Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
362/11.4TBCNT-Q.C1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
DEVEDOR
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
ACTO DE ADMINISTRAÇÃO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
HONORÁRIOS
TÍTULO EXECUTIVO
CAUSA DE PEDIR
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
FUNDAMENTOS
Data do Acordão: 07/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE O DEVEDOR E OUTRAS PESSOAS - ADMINISTRAÇÃO DA MASSA INSOLVENTE PELO DEVEDOR / INTERVENÇÃO DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO EXECUTIVA ( AÇÃO EXECUTIVA ) / TÍTULO EXECUTIVO - PROCESSO DE EXECUÇÃO / OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO.
Doutrina:
- Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2015, 319/320.
- Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, 626.
- Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2.ª edição, 864.
- Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, I, 333.
- Catarina Serra, “Os Efeitos Patrimoniais da Declaração de Insolvência — Quem tem Medo da Administração da Massa pelo Devedor?”, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor José Lebre de Freitas, vol. II, 540 a 577.
- Coutinho de Abreu, Governação das Sociedades Comerciais, 2.ª ed. Almedina, Coimbra. 40.
- Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 61.
- Mota Pinto, actualizado por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, 615.
- Pedro Pidwell, O processo de insolvência e a recuperação da sociedade comercial de responsabilidade limitada, 307.
– Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, 55/56.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 236.º, N.º1.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 81.º, N.ºS 1 E 6, 223.º, 224.º, N.ºS 1 E 2, 226.º, N.ºS1 E 2, ALS. A) E B).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 46.º, N.º1, C), 814.º, 816.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 729.º, 731.º
Sumário :
1. Os riscos inerentes a uma total liberdade de administração da massa insolvente pelo devedor, que não é muito comum ser conferida pelos Tribunais, embora não tenha as desvantagens que muitas vezes, preconceituosamente, se imputam às sociedades que caem na insolvência, são contrabalançados pela obrigação de fiscalização que impende sobre o administrador que deve reportar imediatamente ao Juiz e à comissão de credores (se existir) quaisquer actos que tornem desaconselhável a continuação da administração pelo nomeado.

2. Como se trata de administrar um património finalisticamente criado primordialmente para satisfação dos credores, a lei limita os poderes de administração, no que respeita a contrair obrigações.

3. A possibilidade de a administração da massa insolvente ser deferida ao devedor, nos casos em que nela se contém um estabelecimento – art. 223º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) – constitui excepção ao princípio geral contido no artigo 81.º, n.º1, segundo o qual a declaração de insolvência priva imediatamente a empresa insolvente, por si, ou por intermédio dos seus administradores ou gerentes, dos poderes de administração e de disposição dos bens que integram a massa insolvente.

4. Sem prejuízo da eficácia do acto, o devedor não deve contrair obrigações se o administrador da insolvência se opuser tratando-se de actos de administração ordinária; tratando-se de actos de administração extraordinária tem de existir consentimento do administrador.

5. Os conceitos “actos de mera administração” e “actos de administração extraordinária”, no contexto insolvencial, devem ser entendidos tendo em consideração a severa limitação da administração da insolvente, sobretudo quando, por sentença, é deferida aos gerentes ou administradores, nos termos dos arts. 223º e 224º, nºs1 e 2, do CIRE.

6. Ficando o devedor na administração da empresa contida na massa insolvente, por designação do Juiz, nos termos do art. 224º, nº1, do CIRE, nem por isso deixa de estar sob a fiscalização do Administrador da Insolvência nomeado, coexistindo as funções de ambos, com claramente resulta do art. 226º, nºs 1 e 2, als. a) e b). Assim, sem prejuízo da eficácia do acto, o devedor não deve contrair obrigações se o administrador da insolvência se opuser tratando-se de actos de gestão corrente ou ordinária: tratando-se de actos de administração extraordinária exige-se o consentimento do administrador da insolvência na sua veste fiscalizadora.

7. A decisão do administrador da insolvente, nomeado na sentença que declarou a insolvência da sociedade devedora, de pagar a quantia exequenda, sem o consentimento do administrador da insolvência, (pagamento que não se concretizou) constitui um acto de administração extraordinária; tal decisão afectou a massa insolvente, pelo que, por aplicação do art. 81º, nº6, do CIRE, a ineficácia do acto visa a protecção da massa insolvente.

8. É legítima a recusa de pagamento, pelo administrador da massa insolvente, de significativa quantia a título de honorários advocatícios, autorizada pelo administrador da insolvente administrador da sociedade devedora, sem autorização e conhecimento daquele, na véspera da assembleia de credores convocada para o destituir, como sucedeu.

9. O título executivo é condição indispensável para o exercício da acção executiva. A causa de pedir não é documento em si, mas a relação substantiva que está na base da sua emissão, o direito plasmado no título, pressupondo a execução o incumprimento de uma obrigação de índole patrimonial, seja ela pecuniária ou não.

8. A oposição à execução visa destruir a prova “legal e sintética, do direito exequendo, ou melhor, o meio de demons­tração da sua existência”, podendo o executado, além dos fundamentos de oposição especificados no art. 814º do vCódigo de Processo Civil, (agora art.729º), alegar quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração (art. 816º do anterior Código), a que corresponde o art. 731º do nCódigo de Processo Civil. 

Decisão Texto Integral:

R-553[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

A Massa Insolvente de AA, S.A., deduziu, em 21. 9.2012, Oposição à Execução, pendente no 2º Juízo do Tribunal da Comarca de Cantanhede, agora Comarca de Coimbra, Coimbra – Inst. Central – Secção de Comércio – J2, contra si instaurada pela Senhora Advogada, Dr.ª BB, no valor de € 53.260,35 alegando, em síntese, que a nota de honorários que serve de título executivo reporta-se a serviços prestados antes da instauração do processo de insolvência, sendo, por conseguinte, um crédito sobre a insolvência e não sobre a Massa, pelo que deveria ter sido reclamado oportunamente no processo de insolvência; ademais, a dívida reclamada não foi aprovada pelo Senhor Administrador da Insolvência.

           

Conclui, pedindo pela sua absolvição da instância, por não ser este o processo próprio para a Exequente fazer valer o seu crédito.

