Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4323/05.4TBVIS.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE PROCESSUAL
PRAZO DE ARGUIÇÃO
ILAÇÕES
CAUSA DO ACIDENTE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
1. A deficiência da gravação da prova, em termos de tornar imperceptível o depoimento de uma testemunha ou de o não ter gravado, pode constituir nulidade, nos termos do n.º 1, in fine, do art. 201º do CPC, uma vez que se trata de irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa.

2. As consequências dessa irregularidade constam do art. 9º do Dec-lei 39/95, de 15 de Fevereiro, e estão em sintonia com o que se refere na antecedente conclusão: uma vez que tal irregularidade, na linguagem do n.º 1 do citado art. 201º, só produz nulidadequando possa influir no exame ou na decisão da causa, aquele art. 9º manda repetir a parte da prova omitida ou imperceptível apenas quando for essencial ao apuramento da verdade.

3. O prazo para a parte interessada invocar a irregularidade e pedir que se desencadeiem as respectivas consequências deverá ser aquele dentro do qual pode apresentar a alegação de recurso, salvo se se demonstrar que o reclamante teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo; e a arguição da irregularidade pode ter lugar na própria alegação de recurso.

4. Nos casos em que a irregularidade não constitui nulidade, por não ter influência no exame ou na decisão da causa, não há lugar à repetição da parte da prova omitida ou imperceptível; tal repetição envolveria a prática de um acto inútil.

5. Em matéria de facto não é lícito tirar ilações que afrontem directamente factos provados.

6. Se um dado facto, tendo embora actuado como condição do dano, era, segundo a sua natureza geral, indiferente para a produção deste, tendo-o provocado apenas por virtude de outras circunstâncias excepcionais ou anómalas que intercederam no caso concreto, deve ter-se como inadequado para a produção do dano. O dano que o facto só provocou mercê de circunstâncias extraordinárias, não previsíveis de modo nenhum por um observador experiente na altura em que o facto se verificou, é suportado pela pessoa lesada.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA intentou, em 24.10.2005, no 1º Juízo Cível da comarca de Viseu, contra BB e mulher CC, a presente acção com processo ordinário, pedindo a condenação destes a pagarem-lhe as quantias de € 23.731,99, ou, se assim se não entender, de € 19.090,00, e juros legais, como indemnização pelos danos patrimoniais, e de € 1.250,00, como reparação dos danos não patrimoniais – danos que sofreu em acidente de viação, ocorrido em 15.01.2005, na povoação de Vila Nova do Campo, concelho de Viseu, e traduzido no embate do veículo que o demandante conduzia, num ferro com 53 cm, cravado pelos réus no alcatrão da via pública, junto à berma da estrada e em frente ao portão de entrada da casa destes.
Os réus contestaram, alegando, em síntese, ter o acidente ocorrido por culpa exclusiva do autor, que conduzia alcoolizado e com velocidade excessiva, tendo perdido, por isso, o controlo do veículo, saindo da faixa de rodagem e acabando por embater num muro, que destruiu; o ferro achava-se cravado fora da faixa de rodagem, em local onde não se podia circular.
Pediram que a acção fosse julgada improcedente e o autor condenado como litigante de má fé.
Replicou o autor, devolvendo aos réus a imputação de litigantes de má fé, e pedindo a condenação destes em multa e indemnização.
No seguimento normal do processo veio a efectuar-se o julgamento e a ser proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo os réus do pedido.
Rejeitadas foram, igualmente, as impetradas condenações por litigância de má fé.

