Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1311/19.7T8ENT-B.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO (PERSI)
EXTINÇÃO
COMUNICAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
PROVA TESTEMUNHAL
EXCEÇÃO DILATÓRIA
SANEADOR-SENTENÇA
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA, ANULADO O JULGAMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - A comunicação de integração no PERSI, bem como a de extinção do mesmo, constituem condição de admissibilidade da acção (declarativa ou executiva), consubstanciando a sua falta uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância (art. 576.º, n.º 2, do CPC).
II - Tais comunicações têm de lhe ser feitas em suporte duradouro, ou seja, a sua representação através de um instrumento que possibilite a sua reprodução integral e inalterada, e, portanto, reconduzível à noção de documento constante do art. 362.º do CC.
III - Tratam-se de declarações receptícias, constituindo ónus da exequente demonstrar a sua existência, o seu envio e a respectiva recepção pela executada;
IV - A simples junção aos autos das cartas de comunicação e a alegação de que foram enviadas à executada, não constituem, por si só, prova do envio e recepção das mesmas pela executada. Todavia tal apresentação pode ser considerada como princípio de prova do envio a ser coadjuvada com recurso a outros meios de prova.
V - Consequentemente, o conhecimento imediato da referida excepção dilatória em fase de saneador com fundamento de que tal factualidade – o envio da carta de comunicação de integração no PERSI – não pode ser feita com recurso à prova testemunhal impede a possibilidade de a respectiva parte poder fazer a prova da sua alegação.
Decisão Texto Integral:


Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – Relatório

1. Na execução instaurada pelo NOVO BANCO, SA[1], a Executada, AA, veio deduzir embargos (apenso B) invocando a regularização da situação de incumprimentos do empréstimo, a falta de denúncia do contrato por parte do Banco, a falta de interpelação para pagamento, a incorrecta liquidação da obrigação exequenda e o excesso de execução.

2. Em contestação o Banco Exequente impugnou a matéria alegada e defendeu a improcedência dos embargos. Juntou aos autos 17 documentos, entre os quais duas cartas endereçadas à Executada, datadas de 06-07-2017 e 10-08-2017, reportadas, respectivamente, aos seguintes assuntos: INTEGRAÇÃO NO PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO (documento n.º 4) e Extinção do procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI) – (documento n.º 6).

3. Notificada da contestação a Embargante veio responder aos documentos juntos, alegando, quanto aos documentos n.ºs 4 e 6, não os ter recebido e não ter o Embargante demonstrado o envio das referidas cartas.

4. Por despacho de 24-01-2020, o tribunal determinou a notificação da Exequente/Embargada para, em dez dias, juntar aos autos PERSI completo, “incluindo documentos comprovativos do registo postal e A/R.”.

5. O Embargado, em resposta à solicitação do tribunal, veio informar que as cartas a comunicar à Embargante integração no PERSI e a posterior extinção foram enviadas para a morada constante da escritura junta com o requerimento executivo e através de correio simples.

6. O tribunal dispensou a realização de audiência prévia, fixou o valor da causa, proferiu saneador e, considerando que os autos continham os elementos necessários para decidir dos embargos, após fixar a matéria de facto relevante, considerou evidenciada a excepção dilatória inominada por falta de cumprimento do PERSI e julgou extinta a execução.

7. O Banco Embargado apelou desta decisão, tendo o tribunal da Relação de Évora proferido acórdão que julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença.

8. Novamente inconformado o Banco Exequente interpôs revista excepcional nos termos das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC. Concluiu nas alegações (transcrição): 

I. O douto acórdão recorrido compreendeu, o alcance das conclusões de recurso de apelação, sem, contudo, depois, se pronunciar sobre a questão nuclear, suscitada no recurso, pois se, por um lado, refere que “Assim, do que resulta das conclusões a questão nuclear posta à consideração deste tribunal consiste em saber se o apelante, no caso concreto, efetivamente deu integral cumprimento ao que vem previsto no Decreto-Lei 227/2012 de 25-10, não se justificando a absolvição da instância executiva por falta de cumprimento do PERSI, como foi entendido pelo tribunal recorrido.”, considera que, por constar da matéria de facto provada o seguinte ponto “Relativamente às comunicações relativas ao PERSI o embargado informa que apenas foram enviadas cartas por correio simples.”, não se mostra provado o envio, o que no entender do mesmo, impede o conhecimento da questão nuclear do recurso de apelação.