Notificada da oposição, veio a Exequente defender a improcedência da mesma, alegando, em suma, ter a dívida sido reconhecida por quem detinha a administração da Massa, sendo que o senhor Administrador da Insolvência não só conhecia o facto de a Exequente ter prestado inúmeros serviços jurídicos àquela, como lhe comunicou que iria proceder ao pagamento da quantia em causa, o que nunca fez; acresce, que conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido nos autos, a quantia exequenda configura-se como dívida da massa insolvente e não da devedora insolvente, sendo, assim este o meio processual adequado para obter o pagamento em causa.

Pede a condenação da Executada como litigante de má-fé, na multa processual e numa indemnização a favor da Exequente em quantia não inferior a € 5.000,00.

***

           

Findos os articulados, o Ex.mo Juiz, conheceu de mérito, tendo julgado a oposição parcialmente procedente, ordenando que a execução prosseguisse para pagamento da quantia de € 48.097,49 acrescida de juros moratórios.

           

***

Inconformada, a Executada/Oponente recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, que por Acórdão de 16.2.2016 – fls. 151 a 158 – julgou procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e considerando extinta execução.

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Inconformada, a Exequente recorreu de revista para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. Dúvidas não restam – nem mais se pode discutir – que, nos termos da decisão sumária proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, desde logo, em 24.09.2013 – aliás, há muito, já transitada em julgado – foi consignado que resulta da análise da “nota de honorários que titula a obrigação exequenda datada de 19.6.2011 e enviada à administração da insolvente, [que] os serviços prestados pela exequente foram-no no decurso do processo de insolvência e por causa dele, e alguns deles foram até realizados posteriormente à declaração de insolvência (p. ex., reuniões para preparação do processo e do plano de insolvência, todas elas em datas posteriores à referida declaração)”.

2. Pelo que, decidiu a Relação de Coimbra que se trata “pois, de despesas e encargos que resultam da actuação da administração da insolvente [art. 51º/1-c)], cujos administradores o são agora da massa insolvente, conforme sentenciado”.

3. Mais concluindo, “então, que não estamos na presença de uma acção executiva de cobrança de dívida da sociedade insolvente […] mas antes perante execução para cobrança de dívida da própria massa insolvente, instaurado fora do período de carência fixado no art. 89º/1 e que deverá correr por apenso ao processo de insolvência (nº2 de art. 89º.)”.

4. Ora, no Acórdão de que se recorre, o único fundamento do Tribunal a quo que releva para impedir o pagamento dos honorários devidos pelos serviços prestados pela Recorrente à Massa Insolvente Recorrida é o simples facto de “a Exequente conhecer a declaração de insolvência, razão pela qual atento este conhecimento, não existe uma situação de boa-fé a tutelar”, como, de forma tabelar e crua, conclui – o que, ressalvado o respeito devido, não pode colher.

5. Na verdade, admitir-se tal asserção como correcta seria o mesmo que dizer que o advogado que desenvolve todo o trabalho de preparação da insolvência, requer a mesma mandatado pelo administrador da insolvente, continua a desenvolver o seu trabalho mesmo após a insolvência, a pedido do administrador da massa insolvente (e em benefício desta), anterior administrador da insolvente, não está, de acordo com o Acórdão recorrido, de boa-fé, porque conhece a situação de insolvência. Não cremos que assim possa ser.

6. Resulta, ainda, dos autos, designadamente do doc. nº3 da contestação à oposição à execução, o expresso reconhecimento do mandato forense por Administrador da Insolvência nomeado com a declaração de insolvência, e que entrou em exclusividade de funções a partir de 20.06.2011.

7. E-mail através do qual não só reconhece o relacionamento da maior colaboração entre o próprio, como administrador da insolvência, e a Recorrente mandatária da insolvente, como expressamente refere que não colocou neste processo qualquer entrave ao pagamento de honorários à Recorrente.

8. Contudo, entendeu o Acórdão ora em crise que “o AI não deu o seu consentimento à assunção da obrigação”, de modo que “o reconhecimento pelo administrador da devedora da obrigação, sendo válido entre as partes, é no entanto, ineficaz relativamente à massa insolvente; como a Exequente conhecia a declaração insolvência, não existe uma situação de boa fé a tutelar”.

9. Em primeiro lugar, não se vislumbra de que forma pode o Tribunal da Relação exceder o limite imposto pelas conclusões do recurso interposto da sentença pela ora Recorrida Massa Insolvente, e fixar, como provada, matéria de facto sem que tenha sido impugnada a decisão de primeira instância sobre a mesma.

           

10. Não obstante, e ainda que assim não fosse, não vislumbra, ainda, a ora Recorrente em que fundamentos pode estribar-se o Tribunal recorrido para concluir o seguinte: “Na petição inicial, a Oponente alegou que o Administrador da Insolvência não foi ouvido previamente sobre esta obrigação nem deu o seu consentimento; a Exequente não impugnou este facto, pelo que considera-se “admitido por acordo”que o AI não deu o seu consentimento à assunção da obrigação (art. 574º, nº2, do Código de Processo Civil).

11. Na verdade, e muito pelo contrário, não só a aqui Recorrente impugnou especificadamente tal facto – o alegado desconhecimento e falta de autorização do Sr. AI relativamente aos serviços prestados pela mesma à Massa Insolvente e à obrigação de pagamento dos mesmos – conforme resulta, desde logo, do teor expresso dos artigos 1.º e 2.º da contestação à oposição junta aos autos.

12. Como ainda, sobre tal facto, discorreu longamente na mesma contestação, designadamente nos artigos 29.º a 34.º e 37.º a 50.º, acima transcritos.

13. Assim, para além do facto em apreço ter sido impugnado pela Recorrente, na contestação à oposição à execução, está, ademais, em manifesta oposição com a defesa considerada no seu todo, razão pela qual nunca poderia concluir-se pela sua admissão por acordo, nos termos do preceito invocado na decisão recorrida (artigo 574º, nº2, do Código de Processo Civil), nem tão-pouco, consequentemente, ser o mesmo dado como provado na decisão em crise.

14. Na verdade, e bem pelo contrário, resulta ad nauseam do acima exposto que a Recorrente sempre defendeu a existência de conhecimento e consentimento do Sr. AI à prestação dos seus (da Recorrente) serviços à Massa Insolvente, não tendo sido produzida prova que o infirmasse, antes constando do processo elementos documentais que apontam, justamente, no sentido inverso, i.e., do assentimento do AI à intervenção da Recorrente nos autos.

