Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1006/12.2TBPRD.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO – ART. 640º DO CPC
EXTENSÃO DO PRAZO PARA ALEGAÇÕES – ART. 638º
Nº 7
DO CPC
APLICAÇÃO DO PRAZO DILATADO
DESCONSIDERAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo C.P.C., 3.ª ed., p. 125 e em anotação aos arts. 640.º e 662.º.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 8.º, 9.º, 10.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 638.º, N.º 7, 640.º, 662.º, N.º1
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

-DE 8-7-15, CJ, TOMO III, 67 (SECÇÃO SOCIAL).

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 18-2-2016 (SECÇÃO SOCIAL), DE 19-2-2015, DE 3-12-2015 (SECÇÃO SOCIAL), DE 26-11-2015 (SECÇÃO SOCIAL), 29-10-2015, DE 22-10-2015, DE 1-10-2015, DE 9-7-2015, DE 19-2-2015, DE 18-2-2016, 11-2-2016, DE 19-1-2016, E DE 16-11-2015 ( TODOS EM WWW.DGSI.PT ) .
Sumário :
1. Deve considera-se satisfeito o ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC se o recorrente, além de indicar o segmento da decisão da matéria de facto impugnado, enunciar a decisão alternativa sustentada em depoimento testemunhal que identificou e localizou.

2. Na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, os aspectos de ordem formal devem modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

3. A extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objecto a reapreciação de prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação.

4. Tendo o recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação de prova gravada, a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum dos ónus previstos no art. 640º, nº 1, do CPC.

Decisão Texto Integral:

1. AA interpôs contra BB, SA, e CC acção declarativa pedindo o reconhecimento da validade e eficácia da resolução de um contrato-promessa de compra e venda e a condenação dos RR. no pagamento da quantia de € 300.000,00 com juros de mora.

Os RR. apresentaram contestação e deduziram reconvenção.

Foi finalmente realizado o julgamento e proferida sentença que julgou a acção procedente e improcedente a reconvenção, condenando os RR. como litigantes de má fé.

Os RR. apelaram e no âmbito da apelação impugnaram a decisão da matéria de facto, aproveitando para o efeito a extensão do prazo de 10 dias prevista no nº 7 do art. 638º do CPC.

Nas contra-alegações os AA. invocaram a não admissibilidade do recurso por decurso do prazo legal, tendo em conta que os recorrentes não teriam cumprido os ónus de alegação previstos no art. 640º do CPC.

Uma vez na Relação foi proferido acórdão que rejeitou o recurso de apelação, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, com fundamento na falta de indicação exacta das passagens da gravação de testemunha em que se fundam para a modificação da decisão, nem procederam à sua transcrição nem sequer desenvolveram uma análise crítica dessa prova por forma a demonstrar o alegado erro decisório.

Acto contínuo, foi rejeitado o recurso de apelação na parte restante, por extemporaneidade, tendo em conta a não aplicabilidade da extensão do prazo prevista no art. 638º, nº 7, do CPC.

Os RR. interpuseram recurso de revista, mas a revista foi rejeitada porque alegadamente não se trataria de um caso de absolvição da instância.

Deduzida reclamação para este Supremo Tribunal de Justiça, a mesma foi deferida, sendo determinada a admissão do recurso de revista, pelo anterior Ac. do STJ, de 28-1-16, deste mesmo colectivo (em www.dgsi.pt), no qual se concluiu que o art. 721º, nº 1, do CPC, abarca qualquer outra forma de extinção da instância, designadamente o acórdão da Relação que “incidindo sobre sentença de 1ª instância, se abstém de apreciar o mérito do recurso de apelação por incumprimento dos requisitos constantes do art. 640º do CPC e/ou por extemporaneidade do recurso”.

No recurso de revista são suscitadas, no essencial, duas questões:

a) Reapreciação do acórdão da Relação na parte em que rejeitou o recurso de apelação respeitante à decisão da matéria de facto com fundamento na falta de indicação exacta das passagens da gravação do depoimento da testemunha cujo que alegadamente determinaria uma resposta diversa ao ponto 49º da base instrutória;

b) Reapreciação do mesmo acórdão na parte em que rejeitou a apreciação da apelação relativamente à matéria de direito com fundamento na inaplicabilidade da extensão do prazo de 10 dias previsto no art. 638º, nº 7, do CPC, tendo em conta o incumprimento daquele ónus de alegação respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto.


