Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4273/06.7TBVLG.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
REQUISITOS
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS / SERVIDÕES.
Doutrina:
- ARTURO PIRONTI, Servitù per destinazione del padre di famiglia e modalità di manifestazione della volontà contraria, I Contratti 2009, n.º 2, págs. 201 e ss., pág. 203.
- CARLO RUFO SPINA, La necessità dell’apparenza nell’acquisto non negoziale della servitù, Giurisprudenza Italiana 2010, págs. 1581 e ss..
- LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direitos Reais, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, n. 732, pág. 381.
- M. HENRIQUE MESQUITA, Anotação ao Acórdão de 27/11/1995, do Tribunal da Relação do Porto, na RLJ, n.º 3869, págs. 254 e ss., p. 274.
- MAURIZIO MIGLIETTA, La costituzione della servitù di passaggio per destinazione del padre di famiglia e per usucapione, Giurisprudenza Italiana 1992, Parte I, sez. II, cols. 35 e ss.,col. 36.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1547.º, N.ºS1 E 2, 1549.º, 1569.º, N.ºS2 E 3.
Sumário :
I - A servidão predial por destinação do pai de família exige os seguintes requisitos: (i) que, num determinado prédio, haja sinais visíveis e permanentes de serventia de uma fracção do prédio relativamente a outra ou que existam tais sinais de serventia de um prédio relativamente a outro do mesmo dono; (ii) que as fracções do que até então constituía um único prédio, ou os dois prédios já existentes, deixem de ser propriedade da mesma pessoa; (iii) que o proprietário não se oponha ao tempo da constituição da servidão.

II - Afastado o entendimento desta servidão como sendo negocial ou quase negocial – em que a não oposição do proprietário era considerada uma espécie de acordo tácito deste à sua constituição –, prevalece a perspectiva de que se trata de uma tutela de aparência criada, concedida ope legis.

III - Existindo sinais visíveis e permanentes de um caminho, anteriores à separação dominial e à posse do autor, estão reunidos os pressupostos para a constituição de uma servidão por destinação do pai de família.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 - RELATÓRIO

AA intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra BB e marido CC, alegando ser comproprietário, com os seus filhos, de um prédio urbano, adquirido por doação verbal dos seus pais, em 1975. Ali foi então construída a casa que lá se encontra, que habita com o seu agregado familiar desde 1977, dela tratando, bem como do terreno que lhe é adjacente.

Mais alegou que, desde 1975, sempre utilizou, para acesso ao seu terreno, a pé e de carro ou tractor, um caminho situado a norte-nascente dele, caminho esse que corre no sentido norte-sul, sobre o terreno de seus Pais denominado "C...", situada entre a Rua .... (R. ....) e a casa de seu Pai DD. Esse caminho tem uma largura de cerca de 3 metros e, ao chegar à casa que foi dos pais, tem uma bifurcação prolongando-se por cerca de três metros para a sua direita, até ao portão do A. Afirmou que, em 1977, ali colocou tal portão de chapa, a delimitar a entrada e saída entre esse caminho e o seu lote, todos estes actos praticando por si e pelos seus familiares, ininterruptamente, desde 1975, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, incluindo dos RR, até Novembro de 2005, na convicção de que exercia um direito próprio sem prejudicar ninguém.

Assim, concluiu ter adquirido por usucapião quer a propriedade do seu prédio quer o direito de servidão de passagem pelo referido caminho existente a norte-nascente do seu prédio.

Alegou ainda que, em 2005, os RR o proibiram de passar com o seu carro por um portão verde que entretanto havia sido colocado nesse caminho, de comum acordo entre todos, com isso obstando à circulação por uma área de cerca de 10m2, que integra o prédio da C..., agora pertencente à herança deixado pelos pais e onde os RR construíram a sua casa. Depois, em 2006, os RR levantaram um muro de blocos, do lado de dentro do dito portão verde, em todo o seu comprimento, sobre o qual colocaram rede. Com isso impedem a passagem desde o prédio do autor, pelo referido portão de chapa, até àquela área do prédio da C... e desde esta área até à Rua .., pelo dito caminho de servidão.