15. Em segundo lugar, importa sublinhar que o proémio do nº2 do artigo 226º do CIRE é expresso e claro, quando prevê a locução “sem prejuízo da eficácia do acto”, entendendo a mesma doutrina que o Acórdão cita, que “a eficácia dos actos do devedor na administração da massa insolvente só se justifica para tutelar a boa fé de terceiros, pelo que devia ser limitada aos casos em que ela se verificasse”.

16. Não obstante, mais adiante, conclui que “porém, a comparação do texto adoptado com o que resultava do Anteprojecto, […] e também o cotejo com o que se determina na parte final do nº4, parece excluir a possibilidade de a eficácia do acto ser afectada”. [Vide Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Carvalho Fernandes e João Labareda, 2009, Quid Juris, pág. 751.]

17. Sem embargo, nos presentes autos, resulta mais do que evidente e notória a boa-fé da Recorrente, na medida em que desenvolveu todo o trabalho preparatório de um processo desta envergadura, assumiu todas as despesas inerentes ao mesmo, custeou todos os encargos com terceiros com vista à preparação de um plano de insolvência, promoveu todo o trabalho, através de si e da sua equipa, na salvaguarda dos interesses da massa insolvente e liquidou impostos incidentes sobre valores que ainda não lhe foram pagos pela Recorrida!

18. Repugna o nosso sentido de justiça “condenar” a Recorrente a ficar sem receber honorários pelos serviços prestados e despesas que adiantou, só porque, como mandatária que é, tem conhecimento da insolvência, como se isso fosse um índice de falta de boa-fé da sua parte, não sendo, por isso, merecedora da tutela do direito, nos termos e para os efeitos no nº2 do artigo 226º do CIRE!

19. A assim ser, arriscamos dizer, então nenhum mandatário aceitará jamais patrocinar uma apresentação à insolvência de um qualquer seu cliente, pois sempre seria um trabalho pro bono. E muito menos, jamais, na sua boa-fé, custearia despesas desse mesmo cliente, se soubesse que as mesmas nunca lhe seriam reembolsadas.

20. Pergunta-se, quem é que não está de boa-fé a merecer a tutela do direito numa situação destas: a Recorrente, que acompanhou, desde sempre e após a declaração de insolvência, o processo, com todo o desvelo e dedicação, devotando-lhe horas e horas trabalho, adiantando despesas de monta, reunindo diversas vezes com o Sr. AI trocando com o mesmo extensa correspondência, tudo conforme se alcança da nota honorários que constitui o título executivo? Ou a Recorrida, na pessoa do Sr. AI, que não só nunca manifestou qualquer oposição à intervenção e serviços prestados pela Recorrente, como sempre (pelo menos tacitamente) foi consentindo os mesmos?

21. Por outro lado, em terceiro lugar, como muito bem refere a decisão de primeira instância, a questão da eficácia do acto – in casu, ter o administrador da massa solvente em funções, CC, aposto na Nota de Honorários apresentada a menção manuscrita com o seguinte teor “Reconheço o valor em dívida. Proceda-se a pagamento” – sempre ficaria integralmente ressalvada.

22. Uma vez que estabelece expressamente o já citado nº2 do artigo 226.º do CIRE que, sem prejuízo da eficácia do acto, o devedor não deve contrair obrigações.

23. Ora, ainda que tivesse havido violação deste preceito (que não houve, como ressalta à evidência), a mesma sempre seria inoponível à Recorrente, tendo o reconhecimento da obrigação de pagamento da quantia contida no documento particular em causa produzido, relativamente àquela, os seus efeitos, como muito claramente refere o M.mo. Juiz da primeira instância, de forma cabal e de modo a não deixar dúvidas.

24. Paralelamente, suscita-se uma outra questão de não somenos importância, que foi, embora reconhecida, totalmente postergada na decisão recorrida: a validade do título executivo dado à execução.

25. Na verdade, a aposição da assinatura por parte do administrador da massa insolvente na Nota de Honorários constante dos autos, mais do que a assumpção de uma obrigação, que existe aliás desde a concessão do mandato que com ela nasceu, significa que tal obrigação assumiu força executiva.

26. Ou seja: a Nota de Honorários que foi o documento particular dado à execução preenche todos os requisitos enunciados na citada alínea c) do nº1 do artigo 46.º do Código de Processo Civil aplicável in casu, não se vislumbrando qualquer obstáculo à validade formal do mesmo como título executivo.

27. E que jamais foi posto em causa pela Executada, nem quanto ao seu conteúdo, nem quanto à sua espécie/forma. Muito menos tendo alegado – o que a talho de foice se reitera – qualquer indício de má-fé por parte da Exequente, ao contrário do que se infere do acórdão recorrido. A Recorrida simplesmente aflorou a boa fé do devedor, não da Recorrente.

28. Ora, sendo eficaz a declaração escrita do devedor, por todo o elenco de motivos supra, tem de se ter por formalmente válido o título executivo subjacente à execução, pelo que, ao invés de extinta, deverá a mesma seguir os seus regulares termos, o que. Estamos certos, será ordenado por este Colendo Tribunal.

Termos em que deverá ser dado integral provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, o acórdão recorrido, com as legais consequências, assim se fazendo a sã e acostumada Justiça.

Não houve contra-alegações.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provada a seguinte matéria de facto:

1. Nos autos de execução comum, intentados em 23.08.2012, em que é exequente BB e executada a Massa Insolvente da AA, S.A., foi dada à execução um documento escrito – que faz fls. 3 verso e 4 dos autos de execução, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido –, consubstanciando uma “Nota de Despesas e Honorários”, datada de 19.06.2011, em que se mostra aposta, por cima de um carimbo da firma da devedora, uma inscrição manuscrita com o seguinte teor: “Reconheço o valor em dívida. Proceda-se a pagamento.”, datada igualmente de 19.06.2011, e assinada por CC;

2. Em sede de requerimento executivo, a exequente alega que, no exercício da sua actividade de advocacia, prestou à executada, a pedido desta, os serviços melhor discriminados na Nota de Honorários que junta e que serve de título executivo, no valor de € 48.097,49;

3. E mais alega que, em virtude da falta de pagamento do valor em causa, teve de suportar, para além do IVA respectivo, o pagamento de uma coima à Administração Fiscal, no montante de € 569,55, cujo pagamento coercivo igualmente reclama;