II – Elementos essenciais a ponderar:

1. Os RR. apresentaram o requerimento de interposição do recurso de apelação e as respectivas alegações, aproveitando a extensão do prazo de 10 dias previsto no nº 7 do art. 638º do CPC;

2. No que respeita à impugnação da decisão da matéria de facto os recorrentes apenas impugnaram a resposta que foi dada ao ponto 49º da base instrutória, concluindo que deve ser considerada provada a matéria nele contida;

3. A respeito da impugnação da decisão da matéria de facto os recorrentes alegaram essencialmente o seguinte:

- A fls. 245 indicam a sua intenção de atacar “os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados”, referindo que as alegações “gravitarão, quanto ao essencial, em torno dos seguintes aspectos …” em que se incluía a “reapreciação da prova gravada …”;

- A fls. 272 referem o seguinte:

“E pese embora o Tribunal não ter dado como provada a factualidade constante do ponto 49º da base instrutória, a verdade é que no seu depoimento, a testemunha DD, consultor do A. e parte activa em todo o processo negocial, declarou, no final do seu depoimento (1.41.03 a 1.41.35), ter recepcionado, em data posterior a 16-1-2012, uma outra comunicação escrita dos RR. que, por exclusão de partes, só poderia ser a que declarou o contrato resolvido por incumprimento definitivo …”; acrescentaram ainda que “em directo resultado do exposto, deverá considerar-se provada a factualidade constante do citado ponto 49º da base instrutória …”;

- A fls. 289, na conclusão 55ª, referem que, “em face do depoimento prestado pela testemunha DD, deverá dar-se como provado o facto 49º da base instrutória”;

O facto 49º da base instrutória tem o seguinte teor: “Ao que se lhe seguiu, esgotado o referido prazo, uma última comunicação escrita, datada de 1-2-2012, nos precisos termos da qual os RR. declararam definitivamente resolvido, por incumprimento do A., o contrato entre ambos celebrado em 2-4-2011?”;

- Na sentença foi considerado como “não provado”, entre outros, o ponto 49º (fls. 223), referindo-se na respectiva motivação que tal ocorreu “por não se ter feito qualquer prova sobre o mesmo em audiência de julgamento, sendo de referir que, quanto ao ponto 49º, o único elemento de prova produzido foi a junção do doc. de fls. 200, cópia da alegada carta, o qual foi impugnado pelo A., alegando que não recebeu uma tal missiva, a fls. 184, não havendo qualquer confirmação do teor do documento, nem do seu envio e recebimento …” (fls. 230).

4. A impugnação da decisão da matéria de facto foi rejeitada com o único fundamento de os recorrentes não terem feito a indicação exacta das passagens da gravação da testemunha em que se fundam para a modificação da decisão, nem terem procedido à sua transcrição ou desenvolvido uma análise crítica dessa prova por forma a demonstrar o alegado erro decisório.


III – Decidindo:

1. Quanto à 1ª questão (ónus de impugnação previsto no art. 640º, nº 1, al. b), do CPC):

1.1. A reapreciação da decisão da matéria de facto relativamente ao segmento ou segmentos concretizados pelos interessados constitui um poder/dever das Relações cujo relevo foi acentuado com a Reforma Processual de 1995/96 e que foi reforçado em subsequentes intervenções legislativas cujo resultado final se encontra, agora, essencialmente condensado nos arts. 644º (alegações) e 662º (decisão) do CPC (matéria mais desenvolvidamente abordada pelo ora relator em Recursos no NCPC, 3ª ed.).

Para a resolução do caso concreto não importa apreciar toda a problemática inerente ao segundo grau de jurisdição em matéria de facto, sendo bastante evidenciar que ao apelante que impugna a decisão da matéria de facto cumpre identificar os concretos pontos de facto que, no seu entender, foram incorrectamente apreciados, especificar os concretos meios probatórios que imponham resposta diversa e indicar a resposta alternativa que deve ser dada a tais pontos de facto (art. 640º do CPC).