O autor recorreu.
E, nas alegações e respectivas conclusões,
- arguiu a deficiência de gravação da prova, no respeitante ao depoimento de uma testemunha, sustentando achar-se tal depoimento, que deveria estar gravado na cassette n.º 6, do lado A, totalmente imperceptível, impedindo-o de motivar fundamentadamente o recurso quanto à decisão sobre a matéria de facto, e impossibilitado a Relação de reapreciar os pontos da matéria de facto de que ele, recorrente, discorda – vício que qualificou como uma nulidade processual secundária, nos termos dos arts. 201º, n.º 1 e 204º, a contrario, ambos do CPC;
- impugnou a decisão sobre vários pontos da matéria de facto; e
- defendeu a verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar, por parte dos recorridos.
Porém, a Relação de Coimbra, em acórdão oportunamente proferido, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Continuando inconformado, o autor interpõe agora, deste acórdão, recurso de revista para este Supremo Tribunal.
E, no remate das suas alegações de recurso, formula um alargado leque conclusivo, que, todavia, apenas equaciona as seguintes questões:
- a da nulidade processual da deficiente gravação do depoimento da testemunha, que poderia, no seu entender, ser arguida até ao oferecimento da motivação do recurso, e que implica a repetição do julgamento, na parte afectada;
- a da valoração dos factos provados sobre a dinâmica do acidente, que aponta inequivocamente, a seu ver, para a conclusão de ter sido a existência do ferro “a única vicissitude conducente à ocorrência do acidente”;
- a da culpa exclusiva dos recorridos, por actuação contra legem, em violação de diversas normas imperativas, traduzida na cravação do ferro no alcatrão da via pública, junto à berma da estrada, em sítio onde se pode circular; ou, quando menos, a da existência de concorrência de culpas, a admitir-se que a conduta do recorrente, ao aproximar o veículo da berma, consubstancia um acto ilícito e culposo.
Os réus, em contra-alegações, pugnam pelo não provimento do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir.

2.

Vêm, das instâncias, dados como assentes os factos a seguir indicados:

1. No dia 15 de Janeiro de 2005, junto ao n.º ... da Avenida ..., na povoação de Vila Nova do Campo, concelho de Viseu, ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ...-...-... .

2. Na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa está inscrita desde 26.06.2003 a propriedade do TR a favor do autor.

3. O TR era conduzido pelo autor e circulava no sentido Campo-Moselos.

4. O piso encontrava-se seco e em bom estado.

5. A hemi-faixa direita, para quem circula no sentido Campo-Moselos, encontrava-se desimpedida de veículos e peões [cfr. correcção operada a fls. 117].

6. O condutor do TR aproximou-se da berma e sentiu um embate no lado direito do TR junto aos rodados e à embaladeira.

7. Na sequência do embate, rebentaram os pneus do TR,

8. Que se descontrolou e rodopiou, acabando por capotar, imobilizando-se quando foi de encontro ao muro que delimita a berma direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha.

9. No local do embate havia um ferro com 53 cm de comprimento, estando cerca de 25 cm acima do solo e os restantes soterrados, ferro este que foi arrancado com o embate.

10. Tal ferro foi aí colocado pela necessidade de fixar o tractor para entrar e sair com segurança no prédio, face ao declive e orientação da rampa de acesso ao seu interior.

11. Em sequência directa e necessária do embate ocorreu no TR o seguinte: amachucou o capot, a tampa da mala, a frente, a porta. Partiu o pára-brisas, o vidro traseiro, o vidro da porta frente direita, o pára-choques, os faróis, os farolins e os piscas, amachucou os guarda-lamas, três janelas, destruiu três pneus, destruiu o radiador, a grelha. A ventoinha, o moto-ventilador, o condensador A.C., o amortecedor traseiro, amachucou o tejadilho e o respectivo arco, travessa e forro, partiu espelhos, accionou/inutilizou os dois airbags, destruiu a caixa de comando e respectivos cintos, os frisos, destruiu o cárter da caixa e embraiagem, o compressor, os tubos de ar condicionado, a armação do bloco do motor, a bomba de óleo, braços de suspensão, a transmissão, as mangas de eixo, as rótulas, entre outros mais constantes no orçamento de fls. 23 a 29, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

12. O autor ficou privado do uso do TR.

13. O autor passou a noite de 6ª feira, dia 14, na discoteca ..., com dois amigos.

14. O local do embate situa-se dentro de uma povoação, com moradias a marginar a estrada de ambos os lados, e onde a velocidade máxima para o local é de 50 Km/hora.

15. Após o embate o autor comprometeu-se, logo na hora, com os proprietários do muro destruído, a repararem-no à sua custa (sic).

16. No local do embate, à entrada do portão dos réus, está assinalado o limite da berma e da faixa de rodagem e as ombreiras do portão com tinta de cor amarela vivo colocada pelos réus [cfr. correcção de fls. 115/116].

17. O acidente ocorreu por volta das 7.00 horas.

18. O TR tem a largura de 1,664 metros, a que acresce a largura, não concretamente apurada, de cada um dos espelhos laterais.

