Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
188/22.0PDVFX.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I. A fundamentação da pena única contém os elementos essenciais que constituem o leque de critérios atendíveis na definição da pena única, embora sem a sistematização adequada e apenas permitindo entrever o exame crítico realizado.

II. Tal como é descrito na decisão recorrida, o arrependimento relevante, ao apagar o incêndio que iniciara, apenas teve lugar após as vítimas se terem posto a salvo, encontrando-se a ofendida, seu cônjuge, ferida por queimaduras.

III. Pode concluir-se que, no caso, existe uma fundamentação mínima, concretizada por apelo aos factos, quanto aos critérios gerais da prevenção e da culpa e aos indicados no n.º 1, do art. 77.º, do CP.

IV. Não obstante a condenação anterior sofrida, o arguido persistiu na sua conduta violenta que, aliás, intensificou, elevando o respetivo patamar de ilicitude.

V. A pena única aplicada ficou aquém do meio do intervalo da moldura abstrata aplicável ao concurso dos crimes, mostrando-se, assim, proporcional e adequada à culpa.

VI. Em consequência, não se surpreendem elementos que permitam justificar um juízo de discordância relativamente à pena aplicada e identificar violação do disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal e 18º nº 2 e 27º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:

Proc. nº 188/22.0PDVFX.L1.S1

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA, arguido identificado nos autos, de 48 anos, veio interpor recurso do acórdão proferido, em 02.11.2023, pelo Juízo Central Criminal de ... –J... ., que o condenou pela prática de:

1 ─ um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas a) e c), e 2, alínea a), do Código Penal, na PENA DE 3 (TRÊS) ANOS DE PRISÃO;

2 ─ um crime de incêndio, previsto e punível pelo artigo 272.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, agravado pelo artigo 86.º, n.ºs 3 e 4, do Regime Jurídico das Armas e Munições, na PENA DE 7 (SETE) ANOS E 9 (NOVE) MESES DE PRISÃO;

3. - um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelos artigos 86.º, n.º 1, alínea d), e 90.º, por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea m), n.º 5, alíneas p), r) e s), e 3.º, n.º 2, alínea b), todos do Regime Jurídico das Armas e Munições, na PENA DE 8 (OITO) MESES DE PRISÃO;

Em cúmulo jurídico, foi o recorrente condenado na pena única de 9 (NOVE) ANOS DE PRISÃO.

2. Formulou as seguintes conclusões (transcrição):

“Desta forma, o Tribunal /a quo/violou o disposto nos artigos, 40º e 71º do Código Penal e 18º nº 2 e 27º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

Face ao exposto, e muito que será suprido por vossas Excelências, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e revogar a aliás douta sentença que condenou o recorrente na pena de nove anos de prisão efectiva, por ser desproporcionada às finalidades da punição e ser aplicada ao recorrente pena não superior a cinco anos de prisão, suspensa na sua execução mediante regime de prova, no tempo e condições que Vossas Excelências acharem ser conveniente.”

3. Da motivação, face à exiguidade das conclusões, extrai-se, ainda que:

“O douto acórdão a quo não valorizou:

A confissão livre e espontânea e o seu contributo para a descoberta da verdade material.

O arrependimento e vontade manifestada pelo arguido em reparar a sua atitude e tomar um novo rumo na sua vida

A vontade de reparar os danos causados.

A sua integração social e profissional

O arrependimento ativo no momento da prática do crime de incêndio pois foi o arguido que, no momento, tomou consciência da enormidade do seu ato e apagou o fogo com um tapete e com os pés, tendo ficado com graves queimaduras nos pés e nas pernas o que motivou o seu internamento por dois meses na unidade de queimados do Hospital de S. José e posteriormente mais dois meses na enfermaria do EPL., conforme relatórios clínicos juntos aos autos

O estado de alteração de consciência devido á intoxicação pelo álcool no momento da prática dos crimes corroborado pela vítima BB e pela filha.

A perturbação mental de profunda depressão diagnosticada no Hospital de S. José, onde começou a ser tratado por psiquiatra e psicólogo, continuando o mesmo tratamento no EPL.

O tratamento do alcoolismo crónico diagnosticado no EPL.

A vontade declarada do arguido em se submeter à continuação da desintoxicação do álcool e à vigilância do tratamento e da sua conduta.

Na audiência de discussão e julgamento, mostrou uma postura de humildade e arrependimento, consternação pela sua conduta e assumiu a gravidade dos factos por si praticados.”

