Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
424/21.0PLSNT.S1.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REJEIÇÃO DE RECURSO
CONCURSO DE INFRAÇÕES
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
PENA DE PRISÃO
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Da conjugação do disposto nos artigos 400.º, n.º 1, als. e) e f), e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, resulta que só é admissível recurso de acórdãos das relações, proferidos em recurso, que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou penas superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos de prisão em caso de não confirmação da decisão da 1.ª instância.

II. Estando, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, encontra-se o Supremo Tribunal de Justiça também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que lhe digam respeito, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP ou respetivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4, do CPP).

III. Porque as nulidades e vícios do acórdão da Relação que vêm invocados dizem respeito à decisão na parte que se refere aos crimes em concurso, a que foram aplicadas penas singulares não superiores a 5 anos de prisão, e tendo o acórdão recorrido confirmado, sem qualquer alteração, a decisão da 1.ª instância que aplicou essas penas, o recurso para este Supremo Tribunal de Justiça não é admissível nesta parte.

IV. Na procedência desta questão prévia, é, pois, o recurso rejeitado quanto a essas questões, limitando-se a sua apreciação à questão da determinação da pena única fixada em 9 anos de prisão, pela prática de 34 crimes de abuso sexual de criança e de menor dependente.

V. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, formada a partir de uma moldura definida, no seu mínimo, pela mais elevada das penas aplicadas aos crimes em concurso e, no seu máximo, pela soma das penas aplicadas a esses crimes, sem ultrapassar 25 anos de prisão (n.º 2 do artigo 77.º), para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º), são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (critério especial do n.º 1 do artigo 77.º, in fine), aqui se incluindo, designadamente, as condições económicas e sociais, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita.

VI. Os factos, que agora preenchem o ilícito global, com repetida ofensa do mesmo bem jurídico, por diversas formas, foram praticados, todos eles, em 2017 e 2018, num período de cerca de 2 anos, tendo a criança ofendida entre 13 e 15 anos de idade, sempre no espaço de habitação comum em que o arguido e a mãe da vítima viviam em condições análogas às dos cônjuges, aproveitando-se o arguido da circunstância de viverem na mesma casa, de ter acesso ao quarto de dormir da criança, da privacidade e ocultação que estas circunstâncias proporcionavam e da ascendência que mantinha relativamente à criança, filha da sua companheira, também ao seu cuidado, como se sua filha fosse.

VII. Embora não se devam levar em conta na determinação da medida da pena (artigo 71.º do CP) as circunstâncias típicas de qualificação dos crimes decorrentes da gravidade do ato praticado e das relações de coabitação e dependência (artigos 171.º, n.º 2, 172.º e 177.º do CP), por a isso se opor a proibição da dupla valoração, evidencia-se uma atividade criminosa de ilicitude muito elevada revelada pela intensidade, frequência, variedade e repetição dos atos, pela determinação e persistência do dolo, pelas circunstâncias concretas de tempo, lugar e modo por que os atos foram praticados e pela forma reiterada e intensa de violação dos deveres de proteção da criança e da relação de confiança familiar em que esta se movia.

VIII. Não obstante não ter sofrido condenações anteriores, a forma e demais circunstâncias repetidas da prática dos crimes, relativamente aos quais são intensas as exigências de prevenção geral evidenciadas pela sua frequência, revelam uma personalidade com manifesta falta de preparação para manter uma conduta lícita, mostrando-se muito elevadas as exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização, a satisfazer mediante a aplicação da pena. 

IX. Nesta conformidade, tendo em conta a moldura da pena aplicável aos crimes em  concurso (5 a 25 anos de prisão), na ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido revelada na sua prática (artigo 77.º, n.º 1, do CP), não se encontra fundamento suscetível de pôr em crise a aplicação da pena única de 9 anos de prisão, por violação dos critérios, que se mostram respeitados, de adequação e proporcionalidade que devem presidir à determinação das penas, em vista da realização das finalidades de proteção dos bens jurídicos ofendidos com a prática dos crimes e de integração do agente na sociedade.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. Por acórdão de 6 de janeiro de 2023, proferido nos presentes autos, em que é arguido AA, o tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ... - Juiz 3, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, julgando a acusação parcialmente procedente, condenou o arguido nos seguintes termos:

«(…)

pela prática, na forma consumada e em concurso real:

i. de 1 (um) crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelos art.ºs 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

ii. de 2 (dois) crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelos art.ºs 171º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão por cada um desses 2 (dois) crimes;

iii. de 31 (trinta e um) crimes de abuso sexual de menor dependente ou em situação particularmente vulnerável, p. e p. pelos art.ºs 172.º, n.º 1, al. b), por referência ao art.º 171.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um desses 31 (trinta e um) crimes;

iv. Em cúmulo jurídico das penas parcelares descritas em i., ii. e iii., nos termos do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, (…) na pena única de 9 (nove) anos de prisão;

v. na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 10 (dez) anos;

vi. na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 10 (dez) anos».

2. Discordando, interpôs o arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 25.05.2023, se declarou funcionalmente incompetente para conhecer do recurso, por compreender impugnação da matéria de facto, ordenando-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, por ser o competente.

3. Por acórdão de 13 de julho de 2023 o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, confirmando na íntegra o acórdão recorrido.

4. Do acórdão da Relação vem agora interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pelo arguido, que apresenta motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1 – O presente recurso é admissível, nos termos do disposto no artigo 432º, nº 1, al, b) e 400º, nº 1 al. f) do CPP.

2 – O arguido não se conforma com a negação de provimento ao recurso interposto.

3 – O arguido não poderá aceitar que o tribunal de recurso a quo, tenha a concluído face ao alegado pelo recorrente de falta de exame crítico das provas, tenha rematado, sem mais, que “…está exposto de forma clara e perfeitamente inteligível…”, sem qualquer outro argumento de fundo.

4 – O recorrente continua a pugnar no que respeita à impugnação do arguido quanto à data do início da atividade criminalmente relevante, e à periodicidade, que a factualidade constante dos pontos nºs 4, 7 , 8, 9, 12, e 22, não estão deficientemente julgados, e por isso o tribunal de recurso, decidiu deficientemente sobre a impugnação de facto, fazendo mau uso dos seus poderes.

5 - Face aos argumentos apresentados em sede de recurso pelo arguido, o tribunal de recurso não pode confirmar, sem mais, que o início dos abusos sexuais do recorrente se tenha iniciado antes de 1 de Maio de 2017.

6 - Tal facto dado como provado no ponto 4 da matéria de facto, não tem qualquer suporte, quer no depoimento da ofendida para memória futura, quer nos restantes depoimentos, nem o Tribunal de recurso o demonstra.

7 - O ora acórdão recorrido, não faz qualquer análise crítica ao facto de a menor tenha referido os inícios das atividades abusivas em julho de 2017.