Trata-se de um ónus multifacetado cujo cumprimento não se torna fácil, mas que encontra diversas justificações, entre as quais as seguintes:

- A Relação é um Tribunal de 2ª instância, a quem incumbe a reapreciação da decisão da matéria de facto proferida pela instância hierarquicamente inferior;

- A Relação não procede a um segundo julgamento da matéria de facto, reapreciando apenas os pontos de facto enunciados pelos interessados;

- O sistema não admite recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto, cumprindo ao recorrente designar os pontos de facto que merecem uma resposta diversa e fazer a apreciação crítica dos meios de prova que determinam um resultado diverso;

- Importa que seja feito do sistema um uso sério, de forma evitar impugnações injustificadas e, com isso, os efeitos dilatórios que são potenciados pelo uso abusivo de instrumentos processuais.

Mas pese embora o rigor e a seriedade com que as partes devem enfrentar as exigências legais, estas não devem exponenciadas pelo Tribunal da Relação a quem a pretensão é dirigida. Importa que não se sacrifique o direito das partes no altar de uma jurisprudência formal a um ponto que seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto, com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara nem na letra, nem no espírito do legislador. Enfim, é necessário que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640º do CPC seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspectos de ordem material.

É conveniente que da interpretação e aplicação de tal normativo não transpareça a ideia – que por vezes perpassa em diversos arestos das Relações – de que a elevação do nível de exigência para lá do que a lei inequivocamente determina constitui, afinal, um mero pretexto para recusar a reapreciação da decisão da matéria de facto, com invocação do incumprimento de requisitos de ordem adjectiva.

É esta uma matéria que tem sido objecto de diversos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça que, de forma incisiva, vem procurando travar uma tendência que teima em manter-se para a rejeição de recursos de apelação quando está em causa a reapreciação da decisão da matéria de facto.

Dessa tendência e da necessidade de a combater já o ora relator deu conta em Recursos no Novo CPC, 3ª ed., em anot. aos arts. 640º e 662º, com menção de alguns arestos mais recentes de que se destacam os Acs. do STJ, de 29-10-15 (Rel. Lopes do Rego), de 1-10-15 (Rel. Ana Luísa Geraldes) e de 19-2-15 (Rel. Tomé Gomes), a que agora podem acrescentar-se os Acs. de 18-2-16, 11-2-16, de 19-1-16, de 3-12-15 ou de 16-11-15, todos em www.dgsi.pt.


1.2. Sem dúvida que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme em mera manifestação de inconsequente inconformismo.

Mas, insistentemente confrontado com recursos de revista em que é questionado o modo como é interpretado o ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, este Supremo Tribunal de Justiça vem revelando uma tendência consolidada no sentido de não se exponenciarem os efeitos cominatórios previstos no art. 640º do CPC.

É o que designadamente emerge dos seguintes arestos mais recentes (todos em www.dgsi.pt):

- Ac. do STJ, de 18-2-16 (Secção Social):

Não se exige ao recorrente, no recurso de apelação, quando impugna o julgamento da matéria de facto, que reproduza exaustivamente nas conclusões da alegação de recurso o alegado no corpo da mesma alegação. Nas conclusões da alegação do recurso de apelação em que impugne matéria de facto deve o recorrente respeitar, relativamente a essa matéria, o disposto no n.º 1 do art. 639º do CPC, afirmando a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizando os pontos que pretende ver alterados.

- Ac. do STJ, de 19-1-16:

A falta da indicação exacta e precisa do segmento da gravação em que se funda o recurso, nos termos da al. a) do nº 2 do art. 640º do CPC, não implica, só por si, a rejeição do pedido de impugnação sobre a decisão da matéria de facto;

- Ac. do STJ, de 3-12-15 (Secção Social):

Versando o recurso sobre a matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorrectamente julgados e que se pretende ver modificados;

- Ac. do STJ, de 26-11-15 (Secção Social):

Nas conclusões do recurso de apelação em que impugne matéria de facto o recorrente deve afirmar a sua pretensão no sentido da alteração da matéria de facto e concretizar os pontos que pretende ver alterados;