4. Em resposta, o D.mo Magistrado do Ministério Público na 1.ª Instância defendeu a improcedência do recurso, alegando, nomeadamente: (transcrição)

“(…) 9 – Em relação ao pressuposto material de aplicação da mesma pena de substituição, a possibilidade de formulação de um juízo de prognose positivo sobre o comportamento do arguido, este é insuscetível de ser formulado no caso em apreço, atento o seu passado criminal, a sua personalidade, registando um historial de consumo de bebidas alcoólicas, e também as próprias condutas perpetradas pelo arguido e consubstanciadoras da prática do crime de violência doméstica e as suas consequências em relação à ofendida e ao seu sobrinho CC, o perigo causado pelo arguido para a vida, integridade física e bens alheios de valor elevado através do incêndio que deflagrou no hall de entrada da residência da ofendida e, ainda, o facto de aquando da deflagração daquele incêndio, o arguido ser portador de uma faca de cozinha com uma lâmina com 16,5 cm de comprimento.

10 - Tais circunstâncias são ainda demonstrativas que as anteriores condenações não tiveram o efeito dissuasor que era de esperar, verificando-se que o arguido AA não se afastou da prática de novos crimes, não moldando o seu comportamento de acordo com a ordem jurídica, pelo que, se nos afigura ser muito elevada a probabilidade de o arguido voltar a delinquir.

11 – Atendendo ao grau de culpa do arguido, bem como as exigências de prevenção geral e especial, sopesadas todas as circunstâncias que a lei manda atender na fixação da medida da pena e que se encontram plenamente analisadas e ponderadas no acórdão, não nos oferece qualquer reparo a decisão do Tribunal de aplicar ao arguido a pena única de 9 (nove) anos de prisão efectiva, atenta a gravidade dos factos praticados.

12 – Pena essa que não deverá ser reduzida nem suspensa, na sua execução, por se entender que não se verificarem os pressupostos do artigo 50.º do Código Penal.”

5. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitiu parecer, suscitando eventual nulidade do acórdão e defendendo a improcedência do recurso: (transcrição parcial)

“É escassíssima, senão ausente, a fundamentação, na decisão recorrida, sobre a medida concreta da pena única, o que impõe a este tribunal o acionamento dos mecanismos corretivos que se mostrem devidos, por via da omissão de pronúncia sobre os fatores atinentes à pena concreta única do concurso de crimes, pois que, a entender–se que a decisão não esclarece devidamente a conexão e o tipo de conexão existente entre os factos em concurso, não aferindo a gravidade do ilícito global, e não ponderando se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou se revelam apenas uma pluriocasionalidade não radicada na personalidade do arguido, então a decisão é nula por omissão de pronúncia e por falta de fundamentação (artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal).

Caso assim se não entenda, por se considerar que constam da matéria de facto provada os elementos necessários que possibilitam a realização do cúmulo jurídico e a determinação da pena única, designadamente os factos integrantes dos crimes e os relativos à personalidade do arguido – sendo certo que é o próprio recorrente que habilita o tribunal de recurso a conhecer da questão, sem qualquer reserva, pode o tribunal de recurso suprir a nulidade nos termos do n.º 2 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, caso se acolha, entre outros, a orientação sustentada no acórdão de 10-12-2014, no processo n.º 18/10.5GBLMG.S1 - 3.ª Secção, relator Pires da Graça ou, do mesmo relator, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-04-2016, no processo n.º 294/14.4PAMTJ.L1.S1 – 3.ª Secção.

(…) A pena única aplicada ficou aquém do meio do intervalo da moldura abstrata aplicável ao concurso dos crimes pelos quais o recorrente foi condenado, pelo que, a aceitar–se a pretensão do recorrente, refletir ainda mais peso às atenuantes gerais na pena única concreta aplicada representaria um desequilíbrio desconforme com a devida proteção de bens jurídicos e as necessidades específicas do caso quanto à prevenção especial de ressocialização, enquanto finalidade principal das penas, sendo certo que também a par dela se deve atender à reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade, através do cumprimento efetivo da pena aplicada, e que não é excessiva.

(…) Afigura-se-nos, assim que, de forma suficiente, na determinação da medida da pena única se está a refletir justificação bastante para a correta consideração da culpa e da prevenção como princípios regulativos dessa medida, e se está a refletir sustentação para manter a fidelidade à medida da necessidade de tutela de bens jurídicos face ao caso concreto, segundo os critérios legais, depois da necessária ponderação a efetuar por este tribunal, se for o caso e se coincidir com a apreciação que efetuámos.