8 - – A contradição entre aquela data – julho de 2017 e o que foi dado como provado, jamais foi objecto de sindicância, nem em sede de recurso.

9 – Ao negar provimento ao recurso, quanto à nulidade, do acórdão, erro de julgamento, e medida da pena, com a aderência pura e simples ao acórdão recorrido, e não se pronunciando quanto às questões que o recorrente submeteu a apreciação de recurso, este violou o artigo 379, n.º 1, al. c), aplicável por força do artigo 425.º, n.º 4 , do CPP.

10 - Pelo que se reafirma que a conclusão a que chega o Tribunal Coletivo, de que o início da actividade abusadora se iniciou em data não concretamente apurada, mas anterior a Maio de 2017, é logicamente especulativa, uma vez que não resultou, sem qualquer dúvida razoável, que tal tivesse ocorrido.

11 - Os factos dados como provados nos pontos 4, 7 ,8, 9, 12 e 22 da matéria de facto e nos exatos termos apontados, nesta sede têm que ser dados como não provados, impondo-se decisão diversa quanto a esta matéria, resultante dos depoimentos prestados pela ofendida em sede de memória futura e do depoimento do arguido.

12 – Não se entende a razão pela qual, tendo em conta o depoimento confessório do arguido, se consideram 31 crimes do ilícito penal previsto e punido 172º, nº 1 e 2 do C.P. (tendo como referência o período que vai de 15 de Maio de 2017 a 21 de Agosto de 2018, e a periodicidade mensal), e não 10, 15, 20 crimes de idêntica natureza?

13 – O tribunal de recurso, inovando, afirma que os abusos sexuais foram mais de 100 vezes!!!! Sem mais.

14 - Face a falta de fundamentação do tribunal de recurso continua o arguido, a entender que esta é deficiente, o que constitui falta/insuficiência do exame crítico das provas, em violação do disposto no art.º 374.º, n.º 2 do CPP “exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”

15 - A deficiente justificação, gera nulidade do acórdão, nos termos do art.º 379.º, n.º 1 alínea a) do CPP, bem como nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), aplicável por força do artigo 425.º, n.º 4, do CPP, o que se invoca.

16 - A prova impugnada, sem que, contudo, resulte uma análise conjugada e crítica da mesma, dando-se total credibilidade ao depoimento genérico e hesitante da ofendida, sem a confrontar com o teor do auto de denúncia que referiu a data do início em junho de 2017, para comprovação do exato início dos abusos, é manifestamente acrítica e insuficiente nos termos do disposto no artigo 410.º, nº 2 al. a) e c) do CPP.

17 – Deverá anular-se a douto acórdão, que deverá ser substituída por um outro que, se necessário com recurso a repetição de prova, colmate as lacunas apontadas, decidindo em conformidade.

18 – Ao dar como provado os abusos anteriores, a Maio de 2017, e a periodicidade quinzenal, como resulta do não provimento do recurso, estamos perante erro notório da prova – cfr. artigo 410, nº 2, al. c) do CPP cfr registos áudio da ofendida ............34_ .....41_.....87 (0,18 s a 10,10 m) e ............21-.....41 – .....87 ( 01 s – 35.28 m).

19 – Os factos assentes no ponto 7, 8, 9 da matéria de facto provada, deve ser igualmente ser dada como não provada, uma vez que não ocorreu em ... mas sim em ..., após maio de 2017.

19 - Acontece que no caso dos autos, existe e não poderá deixar de existir, uma dúvida inamovível, uma vez que jamais saberemos, com segurança absoluta se os inícios dos contactos sexuais se iniciaram antes de maio de 2017.

20 – As hesitações, confusões de calendário, em sede de memória futura pela vítima, enumeradas no acórdão ora recorrido, não podem ser valoradas em desfavor do arguido, sob pena de inversão do ónus da prova.

21- A pena em concreto aplicada, nove anos de prisão, é manifestamente exagerada, tendo em atenção os factos que militam a favor do arguido e ainda a período em concreto da atividade abusadora, entre maio de 2017 e agosto de 2018 tendo nesta última data abandonado voluntariamente qualquer ato abusivo para com a BB.

22 – É relevante a sua confissão dos factos, embora parcial, que entende como provados e verificados, pelo que a admitir-se como não censurável a sentença, a pena em concreto aplicável, em cúmulo jurídico, não deve ser superior a 6 anos, tendo em atenção os critérios referidos no nº 2 do artigo 71º do CP, nomeadamente militando a favor do arguido, estar inserido socialmente, ter hábitos de trabalho, ter uma nova companheira e não ter antecedentes criminais.

23 – A medida concreta da pena em caso de concurso, dentro da moldura penal aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, sendo determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa, e da prevenção geral e especial. Porém, no caso, levando em conjunto dos factos e da personalidade do arguido.

24 - Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade. No primeiro caso, já não no segundo será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal.

25 - Acontece que a decisão de 1ª instância foi deficientemente fundamentada, bem como o acórdão ora recorrido, uma vez que praticamente se limita a reproduzir o texto legal., sem fazerem uma avaliação concreta dos fatores que a lei manda atender.

26 - O acórdão recorrido, para demostrar a justeza da pena única, arbitrada em cúmulo refere que a pena mínima é de 5 anos e o somatório das penas é de 121 anos.

27 - Como é consabido, em caso de concurso de rimes , o limite mínimo é a maior das penas parcelares aplicada, e o limite máximo corresponde ao somatório de todas as penas aplicadas, não poderão ultrapassar 25 anos.

28 - Assim, tendo em atenção a personalidade do arguido, a seu enquadramento na sociedade, o facto de ser primário, e não ser conhecida qualquer tendência ou carreira para prática de atos similares, e ainda o facto de ter abandonado “per si” as práticas que vinham ocorrendo, esporadicamente com a vitima , tudo ponderado no âmbito dos critérios estipulados no artigo 71º, nº 2 do CP a pena não deve ser superior a 6 anos, pois só assim de cumpre os princípios da proporcionalidade, justiça e adequação, preceitos elevados constitucionalmente.

29 – Ao negar provimento ao recurso nos seus precisos termos o tribunal ora recorrido, tendo sido como assente e confessado pelo, foram violadas as seguintes disposições legais: artigo 32º, nº 2 e 5 da CRP, 374º, nº 2 , do CPP, artigo, artigo 171º, nº 1 e 2 do CP ( abuso sexual de crianças ), artigo 71º, nº 1 e 2 do CP.

Nestes termos e melhores de direito deve o ser admitido, por legal e tempestivo, e consequentemente ser dado provimento ao presente recurso, sendo consequente revogado o acórdão condenatório.»