- Ac. do STJ, de 29-10-15:

O ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata rejeição do recurso quando, para além de o apelante referenciar os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, ser tal indicação complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso;

- Ac. do STJ, de 22-10-15:

O sentido e alcance dos requisitos formais de impugnação da decisão de facto previstos no nº 1 do art. 640º do CPC devem ser equacionados à luz das razões que lhes estão subjacentes, mormente em função da economia do julgamento em sede de recurso de apelação e da natureza da própria decisão de facto;

- Ac. do STJ, de 1-10-15:

Tendo a recorrente identificado os concretos pontos de facto que tem como mal julgados, indicado os meios de prova que deveriam ter conduzido a um resultado probatório diverso e transcrito parte dos depoimentos, não se pode manter a decisão de rejeição do recurso sobre matéria de facto;

- Ac. do STJ, de 1-10-15 (Secção Social):

Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados e as respostas alternativas propostas pelo recorrente, foram devidamente expostos na motivação os fundamentos da impugnação e os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1ª instância (solução também adoptado em dois outros Acs. do STJ, ambos datados de 18-2-16 (Secção Social));

- Ac. do STJ, de 9-7-15:

Tendo o apelante, nas suas alegações de recurso, identificado os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência aos pontos da base instrutória, indicado o depoimento das testemunhas que entendeu mal valorados, fornecido a indicação da sessão na qual foram prestados e o início e termo dos mesmos, apresentado a sua transcrição e referido qual o resultado probatório que deveria ter tido lugar, relativamente a cada quesito e meio de prova, tanto bastava para que a Relação tivesse procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de a rejeitar;

- Ac. do STJ, de 19-2-15:

Enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já o mesmo se não se afigura que a especificação dos meios de prova ou a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações. A insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas. Tendo o recorrente, nas conclusões recursórias, especificado os concretos pontos de facto que impugna, com referência às respostas dadas aos artigos da base instrutória, indicando também aí a decisão que, no seu entender, deve sobre eles ser proferida, e tendo especificado no corpo das alegações os meios de prova convocados e indicado as passagens das gravações dos depoimentos em foco, têm-se por preenchidos os requisitos formais do ónus de impugnação exigidos pelo art. 640º, nºs 1 e 2, al. a), do CPC. A insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória exposta pelo recorrente é matéria a apreciar em sede do mérito da decisão impugnada.


1.3. Sem ceder a facilitismos que acabem por desprezar os objectivos e os fundamentos do ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, não é legítimo que se faça do regime vigente uma interpretação excessiva, como a que se recolhe do acórdão recorrido que não encontra tradução no preceituado no art. 640º do CPC, representando uma inaceitável sobreposição de aspectos de ordem formal numa situação em que se mostra razoavelmente cumprido o ónus de alegação.

Os recorrentes apenas puseram em causa a resposta que foi dada ao ponto 49º da base instrutória que foi devidamente identificado.

Tendo recebido resposta negativa, a mesma foi justificada pelo Tribunal de 1ª instância pelo facto de “não se ter feito qualquer prova sobre o mesmo em audiência de julgamento” e porque o único elemento de prova produzido foi a “junção do doc. de fls. 200, cópia da alegada carta, o qual foi impugnado pelo A., alegando que não recebeu uma tal missiva, a fls. 184, não havendo qualquer confirmação do teor do documento, nem do seu envio e recebimento …” (fls. 230).

Os recorrentes apresentaram uma outra alternativa decisória: em lugar de “não provado”, consideraram que o referido facto deveria ser considerado “provado”. E em justificação de tal pretensão alegaram que “no seu depoimento, a testemunha DD, consultor do A. e parte activa em todo o processo negocial, declarou, no final do seu depoimento (1.41.03 a 1.41.35), ter recepcionado, em data posterior a 16-1-12, uma outra comunicação escrita dos RR. que, por exclusão de partes, só poderia ser a que declarou o contrato resolvido por incumprimento definitivo …”. Acrescentaram ainda que, “em directo resultado do exposto, deverá considerar-se provada a factualidade constante do citado ponto 49º da base instrutória …”.