4.2. Conclusão:

Sem prejuízo de melhor análise quanto à (não) fundamentação da pena única aplicada pela instância recorrida e no caso de se entender ser de suprir a invalidade exposta, somos de parecer que o recurso deverá ser julgado improcedente, confirmando–se a condenação.”

Foi cumprido o n.º 2, do art. 417.º do CPP.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), visando, no caso, o reexame de matéria de direito.

Este Tribunal é, assim, chamado a apreciar e decidir sobre:

- A medida da pena única.

Cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. Os factos:

O Acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos: (transcrição)

“1. Em 1998, o arguido AA iniciou um relacionamento amoroso com a ofendida BB, data em que começaram a viver um com o outro, como se de marido e mulher se tratassem;

2. Em 1999, o arguido e ofendida fixaram residência na Rua..., ...,..., que adquiriram por valor seguramente superior a € 5.100;

3. Tal fração encontra-se inserida num prédio com quatro andares, contíguo a outros prédios em zona urbana do ...;

4. No dia 7 de junho de 2006, o arguido e a ofendida contraíram casamento;

5. Dessa relação nasceu, em ... de ... de 1999, DD, filha do arguido e da ofendida;

6. Por sentença proferida em 5.11.2021, no processo 265/18.1..., transitada em julgado, o arguido foi absolvido da prática do crime de violência doméstica sobre a esposa BB, a respeito de factos perpetrados até ao dia 12.06.2020 e condenado pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, sobre a mesma vítima;

7. Desde data não apurada, seguramente anterior a 25.12.2021, que a ofendida tem ao seu cuidado e guarda o seu sobrinho CC, nascido em ........2015, órfão, e que a ofendida BB trata como filho;

8. Desde data não concretamente apurada, mas posterior a 12.06.2020, que o arguido consome com frequência, praticamente todos os dias, bebidas alcoólicas em excesso, alturas em que iniciou discussões com a ofendida, na sequência das quais a acusou de ter amantes, lhe disse “és um bicho” e lhe desferiu empurrões, encontrões e chapadas, provocando-lhe dores nas zonas do corpo atingidas;

9. Quando sucedeu o arguido ser confrontado pela filha DD, que o instava a parar, o arguido dirigiu-se-lhe e, na presença da ofendida, disse-lhe: “é a minha mulher e eu falo como quero”;

10. Em algumas dessas ocasiões em que se achava alcoolizado, o arguido urinou para o interior de uma gaveta de roupa lavada, para o chão da casa-de-banho, para o hall de entrada da residência comum, nas escadas e nos vasos de flores existentes nas partes comuns do prédio, vomitou para a banheira e, após, deitou-se e adormeceu, sem limpar o que quer que fosse, seguro que a ofendida havia de limpar tudo;

11. No dia 24 de dezembro de 2021, noite de Natal, cerca das 19 horas, o arguido chegou à residência comum alcoolizado;

12. Após o jantar, o arguido dirigiu-se à ofendida, dizendo-lhe acintosa e repetidamente “tu és uma santa”, iniciando uma discussão por aquela ter contactado uma advogada;

13. Tendo a ofendida convencido o arguido a deixar a sala, para que esta, a filha e o sobrinho aguardassem pela chegada da hora de abrir as prendas, trancando-se no seu interior, o arguido logo resolveu regressar exigindo que lhe fosse facultada a entrada e desferindo pontapés na porta;

14. Tendo a ofendida dito ao arguido que saísse de casa, que fosse embora, porque já não aguentavam mais viver com ele, este saiu de casa e a ofendida trancou a porta;

15. O arguido manteve-se no exterior aos pontapés à porta de entrada, só aceitando abandonar a casa na sequência da intervenção da Polícia;

16. Nessas circunstâncias, o arguido e a ofendida puseram termo à relação, saindo o arguido de casa e cessando a coabitação;

17. Desde então o arguido vinha pretendendo regressar a casa e continuar a residir aí e a ofendida opunha-se ao seu regresso;

18. No dia 18 de julho de 2022, a ofendida intentou contra o arguido ação especial de divórcio sem consentimento, que corre termos no Juízo de Família e Menores de ..., J., processo n.º 2487/22.1...;

19. No dia 3 de setembro de 2022, cerca das 21.50 horas, encontrando-se embriagado, o arguido muniu-se de uma garrafa de plástico com gasolina, de um isqueiro de cozinha grande e de uma faca de cozinha com uma lâmina de 16,5 cm e o comprimento total de 29,2cm e dirigiu-se à residência da ofendida, sita na Rua ..., ...;

20. Nessa ocasião encontravam-se no interior da residência a ofendida BB e o menor CC e o arguido disso tinha conhecimento;