           

4. Por sentença datada de 05.04.2011, já transitada em julgado, havia sido declarada a insolvência de AA, S.A., determinando-se que a administração da massa insolvente fosse assegurada pela devedora, nas pessoas de CC e DD;

5. Por despacho datado de 07.01.2013, foi a acção executiva julgada extinta, por impossibilidade da lide, nos termos do artigo 88.º, n.º1, do CIRE, com fundamento no facto da executada ter sido declarada insolvente antes da propositura da mesma;

           

6. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 24.09.2013 – que faz fls. 63 a 65 dos autos de execução, e que aqui se dá por integralmente reproduzido –, foi a aludida decisão revogada, ordenando-se a sua substituição por outra que ordenasse o prosseguimento da execução, com fundamento no facto de se estar “perante execução para cobrança de dívida da própria massa insolvente”;

7. Em assembleia de credores realizada no dia 20.06.2011, foi deliberado fazer cessar a administração da Massa Insolvente pela devedora, passando a mesma a caber exclusivamente ao senhor AI nomeado (Dr. EE), e proceder-se à liquidação do activo existente.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se a executada/oponente, Massa Insolvente, poderia assumir a responsabilidade pelo pagamento da dívida de honorários e despesas apresentada pela exequente, Advogada constituída no processo pela insolvente;

- se o administrador da massa reconheceu o crédito exequendo.

Vejamos:

Tendo sido já decidido com trânsito em julgado, por decisão singular proferida no Tribunal da Relação de Coimbra, em 24.9.2013, que o crédito exequendo se reporta a dívida da Massa Insolvente e não da insolvência, a executada recusa o pagamento da dívida exequenda, sustentando que o Administrador da Insolvência (doravante AI) nunca foi consultado pela administração da insolvente quanto ao reconhecimento, nem aprovação do crédito exequendo, sendo certo que foi, pela sentença que declarou a insolvência, conferida ao gerente da insolvente a respectiva administração.

A Recorrente invoca como título executivo a nota dos seus honorários advocatícios, sustentando que o valor nela inscrito – a quantia exequenda – foi aprovado pela pessoa do administrador da insolvente em 19.6.2011, a mesma data em que foi apresentada tal nota.

A insolvência foi decretada por sentença de 5.4.2011, transitada em julgado. Foi nomeado como AI. o senhor Dr. FF.

O título executivo é um documento escrito, designado “Nota de Honorários e Despesas”, emitido pela ora exequente, dirigido à executada “Massa Insolvente da AA, S.A.”, indicando o valor certo de € 48.097,49, a que foi aposta inscrição, de forma manuscrita, reconhecendo que tal valor se encontrava em dívida. Tal nota foi assinada por CC, que era quem, à data – 19.06.2011 –, administrava a Massa Insolvente em nome da própria devedora, por determinação judicial dimanada da sentença declaratória da insolvência da AA, S.A.

Na decisão do Tribunal de 1ª Instância afirmou-se que a questão decidenda se resolvia conforme o sentido a dar à interrogativa, “podia a própria devedora, na pessoa de CC, reconhecer validamente tal obrigação pecuniária?

Depois de se considerar que tal documento constituía título executivo, (excepto no que respeita ao valor de uma coima de € 569,55), nos termos do art. 46º, nº1, c) do Código de Processo Civil, anteriormente à Reforma de 2013, ponderou-se à luz do art. 226º, nº2, do CIRE, que, mesmo a ter sido violado o estatuído no seu nº2, do ponto em que o administrador não deu consentimento nem aprovou tal despesa, a respectiva assunção seria ineficaz em relação à Massa, salvaguardando-se as situações previstas no art. 81º, nº6, als. a) e b) do CIRE.

Afirmando-se, em resumo final – “Neste conspecto, somos do entendimento que, não obstante a eventual violação do dever contido no n.º 2 do artigo 226.º do CIRE, a mesma é inoponível à aqui exequente tendo o reconhecimento da obrigação de pagamento da quantia contida no documento particular em causa produzido, relativamente àquela, os seus efeitos”, pelo que se ordenou que a execução prosseguisse pelo valor de € 48 097,49.

Já no Tribunal da Relação, se considerou, no atendimento da pretensão recursiva da executada, que a dívida carecia da aprovação do administrador por se tratar de um acto de administração ordinária, mas que a assunção da obrigação do pagamento de honorários por parte do administrador da devedora “sendo embora válida inter-partes, é ineficaz relativamente à massa insolvente, o que consubstancia uma situação de falta de título executivo válido contra a Executada, o que conduz à improcedência da execução”.

Como se disse, estando assente que a dívida de honorários constitui dívida da massa insolvente, a questão está em saber em que termos a massa insolvente responde pelas dívidas.

Na sentença que declarou a insolvência, o Juiz determinou que a administração da massa insolvente fosse assegurada pelo devedor, o que lhe é consentido pelo nº1 do art. 224º do CIRE que estabelece no nº2 como pressupostos: “a) O devedor a tenha requerido; b) O devedor tenha já apresentado, ou se comprometa a fazê-lo no prazo de 30 dias após a sentença de declaração de insolvência, um plano de insolvência que preveja a continuidade da exploração da empresa por si próprio; c) Não haja razões para recear atrasos na marcha do processo ou outras desvantagens para os credores; d) O requerente da insolvência dê o seu acordo, caso não seja o devedor”. Pode, ainda, tal faculdade ser concedida pelo julgador se verificados os pressupostos do nº3.

De certo modo a possibilidade de a administração da massa insolvente ser deferida ao devedor, nos casos em que nela se contém um estabelecimento – art. 223º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) – constitui excepção ao princípio geral contido no artigo 81.º, n.º1, segundo o qual a declaração de insolvência priva imediatamente a empresa insolvente, por si, ou por intermédio dos seus administradores ou gerentes, dos poderes de administração e de disposição dos bens que integram a massa insolvente.

Esses poderes passam a competir ao administrador da insolvência.

De crucial importância o art. 226º do CIRE dispõe:

“1. O administrador da insolvência fiscaliza a administração da massa insolvente pelo devedor e comunica imediatamente ao juiz e à comissão de credores quaisquer circunstâncias que desaconselhem a subsistência da situação; não havendo comissão de credores, a comunicação é feita a todos os credores que tiverem reclamado os seus créditos.