Por isso pretendem que os RR. sejam condenados: a reconhecer que o A é comproprietário de 2/ 3 indivisos do prédio que descreve como seu; a reconhecer que o A adquiriu por usucapião a favor deste seu prédio o direito de servidão de passagem a pé, de carro, tractor e outros veículos automóveis sobre um caminho em terra batida, com a largura de Cerca de 3 m, existente a norte-nascente entre o portão de chapa do prédio do A e a R. ...., em parte, sobre uma faixa de terreno que está ocupada pelos RR, como logradouro da casa deles; a retirar o portão de ferro, O muro e a rede que colocaram a tapar esse caminho, a cerca de 3 m do portão nascente do A; a não impedir a passagem do A e do seu agregado familiar e de quem queira vir a casa do A por esse caminho entre a R .... e o portão nascente do A, a pé, de tractor ou em veículos automóveis.

Os RR. contestaram, excepcionando a ilegitimidade do A, por desacompanhado da mulher e filhos, e a sua própria ilegitimidade passiva, por desacompanhados dos restantes irmãos e cônjuges, todos herdeiros da herança indivisa de que faz parte o terreno dominante e por onde 'passa o caminho de servidão alegado nos autos. Afirmaram a aquisição por usucapião do terreno e da casa que nele construíram, como descrito pelo A" afirmando que em 1997 muraram esse prédio, que lhes fora doado verbalmente pelos pais, ali deixando um portão na confrontação do seu prédio com o terreno da casa do pai. Alegaram a aquisição do seu prédio por usucapião e, no mais, impugnaram os factos alegados, afirmando que quem autorizou a colocação do portão verde foi o pai da R mulher, para os RR terem acesso à Rua .... pelo caminho descrito e que eles apenas permitiam passagem de pessoas a pé para casa do A. Assim, o trânsito de pessoas para casa de A ou dos RR pelo caminho invocado como de servidão apenas se processava por autorização dos seus pais. Pelo contrário, o acesso de carro para a casa do A sempre se fez pela Rua …, que proporciona um acesso mais cómodo e fácil. Assim, ainda que se entendesse existir a servidão de passagem, esta estaria extinta por desnecessidade, sem prejuízo de expressarem que não pretendem formular um tal pedido por via reconvencional.

O A apresentou réplica; respondeu às excepções e pediu a intervenção principal da sua mulher e filhos para suprir a ilegitimidade activa e, para suprir a ilegitimidade passiva, pediu a intervenção principal dos restantes herdeiros, o que foi deferido.

Citados os intervenientes, o chamado EE e mulher apresentaram articulado próprio, além de aderirem aos articulados do autor. Alegaram, além daqueles factos e pedido constantes dos articulados do autor, ainda que:

- O terreno doado pelos avós a seus pais, onde foi construída a casa dos AA. foi assim destacado daquele prédio misto ( urbano e rústico) denominado C..., que se acha inscrito na respectiva matriz rústica sob o art.º … e na urbana sob o art.º …, antes pertença dos falecidos FF e DD e hoje da herança de que o A. AA é herdeiro.

- Por sua vez, os RR. construíram a sua casa em terreno que faz parte daquele prédio da C..., autorizados pelos falecidos FF e DD, a qual ficou a confrontar a nascente com o prédio dos AA.

- Os RR. também são herdeiros dos falecidos FF e DD do prédio da C....

- Os referidos FF e DD, doaram também em vida ao filho GG, entretanto falecido em 22.11.2005, uma q,~tra parcela de terreno onde aquele veio a construir uma outra casa inscrita na respectiva matriz sob o artigo …, que ficou a confrontar do lado nascente com o prédio dos RR. e que faz parte do prédio da C... já referido.

- Esta casa tinha saída para o caminho da C....

- A casa dos AA. foi construída com a frente virada para o prédio da C..., pois era pelo caminho existente nesse Campo que se fazia a entrada e saída de e para a Rua .....

- Só a casa dos AA. está desanexada do Prédio da C... e devidamente registada na competente Conservatória do Registo Predial ....

- A saída e entrada de e para o caminho do prédio da C... vem sendo feito pelos AA. há mais de 10, 15, 20 e 30 anos, sem oposição de ninguém, á vista de toda a gente, de forma reiterada, publica e pacificamente, de boa fé como o faz o verdadeiro dono do direito.

- Este caminho era ao tempo da desanexação do prédio dos AA. o único meio de acesso à casa dos AA., à casa da C... onde os falecidos viviam e depois às restantes casas.

- O referido caminho está perfeitamente delimitado no chão do  C..., é visível o seu traço e largura e é utilizado desde o tempo de seus avos para os fins referidos na p.i do A. AA.

- No quintal do prédio dos AA' está edificado uma garagem donde saía e entrava o carro da família, mas que agora está impedido, pelos RR.

- Na área descoberta do prédio do filho GG, também este tem edificado uma garagem apenas com entrada e saída para o referido caminho que a Ré entretanto tapou.

- No referido C... existem assim sinais visíveis e permanentes de um caminho de terra batida, demonstrativos de passagem de carros, tratares e de pessoas a carro e a pé, que não foram destruídos.

- Este C... está assim onerado com urna servidão de passagem, pelo menos para a casa dos AA.

- Tais sinais, corno terra batida, traço visível de passagem de carros e tractores e de entrada de pessoas e bens, são permanentes há mais de 20 anos, revelando serventia de pelo menos para a casa dos AA -.

- Quando ocorreu a separação do domínio em 1975 do prédio dos AA. do da hoje herança, não existiu nenhuma declaração que eliminasse tal serventia de um para o outro, por parte dos avos já falecidos.

- Bem pelo contrário, os falecidos avos durante mais de 20 anos tiveram o caminho para sua casa e para casa dos filhos, um dos quais o A. AA, sem nada dizerem em contrário acerca da passagem aquando da separação do domínio.

- Os AA. beneficiam assim do direito de passarem pelo C..., através do caminho aí existente, porquanto ao haver separação do domínio, ficaram os sinais visíveis do caminho no C..., que são permanentes há mais de 20 anos, e que evidenciam serventia para a casa dos AA. e servidão de passagem que se constituiu por destinação de pai de família.

Concluem pedindo a condenação dos RR a reconhecer:

1 ° - o prédio identificado na p.i e descrito na competente Conservatória do Registo Predial ... sob o n° …-C…, pertence em compropriedade ao a. AA, HH e II, na proporção de 2/3 e 1/6 respectivamente;

2° - a reconhecerem que os AA. adquiriram a favor deste seu prédio o direito de servidão de passagem pelo Prédio da C... aqui representada por todos os intervenientes, inclusive os RR. o qual se encontra inscrito na respectiva matriz rústica e urbana sob os artigos … e … e descrito na competente Conservatória do Registo Predial ... sob o n" …'':' C…;

3° - que este prédio está assim onerado com uma servidão de passagem - de pé, de carro, outros veículos automóveis e tractores - através de um caminho que está identificado na p.i do a. AA a favor de pelo menos o prédio dos AA. por no caso ter sido constituída servidão de passagem por destinação de pai de família;

4° - que os RR. sejam condenados a reconhecerem que no seguimento daquele caminho têm os AA. direito de passagem sobre uma faixa de terreno que está ocupada por eles, como logradouro da casa deles, identificada também na p.i do a. AA.

5° - condenados os RR. nos restantes pedidos feitos pelo a. AA;

6° - em alternativa e caso se entenda o contrário do que alegam, deverá declarar-se que a constituição do direito de servidão de passagem não ocorre por destinação de pai de família, mas por usucapião.

Após contestação dos RR. a tal articulado, o processo foi saneado e prosseguiu para julgamento.

Porém, em sede de julgamento, e tal como descreve a sentença recorrida, aquando da resposta à matéria de facto e antes da mesma, procedeu-se à regularização do processado por despacho, ordenando-se a notificação dos intervenientes principais e já naquela fase processual citados para a acção como associados os RR., nomeadamente os que não tinham mandatário judicial, porquanto não tinham sido notificados da junção de petição inicial com pedidos de condenação formulados pelo filho e nora do autor.

Após tal notificação, vieram apresentar articulado os chamados JJ e mulher KK, invocando a nulidade da doação verbal do prédio reivindicado pelo A e intervenientes seus associados e inscrito na CRP, por inobservância de forma legal (doação realizada sem escritura pública), pelo que não podem ser considerados donos e proprietários do prédio dominante, porquanto tal prédio está integrado na massa hereditária. Então, sendo o mesmo o prédio - o serviente e o dominante- não pode nascer qualquer tipo de servidão. Alegaram ainda que o autor, no processo judicial de inventário a correr por morte dos pais, licitou e foi-lhe adjudicado o prédio aqui em discussão, o que demonstra a falta de animus, e ainda licitou e foi-lhe adjudicado o prédio contíguo ao que se pretende aqui como dominante, o que significa que, mesmo que eventualmente existisse uma servidão de passagem, o autor tem agora a possibilidade de aceder ao mesmo caminho sem necessidade de impor um encargo a um outro prédio de outro proprietário. Por isso, pedem a extinção, por desnecessidade, dessa servidão de passagem. Mais alegam que o caminho que existe é exclusivamente em benefício da casa dos falecidos pais das partes, não havendo sinais visíveis para casa do autor e Ré. Por outro lado, o acesso de carro para casa do autor e Ré sempre se processou pela Rua ..., sendo certo que esta rua oferece acesso mais fácil e cómodo ao prédio do autor do que a Rua ..., que fica muito afastada da casa do autor. Pedem a absolvição dos RR do pedido e subsidiariamente, a extinção da servidão por desnecessidade.

Os intervenientes EE e mulher (associados do autor) apresentaram réplica e sustentaram estar prejudicada a apreciação da nulidade invocada, por estar alegada a aquisição da propriedade do prédio por usucapião e registada a sua aquisição, aquisição e registo que não foram impugnados. Mais referiram que nesse inventário, não obstante o teor do registo predial, havia necessidade de relacionar o prédio como doado, sendo certo que esta doação do terreno ao autor por seus pais foi reconhecida por todos os interessados.

Na sequência de tais articulados, foi ordenado o aditamento de novos quesitos à base instrutória e cumprido o art. 5120 do CPC, reabrindo-se a audiência de julgamento a propósito dos quesitos aditados.

Concluído o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, proferiu a condenação dos RR a:

A)- a reconhecerem que o A AA é comproprietário de 2/3 indivisas do prédio identificado no n° 1 desta Petição e EE e II comproprietários na proporção de 1/6 respectivamente.

B ) - a reconhecerem que os AA. adquiriram a favor deste seu prédio o direito de servidão de passagem pelo prédio da C... aqui representada por todos os intervenientes, inclusive os RR. o qual se encontra inscrito na respectiva matriz rústica e urbana sob os artigos … e … e escrito na competente Conservatória do Registo Predial ... sob o n° ..- C…;

C) - que este prédio está assim onerado com uma servidão de passagem - de pé, de carro, outros veículos automóveis e tractores - através de um caminho que está identificado na p.i do A. AA a favor de pelo menos o prédio dos AA. por no caso ter sido constituída servidão de passagem por destinação de pai de família;

D) - a reconhecerem que no seguimento daquele caminho têm os AA. direito de passagem sobre uma faixa de terreno que está ocupada por eles, como logradouro da casa deles, identificada também na p.i do a. AA.

E ) - a retirarem o portão de ferro, o muro e a rede que colocaram a tapar esse caminho, a cerca de 3 m do portão nascente do A.;

F ) - a não impedirem a passagem do A. e do seu agregado familiar e de quem queira vir a casa do a por esse caminho entre a rua P…. e o portão nascente do A, quer seja a pé, de tractor ou em veículos automóveis.

Esta sentença foi impugnada pelos RR., tendo estes, no seu recurso, recurso, impugnado a avaliação da prova produzida, bem como a solução jurídica decretada pela primeira instância. Terminam o seu recurso alinhando as seguintes conclusões:

"L A doação feita aos AA. foi verbal, como se retira dos factos provados (5), sendo pois inapta a produzir efeitos, atendendo a que violou a forma legal imperativa;

II. Assim, e até à data do decesso do pater familias, inexistia uma separação dominial dos prédios mantendo-se a comunhão hereditária até à aquisição da propriedade do prédio dos AA., por usucapião;

III Os sinais e factos praticados após o decesso e antes da separação dominial não podem relevar para o preenchimento dos requisitos do 1549.° CC.

IV. Inexistem sinais, anteriores a 1995, no prédio dos RR. que possam indicar uma qualquer relação de serventia entre os prédios;

V. O único portão que existiu resultou de um acordo entre AA. e RR. já após o decesso do primitivo proprietário;

VI. Os sinais que existem são num prédio terceiro, que confina tanto com o prédio dos RR. como com um prédio dos AA. pelo que os sinais aí existentes podem indicar a existência de uma relação de serventia entre esse prédio terceiro e os restantes;

VII. Sendo portanto equívocos para poderem preencher os requisitos do artigo 1549.° CC.

VIII. Em alternativa, e no caso de se entender. que existe uma servidão predial constituída por destinação de pai de família, deve a mesma ser declarada extinta, por desnecessidade, à luz da doutrina exposta nas alegações e que oferece indubitavelmente a melhor solução jurídica, atendendo a que os AA. são proprietários de um prédio contíguo aos dos RR. e ao denominado C..., que lhes possibilita um acesso igualmente cómodo para a Rua ...."

Foi junta resposta ao recurso, pelos AA, na qual se pronunciaram pelo acerto da decisão recorrida, quer na parte respeitante à apreciação da prova e dos factos controvertidos, quer na parte referente à solução jurídica encontrada.

O recurso foi admitido, como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo.

O Tribunal da Relação julgou improcedente a apelação e confirmou integralmente a douta decisão recorrida.

Inconformados os RR., BB e marido, vieram interpor recurso em que pedem, em síntese, a revogação do Acórdão recorrido porque não estariam reunidos os pressupostos para a constituição de uma servidão por destinação do pai de família, porquanto não estaria provada a existência, anteriormente à separação dominial, de sinais visíveis e permanentes de serventia entre as duas fracções do prédio.

II. Fundamentação

a) De facto

Foram os seguintes os factos dados como provados em Tribunal:

1) O A. e a Ré BB são irmãos.

2) HH e II são filhos do autor.

3) O A. é casado no regime de comunhão de adquiridos com LL.

4)  A aquisição da propriedade sobre prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e 10 andar com quintal, destinado a habitação, com a área coberta de 109,50 m2 e descoberta de 558,50 m2, sito na Rua ..., n° 90, Freguesia …, ..., a confrontar de norte com herdeiros de DD, sul com R. ..., nascente com casa dos RR e com herdeiros de DD, poente com MM, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n," … e inscrito na matriz urbana sob o art," …, encontra-se registada na referida Conservatória na proporção de 2/3 para o favor do A., de 1/3 a favor de HH e de 1/3 a favor de II, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária por morte de NN - ap. D.O 14, de 2004.01.22 (doe. de fls. 26 a 29).

5) A casa foi construída num lote de terreno que foi doado verbalmente ao A. em 1975 por seus pais DD e FF.

6) Tal construção foi autorizada no Proc. de obras n," … da Câmara Municipal ...."

7) Tendo sido vistoriada e passado o alvará de habitabilidade n? 2 pela Câmara Municipal ... em 02-01-1980.

8) Em 1975 o A. iniciou as obras de construção da casa abrindo ele próprio os alicerces e entregando a construção do prédio a um empreiteiro.

9) E em 1975 o A. começou a cultivar o quintal com hortaliças e a plantar videiras e outras árvores.

10) Por volta de 1977 o A vedou com um muro feito com tijolos de mecan o terreno doado nos limites acordados com os pais, limites esses que ainda assim se mantêm.

11) Desde 1977 o A passou a viver naquela casa com o seu agregado familiar.

12) E continuou a cultivar o quintal lavrando, semeando, plantando árvores e colhendo os seus frutos, ininterruptamente até hoje.

13) A casa foi inscrita na matriz predial em 04 de Abril de 1985.

14) Desde então até hoje o tem A. pago a respectiva contribuição.

15)O A. tem feito as pinturas, conservação e reparações da casa que se têm mostrado

16) necessárias.

17) O A arranjou e alargou o caminho do lado sul, agora chamado R ....

18) Desde 1975 o A e o seu agregado familiar utilizam para acesso ao seu terreno, a pé, um caminho situado a norte-nascente que corre, no sentido norte-sul, sobre o terreno de seus pais denominado "C...", situado entre a Rua .... (e inscrito na matriz predial rústica sob o art° 537) e a casa de seu pai DD, casa essa inscrita na matriz urbana sob o art° … e descrita sob o n" ….

19) Esse caminho tem cerca de 3 metros de largura.

20) Esse caminho, que faz a ligação entre a Rua … e a casa dos pais do A, ao chegar à casa dos pais do A, tem uma bifurcação, com cerca de três metros de comprimento, para a sua direita até ao portão do A

21) Os RR. colocaram um portão com o comprimento de cerca de 3 metros, com os seus ferros pintados de verde, nesse caminho.

22) Este portão verde ficou a uma distância, em relação ao portão branco de chapa do A de 1,20 m entre o pilar poente do portão verde e o pilar norte do portão do A ; e de 5,80 m entre o pilar nascente daquele portão e o pilar sul do do A

23) O A e sua família continuaram a passar pelo caminho, através do portão, a pé.

24) Em Novembro de 2005 o R. proibiu o A de passar com o carro através desse portão, dizendo que os A podiam continuar a passar, mas apenas a pé.

25) Meses depois os RR colocaram duas molas no portão para ele se fechar automaticamente sempre que se passasse.

26) No dia 05-08-06 os RR. colocaram uma verguinha de ferro retorcida no portão de forma que o A. e sua família não o pudessem abrir em 06.08.06

27) Na manhã do dia 10 de Agosto de 2006 os RR levantaram um muro de blocos de mecan, do lado de dentro, mesmo encostado ao referido portão de ferro, verde, e a todo o seu cumprimento.

28) Tal muro tem 1,40 m de altura tendo ficado mais alto do que o portão de ferro.

29) E por cima deste muro os RR colocaram uma rede verde com 0,50 m de altura.

30) A casa de RlChão, sita no Lugar …, freguesia …, concelho ..., confrontando de norte com herdeiros de DD, nascente com GG, sul com caminho, e de poente com o Autor, a qual está inscrita na matriz urbana sob o art° …, aí constando como proprietária da mesma inscrita a R. BB (cfr. doe. de fls. 25).

31) Mais se provou (Da Base Instrutória da Causa):

32) O arranjo e alargamento indicado em P) (supra, ponto 17) ocorreu por volta de meados dos anos 90 (antigo ponto IOda Bl).

33) e com o mesmo o A. visou tornar o caminho transitável, já era uma quelha . estreita e inclinada (antigo ponto 2° da Bl),

34) Desde 1975 o A. utiliza o caminho indicado na al. Q) dos factos assentes (supra, ponto 18) para acesso ao seu terreno, de carro ou de tratar (antigo ponto 3° da Bl),

35) Foi pelo caminho indicado na alo Q) dos factos assentes (supra, ponto 18) que passaram as pessoas e os veículos que transportaram os materiais para a construção da casa do A. (antigo ponto 4° da Bl).

36) É por este caminho que o A. e o seu agregado familiar têm passado livremente desde 1975 de carro entre a sua casa e a R. … (antigo ponto 50 da Bl).

37) É por este caminho que têm transitado os tractores que, desde 1975 até pelo menos 1992, lavraram e fresaram o quintal do A. e de EE e II (antigo ponto 60 da Bl).

38) O terreno e casa do A. e de EE e II não tinha outro acesso de carro até pelo menos meados dos anos 90 (antigo ponto 7° da Bl).

39) Em data não apurada o A. AA colocou um portão de chapa na estrema nascente do seu terreno a delimitar a entrada e saída entre esse caminho e o seu lote (antigo ponto 80 da Bl).

40) Todos estes atas praticados pelos A. e seus familiares, nomeadamente e de EE e II, duraram ininterruptamente desde 1975 até pelo menos meados dos anos 90 (antigo ponto 90 da Bl).

41) à vista de toda a gente (antigo ponto 100 da Bl).

42) e sem oposição de ninguém (antigo ponto 11° da Bl).

43) Praticando-os o A. e de EE e II na convicção de que exercem um direito próprio e sem prejudicar ninguém (antigo ponto 120 da Bl).

44) Os RR. construíram uma casa de R/Chão, sita na Rua ..., n. …, Freguesia de …,' em terreno de prédio da "C...", em data não apurada, mas - após o A AA ter construído a sua (antigo ponto 13° da Bl).

45) em terreno dos pais da Ré mulher, que a autorizaram a construir e lhe deram esse terreno (antigo ponto 140 da Bl).

46) O portão referido na al. T) dos factos assentes foi colocado pelos RR, após 1995 (falecimento do pai, último progenitor a falecer), com a concordância do A., para as galinhas dos RR não saírem e para não entrarem cães e bicharada para o quintal dos RR ( antigo ponto 15° da Bl).