21. Aí chegado, o arguido forçou a abertura da porta daquela residência, arrombando-a com estrondo;

22. Ato contínuo entrou na referida residência por aquela porta enquanto dizia, exaltado: “a casa também é minha, eu parto e arrombo”;

23. Tendo-se apercebido a ofendida BB da presença do arguido e instado a que este saísse, o arguido recusou-se a sair de casa;

24. Quando a ofendida se muniu do telemóvel para chamar a Polícia, o arguido despejou a gasolina que trazia na aludida garrafa pelo chão do hall de entrada, acendeu o isqueiro de que se munira previamente e encostou a chama por ele produzida à gasolina que despejara pelo chão, fazendo deflagrar um incêndio que se propagou pelos rodapés, umbrais das portas, portas e móveis sapateiros do hall, sala, cozinha e quarto, roupeiro e pelo chão da casa-de-banho daquela residência;

25. Enquanto a ofendida desligava o gás, chamava por socorro e tentava colocar-se a salvo e ao menor CC, o arguido dirigiu-se-lhe dizendo: “Vou-te perseguir; Vou-te perseguir; Não te vou deixar em paz; Vou-te meter na ordem; a casa também é minha”;

26. Nas aludidas circunstâncias, quando a ofendida foi à casa-de-banho recolher o menor CC para o colocar a salvo, cobrindo-o com um roupão e levando-o ao colo para fora de casa, foi atingida pelas chamas que deflagravam com vivacidade no hall de entrada;

27. Como consequência direta e necessária das supra descritas agressões, a ofendida, para além de dores intensas, sofreu:

- no membro superior direito, queimadura no 1/3 médio da face anterior do antebraço, bordo medial, com 4cm de diâmetro médio;

- no membro inferior direito: queimadura nos dedos do pé;

- no membro inferior esquerdo: queimadura no 1/3 superior da face lateral da perna, em “L” com ramos posteriores com 3cm e 4cm de comprimento médio; hiperemia por queimadura nos 2/3 inferiores da face lateral da perna com flitena mantida;

28. Tais lesões determinaram 15 dias para a consolidação médico-legal: com afetação da capacidade de trabalho geral (8 dias), resultando cicatriz superficial na área das flitenas;

29. Após a ofendida e o menor terem saído da residência, o arguido, pelos seus próprios meios, fazendo uso de um tapete, logrou apagar o incêndio que iniciara e escondeu a faca sob as almofadas do sofá e colocou o isqueiro em cima do sofá da sala;

30. Ao atuar do modo descrito, o arguido agiu com intenção de ofender a honra e bom nome da ofendida, de a humilhar e menorizar, de a molestar fisicamente, de invadir e permanecer na residência da ofendida sabendo que tal espaço não lhe era livremente acessível e que o fazia sem o seu consentimento, de provocar nela um sentimento de receio e de inquietação permanentes, sabendo que as expressões que usava eram aptas a tal, de a assediar, de lhe causar lesões físicas e de provocar perigo para a sua vida e integridade física, o que pretendeu e quis, com indiferença à relação que tinha mantido com aquela, à condição de casados que mantinham e à circunstância de terem uma filha em comum, ciente do dever de respeito que daí emergia, querendo e logrando maltratá-la física e psiquicamente, afetando-a na sua saúde e dignidade humana;

31. O arguido agiu da forma descrita, com o propósito de provocar incêndio na residência da ofendida, bem sabendo que a mesma tinha valor patrimonial superior a € 5.100 e que a sua esposa e o sobrinho menor se encontravam no seu interior e que punha em perigo a integridade física e a vida destes, que poderia provocar-lhe os danos que provocou e a sua destruição, o que representou e quis;

32. O arguido sabia que em face da continuidade de combustíveis da residência comum com as demais frações do prédio em que a mesma se encontrava inserida, que o incêndio se poderia propagar àquelas e aos demais prédios, também habitados, e molestar fisicamente e provocar a morte de quem neles se encontrasse, assim como a destruição de tais habitações, perigo que representou e com o qual se conformou;

33. O arguido sabia que, ao praticar os descritos factos no domicílio onde a sua esposa coabitava com o sobrinho, a sujeitava a uma situação de maior fragilidade, retirando-lhe o último espaço de tranquilidade e de sossego e que esta se absteria de se defender para não pôr em causa a segurança do sobrinho;

34. O arguido transportou até à residência da ofendida a descrita faca com o propósito de a usar como arma e sem lhe pretender dar qualquer outra afetação, sabendo que era dotada de uma lâmina de comprimento superior a 10 cm e que não a podia transportar ou usar nas circunstâncias em que o fez, o que representou e quis;