5. Respondeu o Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação dizendo, em conclusões, que:

«1 Se o acórdão recorrido considerou provado que os factos atribuídos aos recorrentes foram por eles praticados e se correctamente deu parte, na motivação, da existência de provas que nesse sentido levam a uma certeza, não pode exigir-se que tal acórdão se detenha sobre eventuais hipóteses que as defesas propõem como teoricamente capazes de orientar as indagações para pistas alternativas, salvo tratando-se de factos específicos e objectivamente certos, capazes de fazer seriamente vacilar o juízo de responsabilidade que deriva dos elementos probatórios adquiridos, o que não se verifica.

2 Pelo exposto, não enfermando a decisão recorrida de qualquer errada aplicação ou interpretação da lei e não contendo a mesma vício ou nulidade de conhecimento oficioso, os recursos interpostos devem ser considerados improcedentes, devendo ser mantido o decidido, nos seus precisos termos, com o que farão V. Excelências, aliás, como sempre, Justiça.»

6. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitido parecer nos seguintes termos (transcrição):

«(…)

Recorre agora o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça suscitando questões relacionadas com:

- Os erros no julgamento de alguns pontos da matéria de facto (v. as conclusões 6, 11 e 19);

- A nulidade do acórdão (conclusões 9, 14 e 15);

- Os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova (conclusões 16 e 18);

- A medida da pena única (conclusões 21 e seguintes).

(…)

O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º

Nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal:

1 - (…)

b) Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

(…)

Preceitua, por sua vez, o art. 400.º, n.º 1, als. e) e f), do Código de Processo Penal

1 - (…)

e) Não é admissível recurso:

De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;

f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisões de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

A irrecorribilidade prevista no art. 400.º, n.º 1, al. f), do Código de Processo Penal respeita a toda a decisão e não somente à questão da determinação da pena.

Na verdade, «como tem sido enfatizado na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, estará também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspectos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões relacionadas com a apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de questões de proibições ou invalidade de prova –, com a qualificação jurídica dos factos e com a determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares em caso de concurso de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como questões de inconstitucionalidade suscitadas neste âmbito (cfr., por exemplo, os acórdãos de 11.4.2012, no Proc. 3989/07.5TDLSB.L1.S1, de 25.6.2015, no Proc. 814/12.9JACBR.S1, de 3.6.2015, no Proc. 293/09.8PALGS.E3.S1, e de 6.10.2016, no Proc. 535/13.5JACBR.C1.S1, bem como, quanto à atenuação especial da pena, os acórdãos de 5.12.2012, no Proc. 1213/09.SPBOER .S1, e de 23.6.2016, no Proc. 162/11.1JAGRD.C1.S1)» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de março de 2018, processo 22/08.3JAL RA.E1.S1, relatado pelo conselheiro Lopes da Mota, www.dgsi.pt).

Dito por mais breves palavras, «[a] irrecorribilidade das penas parcelares não significa apenas que a sua medida fica intocada, mas coenvolve a insindicabilidade de todo o juízo decisório – absolvição ou condenação – efetuado incluindo todas questões processuais relativas a essa decisão no tocante às penas singulares. De outro modo não se verificaria a irrecorribilidade» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de julho de 2021, processo 178/19.0 JAGRD.C1.S1, relatado pela conselheira Margarida Blasco, www.dgsi.pt).

Esta interpretação conta com a chancela do Tribunal Constitucional que tem entendido sem discrepância que o conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido consagradas no art. 32.º, n.º 1, da Constituição consiste no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas não abrange já o direito a novo reexame de uma questão já reexaminada por uma instância superior. «É que o direito ao recurso, constituindo, nos termos do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, uma importante garantia de defesa do arguido, coincide, pelos seus fundamentos, com a garantia de um duplo grau de jurisdição, ou seja, com a garantia de que a causa seja reexaminada por um tribunal superior, perante o qual tenha o arguido a possibilidade de apresentar de novo a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável, não decorrendo da Constituição a imposição, em processo penal, do esgotamento de todas as instâncias que a lei preveja. Assim, a limitação de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, em face de condenações (confirmadas na 2.ª instância) em penas inferiores a oito anos, evitando a eventual paralisação deste Tribunal superior, não se afigura uma limitação desrazoável ou desproporcionada dos direitos de defesa dos arguidos, em especial do direito ao recurso» (acórdão do Tribunal Constitucional 260/2016, de 4 de maio de 2016, relatado pela conselheira Maria José Rangel de Mesquita, www.tribunalconstitucional.pt, com abundante apontamento de jurisprudência).

Conforme previamente referido, o arguido foi condenado em 1.ª instância pela prática de um crime de abuso sexual de criança (arts. 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, do Código Penal), na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, pela prática de dois crimes de abuso sexual de criança (arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, do Código Penal), em duas penas de 5 anos de prisão, pela prática de trinta e um crimes de abuso sexual de menor dependente ou em situação particularmente vulnerável (arts. 172.º, n.º 1, al. b), por referência ao art. 171.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, do Código Penal), em trinta e uma penas de 3 anos e 6 meses de prisão, e em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 9 anos de prisão.

O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou integralmente o acórdão do Juízo Central Criminal de ..., nomeadamente no que toca à factualidade provada e às penas.

Como nenhum dos ilícitos em concurso foi punido em concreto com pena de prisão superior a 5 anos é, assim, incontroverso, face ao disposto no art. 400.º, n.º 1, als. e) e f), do Código de Processo Penal, que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa apenas é recorrível quanto à medida da pena única (superior a 8 anos de prisão), não podendo este tribunal, tal como já referido, «exercer qualquer censura sobre a actividade decisória prévia que subjaz e conduziu à condenação do recorrente por cada um desses crimes» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de março de 2014, processo 1699/12.0PSLSB.L1.S1, relatado pelo conselheiro Oliveira Mendes, www.dgsi.pt).

Quanto à questão da medida da pena única pouco mais temos a acrescentar ao parecer do Sr. procurador-geral-adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça (ref.ª citius 11540741, ponto V. supra).

(…)

Nesta sede, para além da consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente (parte final do citado art. 77.º, n.º 1, do Código Penal), o julgador deve ter igualmente em conta os critérios e fatores estabelecidos no art. 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal:

(…)

Ou seja, «[a] determinação da medida concreta da pena única deve atender, como qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art. 71.º, do CP); e ainda a um critério especial: a consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, na sua relação mútua, agora reavaliada à luz do conhecimento superveniente dos novos factos (citado art. 77.º, n.º 1, do CP). Ao tribunal impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente, neles revelada» (ponto XII do sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de setembro de 2019, processo 7/14.0GASTC.E2.S1, relatado pelo conselheiro Maia Costa, www.stj.pt).

«Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)» (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, págs. 291-292).

Nessa apreciação global dos factos e da personalidade do agente devem ser considerados «múltiplos fatores, entre os quais: a amplitude temporal da atividade criminosa; a diversidade dos tipos legais praticados; a gravidade dos ilícitos cometidos; a intensidade da atuação criminosa; o n.º de vítimas; o grau de adesão ao crime como modo de vida; as motivações do agente; as expectativas quanto ao futuro comportamento do mesmo» (ponto XIII do sumário do supra citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de setembro de 2019).