47) O portão não tinha fechadura (antigo Ponto 16° da Bl)

48) O A e sua família continuavam a passar no caminho, através do portão de carro (antigo Ponto 17° da Bl)

49) Para guardar o carro na sua casa, o A. passava pelo portão verde e utilizava uma faixa de caminho, com a largura de cerca de 3 metros e o comprimento entre 1,20 e 5,80 m, até ao portão do A., que fica a poente, que pertence ao prédio da "C..." pelo menos até meados dos anos 90 ( antigo Ponto 18° da Bl)

50) O caminho indicado na al, Q) dos factos assentes já era utilizado antes - há mais de 30 anos - pelos pais do A. AA a para acesso da sua casa à Rua .... (antigo Ponto 19° da Bl)

51)... tendo sido pelos mesmo traçado (antigo Ponto 20° da BI)

52) Tal caminho, em terra batida, apresenta marcas da passagem pelo mesmo de pessoas, automóveis e tractores ( antigo Ponto 21° da BI)

53) A casa dos AA foi construída com a frente virada para o prédio da C..., pois era pelo caminho existente nesse campo que se fazia a entrada e saída de e para a Rua ... (antigo Ponto 22° da BI)

54)Este caminho era o único meio de acesso à casa dos AA, à casa da C... onde os falecidos viviam e às restantes casas de carro até meados dos anos 90 (antigo Ponto 23° da BI)

55) No quintal do prédio dos AA está edificada uma garagem donde saía e entrava o carro da família ( antigo Ponto 24° da BI)

56) No referido campo da C... existe um caminho de terra batida, com traço visível de passagem de carros e tractores e de entrada de pessoas há mais de 20 anos, pelo menos para serventia da casa dos AA (antigo Ponto 25° da Bl).

57) Os falecidos, durante mais de 20 anos e desde 1975 e até falecerem (1995 faleceu o pai, último progenitor a falecer) tiveram aquele caminho para sua casa e para casa de seus filhos, um dos quais o autor AA, sem nada dizerem em contrário acerca de tal passagem (antigo Ponto 26° da BI).

B) De direito:

Um dos modos de constituição das servidões prediais, como resulta do n.º 1 do artigo 1547.º do Código Civil é a destinação do pai de família. O artigo 1549.º do mesmo Código estabelece que “se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento”.

Para que este modo de constituição de servidões opere é, por conseguinte, necessário que estejam reunidos os seguintes requisitos: em primeiro lugar que num determinado prédio haja sinais visíveis e permanentes de serventia de uma fracção do prédio relativamente a outra ou que existam tais sinais de serventia de um prédio relativamente a outro no mesmo dono. Repare-se que tecnicamente não se pode falar em servidão, mesmo quando já existem dois prédios, colocar um serviço do outro cabe nos poderes do proprietário, enquanto tal.

É, depois, necessário que as fracções do que até então constituía um único prédio, ou os dois prédios já existentes, deixem de ser propriedade da mesma pessoa. A mudança de domínio pode ocorrer não apenas voluntariamente e através de um negócio jurídico (contrato ou testamento), mas também coactivamente (expropriação) ou por um meio de aquisição originária da propriedade (usucapião ou acessão). È ainda necessário para que a servidão se constitua que o proprietário não se oponha ao tempo da constituição da servidão, requisito que a nossa lei de algum modo refere ao dispor que pode declarar-se outra coisa ao tempo da separação “no respectivo documento”.

A transformação da relação de facto de serventia em uma relação jurídica de servidão opera, como se vê, por força de uma fattispecie complexa, cuja qualificação sempre se revelou controversa.

No passado, imperou um entendimento desta servidão como sendo negocial ou quase negocial, sendo a não oposição do proprietário considerada uma espécie de acordo tácito deste à sua constituição. Superado este entendimento parece prevalecer hoje a perspectiva de que se trata aqui de uma tutela da aparência criada[1] (recorde-se que os sinais têm que ser visíveis) concedida ope legis. A jurisprudência portuguesa tem, no entanto, qualificado esta servidão como voluntária e não deixa de ser exacto que subsiste um certo elemento de voluntariedade que se exprime tanto na conduta do proprietário em colocar os sinais (ou, pelo menos, em não os remover), como em não se opor à constituição da servidão (ao menos quando a separação dos prédios ou fracções se faz por documento)[2].

No caso vertente não se contesta a existência de sinais visíveis e permanentes de um caminho[3]. A recorrente suscita apenas a questão de que tais sinais teriam que ser anteriores à separação dominial o que considera como não demonstrado.