35. O arguido representou, quis e logrou praticar todos os descritos factos na posse da descrita faca;

36. O arguido agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;

Da Contestação

37. À data dos factos descritos em 20. e seguintes da factualidade provada, o arguido encontrava-se a viver num quatro alugado;

38. O fogo estava debelado quando os bombeiros e a polícia chegaram ao local;

39. O arguido ficou queimado em ambas as pernas e nos pés, ao apagar o fogo, tendo estado internado na Unidade de queimados do Hospital de S. José entre, pelo menos, 6 de setembro de 2022 e 3 de outubro de 2022;

40. O arguido começou a ser tratado a nível psiquiátrico e psicológico no Hospital de S. José e continua a ser tratado no EPL onde começou um tratamento de desintoxicação do álcool;

Do pedido de indemnização civil:

41. Em consequência da atuação do arguido descrita nos pontos 20. e seguintes da factualidade provada, a ofendida foi assistida no Hospital de ..., tendo a assistência médica e tratamentos a que necessitou de se sujeitar importado o valor de 85,91 €;

Mais, provou-se que:

42. O arguido confessou parcialmente os factos e manifestou arrependimento pelos mesmos;

43. Antes de ser preso, o arguido trabalhava como técnico de manutenção de resíduos sólidos urbanos e auferia o montante mensal de 850 €, a título de remuneração;

44. O arguido tem uma filha com 24 anos de idade, já autónoma;

45. O arguido regista historial de consumo de bebidas alcoólicas;

46. O arguido tem, como habilitações literárias, o 12.º ano de escolaridade;

47. O arguido já foi condenado pela prática, em:

i. 12.06.2020, de dois crimes de ofensa à integridade física simples, por sentença de 5.11.2021, transitada em julgado em 6.12.2021, na pena de 130 dias de multa;

ii. 25.06.2022, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, por sentença de 22.07.2022, transitada em julgado em 30.09.2022, na pena de 180 dias de multa.”

2. O direito

2.a. Questão prévia suscitada pelo Ministério Público: nulidade do acórdão (artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal).

No seu douto parecer, o Exmº Procurador-Geral Adjunto suscita dúvidas sobre a existência, no acórdão recorrido, de pronúncia e de fundamentação quanto à medida da pena única.

2.a.1. Dispõem os n.ºs 1 e 2 do art. 77.º CPP:

“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

O legislador penal português adotou um modelo de condenação numa pena única, em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

Como se tem afirmado na jurisprudência deste Supremo Tribunal1, “com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente”.

A determinação da medida concreta da pena única deve atender, como qualquer outra pena, aos critérios gerais da prevenção e da culpa (art. 71º do CP); e ainda ao critério da consideração conjunta dos factos e da personalidade do agente, na sua relação mútua (citado art. 77º, no 1, do CP).

Citando o Prof. Figueiredo Dias2: «Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”.

O n.º 2, do artigo 71.º do Código Penal, enumera, de modo não taxativo, fatores que conformam a determinação da medida da pena única que se referem à execução do facto (“o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, “a intensidade do dolo ou da negligência”, “os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram”), à personalidade do agente (“As condições pessoais do agente e a sua situação económica”, “a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”) e outros relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto (“A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime”)3.

Importa, pois, averiguar se a decisão relativa à medida da pena única aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade, bem como se incorpora a análise do retrato global do ilícito e a personalidade do seu agente.

2.a.2. Quanto à determinação da pena única, em síntese da fundamentação, afirma o douto Acórdão recorrido:

“Apreciadas as condutas do arguido e feito o enquadramento jurídico-penal das mesmas, cumpre agora determinar a medida concreta da sanção a aplicar-lhe.

O crime de violência doméstica de que o arguido vem acusado é punível com pena de prisão de dois a cinco anos (cfr. artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal).

Por sua vez, o crime de incêndio é punível com pena de prisão de 3 a 10 anos, sendo esta moldura penal agravada nos presentes autos, nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, compreendendo-se, assim, a moldura penal aplicável entre 4 anos e 13 anos e 4 meses de prisão.

Por sua vez, o crime de detenção de arma proibida pelo qual o arguido vai condenado, é punível com pena de prisão até 4 anos ou pena de multa até 480 dias (cfr. artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro).

Nos termos do artigo 70.º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Referindo-se a este artigo, diz o acórdão da Relação de Lisboa, de 17/01/1996, in CJ, 1996, tomo I, que “I - A escolha da pena, nos termos do artigo 70º do Código penal revisto, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial...”.

