legal implica realçar o regime constante do art. 1551º do CC, outorgando ao proprietário do prédio serviente – em situações de muito particular onerosidade na constituição da servidão legal de passagem ( contendendo eventualmente, de forma relevante, com o seu direito à privacidade, por a servidão incidir sobre quintas muradas, quintais, jardins ou terreiros adjacentes a prédios urbanos) – um verdadeiro direito potestativo na aquisição forçada do próprio prédio dominante, naturalmente vigente fora do quadro de alienação da propriedade plena deste imóvel, afastando com o exercício deste direito a própria constituição da servidão legal.


    8. Nestes termos e pelos fundamentos apontados, concede-se provimento à revista, revogando o acórdão recorrido, na parte respeitante ao reconhecimento e exercício do direito de preferência invocado pelos AA e à consequente substituição dos preferentes na venda realizada à sua revelia, pelo que se absolvem os RR. destes pedidos, tal como se mostrava decidido na sentença proferida na 1ª instância.
    Custas pelos recorrentes.

    Lisboa, 30 de Junho de 2011

    Lopes do Rego (Relator)
    Orlando Afonso
    Távora Victor