Neste contexto, não se evidencia qualquer falha de cumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC. Não sendo obrigatória a reprodução do depoimento testemunhal identificado, as indicações que os recorrentes deram do mesmo cumprem satisfatoriamente as exigências que decorrem do art. 640º do CPC, cabendo à Relação cumprir a sua parte, como o determina o art. 662º, nº 1, do CPC.


2. Quanto à 2ª questão (tempestividade do recurso – art. 638º, nº 7, do CPC):

2.1. A resposta à anterior questão resolve, por si, o presente recurso de revista. Na medida em que se considerou cumprido o ónus de alegação no que concerne à impugnação da decisão da matéria de facto, nenhum sentido faz a declaração de extemporaneidade do recurso apresentado dentro do prazo que a lei prescreve para os casos em que é suscitada a análise de prova gravada (art. 638º, nº 7, do CPC).

Mas o obstáculo que foi invocado (ou “criado”) pela Relação merece que seja objecto de análise por este Supremo Tribunal de Justiça que vem sendo confrontado com situações semelhantes. Se não encontra sustentação a rejeição da apelação, na parte respeitante à decisão da matéria de facto, o efeito que daí foi extraído relativamente à parte restante da apelação dirigida à apreciação do direito é totalmente incompreensível e inaceitável.

Ou seja, ainda que porventura fosse outra a resposta à questão anterior, confirmando o incumprimento do ónus de alegação prescrito pelo art. 640º do CPC, de modo algum a Relação estaria legitimada a abster-se de apreciar o mérito da apelação na parte restante, isto é, no que concerne à reapreciação do mérito da sentença de 1ª instância.


2.2. A Relação, com fundamento no facto de ter sido incumprido o ónus de alegação previsto no art. 640º do CPC, na parte a que se reporta a al. b) do nº 1, concluiu que aos recorrentes não aproveitaria a extensão do prazo de 10 dias prevista no art. 638º, nº 7, do CPC, considerando o recurso intempestivo. Isto é, com base numa putativa ausência de um requisito formal a respeito da impugnação da decisão da matéria de facto – que, como já se referiu, foi cumprido – extrapolou para a intempestividade do recurso também no que respeita ao enquadramento jurídico dos factos.

O argumento apresentado pela Relação revela alguma criatividade, embora já tenha sido usado também no Ac. da Rel. de Coimbra, de 8-7-15, CJ, tomo III, 67 (Secção Social). Porém, a missão atribuída ao Tribunais no que concerne à Administração da Justiça não é avaliada segundo esse critério, antes pela obediência às regras de interpretação legalmente consagradas. No exercício da função jurisdicional não se pede, a todo o custo, que sejam apresentadas soluções “originais”, mas simplesmente - e já não é pouco - que as soluções correspondam aos parâmetros legais que o legislador fixou.

A legitimidade dos Tribunais e dos Juízes que neles e através deles administram a Justiça também se alcança - ou alcança-se fundamentalmente - através da adopção de critérios interpretativos universalmente aceites e que servem para conferir a segurança e a certeza de que são credores os sujeitos que lhes confiam a resolução de litígios.

A interpretação de quaisquer normas jurídicas obedece a uma metodologia que, ela mesma, está legalmente consagrada: partindo basicamente do seu elemento literal, devem ser ponderados os aspectos de ordem sistemática, histórica e racional (arts. 8º, 9º e 10º do CC).

Estando em causa a prática de actos processuais pelas partes, com sujeição a determinadas sanções legais, é importante que a interpretação dos preceitos que os regulam seja feita de modo a que se assegurem os valores da segurança e da certeza jurídica. Regras essenciais que qualquer jurista e qualquer Juiz deve seguir, não sendo legítimo que, sob quaisquer pretextos (ou subterfúgios), se extraiam das normas jurídicas efeitos que nelas não encontram o mais ligeiro reflexo.

Mas é isto o que precisamente decorre da interpretação que a Relação pretendeu extrair do art. 638º, nº 7, do CPC.


2.3. Para os casos em que o recurso de apelação tenha por objecto a decisão da matéria de facto, implicando a reapreciação de meios de prova oralmente produzidos e que tenham sido gravados a lei concede ao recorrente um prazo adicional de 10 dias, nos termos do art. 638º, nº 7, do CPC.