Segundo Germano Marques da Silva, “o artigo 70º servirá tão-só para afirmar um critério orientador para a escolha das penas, dando o legislador preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar a recuperação social do delinquente e as particulares exigências de prevenção que não imponham a aplicação de pena privativa da liberdade...” (cfr. Germano Marques da Silva, DPP, III, 1999).

A pena de prisão apenas deve lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelem inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção.

Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental.

No caso dos presentes autos, deve atender-se a que as exigências de prevenção geral são muito elevadas, dado o grande alarme social gerado por situações de violência doméstica, bem como pelo crime de incêndio como a que nos autos se analisa e, ainda, pela detenção indiscriminada de armas com o perigo que lhes está inerente.

O arguido já foi condenado pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, bem como pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário.

Confessou parcialmente os factos, tendo manifestado arrependimento pelos mesmos.

Tudo ponderado, entende o Tribunal que a aplicação de uma pena de multa pela prática do crime de detenção de arma proibida por que vai condenado não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades de prevenção geral positiva ou de reafirmação contrafáctica das normas violadas e de prevenção especial positiva ou de socialização, devendo o arguido ser condenado em pena de prisão tal como o será relativamente aos demais crimes de que vem acusado e pelos quais vai condenado.

Nos termos do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, dentro dos limites definidos pela lei.

Tal artigo consagra assim o princípio que representa a pedra de toque do Direito Penal português, o princípio da culpa. Com efeito, segundo tal princípio, toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, princípio que encontra desde logo consagração no artigo 13.º do Código Penal, que apenas prevê a punibilidade do facto praticado a título de dolo, ou em casos especialmente previstos na lei, a título negligente.

Na verdade, não só não há pena sem culpa, como é também a culpa que decide a medida da pena (artigos 40.º, n.º 2 e 71.º, n.º 1, do Código Penal).

Quanto à prevenção, a pena tem dois tipos de finalidades: por um lado, uma finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, visando a defesa da ordem jurídico-penal tal como é interiorizada pela consciência coletiva (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8/10/1997, cujo sumário está disponível em www.dgsi.pt) e, por outro lado, a prevenção especial positiva ou de socialização, a qual pressupõe que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá, no futuro, outro crime (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 1/07/1998, cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt).

Culpa e prevenção ocupam assim papéis primordiais na determinação da medida da pena. A propósito do papel de ambas, diz o acórdão da Relação de Coimbra de 17/01/1996, in CJ, 1996, tomo I, pág. 38 “...III - Quanto à culpa, o facto ilícito é prevalentemente decisivo, devendo antes de tudo o mais, ser valorado em função do seu efeito externo (ataque ao objeto em particular, designadamente os danos ocasionados, a extensão dos efeitos produzidos). IV – Quanto à prevenção, constitui um fim, relevando para a determinação da pena necessária, em função da maior ou menor exigência do ponto de vista preventivo, acabando por fornecer, em último termo, a medida de pena....”.

Tendo em conta a frequência com que o crime de violência doméstica vem sendo praticado no nosso país, bem como as graves, por vezes definitivas, consequências que tal prática tem vindo a gerar e, ainda, o grande alarme social gerado pelo uso indiscriminado de armas, a que acresce a necessidade de repor a confiança da comunidade relativamente aos crimes de incêndio, as necessidades de prevenção geral são elevadas.

Na determinação concreta da pena, tem o tribunal de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente os critérios referidos nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.

Assim, no caso dos autos, devem atender-se aos seguintes critérios, ao abrigo daquele artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal:

- Tendo em conta as condutas perpetradas pelo arguido e consubstanciadoras da prática do crime de violência doméstica e as suas consequências em relação à ofendida e ao seu sobrinho CC, o perigo causado pelo arguido para a vida, integridade física e bens alheios de valor elevado através do incêndio que deflagrou no hall de entrada da residência da ofendida e, ainda, o facto de aquando da deflagração daquele incêndio, o arguido ser portador de uma faca de cozinha com uma lâmina com 16,5 cm de comprimento, a ilicitude é superior à média quanto a estes crimes, sendo média no que se refere ao crime de detenção de arma proibida;

- O dolo é direto quanto a todos os crimes;

- O arguido confessou parcialmente os factos e manifestou arrependimento pelos mesmos;

- Antes de ter sido preso, o arguido trabalhava como técnico de manutenção de resíduos sólidos urbanos;

- O arguido regista historial de consumo de bebidas alcoólicas;

- O arguido tem, como habilitações literárias, o 12.º ano de escolaridade;

- O arguido já foi condenado pela prática, em:

i. 12.06.2020, de dois crimes de ofensa à integridade física simples, por sentença de 5.11.2021, transitada em julgado em 6.12.2021, na pena de 130 dias de multa;

ii. 25.06.2022, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, por sentença de 22.07.2022, transitada em julgado em 30.09.2022.