II. Sucede que, quando o Tribunal da 1ª Instância deu como provado “Relativamente às comunicações relativas ao PERSI, o embargado informa que apenas foram enviadas cartas por correio simples.” deu como provado, o que foi declarado pelo próprio embargado - de que as cartas haviam sido remetidas por correio simples - é nesse sentido, aliás que vai todo o conteúdo da douta sentença recorrida, ali constando expressamente “Não há um elemento objectivo que corrobore esse envio, como por exemplo um a/r, um registo, um aviso ou uma referência posterior a essa carta numa outra. Competindo o ónus, nesta matéria, ao exequente, é forçoso concluir que o exequente/embargado não evidenciou, conforme lhe competia, o cumprimento do PERSI relativamente a qualquer um dos executados (...)”.

III. Ainda que o Tribunal de 1ª Instância não tenha sido rigoroso quando fez constar na matéria de facto provado o seguinte: “Relativamente às comunicações relativas ao PERSI, o embargado informa que apenas foram enviadas cartas por correio simples"” a única interpretação lógica que se pode retirar é que o Tribunal considerou provado que as comunicações relativas ao PERSI foram enviadas pelo embargado através de cartas por correio simples.

IV. A 1ª Instância, entendeu, assim, que a falta do registo das cartas é insuprível pois se assim não fosse, teria mandado prosseguir os autos, para que em sede de julgamento, se apurasse o envio ou não das cartas.

V. Aliás, basta atentar nas insistências feitas pelo Tribunal de 1.ª Instância, através do conteúdo de diversos despachos, a que o aqui Recorrente se referiu nas suas alegações de recurso de apelação, para compreender que foi esta a interpretação feita pelo Tribunal de 1.ª Instância, pois ali consta, o douto despacho proferido no dia 28/11/2019, no APENSO A com o seguinte teor: “Antes de mais, e uma vez que o exequente invoca o cumprimento do PERSI, convida-se o mesmo a esclarecer se as cartas relativas ao PERSI foram remetidas por via postal simples e, em caso afirmativo, deverá comprovar a recepção das mesmas.” e o douto despacho, proferido no dia 24/01/2020, em ambos os APENSOS que diz o seguinte : “Antes de mais, notifique a exequente para em dez dias juntar aos autos PERSI completo, incluindo documentos comprovativos do registo postal e A/R.”.

VI. Prova de que o Tribunal de 1.ª Instância considerou que a comunicação efetuada pelo Novo Banco, S.A. por CARTA SIMPLES tinha necessariamente de ser efetuada por carta registada com aviso de recepção é o facto de ter considerado irrelevante toda a restante prova documental constante dos autos.

VII. O Tribunal da 1.ª Instância considerou estar já em condições de se pronunciar sobre o cumprimento ou não do PERSI, porque na sua interpretação feita ao Decreto-Lei 227/2012 de 25/10, as cartas não foram registadas e isso para o Tribunal de 1.ª Instância e para o douto acórdão recorrido que o confirmou basta...

VIII. O douto acórdão do Tribunal da Relação ……. tinha o dever de se pronunciar sobre a questão suscitada no recurso da interpretação dada pelo Tribunal de 1.ª Instância de que as cartas simples não preenchem os requisitos previstos na lei, o que salvo o devido respeito, não foi feito, o que acarreta a nulidade do douto acórdão recorrido, nos termos do art.º 615.º, d), do CPC.

IX. Se o douto acórdão recorrido, entende que não ficou provado o envio das cartas, porque da matéria de facto apenas consta “Relativamente às comunicações relativas ao PERSI, o embargado informa que apenas foram enviadas cartas por correio simples.” então, não podia deixar dar oportunidade ao Recorrente Novo Banco, S.A. de fazer prova do envio, recorrendo a OUTROS MEIOS DE PROVA, designadamente, a prova testemunhal, que foi arrolada, se para tanto for necessário, isso não foi feito no douto acórdão recorrido !

X. Impunha-se, assim, que o processo baixasse à 1.ª Instância, para que fossem recolhidos outros meios de prova para que o Tribunal decidisse, em consciência, da excepção.

XI. Toda a prova documental existente nos autos apontava para o cumprimento por parte do Recorrente Novo Banco, S.A. do Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de Outubro, prova essa que foi IGNORADA pelo Tribunal de Ia Instância e pelo douto acórdão recorrido, sendo que, nos termos do disposto no art.º 413.º, do CPC : “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado.”.

XIL O Embargado alegou que as cartas que juntou aos autos de integração dos executados no FERSI foram remetidas, separadamente, no dia 06/07/2017, para a Rua ………., ….., ……. - …….., onde, mais tarde, vieram a ser citados para a execução E NÃO VIERAM DEVOLVIDAS,

XIII. Toda a correspondência remetida pelo Novo Banco, S.A., para os executados desde o início do empréstimo, 19/02/2013, sempre foi endereçada para aquela morada, através do correio SIMPLES e NUNCA VEIO DEVOLVIDA.