A separação de domínios não ocorreu por força da doação verbal do lote de terreno, já que tal doação estava ferida de nulidade, tendo-se verificado, apenas, com a mesma, a transmissão da posse. É certo que ao invocar com sucesso a usucapião a propriedade do terreno passou a ser do Autor a partir do momento do início da posse. Trata-se aqui de uma ficção legal que pode duvidar-se que deva aplicar-se para efeitos da data determinante dos sinais de constituição de uma servidão voluntária, como a servidão por destinação do pai de família, já que retroagindo a 1975 (por ter sido invocada a usucapião em 1990) nunca nesse momento se teria podido opor o proprietário do terreno. Mas, em todo o caso, as Instâncias consideraram e bem que dos factos dados como provados se podia já inferir que os sinais de uma caminho já existiam antes da posse do Autor: sublinhe-se que o caminho foi construído pelos pais do Autor e não por este (n.º 51 dos factos dados como provados) e que já foi utilizado pelo Autor para construção da sua casa (n.º 35 dos factos dados como provados).

Estão, assim, reunidos todos os pressupostos para a constituição de uma servidão por destinação do pai de família, sendo que tal servidão, em princípio, e como bem refere o Acórdão recorrido, seria uma servidão voluntária e não se extinguiria por destinação do pai de família.

No entanto, importa não esquecer que o n.º 3 do artigo 1569.º manda aplicar o n.º 2 do mesmo preceito (número este que prevê a extinção das servidões constituídas por usucapião) às servidões legais, “qualquer que tenha sido o título da sua constituição”. E o artigo 1547.º n.º 2, por seu turno, estabelece que “as servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos”.

E daí que para OLIVEIRA ASCENSÂO, por exemplo, verificando-se os pressupostos que permitem impor uma servidão legal, a servidão que se venha a constituir (mesmo que por destinação do pai de família) deve considerar-se sempre uma servidão legal[4], tendo-se pronunciado no mesmo sentido, por exemplo, HENRIQUE MESQUITA e MENEZES LEITÃO[5].

Mas os Réus/Recorrentes não apresentaram qualquer pedido reconvencional de extinção da servidão por desnecessidade e nem a questão é objecto do seu recurso de revista, pelo que esta questão também não se suscita no caso concreto.

Decisão: Confirma-se o Acórdão recorrido e nega-se a Revista

Custas pelo Recorrente sem prejuízo do apoio judiciário

Lisboa, 5 de Maio de 2015

Júlio Gomes (Relator)

Nuno Cameira

Salreta Pereira

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[1] Cfr., por todos, CARLO RUFO SPINA, La necessità dell’apparenza nell’acquisto non negoziale della servitù, Giurisprudenza Italiana 2010, págs. 1581 e ss.
[2] Daí que ARTURO PIRONTI, Servitù per destinazione del padre di famiglia e modalità di manifestazione della volontà contraria, I Contratti 2009, n.º 2, págs. 201 e ss., pág. 203, afirme que para que a servidão se constitua é necessária uma ausência de disposições contrárias à servidão “pelo que bem pode dizer-se que o silêncio constitui elemento essencial para que possa verificar-se a constituição da servidão por destinação”.
[3] Como destaca MAURIZIO MIGLIETTA, La costituzione della servitù di passaggio per destinazione del padre di famiglia e per usucapione, Giurisprudenza Italiana 1992, Parte I, sez. II, cols. 35 e ss.,col. 36, os sinais podem ser os traços visíveis de um caminho formado até simplesmente pela acção dos caminhantes.
[4] Como se pode ler no sumário do Acórdão de 27/11/1995 do Tribunal da Relação do Porto: “1. Todos os modos de constituição de servidões voluntárias referidos no n.º 1 do art. 1547.º do Código Civil – contrato, testamento, usucapião e destinação do pai de família – consubstanciam meios de constituição voluntária das servidões legais, a que alude o número 2 do mesmo preceito. II. Para a extinção de uma servidão de passagem com fundamento em que se tornou desnecessária, nos termos do n.º 3 do artigo 1569 do mesmo diploma legal, o que importa é que, constituída a servidão por qualquer dos meios previstos no n.º 1 do artigo 1547, ela contenha em si o condicionalismo referido no artigo 1550.º, n.º 1 e 2, isto é, os requisitos necessários para que na falta de constituição voluntária, o proprietário do prédio dominante pudesse coercivamente, por via judicial, constituir essa servidão sobre o prédio serviente”. O referido Acórdão é anotado por M. HENRIQUE MESQUITA, RLJ, n.º 3869, págs. 254 e ss., p. 274, que concluía que uma servidão por destinação do pai de família poderia ser uma servidão legal, “porque à data da constituição, o prédio dominante era relativamente encravado”.
[5] LUIS AA TELES DE MENEZES LEITÃO, Direitos Reais, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, n. 732, pág. 381.