CUMPRE AGORA APURAR A PENA ÚNICA DE PRISÃO EM QUE O ARGUIDO SERÁ CONDENADO, EM FACE DOS CRITÉRIOS CONTIDOS NO N.º 2 DO ARTIGO 77.º DO CÓDIGO PENAL.

Ora, somando as penas parcelares aplicáveis aos crimes pelos quais o arguido vai condenado, obtém-se o limite superior da moldura penal aplicável: 11 anos e 5 meses de prisão. O limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas, ou seja, 7 anos e 9 meses de prisão.

Encontrando-se apurada a moldura abstrata, a pena única é determinada de acordo com a parte final do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, ou seja, considerando em conjunto, os factos e a personalidade do agente, sendo esta última determinante para a aferição da pena unitária.

Ora, considerando o já referido em sede de apreciação dos critérios elencados no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, bem como a personalidade do arguido espelhada nos factos que cometeu, o tribunal decide condenar o arguido na pena única de 9 anos de prisão.” (destacado nosso)

2.a.3. Da leitura do segmento relevante da decisão recorrida, supratranscrito, constata-se que:

- São elencados os elementos que devem ser ponderados na apreciação das penas parcelares e na definição da pena única, em mescla indistinta, quer no que se refere à concreta punição de cada crime, quer no relativo à pena única, no momento que deveria ser de definição das penas parcelares;

- No entanto, as penas parcelares só se mostram estabelecidas no dispositivo, embora se encontrem pressupostas na moldura do cúmulo.

Não obedecerá, pois, a fundamentação da determinação das penas parcelares e a caracterização do retrato global do ilícito de que resulta a pena única, bem como a própria concretização de cada uma delas, à melhor técnica decisória e à lógica do regime penal aplicável.

No entanto, afigura-se, ainda, de considerar existir pronúncia e ser suficiente a fundamentação da pena única.

Vejamos:

- No que se refere à execução do facto – Destaca-se

- “e as suas consequências em relação à ofendida e ao seu sobrinho CC, o perigo causado pelo arguido para a vida, integridade física e bens alheios de valor elevado através do incêndio que deflagrou no hall de entrada da residência da ofendida e, ainda, o facto de aquando da deflagração daquele incêndio, o arguido ser portador de uma faca de cozinha com uma lâmina com 16,5 cm de comprimento, a ilicitude é superior à média quanto a estes crimes, sendo média no que se refere ao crime de detenção de arma proibida; O dolo é direto quanto a todos os crimes”.

- Quanto à personalidade do agente e a aspetos relativos à sua conduta anterior e posterior ao facto – Afirmou-se na decisão recorrida:

- O arguido confessou parcialmente os factos e manifestou arrependimento pelos mesmos;

- Antes de ter sido preso, o arguido trabalhava como técnico de manutenção de resíduos sólidos urbanos;

- O arguido regista historial de consumo de bebidas alcoólicas;

- O arguido tem, como habilitações literárias, o 12.º ano de escolaridade;

- O arguido já foi condenado pela prática, em:

i. 12.06.2020, de dois crimes de ofensa à integridade física simples, por sentença de 5.11.2021, transitada em julgado em 6.12.2021, na pena de 130 dias de multa;

ii. 25.06.2022, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, por sentença de 22.07.2022, transitada em julgado em 30.09.2022.

Os excertos da fundamentação que destacámos contêm os elementos essenciais que constituem o leque de critérios atendíveis na definição da pena única, embora sem a sistematização adequada e apenas permitindo entrever o exame crítico realizado.

Com efeito, os antecedentes criminais do arguido, em particular, contra a integridade física (factos de junho de 2020, praticados contra a ofendida nos autos, em contexto idêntico) e a persistência de prática de consumo alcoólico são de molde a caracterizar a personalidade do arguido, em conjugação com os factos de elevada ilicitude descritos, como tendencialmente violenta para a companheira, mãe da sua filha, com quem coabitava há 24 anos. E de desprezo pela integridade física e psicológica dos outros e dos respetivos lar e bens, em situação em que sobre o arguido impende um especial dever de cuidado e solidariedade.

Note-se que, tal como é descrito na decisão recorrida, o arrependimento relevante, ao apagar o incêndio que iniciara, apenas teve lugar após as vítimas se terem posto a salvo, encontrando-se a ofendida, seu cônjuge, ferida por queimaduras.