2. Sem prejuízo da eficácia do acto, o devedor não deve contrair obrigações:

a) se o administrador da insolvência se opuser, tratando-se de actos de gestão corrente;

b) sem o consentimento do administrador, tratando-se de actos de administração extraordinária.

[…]

7. – A atribuição ao devedor da administração da massa insolvente não prejudica o exercício pelo administrador da insolvência de todas as demais competências que legalmente lhe cabem e dos poderes necessários para o efeito, designadamente o de examinar todos os elementos da contabilidade do devedor”.

Os riscos inerentes a uma total liberdade de administração da massa insolvente pelo devedor, que não é muito comum ser conferida pelos Tribunais, embora não tenha as desvantagens que muitas vezes, preconceituosamente, se imputam às sociedades que caem na insolvência, são contrabalançados pela obrigação de fiscalização que impende sobre o administrador que deve reportar imediatamente ao juiz e à comissão de credores (se existir) quaisquer actos que tornem desaconselhável a continuação da administração pelo nomeado.

Como se trata de administrar um património finalisticamente criado para satisfação dos credores, a lei limita os poderes de administração, no que respeita a contrair obrigações.

Sem prejuízo da eficácia do acto, o devedor não deve contrair obrigações se o administrador da insolvência se opuser tratando-se de actos de administração ordinária; tratando-se de actos de administração ordinária tem de existir consentimento do administrador.

Catarina Serra, no Estudo datado de 26.1.2012, “Os Efeitos Patrimoniais da Declaração de Insolvência — Quem tem Medo da Administração da Massa pelo Devedor? publicado nos “Estudos de Homenagem ao Professor Doutor José Lebre de Freitas”, vol. II, págs. 540 a 575, depois de referir que a administração pelo devedor não teve “utilização visível em Portugal” e avançar duas razões para tal: a atitude dos tribunais e a dos devedores, escreve – págs. 566/577:

             

“O que explica aquela atitude por parte dos tribunais? Evidentemente, deve reconhecer-se que o direito positivo é desanimador. Mas, além disso (embora não independentemente disso), suspeita-se que os tribunais não confiem na administração da empresa, que tenham medo de que a manutenção deles no cargo não só não tenha vantagem alguma como ate possa dar aso a (maiores) prejuízos para os credores.

Trata-se, então, de uma resistência com intuitos preventivos. Mas esta resistência não é — não pode ser — uma prerrogativa dos tribunais e nem a decisão sobre o requerimento da administração pelo devedor é nem deve ser — um acto absolutamente discricionário. A resistência só deverá poder legitimar uma recusa se existirem razões objectivas, concretas, para recear atrasos na marcha do processo ou outras desvantagens para os credores.

E terá sentido, de qualquer forma, esta atitude de resistência no contexto das alterações contidas na Proposta de Lei? Uma delas é a desclassificação do carácter obrigatório do incidente de qualificação da insolvência e a sua limitação aos casos em que existem indícios de culpa.

Parece que o legislador português quis (ou pelo menos admitiu) “levantar” a presunção geral de culpa grave que recaía sobre o devedor e os seus administradores (o decoctor ergo fraudator) e pautar os efeitos pessoais do processo de insolvência pelo critério do mérito.

A ser assim (se o insolvente não é culpado até prova em contrário), por paralelismo, o insolvente deveria manter o controlo sobre os seus bens até que alguma circunstância aconselhasse o contrário.

O legislador não quis ir tão longe, decerto pelo peso histórico que (ainda) atribui à regra oposta. Restará, pois, aos tribunais, em homenagem àquela mudança de premissa, reduzir gradualmente a sua desconfiança e passar a fazer uma leitura sem preconceitos das condições para a concessão da administração ao devedor — sobretudo do disposto na al. c) do n.°2 do art. 224.° do CIRE, que é aquele que, por conter conceitos indeterminados, mais depende do inquisitório e do prudente arbítrio do juiz. O movimento estaria, aliás, em consonância com a tendência das duas leis da insolvência que foram mais recentemente modificadas e que curiosamente têm constituído, tanto uma como outra, o modelo da lei portuguesa: a lei espanhola e a lei alemã.”

Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª edição, pág. 864, depois de criticarem a solução adoptada no nº1, acerca do estatuído no nº2 afirmam: “O n.°2, no seu proémio, estabelece uma relevante modalidade de intervenção do administrador da insolvência na atuação do devedor, no campo específico do passivo patrimonial.

Trata-se de limitar a liberdade do devedor para contrair obrigações, por duas vias diferentes, consoante a natureza do ato de que elas emergem, como se apura das alíneas desse número.

Segundo a al. a), os “atos de gestão corrente do devedor”, que importem a assunção de obrigações, não devem por ele ser praticados se o administrador da insolvência se opuser.

Do nosso ponto de vista, por “atos de gestão corrente” deve entender-se atos de administração ordinária, o que sustentamos por oposição a “atos de administração extraordinária” regulados na al. b). Mas ter-se-ia ganho em clareza, se o legislador assim o tivesse dito.

Quanto aos atos de administração extraordinária, o devedor não os deve praticar sem consentimento do administrador (sobre a distinção entre atos de administração ordinária e extraordinária, cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., vol. II, págs. 590-597).

Para além das diferenças assinaladas quanto ao tipo de intervenção do administrador, estas duas categorias de atos do devedor seguem o mesmo regime quanto ao seu valor, quando praticados com desrespeito do disposto nas als. a) ou b) do n.°2. Estatui, na verdade, o corpo desse número que a eficácia desses atos não é afetada.

Não se nos afigura incontroversa esta solução, tendo em conta a publicidade e o registo de que é objeto a atribuição da administração ao devedor (art.º 229.°), para já não falar da publicidade e do registo da declaração da sua insolvência (art.º 38.°).

Nos afigura incontroversa esta solução, tendo em conta a publicidade e o registo de que é objeto atribuição da administração ao devedor (art.º 229.°), para já não falar da publicidade e do registo da declaração da sua insolvência (art.º 38.°).

Ora, a eficácia dos atos do devedor na administração da massa insolvente só se justifica para tutela da boa-fé de terceiros, pelo que devia ser limitada aos casos em que ela se verificasse.        

Diremos mesmo mais: para não inutilizar a eficácia dos atos de publicidade e de registo, dada a sua função específica, devia caber ao terceiro a prova da sua boa-fé.