19. Quando o embate ocorreu, o TR seguia a velocidade não concretamente apurada.

20. A faixa de rodagem tem a largura de 5,60 m.

21. Fora das faixas de rodagem existem valas, abertas abruptamente logo a seguir ao asfalto de tais faixas de rodagem, as quais possuem uma profundidade variável entre 20 cm e 30 cm.

22. A 45 metros do local do embate e do ferro aludido em 9. e 10. existe uma curva à esquerda, atento o sentido de marcha aludido em 4.

23. O condutor do TR aproximou-se da berma.

24. O ferro referido em 9. tinha sido cravado pelos réus no alcatrão da via pública, junto à berma da estrada e em frente ao portão de entrada de sua casa, em sítio onde não se podia circular.

25. O autor comprou, em 2003, o veículo TR, de marca Peugeot 206 SW 1.4 HDI, directamente ao concessionário Auto Martinauto, S.A., tratando-se de um veículo de demonstração, fabricado em 2002 e com 6.700 Km, pelo preço de € 18.206,12.

26. Este veículo vinha equipado com ar condicionado e jantes de liga leve.

27. O TR tinha percorrido até à data do acidente número de quilómetros não concretamente apurado e valia cerca de € 14.000,00.

28. A reparação das coisas referidas em 11., considerando o conjunto de peças descritas no orçamento, a que acrescerá a pintura e a respectiva mão-de-obra, orçará em € 20.641,99.

29. O autor trabalhava, à data dos factos, como ainda hoje, na A..., S.A., no lugar do C..., Rio de Loba, exercendo as funções de vigilante, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a sua entidade patronal, a S.V.A. – S... de V... e A..., L.da e aquela sociedade.

30. O autor trabalha em regime de turnos rotativos das 20 às 8 horas de Segunda a Quarta-Feira, Sábado e Domingo, folgando à Quinta e Sexta-Feira.

31. O autor percorre, diariamente, da sua residência até ao local de trabalho e vice-versa, 36 kms (18kmsx2).

32. Utilizava o veículo TR na sua vida pessoal, fazendo nessa utilização número de quilómetros diários não concretamente apurado.

33. Como o autor ficou privado de utilizar o TR, passou a utilizar um automóvel Nissan Almera, propriedade de DD,

34. O que aconteceu até 18 de Abril de 2005.

35. Não existe serviço de transportes públicos que satisfaça as necessidades de deslocação do autor, atento o seu horário de trabalho.

36. Cessada a utilização do veículo referida em 33., o autor comprou outro automóvel,

37. O que fez, comprando com recurso a empréstimo bancário, em 18.04.2005, e pelo preço de € 4.000,00, o veículo Opel Astra, de 1992, com a matrícula ...-...-... ,

38. Empréstimo que está sujeito a uma taxa de juro de 9,5% sobre o capital mutuado, no qual se inclui o preço do veículo adquirido pelo autor.

39. Na revenda do BL, o autor receberá por ele quantia não concretamente apurada.

40. Em consequência dos factos o autor teve um susto,

41. Tendo temido pela própria vida.

42. E teve incómodos resultantes do reboque da viatura, do facto de ter ficado sem carro, da ida ao advogado, do tempo perdido.

43. Para além do choque emocional, o autor teve dores a seguir ao acidente.

3.

Fixada a matéria de facto, analisemos agora as questões suscitadas no âmbito do recurso.