Constitui uma medida de fácil compreensão e que tem como justificação as maiores dificuldades inerentes ao cumprimento do ónus de apresentação de alegações, o que implica necessariamente com o conteúdo de gravações que foram realizadas e a que a parte terá de aceder.

Resulta claro do preceito que a aplicabilidade da extensão temporal não se basta com o facto de terem sido produzidos oralmente meios de prova na audiência de julgamento, sendo imprescindível que a impugnação da decisão da matéria de facto (relativamente a todos ou alguns dos pontos impugnados) implique, de algum modo, a valoração desses meios de prova. Aliás, não é suficiente que os depoimentos gravados tenham interferido potencialmente na formação da convicção, sendo necessário que o recorrente efectivamente se sirva do teor de depoimentos ou declarações prestadas e gravados para sustentar, perante a Relação, a modificação da decisão da matéria de facto.

É isto - e só isto - o que decorre do art. 638º, nº 7, do CPC, sendo inconcebível uma outra interpretação que, sem o menor respeito pelas regras de interpretação, acabe por redundar na negação da apreciação do mérito da apelação procurado pelos recorrentes.

Repare-se que no sistema que vigora desde a Reforma do regime dos recursos de 2007, em que as alegações são apresentadas conjuntamente com o requerimento de interposição de recurso, nem sequer existe a possibilidade de a parte pré-anunciar que pretende impugnar a decisão da matéria de facto. Por isso, após ser proferida e notificada a sentença, há que aguardar pelo decurso do prazo de 30 dias, a que acrescerão 10 dias se acaso existir a possibilidade de a sentença ser impugnada também no que concerne à decisão da matéria de facto sustentada em prova gravada.

Assim aconteceu no caso concreto. Tendo o recurso sido apresentado dentro do prazo acrescido, a sua tempestividade ficou unicamente dependente da inserção nas respectivas alegações de um segmento em que, independentemente do seu mérito, seja efectivamente impugnada uma parte da decisão da matéria de facto com sustentação em prova gravada.


2.5. Ao invés do que foi decidido pela Relação, não pode ser feita qualquer associação entre a admissibilidade formal da impugnação da decisão da matéria de facto e a tempestividade do recurso de apelação. Não se compreende que, nas circunstâncias que foram reportadas, tivessem sido extraídas pela Relação as consequências radicais que se traduziram na rejeição do recurso de apelação também na parte referente à qualificação jurídica dos factos.

Com efeito, como o revelam os segmentos das alegações que foram reproduzidos, não há qualquer dúvida de que os recorrentes impugnaram a decisão que foi dada ao ponto 49º da base instrutória e que, para sustentação da sua pretensão de modificação da decisão da matéria de facto, invocaram um depoimento testemunhal que, em seu entender, deveria determinar um resultado diverso.

Cumpriram, como se disse anteriormente, o ónus de alegação. Mas ainda que houvesse alguma objecção relativamente a essa parte do recurso de apelação, tal não prejudicaria a aplicabilidade do acréscimo de 10 dias que lhes foi concedido e de que beneficiaram para apresentação das alegações, nos termos do nº 7 do art. 638º do CPC, nas quais integraram uma pretensão assente, em parte, na prova que tinha sido oralmente prestada.

Por isso, ainda que porventura tivesse sido confirmado o acórdão na parte em que rejeitou a apelação referente à impugnação da decisão da matéria de facto, nem assim haveria motivo para que a Relação se abster de apreciar o recurso de apelação na parte restante, uma vez que iniludivelmente o recorrente sustentou a impugnação da decisão da matéria de facto em depoimento que foi oralmente prestado e gravado.


2.6. Em Recursos no NCPC, 3ª ed., pág. 125, o ora relator concluiu que “o recorrente apenas poderá beneficiar deste prazo alargado se integrar no recurso conclusões que envolvam efectivamente a impugnação da decisão da matéria de facto tendo por base depoimentos gravados”. E que “caso contrário, terá de se sujeitar ao prazo geral do art. 638º, nº 1. Se, apesar de existir prova gravada, o recurso for apresentado além do prazo normal sem ser inserida no seu objecto a impugnação da decisão da matéria de facto com base na reapreciação daquela prova verificar-se-á uma situação de extemporaneidade determinante da sua rejeição”.