Em suma, propugnaríamos um regime de ineficácia, salvo quando o terceiro a prova da sua boa-fé”.

             

Quanto a este entendimento, que liga a eficácia dos actos praticados pelo administrador à existência de boa fé de terceiro que com ele contrata, pronunciam-se Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, no “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, em comentário ao citado preceito, pág. 626:

“ […] Discordamos dos autores neste ponto: no quadro da administração, pelo devedor, de bens em que está compreendida uma empresa, já é bastante tolhedor da sua atuação o condicionalismo imposto pelo nº2. Se cada terceiro que com ele contrata tem de verificar se estão preenchidos os pressupostos legais, para que os negócios sejam eficazes, não há empresa que resista.

Ao contrário do defendido, diríamos que ou se admite a solução legal, sem mais – o que também é peculiar, pois, se os atos carecem de não oposição ou de consentimento, faltando-lhes estes, não se vê que não tenham de resultar afetados –, ou se exige a prova da má fé do terceiro para que eles sejam ineficazes. O que não é possível, repetimos, é condicionar a gestão de bens em geral, e de uma empresa em particular, à verificação por terceiros que com ela celebram contratos banais da situação registral e, em concreto, da existência de concordância ou de não oposição por parte de um sujeito – o administrador da insolvência que não é parte no contrato”.

           

Cremos, com o devido respeito, que releva, sobretudo, na apreciação dos actos praticados pelo administrador da massa insolvente, que é nomeado pelo Juiz, permanecendo na empresa de que antes era administrador ou gerente (arts. 223º e 224º do CIRE), saber quando se está perante actos de gestão corrente, ordinária, ou de gestão extraordinária, já que, sendo ambos válidos (art. 226º, nº2, als. a) e b), podem ser ineficazes: quanto àqueles se não tiver havido oposição e quanto a estes – os de administração extraordinária – se não tiver havido consentimento do Administrador da Insolvência.

Bem se compreende que assim seja, já que a lei olha com desconfiança a gestão da empresa por quem esteve na sua condução e foi declarada insolvente; de certo modo, diríamos que o controlo dos actos é tanto maior quanto mais potencial de favoritismo, ou menos clareza de procedimentos puder suscitar, sendo que o administrador, ainda que a insolvente seja titular da empresa, deve actuar com rigor, prudência e objectividade, praticando apenas actos de gestão quotidiana, corrente, sem discriminações não consentidas por lei.

No caso em apreço, a Exequente, enquanto Advogada, prestou os seus serviços à ”AA” na preparação da insolvência e, depois desta ter sido declarada, passando as funções de administrador da massa insolvente a ser exercidas pelo seu até aí administrador – Dr. CC – mas também o fez depois deste ter cessado a administração o que aconteceu por deliberação da assembleia de credores realizada no dia 20.6.2011, passando a mesma a ser exercida exclusivamente pelo senhor Administrador da Insolvência nomeado, Dr. EE – ut. ponto 7) dos factos provados.

A nota de honorários foi apresentada pela Exequente no dia 19.6.2011. Nesse mesmo dia que foi a véspera da Assembleia de Credores que o havia de destituir de administrador da devedora, o Dr. CC afirmou reconhecer a dívida e ordenou o seu pagamento.

Ora, tendo sido destituído nas 24 horas seguintes, e cessando a sua função de administrador, desde aí cometida ao AI a este competindo a liquidação e a condução dos negócios da Massa Insolvente a este competia tomar posição sobre esse pagamento.

Com o devido respeito, não se nos afigura razoável que a Senhora Advogada que prestou, como indica na nota de honorários “centenas de horas” de trabalho e dedicação profissional, não soubesse que estava a apresentar a nota de honorários a quem com toda a probabilidade iria ser destituído da administração e não tendo o pagamento sido feito naquele dia 19.6.2011, não poderia sê-lo depois, a menos que o AI desse consentimento.

Sustenta a Recorrente que a Relação deu como provado, erradamente, que o AI não deu consentimento à assunção da obrigação do pagamento dos honorários, considerando ter havido violação do art. 574º, nº2, do Código de Processo Civil, ou seja, na sua tese a Recorrente entende que o Acórdão recorrido considerou que não impugnou a alegada ausência de consentimento pelo administrador pelo que tal facto, não impugnado, deve considerar-se confessado, afirmando que, de toda a contestação, emerge que impugnou o alegado desconhecimento e falta de autorização do senhor AI relativamente aos serviços prestados à Massa Insolvente e à obrigação de pagamento, remetendo para os arts. 1º, 2, 29º a 34º e 37º a 50º.

Salvo o devido respeito, cremos que existe um equívoco: o que o Acórdão refere é que o AI nomeado depois da destituição do administrador Dr. CC, não deu o seu consentimento ao pagamento da dívida, o que resulta claro dos e-mails que lhe foram remetidos pela exequente, a que deu tardia e negativa resposta. Nos art. 8º e 9 da petição da oposição refere-se que “Nunca o Senhor Administrador de insolvência foi consultado pela administração da devedora sobre a nota de honorários apresentada pela Ex.ma Senhora Dr.ª BB. Designadamente no sentido de aprovar a dívida e reconhecer a mesma.”

É inquestionável que o administrador da devedora, à data de 19.6.2011, reconheceu a dívida e ordenou que fosse paga, razão pela qual não faria sentido que a impugnação se dirigisse a um acto favorável à Exequente.

Sempre se dirá que é inequívoco que, no e-mail (doc.nº3 junto com a contestação da oposição),  que a Recorrente invoca como expressando reconhecimento da dívida exequenda pelo actual AI, não decorre, manifestamente, que exista esse reconhecimento.

Nesse documento particular, inserto a fls.51, datado 20.7.2012, é afirmado no que releva: “Nunca coloquei nem neste processo nem em qualquer outro qualquer entrave ao pagamento de honorários, seja de quem for e seja a que título for. Por um motivo: nunca procederei – NUNCA PROCEDI – ao pagamento de qualquer dívida da massa (nem de créditos sobre a insolvência) sem a autorização prévia do Juiz e da Comissão de Credores. E quando lhe referi – na minha maior boa fé – que apresentasse a sua Nota de Honorários, fi-lo porque a Sra. Dra. BB se pronunciou em termos tais que não deixavam dúvidas de que fundamentaria aquele pedido. E de que o fundamento invocado será acolhido pelos credores, na pessoas dos membros da Comissão de Credores ou do Juiz. Mas, se à data não ficou o assunto claro, peço desculpa!

Repete-se, nunca procederei ao pagamento de quaisquer honorários sem prévia autorização do Juiz e da Comissão de Credores. E não tomei a iniciativa de me pronunciar nos autos – nem para si – porquanto me parecia que dar prioridade a este assunto sem resolver primeiro o rateio parcial aos trabalhadores era criar um foco de problemas graves. E deixo claro que só me pronunciarei a solicitação da Comissão de Credores e/ou por notificação do Juiz. E no meu modestíssimo entendimento, o tema vai ler um desfecho complexo: a fundamentação da Nota de Honorários remete para prestação de serviços anteriores à declaração de insolvência. E mesmo os serviços prestados durante a pendência do processo, mas sob a administração da devedora, sempre serão questionados o preço hora e o tipo de serviços”.

           

A questão do reconhecimento reporta-se ao actual AI e não existe, interpretado o documento segundo o critério normativo acolhido no art. 236º, nº1, do Código Civil, ou seja, de acordo com a interpretação que faria um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, a Exequente, não concluiria que o AI reconheceu a existência da dívida e que se comprometia a pagá-la. Bem ao invés, é dado a entender que será até discutida a natureza da dívida e o seu montante: se é devedora a insolvente, se a Massa, e se o montante dos honorários é aceitável.

Mas, salvo o devido respeito, mesmo que a interpretação feita pela Recorrente fosse a que a dívida foi reconhecida pelo administrador, entretanto destituído que a validou, sempre se poria a questão de saber da validade desse acto à luz do art. 226º nº2, do CIRE.

Ficando o devedor na administração da empresa contida na massa insolvente, por designação do Juiz nos termos do art. 224º, nº1, do CIRE, nem por isso deixa de estar sob a fiscalização do AI nomeado, coexistindo as funções de ambos, com claramente resulta do art. 226º, nºs 1 e 2, als. a) e b). Assim, sem prejuízo da eficácia do acto, o devedor não deve contrair obrigações se o administrador da insolvência se opuser, tratando-se de actos de gestão corrente ou ordinária: tratando-se de actos de administração extraordinária exige-se o consentimento do administrador da insolvência na sua veste fiscalizadora.

A lei impõe uma fiscalização pelo AI: para que esta exista tem que haver uma comunicação ao AI para que sancione o acto do administrador da devedora, seja o acto de gestão corrente ou de administração ordinária. Resta claro que o Dr. CC não deu conhecimento da sua decisão de pagar os honorários, nem obviamente pediu consentimento ao AI; ademais, como se disse, no dia seguinte à apresentação da nota de honorários e do “reconhecimento” da dívida foi cessado das funções de administrador por deliberação da assembleia de credores da insolvente.

A Relação considerou que a decisão de autorizar o pagamento de € 48 097,49 constitui acto de gestão extraordinária, pelo que exigiria o consentimento do AI, e, que não existindo, o acto é ineficaz em relação à Massa Insolvente.

O CIRE não define o que deva ser considerado acto de administração ordinária ou corrente, e acto de administração extraordinária pelo que o intérprete se deve socorrer do conceito civilista. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, págs. 61, ensina:

“Actos de mera administração serão pois os que correspondem a uma gestão patrimonial limitada e prudente em que não são permitidas certas operações – arrojadas e ao mesmo tempo perigosas – que podem ser de alta vantagem, mas que podem ocasionar graves prejuízos para o património administrado […].

[…] Por outro lado, são actos de administração extraordinária, os que visam a realização de benfeitorias ou melhoramentos nas coisas ou a frutificação anormal (excepcional) dos bens”.

Ainda na lição do insigne Civilista ao mero administrador, na gestão dos bens administrados, compete, em regra, “deferir ao expediente dessa gestão; numa palavra, de fazer o trivial. Nada de voos arriscados. Nada de aventurosos empreendimentos, de iniciativas não isentas de perigos consideráveis. Nada de altas cavalarias.”

Alexandre Soveral Martins, in “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2015, págs. 319/320, afirma: “O devedor que tem a administração da massa insolvente a seu cargo pode praticar atos de gestão corrente. E pode fazê-lo ainda que dos mesmos resultem obrigações. Porém, já não deve contrair essas obrigações se o administrador da insolvência se opuser.

Para que este o possa fazer, tem que fiscalizar art. 226.º1).

Mas, se aquela oposição se verificar, o ato é na mesma eficaz. É o que resulta do art. 226º, 2, a). Note-se que, embora o preceito estabeleça o dever de não contrair as obrigações mencionadas, parece que está a impedir a prática do próprio ato de que resulta a obrigação. Por outro lado, também dele resulta que o devedor pode em regra praticar atos de gestão corrente.

O CIRE não diz o que são os atos de gestão corrente.[2] Entendemos por gestão corrente a gestão do dia-a-dia, quotidiana, que não pode exceder a prática de atos de mera administração (os que “correspondem a uma gestão patrimonial limitada e prudente”, em suma, atos de conservação dos bens administrados ou destinados a promover a respetiva frutificação normal)”.

           

A decisão do administrador da insolvente Dr. CC de pagar à Exequente a quantia reclamada a título de honorários, no valor de € 48 097, 49, deve ser qualificada como acto de gestão extraordinária, que lhe era defeso tomar sem o consentimento do administrador da Insolvência a quem deveria ter submetido essa intenção.

Por outro lado, no contexto em que foi tomada essa decisão: no dia em que a nota de honorários foi apresentada, a sua confirmação nesse dia, véspera da Assembleia de Credores que o destituiu da administração foi uma decisão imprudente e lesiva dos interesses que lhe compete zelar – os dos credores e até da Massa Insolvente.

Os conceitos “actos de mera administração” e “actos de administração extraordinária”, no contexto insolvencial, devem ser entendidos tendo em consideração a severa limitação da administração da insolvente, sobretudo quando, por sentença, é deferida aos gerentes ou administradores, nos termos dos arts. 223º e 224º, nºs1 e 2, do CIRE.

No Acórdão recorrido, ponderou-se que, “O reconhecimento pelo administrador da devedora da obrigação, sendo válido entre as partes, é no entanto, ineficaz relativamente à massa insolvente; como a Exequente conhecia a declaração de insolvência, não existe uma situação de boa fé a tutelar (cf. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição, pag.105)”.

Sem dúvida que a Exequente, como Advogada, não podia desconhecer a situação da devedora e que os poderes do administrador estavam limitados a certos actos (apenas os de gestão corrente ou ordinária) pelo que a decisão de pagar o montante por si apresentado a título de honorários envolvia dispor de um valor avultado para a massa insolvente. Ademais, no e-mail do AI decorre que o valor não seria por si aceite.

As instâncias, ainda que com fundamentação não coincidente, consideraram que o acto era ineficaz. Todavia, enquanto a sentença apelada entendeu que essa ineficácia não prejudicava a pretensão executiva contra a Massa, mesmo admitindo a violação do art. 226º, nº2, do CIRE, já no Acórdão recorrido, se considerou que a ineficácia afecta a posição jurídica da Massa Insolvente, e daí que considerasse, até, que a Exequente não dispõe de título executivo, julgando procedente a oposição e extinguindo a execução.

A decisão do administrador da insolvente, nomeado pela sentença que declarou a insolvência da sociedade AA, S.A. de pagar a quantia exequenda – pagamento que não se concretizou – sem o consentimento do AI, que era exigido, por se tratar de um acto de administração ordinária, objectiva uma decisão que afectou a massa insolvente, como devedora por ser parte no contrato de prestação de serviços. Até por aplicação do art. 81º, nº6, do CIRE se tem de entender que a ineficácia do acto visa a protecção da Massa Insolvente.

Doutro modo, no caso concreto, seria contraditório considerar que o acto do administrador da devedora, e simultaneamente da sua massa insolvente, foi abusivo por não ter tido o consentimento do AI, mas, não obstante isso, não afectou a pretensão da exequente (dele beneficiária) por ser ineficaz quanto a ela. No caso há um vício intrínseco ao negócio que, em si mesmo, afecta a posição jurídica da Exequente que nele foi parte, conhecendo esse vício: falta de poderes do administrador que reconheceu a dívida em execução.

A ineficácia do negócio jurídico pode ser tomada em sentido amplo, “… sempre que um negócio não produz, por impedimento decorrente do ordenamento jurídico, no todo ou em parte, os efeitos que tenderia a produzir segundo o teor das declarações respectivas”, ou em sentido estrito quando depende “não de uma falta ou irregularidade dos elementos internos do negócio, mas de alguma circunstância intrínseca que, conjuntamente com o negócio, integra a situação complexa – “fatti specie” – produtiva de efeitos jurídicos” – cfr. “Teoria Geral do Direito Civil”, 4.ª edição, pág. 615, Professor Mota Pinto, actualizado pelos Professores António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto.

Da conjugação das normas dos arts. 226º, nº2, b) e 81º, nº6, do CIRE, decorre que a ineficácia é, em relação à devedora Massa Insolvente, ineficácia em sentido estrito, porque a decisão de reconhecer o crédito exequendo, ordenando o seu pagamento, dependia do válido consentimento do administrador, ou seja, dessa circunstância que é extrínseca ao negócio.

Salvo o devido respeito, consideramos, diversamente do entendido no Acórdão em revista, que a Exequente dispõe de título executivo à luz do preceito vigente ao tempo da sua formação – art. 46º, nº1, c) do Código de Processo Civil, anterior à Reforma de 2013, que considerava como tal, “Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.”

Na execução, a causa de pedir é não o título executivo, mas o que está na base da respectiva emissão.

“O título executivo é o meio legal de demonstração da existência do direito do exequente – ou que estabelece de forma elidível, a forma daquele direito – cujo lastro material ou corpóreo é um documento [...] que constitui, certifica ou prova uma obrigação exequível, que a lei permite que sirva de base à execução” – Remédio Marques, in “Curso de Processo Executivo Comum”, págs. 55/56.

Precisando o conceito de “título executivo”, permitimo-nos transcrever a definição dada pelo Professor Castro Mendes, in Direito Processual Civil” – 1980, I-333:

“Título executivo – Materialmente é um meio legal de demonstração de existên­cia do direito exequendo.
 Não é, pois, em rigor essencial e necessariamente um acto, nem um documento.
 Tem natu­reza mais genérica de algo que abrange uma e outra realidade – é um meio de prova, legal e sintética, do direito exequendo, ou melhor, meio de demons­tração da sua existência.

 Formal­mente, no nosso direito, traduz-se num documento.

 Por isso, título executivo pode definir-se como o documento que, por oferecer demonstração legalmente bastante da existência de um direito a uma prestação, pode, segundo a lei, servir de base à respectiva execução.


O título executivo é condição indispensável para o exercício da acção executiva, mas a causa de pedir não é o próprio documento, mas a relação substantiva que está na base da sua emissão, ou seja, o direito plasmado no título, pressupondo a execução o incumprimento de uma obrigação de índole patrimonial, seja ela pecuniária ou não.

A oposição à execução visa destruir essa prova “legal e sintética, do direito exequendo, ou melhor, o meio de demons­tração da sua existência”, podendo o executado, além dos fundamentos de oposição especificados no art. 814º do Código de Processo Civil, (agora art.729º) alegar quaisquer outros que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração (art. 816º do anterior Código, aqui aplicável), a que corresponde o art. 731º do nCódigo de Processo Civil. 

Foi isso que fez, triunfantemente, a executada/opoente.

Pelo quanto se disse o recurso não merece provimento.

Sumário – art.663º, nº7, do Código de Processo Civil

           

Decisão.

Nega-se a revista, ainda que com fundamentação não totalmente consonante com o Acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça, 14 de julho de 2016


Fonseca Ramos (Relator)


Fernandes do Vale


Ana Paula Boularot

   

_______________________________________________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.

[2] “Coutinho de Abreu, Governação das Sociedades Comerciais, 2ª ed. Almedina, Coimbra, pág. 40 fala-nos da gestão “técnico-operativa quotidiana”. Pedro Pidwell, O processo de insolvência e a recuperação da sociedade comercial de responsabilidade limitada, cit., p. 307, nt. 1345 considera que os atos de gestão corrente se identificam com os atos de administração ordinária […]” – transcrição parcial da nota de rodapé 25 do excerto citado.