3.1. Quanto à primeira questão, a Relação entendeu que, detectada pelas partes a existência de irregularidade relevante na gravação da prova, cumpre-lhes invocar a correspondente nulidade processual perante o tribunal onde a gravação foi realizada, no prazo de dez dias a contar da entrega da cópia dos registos da gravação, se o conhecimento da irregularidade não for anterior. Como tal não aconteceu, no caso em apreço e, de qualquer modo, foi o próprio recorrente quem, nas suas alegações, expressou ser seu entendimento “que o processo está instruído com todos os elementos probatórios”, foi intempestiva a arguição da irregularidade.
Esta foi, em síntese, a posição assumida pelo acórdão agora recorrido.
Deste entendimento discorda o recorrente, que defende que a nulidade poderia ser arguida até ao oferecimento das alegações de recurso, abonando-se, para tanto, nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 15.05.2008 e de 13.01.2009, proferidos nos processos 08B1099 e 08A3741, respectivamente – que diz constituírem jurisprudência pacífica neste particular.
Deverá, por isso, ser declarada, nos termos infra indicados, a nulidade da gravação da prova no que toca ao depoimento da testemunha em causa, e ordenada a repetição do julgamento na parte ferida de nulidade.
Será assim?
Antes de entrarmos na apreciação da questão, importa relevar aquilo que se afigura ser uma patente contradição do discurso do recorrente.
Na verdade, começando por qualificar a indicada primeira questão (de nulidade) como questão prévia, com as consequências acima assinaladas (repetição do julgamento na parte afectada), logo acrescenta que “uma sensata ponderação dos factos” provados “permite por si só uma apreciação global do mérito da causa, sem demais considerações”, o que leva a concluir pela pouca ou nenhuma importância da questão para a sorte do recurso.
O que se torna ainda mais evidente se atentarmos na forma como o recorrente encerra a sua minuta de recurso:
(…) deve ser concedida a revista e em consequência revogado o acórdão recorrido:
a) Condenando-se os recorridos a ressarcir integralmente o recorrente dos danos por este sofridos, nos termos constantes da p.i. dos autos, ou
b) Subsidiariamente, caso se conclua pela relevância para a boa discussão da causa do depoimento da testemunha EE, relevar a arguida nulidade atinente à deficiente gravação do seu depoimento, ordenando-se a repetição do julgamento na parte ferida de nulidade.
Deixando, porém, de lado esta, pelo menos aparente, confusão em que o recorrente se enreda, vejamos se lhe assiste razão na sua divergência relativamente ao decidido, quanto à questão em apreço, pela Relação.
E, a tal propósito, cabe assinalar, antes de mais, que os acórdãos que aquele convoca em apoio da sua posição, não constituem jurisprudência pacífica sobre a aludida questão.
A questão está mesmo muito longe de se poder considerar pacífica.
Esses dois arestos são apenas representativos, com outros que o recorrente não citou, de uma de várias posições que têm sido afirmadas pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, ou seja, da que defende a tempestividade da arguição da nulidade gerada pela inaudibilidade ou imperceptibilidade das gravações operada nas alegações do recurso de apelação.
Mas, divergindo deste entendimento, acórdãos há que sustentam ser o prazo para arguição da dita nulidade, de dez dias a contar da data da disponibilização do registo magnético pelo tribunal (1), e outros que proclamam que esse prazo é de dez dias, contados da data limite em que a parte deveria ter solicitado a entrega da cópia do registo da gravação, nos termos do n.º 2 do art. 7º do Dec-lei 39/95, de 15 de Fevereiro (2).
Pois bem!
A nosso ver, é a primeira das indicadas posições a mais correcta.
Temos por inquestionável que a deficiência da gravação da prova, em termos de tornar imperceptível o depoimento de uma testemunha – como no caso vertente – ou de o não ter gravado, pode constituir nulidade, nos termos do n.º 1, in fine, do art. 201º do CPC, uma vez que se trata de irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa.
E quais são as consequências dessa irregularidade?
A resposta é-nos dada pelo art. 9º do indicado Dec-lei 39/95. Uma vez que ela, na linguagem da lei do processo, só produz nulidade …quando possa influir no exame ou na decisão da causa, bem se entende a solução do indicado art. 9º: repetir-se-á a parte da prova omitida ou imperceptível, mas apenas quando for essencial ao apuramento da verdade.
O Dec-lei 39/95 não encerra, no seu âmbito normativo, qualquer preceito que fixe o prazo para arguição de omissões ou anomalias na gravação da prova.
Porém, como o vício se encontra oculto e o seu conhecimento, pela parte a quem pode prejudicar, depende de uma acto desta – audição do registo – que é instrumental de um outro acto, este a praticar no processo – a apresentação da alegação de recurso – o prazo para a parte invocar a irregularidade – quando esta se assuma ou possa assumir-se como nulidade – e pedir que se desencadeiem as respectivas consequências (repetição da parte da prova omitida ou ininteligível), deverá ser aquele dentro do qual pode apresentar a alegação de recurso, salvo se se demonstrar que o reclamante teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo (3) .
Na verdade, como bem refere outro aresto deste Supremo Tribunal (4) O acórdão de 12.07.2007 (Revista n.º 2005/07, da 1ª Sec.)., se o recorrente dispõe de determinado prazo para minutar o recurso, e se nessa minuta pode impugnar a matéria de facto dada como provada com base nos depoimentos gravados, é evidente que esse direito (de pedir a repetição da prova omitida ou imperceptível) pode exercer-se até ao último dia do prazo legal em curso, porque pode bem acontecer que só nesse momento seja detectada a anomalia da gravação (e, acrescentamos nós, que só nesse último dia sejam entregues as alegações).
Daqui que, a nosso ver, e com o respeito devido por diferente entendimento, a arguição da irregularidade a que vimos aludindo, possa ter lugar nessas mesmas alegações, como defende o recorrente.
Não vemos que a parte recorrente esteja sujeita a um especial dever de diligência, que lhe imponha a audição do registo áudio da prova nos dez dias imediatos a tê-lo recebido do tribunal, quando é certo que ele se destina a servir de suporte a uma alegação de recurso para cuja elaboração dispõe o recorrente de 40 dias, e é suposto que a cópia recebida do tribunal não enferme de qualquer anomalia.
Concluímos, pois, retornando ao caso em apreço, que foi tempestiva a arguição da irregularidade por parte do recorrente.
Mas daí não se segue que desta conclusão se deva extrair qualquer outra – que a irregularidade invocada importe quaisquer consequências.
Um dos princípios informadores da matéria das nulidades dos actos processuais é o da redução da nulidade à mera irregularidade do acto, sem consequências, sempre que o acto haja atingido o seu fim. Tal decorre do disposto no já citado n.º 1 do art. 201º do CPC, que dispõe que a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. Faltando esta condição, a infracção é irrelevante (como acontece, v.g., nos casos, como o do art.193º/3 do CPC, em que a formalidade preterida não impediu que o acto em questão atingisse a sua finalidade (5).
Ora, no caso, é o próprio recorrente quem proclama, alto e bom som, que a irregularidade que traz a lume não tem influência no exame ou na decisão da causa. Já acima o deixámos afirmado e vamos repeti-lo: logo na conclusão 2ª da sua alegação, refere, preto no branco:
No entanto, entende o recorrente que uma sensata ponderação dos factos aqui enunciados sob o epíteto II, permite por si só uma apreciação global do mérito da causa, sem demais considerações.
Se assim é, para quê a repetição, em julgamento, do depoimento da testemunha? Trata-se, manifestamente, de um acto inútil, cuja prática a lei veda ao juiz.
Ademais, como também já ficou evidenciado, na parte final da sua alegação, só subsidiariamente, “caso se conclua pela relevância para a boa discussão da causa do depoimento da testemunha EE”, é que vem formulada a pretensão de “relevar a arguida nulidade”. Ora, este Tribunal não pode, à míngua de elementos para tal, concluir que o aludido depoimento tem influência no exame ou na decisão da causa, i.e., que – nas palavras do art. 9º do Dec-lei 39/95 – se trata de um testemunho “essencial ao apuramento da verdade”. Deveria o recorrente ter aduzido razões para convencer o Tribunal de que assim é; mas o certo é que o seu “apport” nesse sentido foi nulo, antes apontando para que a repetição do depoimento redundaria na prática de um acto desprovido de qualquer utilidade.
Considera-se, pois, que em causa está uma mera irregularidade, sem consequências processuais.