Como se disse no Acórdão deste Tribunal, de 14.03.2013, no proc. n.º 287/12.6TCLSB.L1.S1, Rel. Henriques Gaspar, a determinação da pena única (no caso, tratava-se de conhecimento superveniente de concurso) “(…) minimamente auto-referencial (factos, descrição, mesmo por súmula, de elementos essenciais para suportar um juízo necessário sobre a dimensão do ilícito global; elementos mínimos relativamente à consideração da personalidade), que permita suportar o julgamento (…)”

Pode concluir-se que, no caso, existe uma fundamentação mínima, concretizada por apelo aos factos, quanto aos critérios gerais da prevenção e da culpa e aos indicados no n.º 1, do art. 77.º, do CP.

3. Quanto à medida da pena única

Alega o recorrente que o Tribunal não valorizou, adequadamente:

- A confissão livre e espontânea e o seu contributo para a descoberta da verdade material.

- O arrependimento e vontade manifestada pelo arguido em reparar a sua atitude e tomar um novo rumo na sua vida

- A vontade de reparar os danos causados.

- A sua integração social e profissional

- O arrependimento ativo no momento da prática do crime de incêndio pois foi o arguido que, no momento, tomou consciência da enormidade do seu ato e apagou o fogo com um tapete e com os pés, tendo ficado com graves queimaduras nos pés e nas pernas (…)

- O estado de alteração de consciência devido á intoxicação pelo álcool no momento da prática dos crimes corroborado pela vítima BB e pela filha.

- A perturbação mental de profunda depressão diagnosticada no Hospital de S. José, onde começou a ser tratado por psiquiatra e psicólogo, continuando o mesmo tratamento no EPL.

- O tratamento do alcoolismo crónico diagnosticado no EPL.

- A vontade declarada do arguido em se submeter à continuação da desintoxicação do álcool e à vigilância do tratamento e da sua conduta.”

Em primeiro lugar, importa salientar que a vontade que ora expressa de manter o tratamento de desintoxicação não integra os factos provados.

Por outro lado, a confissão foi parcial, não constando da matéria de facto que tenha contribuído para o esclarecimento da verdade.

O alegado arrependimento ativo, traduzido na sua ação com vista à extinção do incêndio (que alcançou), apenas se materializou quando as vítimas tinham logrado fugir e após a ofendida ter sofrido queimaduras relevantes.

Todos as demais circunstâncias que invoca foram tidas em conta na determinação da pena.

Além das elevadas necessidades de prevenção geral, bem descritas na sentença recorrida, o dolo é intenso e o retrato global do crime consiste em quadro de violência, especialmente dirigida, na continuidade de idênticos comportamentos anteriores, objeto de condenação.

Não obstante a condenação anterior sofrida, o arguido persistiu na sua conduta violenta que, aliás, intensificou, elevando o respetivo patamar de ilicitude.

Como bem é salientado pelo Ex.mo Procurador-geral Adjunto neste Tribunal, a pena única aplicada ficou aquém do meio do intervalo da moldura abstrata aplicável ao concurso dos crimes, mostrando-se, assim, proporcional e adequada à culpa.

Em consequência, não se surpreendem elementos que permitam justificar um juízo de discordância relativamente à pena aplicada e identificar violação do disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal e 18º nº 2 e 27º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

Pelo que, se entende não ser de efetuar intervenção corretiva na medida da pena única.

Improcede, assim, a petição de redução da pena.

Fica prejudicada a apreciação da peticionada aplicação de pena de substituição, face ao disposto no n.º 1, do art. 50.º, do Código Penal.

III. DECISÃO:

Nestes termos, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, decide:

- Negar provimento ao recurso quanto à medida da pena única, que se mantêm, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente – art. 513º n.º 1 do CPP - fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs – art. 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 20 de março de 2024

Teresa de Almeida (Relatora)

Maria do Carmo Silva Dias (1.ª Adjunta)

Teresa Féria (2.ª Adjunta)

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1. Acórdãos do STJ de 27.5.2020, no Proc. 3/19.1GBFVN.C1.S1, de 13.03.2019, Proc. 610/16.4JAAVR.C1.S1, 13.02.2019, no Proc. 1205/15.5T9VIS.S1, 3.ª Secção, 06.02.2008, Proc. n.º 4454/07, 3.ª Secção e de 14.07.2016, Proc. 4403/00.2TDLSB.S1, 3.ª Secção.

2. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 291.

3. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2.ª Edição, 2022, pag.57.