Saliente-se ainda que «por serem as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não se demonstre a sua necessidade» (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 3/2006, relatado pelo conselheiro Mário Torres, www.tribunalconstitucional.pt).

In casu, a moldura abstrata do concurso tem um mínimo de 5 anos de prisão, correspondente à pena parcelar mais elevada, e o máximo (legal) de 25 anos.

O ilícito global integra um total de trinta e quatro crimes, um de abuso sexual de criança da previsão dos arts. 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal), dois de abuso sexual de criança da previsão dos arts. 171.º, n.ºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, e trinta e um de abuso sexual de menor dependente ou em situação particularmente vulnerável da previsão dos arts. 172.º, n.º 1, al. b), por referência ao art. 171.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.

Estes crimes tutelam a liberdade de autodeterminação sexual dos menores de 14 anos e entre os 14 e os 18 anos e são considerados de criminalidade especialmente violenta (art. 1.º, als. j) e l), do Código de Processo Penal).

A vítima dos crimes era enteada do arguido, aproveitando este a circunstância de a mesma estar ao seu cuidado e a «privacidade que o recato do lar lhe proporcionava» [sic facto provado 21)].

Em todas as ocorrências o arguido atuou com dolo direto e persistente (os factos foram cometidos ao longo de um período superior a um ano).

As necessidades de prevenção geral, diante do sentimento de repulsa e do alarme social que os crimes de abuso sexual de crianças provocam, são, consabidamente, bastante expressivas e demandam punições rigorosas.

Invoca o recorrente que abandonou voluntariamente os atos abusivos contra a vítima (conclusão 21), confessou parcialmente os factos, é primário, está inserido socialmente, tem hábitos de trabalho e encetou um novo relacionamento marital (conclusão 22).

Todavia, o alegado abandono voluntário do assédio sexual à vítima não encontra apoio nos factos provados (e apenas a estes se pode atender na decisão de direito) e as demais circunstâncias pouco impacto têm na medida da pena.

Com efeito, «[n]os crimes de natureza sexual, escasso ou nulo relevo assume a inserção social do agente, já que é muito frequente a prática desses ilícitos por parte de pessoas bem inseridas e apresentando-se, sob a generalidade dos pontos de vista, como cidadãos normais e cumpridores das regras legais e sociais» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de setembro de 2008, processo 2032/08, relatado pelo conselheiro Maia Costa, www.colec-taneadejurisprudencia.com. No mesmo sentido, v. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de junho de 2017, processo 367/16.9JAPDL.S1, do mesmo relator, www.dgsi.pt).

Na ponderação de tudo quanto vem de ser exposto, temos, assim, por certo que a pena conjunta de 9 anos de prisão, fixada na 1.ª instância e mantida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, situada no primeiro quarto da moldura penal, revela-se equilibrada e ajustada aos cri-térios estabelecidos nos arts. 71.º, n.ºs 1 e 2, e 77.º, n.º 1, do Código Penal e aos princípios da necessidade e proporcionalidade que devem presidir à determinação da pena.

Nada mais se oferecendo aduzir, emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso.»

7. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.

8. Realizou-se a conferência – artigo 419.º, n.º 3, al. c), do CPP.

II. Fundamentação

Dos factos

9. O tribunal da Relação manteve inalterados os seguintes factos dados como provados no acórdão da 1.ª instância, que, assim, se mostram estabelecidos:

«1) Desde o ano de 2007, CC viveu em condições análogas às dos cônjuges com o arguido AA, fixando residência, em ..., e seguidamente, a partir de 15 de maio de 2017, e pelo período de 1 ano, na habitação da mãe de CC, sita na Avenida ..., 37, ..., na ...;

2) Fruto desse relacionamento, nasceu em ... de ... de 2009, DD;

3) Com eles vivia BB, filha de CC, nascida em ... de ... de 2003;

4) Em data não concretamente apurada, mas anterior a maio de 2017, quando ainda residiam em ..., quando se encontravam na habitação, o arguido pediu à BB para ir com ele buscar limões;

5) Quando estavam no quintal, num local onde não conseguia ser visualizado, o arguido, continuamente, pediu à BB para lhe tocar no pénis e fazer os movimentos como ele queria, beijando-a na boca, com introdução da língua, agarrando-lhe na mão, a qual colocou no seu pénis, fazendo os movimentos de vai e vem;

6) Seguidamente o arguido ejaculou para o chão e disse à BB para não contar à sua mãe e que seria um segredo deles;

7) Pouco tempo depois, em pelo menos duas situações distintas, ainda a BB tinha 13 anos de idade, na habitação de ..., o arguido foi ter com a BB ao quarto em que pernoitava;

8) Seguidamente, despiu-se e disse à BB para se despir, deitar-se de barriga para cima e abrir as pernas;

9) Simultaneamente, introduziu o seu pénis ereto na vagina da BB, fazendo movimentos de vai e vem, ejaculando;

10) Quando atuava da forma supra descrita, o arguido apalpava os peitos da BB e beijava-a na boca, introduzindo a sua língua na boca da BB e também a beijava no peito;

11) Pelo menos numa ocasião, em circunstâncias não concretamente apuradas, após 15 de maio de 2017, na ..., o arguido tentou penetrar o seu pénis ereto no ânus da BB, mas como esta disse que lhe doía, desistiu, passando de seguida a introduziu o seu pénis ereto na vagina da BB, fazendo movimentos de vai e vem;

12) Já na residência dos avós maternos da BB, após 15 de maio de 2017, aproveitando-se do facto da sua companheira CC e o pai desta saírem de casa, para trabalhar e a mãe daquela também sair, para levar a DD à escola ou ir beber café, o Arguido, com periodicidade quinzenal, e até 21 de agosto de 2018, ia ter com a BB ao local onde esta dormia, ou pedia-lhe para ir ter consigo ao quarto e despia-se, despia-a ou pedia-lhe para se despir, o que a BB acatava;

13) Seguidamente, pedia que a BB se deitasse de barriga para cima e abrisse as pernas e, simultaneamente, introduzia o seu pénis ereto na vagina da BB, fazendo movimentos de vai e vem, ejaculando;

14) Por vezes, nessas ocasiões, o arguido não usava preservativo, ejaculando no interior da vagina da BB;

15) Numa ocasião, no interior da habitação, em ..., o arguido pediu à BB para se colocar de joelhos e, seguidamente, disse-lhe para pôr o seu pénis na boca, o que a BB fez, mas como não gostou desviou a cara;

16) Em todas as investidas do arguido, a BB dizia-lhe que não queria fazer aquilo, mas o arguido insistia para o fazer, até a BB ceder;

17) E, para a convencer a praticar os supra descritos atos de natureza sexuais, oferecia-lhe prendas;

18) E, dizia-lhe que mesmo que contasse à sua progenitora, esta não ia acreditar, levando a que a BB julgasse que não adiantaria contar;

19) O arguido confessou, em parte, os factos;

20) Ao atuar da forma supra descrita, o arguido agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos libidinosos, e assim introduzir o seu pénis ereto na vagina, o que fez entre os 13 e os 15 anos de idade da BB, bem sabendo que se tratava de uma criança e que era filha da sua companheira, e, ainda assim não se coibiu de o fazer, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei;

21) Com a conduta descrita, visou ainda o arguido constranger a menor a contactos de natureza sexual contra a sua vontade, na sua grande maioria de cópula completa, com introdução vaginal, aproveitando-se da circunstância desta estar ao seu cuidado, valendo-se da privacidade que o recato do lar lhe proporcionava, bem como e ainda da ascendência que sobre a mesma mantinha atenta a relação de coabitação e familiar e com aproveitamento dessa relação, o que visou e conseguiu;

22) Bem sabendo o arguido que a BB iniciou esses contactos de natureza sexual consigo, com tenra idade, aos 13 anos de idade e, exclusivamente consigo, e que a BB receava os contactos daquela natureza com o arguido, mas ainda assim, o mesmo insistia para os manter, sabendo que estava a prejudicar o desenvolvimento da sua personalidade, como prejudicou;

23) Ao agir da forma acima descrita, o arguido agiu ainda no propósito concretizado de satisfazer os seus desejos libidinosos e impulsos sexuais e ainda assim não se coibiu de o fazer;

24) Atuou assim o arguido de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei;

25) O arguido tem o 9.º ano de escolaridade;

26) Antes de ser detido o arguido exercia as funções de motorista, auferindo €750,00 mensais;

27) O arguido já exerceu funções de motorista no âmbito de transporte escolar;

28) Aquando da sua detenção o arguido encontrava-se a residir em ..., com a atual companheira e a mãe desta;

29) A companheira do arguido trabalha no ... da mãe, auferindo cerca de €705,00 mensais;

30) O arguido contribuía com €200,00 mensais para as despesas da casa;

31) Antes de ser detido o arguido falava telefonicamente com a sua filha quase todos os dias;

32) Entre fevereiro de 2022, data em que foi morar para ..., e a sua detenção (em ... de ... de 2022) o arguido visitou a filha por duas vezes;

33) O arguido não tem antecedentes criminais registados.»

Do objeto e âmbito do recurso

10. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se necessário à boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).

11. Conforme se vê da motivação do recurso e do acórdão recorrido, o arguido vem reeditar argumentos e pretensões do recurso que apresentou, perante a Relação, do acórdão proferido em 1.ª instância (nulidade do acórdão, erro de julgamento e medida da pena única), mas agora dirigidos ao acórdão da Relação que conheceu do recurso. E só com este objeto e nesta medida pode o recurso ser apreciado, verificados que se mostrem os requisitos de admissibilidade para o Supremo Tribunal de Justiça.

Com efeito, como tem sido repetidamente afirmado (por todos, o acórdão de 01.03.2023, Proc. 685/10.0GDTVD.L2.S1, mencionando o de 02-10-2019, Proc. 3622/17.7JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt, com abundante citação de jurisprudência), o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça não é um segundo recurso do acórdão da 1.ª instância, mas um recurso do acórdão da Relação, que conheceu daquele recurso. Os recursos não servem para conhecer de novo da causa; constituem meios processuais destinados a garantir o direito de reapreciação de uma decisão de um tribunal por um tribunal superior, havendo que, na sua disciplina, distinguir dimensões diversas, relacionadas com o fundamento do recurso, com o objeto do conhecimento do recurso e com os poderes processuais do tribunal de recurso, a considerar conjuntamente (assim, acórdãos de 15.02.2023, Proc. n.º 1964/21.6JAPRT.P1.S1, e de 26.06.2019, proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, e jurisprudência e doutrina neles citada, em www.dgsi.pt).

12. O arguido vem, em síntese, suscitar as seguintes questões:

a. Nulidade do acórdão da Relação por omissão de pronúncia [artigo 379.º, n.º 1, al. c), ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP] por, «ao negar provimento ao recurso, quanto à nulidade do acórdão, erro de julgamento, e medida da pena, com a aderência pura e simples ao acórdão recorrido», não se pronunciar «quanto às questões que o recorrente submeteu a apreciação de recurso» (conclusões 1 a 9);

b. Nulidade do acórdão da Relação por falta de fundamentação (exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal) quanto aos pontos 4, 7 ,8, 9, 12 e 22 da matéria de facto [artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, als. a) e c), ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP] e insuficiência e erro notório na apreciação da prova [artigo 410.º, n.º 2, al. a) e c), do CPP] (conclusões 10 a 20);

c. Erro na determinação da medida da pena única, de 9 anos de prisão, que, na sua alegação, deve ser reduzida para medida não superior a 6 anos de prisão (conclusões 21 a 28).

Quanto à admissibilidade e delimitação do recurso

13. A metodologia da decisão requer, por razões de precedência lógica (artigos 368.º, n.º 1, e 608.º do CPC ex vi artigo 4.º do CPP), que esta se inicie pela apreciação das questões suscitadas pelos sujeitos processuais ou que o tribunal deva oficiosamente conhecer, suscetíveis de obstar ao conhecimento de mérito.

O Ministério Público, pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, suscita a questão da irrecorribilidade parcial do acórdão recorrido, devendo o recurso, em seu parecer (supra, 6), limitar-se ao conhecimento da questão da determinação da pena única, já que o «acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa apenas é recorrível quanto à medida da pena única (superior a 8 anos de prisão)».

Cumpre, pois, conhecer desta questão prévia, o que também oficiosamente se impõe.

14. Dispõe o artigo 400.º, n.º 1, al. e), do CPP que «não é admissível recurso (…) de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância».

Por sua vez, a alínea f) do mesmo preceito estabelece que «não é admissível recurso (…) de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».

A redação atual da alínea e) resulta da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, e da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro. A Lei n.º 20/2013 visou «clarificar» que «são irrecorríveis os acórdãos que apliquem pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos» (Proposta de Lei n.º 77/XII, que lhe esteve na origem). A Lei n.º 94/2021 aditou, na parte final, o segmento «exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância», colocando a redação do preceito em conformidade com a declaração de inconstitucionalidade parcial da norma, com força obrigatória geral, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018, que, assim, passou a admitir recurso em caso de aplicação de pena de prisão efetiva, e com o artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, segundo o qual «qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença em conformidade com a lei».

A al. f), na redação vigente, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, foi justificada por um «desígnio de celeridade associado à presunção de inocência e à descoberta da verdade material», tendo em conta que «o direito de recurso constitui uma garantia de defesa, hoje explicitada no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, e um corolário da garantia de acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20, n.º 1, da Constituição)» (exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 109/X, que lhe esteve na origem).

Nos termos do artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que a Lei n.º 94/2021 manteve inalterada, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça «de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º» (que enumera as exceções ao regime-regra de recorribilidade dos acórdãos, sentenças e despachos, previsto no artigo 399.º).

15. Da conjugação destes preceitos resulta que só é admissível recurso de acórdãos das relações, proferidos em recurso, que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou penas superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos de prisão em caso de não confirmação da decisão da 1.ª instância, regra que é aplicável quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso de condenação pela prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso (assim, por todos, o acórdão de 01.03.2023, Proc. 685/10.0GDTVD.L2.S1, retomando o acórdão de 30.11.2022, Proc. 1052/15.4PWPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele citada).

Conforme jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal de Justiça, apenas é admissível recurso de decisão confirmatória da Relação – casos de “dupla conforme”, incluindo a confirmação in mellius –, quando a pena aplicada for superior a oito anos de prisão, constituindo objeto de conhecimento do recurso apenas as questões que se refiram a condenações em pena superior a oito anos, seja pena parcelar ou pena única (cfr. o mesmo acórdão de 30.11.2022 e comentário de Pereira Madeira ao artigo 400.º – Henriques Gaspar et alii, Código de Processo Penal Comentado, 4.ª ed. 2022).

16. Como se tem assinalado, este regime efetiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., 2007, Vol. I, p. 516), enquanto componente do direito de defesa em processo penal (por todos, os acórdãos do Tribunal Constitucional 64/2006, 659/2011 e 290/2014; neste sentido também, entre outros, os acórdãos de 01.03.2023, cit., e de 15.02.2023, Proc. 1964/21.6JAPRT.P1.S1, e a jurisprudência nele mencionada, bem como o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2013, n.ºs 11 e 12, de 09.10.2013, DR 1.ª série, de 12.11.2013), reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos (artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais).

Em «jurisprudência ampla, sucessiva e reiterada», vem o Tribunal Constitucional reafirmando que o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição» ou de «um duplo grau de recurso», em relação a quaisquer decisões condenatórias. Citando o recente acórdão n.º 57/2022: «(…) não decorre do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição o direito a um triplo grau de jurisdição em matéria penal, dispondo o legislador de liberdade de conformação na definição dos casos em que se justifica o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (ver, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 189/2001, 336/2001, 369/2001, 49/2003, 377/2003, 495/2003 e 102/2004, acessíveis, assim como os demais adiante citados, a partir da ligação http://www.tribunalconstitucional.pt), posto que os critérios consagrados não se revelem arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados. Acresce que este Tribunal tem também reiteradamente entendido não ser arbitrário, nem manifestamente infundado, reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada (cfr., entre outros, os acórdãos n.º 189/2001, 451/2003, 495/2003, 640/2004, 255/2005, 64/2006, 140/2006, 487/2006, 682/2006, 645/2009, e 174/2010).» Neste mesmo sentido, de entre os mais recentes, os acórdãos 640/23, 513/23, 249/23, 733/22, 659/22, 400/22 e 341/22 (em https://acordaosv22.tribunalconstitucional.pt/).

17. Como se tem decidido, estando o Supremo Tribunal de Justiça, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão (como nota o Senhor Procurador-Geral Adjunto em seu parecer, mencionando o acórdão de 14.03.2018, processo 22/08.3JAL RA.E1.S1, com abundante citação de jurisprudência), encontra-se também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que lhe digam respeito, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP ou respetivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e questões ou matérias relacionadas com a apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de questões de proibição ou invalidade de prova –, com a qualificação jurídica dos factos e com a determinação das penas correspondentes aos tipos de crime realizados pela prática desses factos ou com questões de constitucionalidade suscitadas a esse propósito (por todos, na jurisprudência mais recente, os acórdãos de 01.03.2023 e de 15.02.2023, cit., e o acórdão de 02.12.2021, Proc.º 923/09.1T3SNT.L1.S1, em www.dgsi.pt).

18. Assim sendo, porque as nulidades e vícios do acórdão da Relação que vêm invocados [supra, 12. a) e b)] dizem respeito aos crimes em concurso, a que foram aplicadas penas singulares não superiores a 5 anos de prisão, e tendo o acórdão recorrido confirmado, sem qualquer alteração, a decisão da 1.ª instância que aplicou essas penas, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 399.º, 400.º, n.º 1, al. e) e f), e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, o recurso para este Supremo Tribunal de Justiça não é admissível nesta parte.

O recurso apenas é admissível no que diz respeito à determinação da pena única aplicada aos crimes em concurso [supra, 12, c)], que é superior a 8 anos de prisão [artigo 400.º, n.º 1, al. f), e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP].

Dispõe o artigo 420.º, n.º 1, al. b), do CPP que o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão, de acordo com n.º 2 do artigo 414.º, segundo o qual o recurso não é admitido quando, entre outros motivos, a decisão for irrecorrível.

Na procedência desta questão prévia, é, pois, o recurso rejeitado quanto àquelas questões, limitando-se a sua apreciação à questão da determinação da pena única.

Quanto à pena única

19. A discordância do recorrente dirige-se à determinação da pena única, de 9 anos de prisão, que considera «exagerada», por, em seu entender, não terem sido considerados a seu favor fatores relevantes como a «confissão dos factos», «embora parcial», e as circunstâncias de «estar inserido socialmente, ter hábitos de trabalho, ter uma nova companheira e não ter antecedentes criminais», bem como «ainda a período em concreto da atividade abusadora, entre maio de 2017 e agosto de 2018 tendo nesta última data abandonado voluntariamente qualquer ato abusivo para com a BB».

20. A decisão do Tribunal da Relação que aprecia a aplicação da pena única encontra-se sinteticamente fundamentada, nos seguintes termos:

«Medida da pena única.

Nos termos dos art.ºs 77.º e 78.º do Código Penal os crimes pelos quais foi o arguido condenado encontram-se em relação de concurso, pelo que correctamente procedeu o colectivo ao cúmulo das respectivas penas.

O limite mínimo da pena única a aplicar é o de 5 anos de prisão

A soma das penas aplicadas aos vários crimes cifra-se em 121 anos de prisão, pelo que é de 25 anos o limite máximo.

Atendendo ao conjunto dos factos provados e à personalidade do arguido revelada por aqueles, encontrou o tribunal recorrido a pena de 9 anos de prisão.

Como se refere no Ac. STJ de de 08-07-2020, Proc. n.º 1667/19.1T8VRL.S1 - 3.ª Secção, “I - A medida da pena conjunta deve definir-se entre um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente. II - Em sede de cúmulo jurídico a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente. III - À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. IV - De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente - exigências de prevenção especial de socialização”.

De outro lado, “a proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação entre a gravidade do facto global (do concurso de crimes enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente nele revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a intensidade ou gravidade da medida da pena conjunta no âmbito do ordenamento punitivo” – Ac. STJ de 08-07-2020, Proc. n.º 74/14.7JAPTM.E1.S1 - 3.ª Secção.

Isto após recordar que:

“No ensinamento de Taipa de Carvalho, “Direito Penal, Parte Geral”, Publicações Universidade Católica, 87 - na determinação da medida e espécie da pena o “critério da prevenção especial não é absoluto, mas antes duplamente condicionado e limitado: pela culpa e pela prevenção geral. Condicionado pela culpa, no sentido de que nunca o limite máximo da pena pode ser superior à medida da culpa, por maiores que sejam as exigências preventivo-especiais (…). Condicionado pela prevenção geral, no sentido de que nunca o limite mínimo da pena (ou a escolha de uma pena não detentiva) pode ser inferior à medida da pena tida por indispensável para garantir a manutenção da confiança da comunidade na ordem dos valores juridíco-penais violados e a correspondente paz jurídico-social, bem como para produzir nos potenciais infractores uma dissuasão mínima. Em síntese: a prevenção geral constitui o limite mínimo da pena determinada pelo critério da prevenção especial”. (Ac. STJ de 9.6.2021, procº 1606/19.0PBFAR.E1.S1).

“Conforme refere o Prof Figueiredo Dias, [1] «Estabelecida a moldura penal do concurso o tribunal ocupar-se-á, finalmente, da determinação, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais de culpa e de prevenção. Nem por isso se dirá com razão, no entanto, que estamos aqui perante uma hipótese normal de determinação da medida da pena. Com efeito a lei fornece ao tribunal, para além dos critérios gerais da medida da pena contidos no art. 72º, nº1, um critério especial «na determinação da medida concreta da pena [do concurso], serão considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente (art. 78º, 1- 2ª parte]. (…)

Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes com efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».

No mesmo sentido o AC do STJ de 27JAN16, a propósito da pena conjunta derivada do concurso de infrações, defende o seguinte:

“Fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade». A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos pois que a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a recetividade á pena pelo agente deve ser objeto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.”

Deverão equacionar-se em conjunto a pessoa do autor e os delitos individuais o que requer uma especial fundamentação da pena global. Por esta forma pretende significar-se que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível, mas deve reflectir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência. Por isso na valoração da personalidade do autor deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delito ocasionais sem relação entre si. A autoria em série deve considerar-se como agravatória da pena. Igualmente subsiste a necessidade de examinar o efeito da pena na vida futura do autor na perspectiva de existência de uma pluralidade de acções puníveis. A apreciação dos factos individuais terá que apreciar especialmente o alcance total do conteúdo do injusto e a questão da conexão interior dos factos individuais. Dada a proibição de dupla valoração na formação da pena global não podem operar de novo as considerações sobre a individualização da pena feitas para a determinação das penas individuais.

Em relação ao nosso sistema penal é o Professor Figueiredo Dias quem traça a síntese do “modus operandi” da formação conjunta da pena no concurso de crimes. Refere o mesmo Mestre que “a existência de um critério especial fundado nos factos e personalidade do agente obriga desde logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indispensável conexão entre o disposto nos arts. 78. °-1 e 72.°-3, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um ato intuitivo - da «arte» do juiz uma vez mais - ou puramente mecânica e, portanto, arbitrária. Sem prejuízo de poder conceder-se que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo art. 72 ° nem por isso um tal dever deixa de surgir como legal e materialmente indeclinável”.

No mesmo sentido o AC do STJ de 12FEV14, a propósito da pena conjunta derivada do concurso de infracções, defende o seguinte:

«O sistema de punição do concurso de crimes consagrado no art. 77.º do CP, aplicável ao caso de conhecimento superveniente do concurso, adotando o sistema da pena conjunta, «rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente». Por isso, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta, cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa.

Nesta segunda fase, «quem julga há-de descer da ficção, da visão compartimentada que [esteve] na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. A perspetiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido.

Aqui, o todo não equivale à mera soma das partes e, além disso, os mesmos tipos legais de crime são passíveis de relações existenciais diversíssimas, a reclamar uma valoração que não se repete, de caso para caso. A este novo ilícito corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação. Afinal, a valoração conjunta dos factos e da personalidade, de que fala o CP.

Por outro lado, afastada a possibilidade de aplicação de um critério abstrato, que se reconduz a um mero enunciar matemático de premissas, impende sobre o juiz um especial ónus de determinar e justificar quais os factores relevantes de cada operação de formação de pena conjunta, quer no que respeita à culpa em relação ao conjunto dos factos, quer no que respeita à prevenção, quer, ainda, no que concerne à personalidade e factos considerados no seu significado conjunto.

Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de culpa, numa perspetiva global dos factos, é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal em relação a bens patrimoniais. Por outro lado, importa determinar os motivos e objetivos do agente no denominador comum dos atos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a atividade criminosa expressa pelo número de infrações, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela atividade».

Como supra se referiu. o concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião, como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes. Por outro lado, o concurso tanto pode ser constituído pela repetição do mesmo crime, como pelo cometimento de crimes da mais diversa natureza. Por outro lado, ainda, o concurso tanto pode ser formado por um número reduzido de crimes, como pode englobar inúmeros crimes.

Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo) nem pelo da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente: como doutamente diz Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 290-292), como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.

Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso. Ac. STJ de 06-02-2008, in Proc. n.º 4454/07

Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização). Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, Acs de 11-10-2006 e de 15-11-2006 do STJ in Proc. n.º 1795/06, e Proc. n.º 3268/04.”

“Ou seja, quanto à pena única a aplicar ao arguido em sede de cúmulo jurídico, a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstracta aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente.

À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.

Por último, de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da atuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e “ a culpa pelos factos em relação”, a qual se refere Cristina Líbano Monteiro em anotação ao acórdão do S.T.J de 12.7.2005 e Figueiredo Dias in “A Pena Unitária do Concurso de Crimes” in RPCC ano 16º, nº 1, pág. 162 e segs.” (Ac. STJ de 23.6.2021, procº 3/19.1GBLSA.S1).

A esta luz, o quadro geral apresentado é muito carregado e a tendência criminosa do arguido vincada, supliciando a vítima durante o período de tempo considerável que durou, sem abrandar, a sua determinação criminosa e destruindo o seu desenvolvimento de forma indelével.

Por isso que atendendo ao conjunto dos factos provados e à personalidade do arguido revelada por aqueles, mostra-se justa por adequada a pena única aplicada pelo tribunal recorrido.»