Tal foi a linha interpretativa que também foi seguida no Ac. do STJ, de 22-10-15 (www.dgsi.pt), numa situação em que o recorrente começou por dirigir o seu recurso de apelação prioritariamente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, especificando os pontos factuais que considerava incorrectamente julgados, analisando criticamente as provas produzidas sobre o respectivo conteúdo factual e questionando, de modo minimamente fundado e inteligível, os resultados probatórios alcançados na 1ª instância, propondo as respostas que tinha por certas à matéria de tais quesitos.

Segundo o referido aresto, “tanto basta para que, na óptica do prazo para recorrer, se tenha por definitivamente verificada e consolidada a prorrogação de 10 dias, decorrente da citada disposição legal, a qual não depende, nem está condicionada, pelo efectivo conhecimento – e muito menos pela procedência - da impugnação deduzida pelo recorrente em sede de decisão sobre a matéria de facto; tal como não depende de um integral cumprimento dos ónus secundários (por visarem apenas a localização no suporte que contém a gravação dos depoimentos invocados) decorrente do preceituado na al. a) do nº 2 do art. 640º, cuja utilidade e funcionalidade só ganham sentido se a Relação for efectivamente reapreciar as provas”. Refere-se ainda no mesmo aresto que “contendo a alegação apresentada pelo recorrente uma impugnação séria, delimitada e minimamente consistente da decisão proferida acerca da matéria de facto, deve ter-se por processualmente adquirido, em termos definitivos, que se verificou a prorrogação do prazo para recorrer por 10 dias, independentemente do preciso juízo que ulteriormente se faça acerca do cumprimento do ónus de exacta indicação das passagens da gravação – que naturalmente poderá condicionar o conhecimento de tal impugnação, sem, todavia, pôr em causa a tempestividade do recurso de apelação”.

No mesmo sentido decidiu o Ac. do STJ, de 26-11-15 (Secção Social), em cujo sumário se diz que:

“Interposto recurso de apelação, visando, para além do mais, a impugnação da matéria de facto fixada na decisão recorrida, no prazo a que se refere o n.º 3 do art. 80º do CPT, demonstradas na fundamentação das alegações e nas conclusões respectivas as razões subjacentes a essa interposição, o eventual não cumprimento integral das exigências formais das conclusões, previstas no art. 640.º do mesmo código, não retira a tempestividade ao recurso interposto, pelo que o Tribunal sempre terá de conhecer da parte restante do respectivo objecto”.


2.7. A solução apresentada pela Relação apenas faria sentido numa situação em que, sendo impugnada a decisão da matéria de facto numa acção em que tivesse existido gravação da prova, a impugnação não fosse sustentada de modo algum em prova gravada.

Nestes casos, sim, poderia concluir-se que não existia motivo para o recorrente beneficiar do prazo mais alargado que, como se referiu, encontra justificação na necessidade de analisar a gravação dos depoimentos ou de outras declarações que, na perspectiva dos recorrentes, sirvam para modificar o sentido da decisão proferida pela 1ª instância.

Mas não foi essa a actuação dos recorrentes no caso, sendo inequívoco que justificaram a alteração de um segmento da decisão da matéria de facto em depoimento testemunhal que foi gravado.

Por isso, independentemente da apreciação do mérito de tal impugnação, era vedado à Relação extrair a posteriori um efeito que contende com a admissibilidade do próprio recurso.

A tempestividade dos recursos constitui um pressuposto processual atinente à sua admissibilidade, pelo que de modo algum o resultado alcançado aquando da apreciação do seu mérito poderá interferir em tal pressuposto cuja satisfação se deve reportar ao momento da sua interposição.


III – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido e determinando-se a remessa dos autos à Relação para que:

a) Seja apreciada a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pelos RR. apelantes;

b) Sejam apreciadas as demais questões suscitadas pelos RR. recorrentes no recurso de apelação.

Custas da revista a cargo da parte vencida a final.

Notifique.

Lisboa, 28-4-16


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo