Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B314
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOITINHO DE ALMEIDA
Descritores: TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ200503150003142
Data do Acordão: 03/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 6461/02
Data: 10/19/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : A interpretação de um testamento é questão de direito quando a interpretação da vontade real do testador abstrai de meios complementares de prova (n°1 do artigo 2187° do Código Civil).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. A Associação "A" intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra B e mulher C, pedindo a condenação dos Réus a:
a) Entregar à Autora o prédio urbano, denominado vivenda "...", composto de R/C e 1° andar, sito na Rua Martins Vidal n°..., Parede, inscrito na matriz urbana da freguesia da Parede sob o artigo 110° e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n°01665/270292.

b) Entregar à Autora as importâncias que receberam a título de rendas, entre 1 de Junho de 1999 e 31 de Março de 2001, calculadas em 3.066.424$00 (sendo 2.567.697$00 referentes ao R/C e 498.727$00 referentes ao 1° andar) bem como as rendas vincendas após Março de 2001 até efectiva entrega do imóvel.

Pede também que seja ordenado o cancelamento do usufruto a favor dos Réus em relação ao mencionado imóvel.
Em alternativa, pede ainda a Autora a condenação dos Réus a entregar-lhe o R/C da "Vivenda ...", bem como as rendas que dele têm vindo a receber e até efectiva entrega do imóvel.
Alegou para o efeito e em substância que D, sócia da Autora, declarou, em testamento, o seguinte:

"A minha casa da Parede, "Vivenda .." ex "Vivenda ...", situada na Rua Martins Vidal n°.. (artigo 110 da matriz predial co concelho de Cascais) ficará em usufruto, simultânea e sucessivamente, para meu primo B e sua mulher, C, e, por sua morte, para a Associação A atrás referida, conservando-lhe o nome, para ser utilizada por sócios desta Associação.
"Da casa que possuo na Rua 3 de Maio, na Parede, concelho de Cascais (artigo 1943 da matriz predial) deixo o usufruto simultâneo e sucessivo aos mesmos primos B e mulher, e a raiz, à Associação A.

"Na hipótese de ambas as casas vagarem, peço-lhes que escolham aquela que desejarem habitar, entregando a outra à legatária de raiz (Doc° n°3B e 3C)".
À data do falecimento da testadora, o 1° andar da "Vivenda ... " e o 1° andar da Vivenda sita na Rua ... encontravam-se arrendados. Desde 4 de Janeiro de 1989, os Réus passaram a habitar o R/C da "vivenda ....", verificando-se que, nos finais do ano de 1998, a Vivenda da Rua ... ficou devoluta.

Intentou a Autora uma acção, no dia 29 de Janeiro de 1999, com vista à entrega desta última Vivenda, partindo do pressuposto que, ao irem habitar o R/C da "Vivenda ...", tinham por esta optado em conformidade a mencionada disposição do testamento.
Verificou-se, porém, que, logo depois, os Réus foram habitar a Vivenda da Rua .., o que levou a sentença proferida naquela acção a considerar que a escolha prevista no testamento teve por objecto este imóvel. A acção foi, por isso, julgada improcedente.
Nestas condições, pretende agora a Autora a entrega da "Vivenda ...." bem como das rendas correspondentes aos anos e 1999, 2000 e 2001, dos respectivos R/C e 1° andar, e rendas vincendas.

A acção foi julgada parcialmente procedente e os Réus condenados a entregarem à Autora o R/C da "Vivenda ..." bem como as rendas que têm vindo a receber como contrapartida do arrendamento deste imóvel, desde 1 de Junho de 1999, e até à efectiva entrega.
Por acórdão de 19 de Outubro de 2004, a Relação de Lisboa julgou improcedente a acção, absolvendo os Réus do pedido subsidiário.

Inconformada, recorreu a Autora para este Tribunal, concluindo as alegações da sua revista nos seguintes termos:
1. Nos termos do art°2187° do C.C., na interpretação das disposições testamentárias, deve observar-se o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento, mas deve ser admitida prova complementar (testemunhal, documental ou outra) desde que tenha um mínimo de correspondência com esse contexto, ainda que imperfeitamente expressa. O douto Acórdão do Tribunal da Relação, ao interpretar o testamento, cingiu-se apenas à letra do mesmo, sem ter admitido a prova complementar que foi produzida em audiência de julgamento, nomeadamente a prova testemunhal.

2. A testadora, ao instituir o usufruto simultâneo e sucessivo a favor dos Recorridos, fê-lo sob condição resolutiva, expressa na cláusula acessória, que nos informa: "na hipótese de ambas as casas vagarem, peço-lhes que escolham aquela que desejarem habitar, entregando a outra à legatária de raiz".

3. Os Recorridos ao mudarem-se do Rés-do-Chão da Vivenda ... para o Rés-do-Chão e 1° andar da Vivenda .., em Junho de 1999 e depois de nela terem feito obras de vulto, escolheram, sem sombra de dúvida, aquela que desejaram habitar.

4. Os Recorridos deveriam ter entregue, nessa mesma altura, a "outra casa à legatária de raiz"

5. A condição resolutiva imposta pela cláusula acessória do testamento, verificou-se logo que os Recorridos se mudaram para a Vivenda ...., ou seja, em Junho de 1999.

6. Uma das causas gerais de extinção do usufruto, é a verificação de uma condição resolutiva.

7. Por isso, o usufruto sobre a vivenda ... extinguiu-se logo que se verificou essa condição resolutiva, ou seja, a escolha pelos Recorridos do Rés-do-Chão e 1° andar da vivenda ...., para aí morarem.

8. Os Recorridos expressamente dizem que não entregarão qualquer das casas à Recorrente, já que o usufruto instituído, só se extinguirá após a morte do último deles.

9. Os Recorridos não pretendem cumprir a vontade real da testadora.

10. Procederam ao arrendamento do Rés-do-Chão da Vivenda ...., logo que dele saíram e escolheram o Rés-do-Chão da vivenda .... para morar.

11. Com esta actuação, pretendem os Recorridos que jamais se verifique a existência de "casas" vagas.

12. Os Recorridos, sem causa justificativa, estão a enriquecer à custa da Recorrente, pelo que deverão ser obrigados a restituir aquilo com que, sem justificação, se estão a locupletar.

13. Verificam-se, neste caso, todos os requisitos do enriquecimento sem causa previstos no Art°473° n°1 do C.C.

14. O 1° andar da vivenda ... encontra-se arrendado por contrato celebrado ainda pela testadora, e assim se manterá enquanto não ocorrer qualquer causa, prevista na lei, para a cessação desse arrendamento.

15. Mas, à Recorrente, deverá ser entregue o Rés-do-Chão da vivenda ..., para ser utilizado pelos sócios da Associação, conforme vontade expressa pela testadora no seu testamento (a folhas 30 dos autos);

16. Já que o usufruto sobre a Vivenda .... se extinguiu em Junho de 1999, pela verificação da condição resolutiva.

17. Os Recorridos não estão a agir segundo os ditames da boa fé e estão a por em causa a integridade do direito da Recorrente (Art. 272 do C.C.).

Nos termos do Art. 690 do C.P.C., e no entender da Recorrente, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, violou as seguintes normas jurídicas: Artigo 2187° do C.C. Interpretação dos testamentos, 2229 do C.C. Disposições condicionais, Art. 238° do C.C. Negócios formais, Art. 272 do C.C. Pendência da condição, Art. 278 do C.C. Termo e Art°473° do C.C. Enriquecimento sem causa.

2. Quanto à matéria de facto remete-se para o acórdão recorrido (artigos 713°, n°6 e 726° do Código de Processo Civil).

Cumpre decidir.
3. Entendeu o acórdão recorrido que a referida disposição testamentária deve ser interpretada no sentido de que o direito de "escolha" aí previsto só pode ser efectivamente exercido quando ambas as moradias se encontrarem devolutas: "Pode muito bem suceder que os usufrutuários Réus estejam mais interessados em escolher a Vivenda ...., mas só quando estiver totalmente desocupada. Só nessa altura eles poderão e deverão exercer o direito de escolha".

Como este Tribunal vem entendendo, a interpretação de um testamento pode envolver uma questão de direito, sindicável em revista, ou pode envolver uma simples questão de facto que se encontra fora do âmbito daquele recurso. Trata-se de questão de direito, designadamente, quando a interpretação da vontade real do testador abstrai de meios complementares de prova e a interpretação se funda, assim, no n°1 do artigo 2187° do Código Civil (veja-se, neste sentido, o acórdão de 23 de Janeiro de 2001, (revista n°3460/00).

Ora, é este o caso dos autos em que a interpretação feita pelo acórdão recorrido se funda na vontade presumida da testadora de atribuir aos Recorridos um direito "efectivo" de escolha entre as duas moradias em causa.

Afigura-se-nos que a interpretação da disposição testamentária em causa, mais ajustada à vontade da testadora e tido em conta o contexto do testamento (artigo 2187°, n°1) é a de que, logo que os legatários tenham escolhido uma das vivendas para sua residência devem entregar a outra à Autora. Essa escolha pode ter lugar mesmo antes de ambas as moradias se encontrarem devolutas quando ela resulte de comportamento inequívoco dos legatários.

Ora, depois de terem vivido 8 anos no rés-do-chão da Vivenda ...., os Réus fizeram obras na vivenda da Rua ...., obras que a fotografia junta a fls. 146 evidencia. Como se refere na declaração de voto do acórdão recorrido estes factos mostram inequivocamente a opção feita.

Verifica-se, porém, que, em primeira instância, foi dado provimento ao pedido subsidiário que abrangia a entrega do rés-do-chão da vivenda ..... E desta decisão não foi interposto recurso.
Mas, aquela vivenda não se encontra dividida sendo, por isso, impossível determinar a cessação do usufruto em relação a ele.
Assim, e por este último fundamento, nega-se a revista.

Lisboa, 15 de Março de 2005
Moitinho de Almeida,
Noronha do Nascimento,
Ferreira de Almeida.