3.2. No que concerne à segunda questão, a argumentação do recorrente assenta num raciocínio que não pode acolher-se.
Na verdade, o recorrente pretende convencer o Tribunal de que o acidente tem como causa exclusiva o ferro cravado no solo, com 25 centímetros de altura, no qual foi embater, e que provocou o subsequente descontrolo e rodopio da viatura, que acabou por capotar após embater no muro que delimita, no local, a berma direita da estrada.
Para tanto, forceja por demonstrar que o dito ferro estava cravado na faixa de rodagem, em local destinado à circulação e, por isso, em sítio por onde podia efectivamente circular.
Só que tal esforço é vão, provado que está que o ferro tinha sido cravado no alcatrão da via pública, junto à berma da estrada, em frente ao portão de entrada da casa dos réus – para fixar o tractor a estes pertencente, de modo a permitir a entrada e saída deste com segurança, face ao declive e orientação da rampa de acesso ao interior da casa – em sítio onde não se podia circular (n.os 10 e 24 dos factos provados). A expressão sublinhada foi havida no acórdão sob censura como “perfeitamente utilizável e compreensível, em termos de uso comum, de modo a contribuir para a apreciação do objecto do litígio”, o que o recorrente não contesta.
E, é seguro, o recorrente não pode pretender tirar ilações que afrontem directamente factos provados, pelo que não pode pretender erradicar do elenco factual que vem assente das instâncias o facto em causa – cravação do ferro em sítio onde não se podia circular – e substituí-lo pelo seu contrário. (Parece, aliás, resultar da foto junta aos autos (doc. 2, a fls. 14), e do auto de inspecção judicial (fls. 165/166), que o ferro em causa se achava cravado em local a que, em linha recta, em projecção longitudinal, se segue imediatamente uma vala, referenciada no n.º 21. dos factos assentes, e, portanto, fora da faixa de rodagem).
Daí que seja de rejeitar a tese, avançada pelo recorrente, de ter sido o ferro e a sua existência na via “a única vicissitude conducente à ocorrência do acidente”.
Mesmo caracterizada como ilícita a actuação dos réus recorridos, nem por isso se segue que tal conduta possa ser considerada causa adequada do acidente e dos danos dele decorrentes, sofridos pelo recorrente: embora tenha actuado como condição do dano, o facto dos réus (cravagem do ferro fora da zona destinada à circulação de veículos), segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção daquele, tendo-o provocado apenas por virtude de outras circunstâncias excepcionais ou anómalas que intercederam no caso concreto – a circulação do autor em zona da via onde não se podia circular – sendo, portanto, inadequado para a produção dos danos.
Os danos que o facto só provocou mercê de circunstâncias extraordinárias, não previsíveis de modo nenhum por um observador experiente na altura em que o facto se verificou, serão suportados pela pessoa lesada (6).
Reafirma-se, pois – na esteira do entendimento das instâncias – que a conduta dos réus, traduzida na cravagem do ferro no local onde o fizeram, não pode ser considerada causa adequada do acidente e dos danos dele decorrentes, sofridos pelo recorrente: esses danos não constituem uma consequência, normal, típica, provável da actuação daqueles.

3.3. Na verdade, foi o autor/recorrente quem, com a sua conduta ilícita e culposa, deu causa ao acidente. Sem que nada o justificasse ou impusesse, o autor conduziu o seu veículo aproximando-o da berma e circulando por sítio da via pública onde tal lhe era vedado, por extravasar o limite direito da hemi-faixa de rodagem respectiva.
Como se refere no acórdão recorrido, a lei estradal (art. 13/1 do CEstr.) contém uma regra segundo a qual o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, mas a uma distância destes que permita evitar acidentes.
E esta norma resultou afrontada de modo grosseiro por parte do autor/recorrente que, mais do que uma mera aproximação à berma, passou a circular além da linha limite desta (“em sítio onde não se podia circular”), embatendo no obstáculo aí existente e dando, assim, causa ao acidente.
Não existe obrigação de indemnizar por parte dos réus recorridos, uma vez que não se verificam, quanto a eles, os pressupostos da obrigação de indemnização por facto ilícito: falta, desde logo, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Por outro lado, e diferentemente, a actuação do autor/recorrente foi causal do acidente, e assume-se como ilícita e culposa.
Bem andaram, pois, as instâncias, na rejeição da pretensão indemnizatória por este deduzida.

4.

Nos termos expostos, nega-se a revista.
Custas pelo autor/recorrente.

Lisboa, 14 de Janeiro de 2010

Santos Bernardino (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva

_____________________________________
1- Sic, os acórdãos de 06.07.2006 (Agravo n.º 1899/06, da 7ª Sec.), de 18.11.2008 (Revista n.º 3328/08, da 6ª Sec.), de 12.02.2009 (Revista 47/09, da 6ª Sec.) e de 14.05.2009 (Revista 40/09.4YFLSB, da 6ª Sec.).
2- São exemplo, os acórdãos de 08.07.2003 (Revista 2212/03, da 7ª Sec.) e de 16.09.2008 (Revista 2261/08, da 7ª Sec.).
3- Neste sentido, o acórdão deste Tribunal, de 22.03.2007 (Agravo 4449, da 1ª Sec.).
4- O acórdão de 12.07.2007 (Revista n.º 2005/07, da 1ª Sec.).
5- Cfr. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, págs. 108/109.
6- Cfr. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª ed., pág. 889.