21. Do acórdão da 1.ª instância, para que, em juízo de concordância, remete o acórdão recorrido, resulta que foram tidas em consideração as seguintes circunstâncias:

Na determinação das penas parcelares, cujos fatores adquirem agora relevância na perspetiva da avaliação, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente (infra, 22): «o grau de ilicitude dos factos, apreciado dentro dos tipos criminais em apreço, que é elevado»; «o arguido atuou com o propósito de satisfazer os seus desejos libidinosos, não se coibindo de o fazer com quem lhe era próximo (filha da Companheira), e que se esperava que gozasse da sua proteção»; «os factos ocorreram no local onde o Arguido residia com a vítima, e onde esta deveria gozar de segurança e proteção»; «a intensidade do dolo, manifestada no dolo direto, é elevadíssima»; «as exigências de prevenção geral são muito expressivas neste tipo de crimes, face à necessidade de proteção da defesa da autodeterminação e liberdade sexual, bem como do desenvolvimento e crescimento harmonioso das crianças e menores»; «as prementes necessidades de prevenção especial relativamente ao Arguido, por forma a que este não volte a delinquir». Em favor do arguido «milita o facto de ter hábitos de trabalho, estar inserido socialmente, tendo uma nova companheira, e não ter antecedentes criminais registados

Na determinação da pena única, depois de citar os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.01.2001, de 04.03.2004, e de 12.07.2005, bem como o “critério” que, na avaliação da personalidade, convoca a identificação ou não de uma tendência criminosa: «considerando as circunstâncias e gravidade dos factos e a personalidade do Arguido neles espelhada, e sem esquecer a culpa e as necessidades de prevenção, entende o Tribunal como ajustada a aplicação ao Arguido da pena única de 9 (nove) anos de prisão

Pelo que, perante a exiguidade da fundamentação, há que verificar da adequada observância dos critérios de determinação da pena.

22. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, formada a partir de uma moldura definida, no seu mínimo, pela mais elevada das penas aplicadas aos crimes em concurso e, no seu máximo, pela soma das penas aplicadas a esses crimes, sem ultrapassar 25 anos de prisão (n.º 2 do artigo 77.º), para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º, infra), são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (critério especial do n.º 1 do artigo 77.º, in fine). Aqui se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., 2011, p. 248ss; por todos, o acórdão de 16.2.2022, Proc. 160/20.4GAMGL.S1).

23. Recordando jurisprudência constante deste Supremo Tribunal, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento. Há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido e ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza destes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais» [assim, por todos, entre os mais recentes, os acórdãos de 01.03.2023, cit., e de 08.06.2022, Proc. n.º 430/21.4PBPDL.L1.S1, em www.dgsi.pt, retomando-se o que se afirmou no acórdão de 2.12.2012, Proc. 923/09.1T3SNT.L1.S1, de 21.11.2018, ECLI:PT:STJ:2018:114.14.0JACBR. A.S1.73, citando-se, designadamente, os acórdãos de 06-02-2008 (Proc. n.º 4454/07), de 18.1.2012, Proc. 34/05.9PAVNG.S1 (Raul Borges), de 14.07.2016 e de 17.06.2015 (Proc. 4403/00.2TDLSB.S1) (Pires da Graça) e 488/11.4GALNH (Maia Costa), em www.dgsi.pt].

Convocando o afirmado em decisões anteriores: “Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 291).

24. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele considerando, nomeadamente as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito.

Como se tem afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).

25. Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, n.º 2, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – fatores indicados na alínea a) (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências) e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – os indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem sublinhado, é na determinação e consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação (cfr., entre outros, os acórdãos de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, cit.).

26. Aos crimes cometidos, que se posicionam numa relação de concurso (artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal), corresponde a pena de 5 anos (pena parcelar mais elevada) a 25 anos de prisão (limite fixado no artigo 77.º, n.º 2, do CP, pois que a soma das penas parcelares ultrapassa largamente este limite).

O arguido vem condenado pela prática, em concurso, de um total de 34 crimes de abuso sexual de criança e de menor dependente, na pena única de 9 anos.

Os factos, que agora preenchem o ilícito global, com repetida ofensa do mesmo bem jurídico, por diversas formas, foram praticados, todos eles, em 2017 e 2018, num período de cerca de 2 anos, tendo a criança ofendida entre 13 e 15 anos de idade, sempre no espaço de habitação comum em que o arguido e a mãe da vítima viviam com esta, em condições análogas às dos cônjuges, aproveitando-se o arguido da circunstância de viverem na mesma casa, de ter acesso ao quarto de dormir da criança, da privacidade e ocultação que estas circunstâncias proporcionavam e da ascendência que mantinha relativamente à criança, filha da sua companheira, também ao seu cuidado, como se sua filha fosse.

Embora não se devam levar em conta na determinação da medida da pena (artigo 71.º do CP) as circunstâncias típicas de qualificação dos crimes decorrentes da gravidade do ato praticado e das relações de coabitação e dependência (artigos 171.º, n.º 2, 172.º e 177.º do CP), por a isso se opor a proibição da dupla valoração, evidencia-se uma atividade criminosa de ilicitude muito elevada revelada pela intensidade, frequência, variedade e repetição dos atos, pela determinação e persistência do dolo, pelas circunstâncias concretas de tempo, lugar e modo por que os atos foram praticados e pela forma reiterada e intensa de violação dos deveres de proteção da criança e da relação de confiança familiar em que esta se movia.

Não obstante o facto de não ter sofrido condenações anteriores, a forma e demais circunstâncias repetidas da prática dos crimes, relativamente aos quais são intensas as exigências de prevenção geral evidenciadas pela sua frequência, revelam uma personalidade com manifesta falta de preparação para manter uma conduta lícita no domínio do seu comportamento, mostrando-se também muito elevadas as exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização, a satisfazer mediante a aplicação da pena.

Foram considerados a favor do arguido «o facto de ter hábitos de trabalho, estar inserido socialmente, tendo uma nova companheira, e não ter antecedentes criminais registados», fatores que poderão contribuir para realizar as necessidades de ressocialização (prevenção especial), circunstâncias que, conjuntamente com a confissão parcial, não referenciada na condenação, o recorrente alega em seu favor, mas que não possuem densidade necessária para, numa ponderação de conjunto, conduzir a uma alteração do decidido.

27. Nesta conformidade, tendo em conta a moldura da pena aplicável aos crimes em concurso, na ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido revelada na sua prática (artigo 77.º, n.º 1, do CP), não se encontra fundamento suscetível de pôr em crise a aplicação da pena única de 9 anos de prisão, por violação dos critérios, que se mostram respeitados, de adequação e proporcionalidade que devem presidir à determinação das penas, em vista da realização das finalidades de proteção dos bens jurídicos ofendidos com a prática dos crimes e de integração do agente na sociedade.

Assim, nesta parte, é negado provimento ao recurso.

Quanto a custas

28. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP, só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

29. Pelo exposto, decide-se em conferência na seção criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

a) Rejeitar o recurso quanto a todas as questões suscitadas, exceto quanto à determinação da pena única;

b) Julgar improcedente o recurso quanto à determinação da pena única, mantendo o decidido.

Condena-se o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 21 de fevereiro de 2024

José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria do Carmo Silva Dias

Teresa de Almeida