XIV. As cartas foram remetidas para a MORADA CONVENCIONADA no título, executivo, a saber : Rua …….., …., …….. -…………,

XV. Não existe notícia no processo de qualquer outra morada para além daquela que os próprios embargantes/recorridos indicaram, (e para onde foram remetidas as referidas cartas relativas ao PERSI), na procuração, pelo executado/embargante BB (Apenso A), na procuração e Requerimento de Proteção Jurídica pela executada /embargante AA (Apenso B), que os mesmos juntaram aos Embargos de Executado.

XVI. Quando os executados impugnaram os documentos que acompanharam a contestação do aqui Recorrente, os mesmos não invocaram que residiam noutra morada.

XVIL As cartas de denúncia do empréstimo, aqui em causa, que constituem os Docs. 15 e 16 juntas com a contestação, essas sim, registadas, conforme ficou previsto nas Condições Particulares do Doc. 1 que serve de título executivo – Título de Mútuo com Hipoteca", (Cláusula Nona - ponto 3) foram remetidas para a morada convencionada: Rua ……., …., …….. - …….. e recebidas pelos executados conforme consta do Aviso de Receção das mesmas devidamente assinado e que acompanhou os Does. 15 e 16 da contestação.

XVIII. Repare-se que, a propósito daquelas cartas juntas sob os Docs. 15 e 16 remetidas para a Rua ………, …., …….. - ………… os executados/embargantes, não põem em causa a recepção das mesmas, mas apenas o seu conteúdo.

XIX. As cartas que constituem os Docs. 3,4,5 e 6, que acompanharam as contestações do aqui Recorrente Novo Banco, S.A., não podem deixar de ser consideradas um “suporte duradouro”, dado que, as cartas permitem «...armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas».

XX. Ao contrário do que vem referido na douta sentença confirmada pelo douto acórdão recorrido, em lado nenhum o Decreto-Lei na 227/2012 de 25 de Outubro, exige que as cartas sejam registadas com aviso de recepção.

XXI. O Novo Banco, cumpriu com o ónus que lhe é imposto pelo Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de Outubro que regula o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, remetendo cartas aos executados, a comunicar-lhes a sua integração no PERSI e o seu encerramento.

XXII. O Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de Outubro que regula o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, diz no artigo 146/4 que: “4 - No prazo máximo de cinco dias após a ocorrência dos eventos previstos no presente artigo, a instituição de crédito deve informar o cliente bancário da sua integração no PERSI, através de comunicação em suporte duradouro” e no art.º/l que : "1 - As instituições de crédito devem criar, em suporte duradouro, processos individuais para os clientes bancários integrados no PERSI, os quais devem conter toda a documentação relevante no âmbito deste procedimento, nomeadamente as comunicações entre as partes, o relatório de avaliação da capacidade financeira desses clientes e as propostas apresentadas aos mesmos."

XXIII. O Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de Outubro não exige que as cartas sejam remetidas pelas Instituições de Crédito, através de cartas registadas como refere a douta sentença recorrida, pois, se assim fosse, tê-lo-ia dito expressamente,

XXIV. Compreende-se, perfeitamente, os motivos pelos quais, o legislador NÃO DETERMINOU que as comunicações a efetuar pelas Instituições de Crédito aos seus clientes, no caso de mora ou incumprimento no pagamento das prestações dos mais variados empréstimos bancários fossem efetuadas através de cartas registadas com aviso de recepção.

XXV. A REGRA é a das comunicações entre os Bancos e os seus clientes, é as comunicações serem efetuadas através de CARTAS SIMPLES, sendo que, a tendência será para, cada vez mais, as comunicações serem efetuadas através dos meios eletrónicos e só muito excepcionalmente, através de carta registada, como é o caso, ainda, na resolução/denúncia dos contratos.

XXVI. Se o legislador tivesse expressamente previsto que as Instituições de Crédito, tinham, no prazo máximo de CINCO DIAS, de informar, os seus clientes, através de cartas registada com aviso de recepção, dos montantes em dívida, devido à mora, com vista a integrá-los no PERSI, atendendo às milhares de situações que ocorrem, nas épocas de crise, seria incomportável e inexequível em prazo tão curto, 5 dias, proceder ao registo de tanta carta com aviso de recepção, com os inerentes custos a suportar, em ultima instância, pelos próprio clientes, e os recursos humanos que seriam necessários contratar para o efeito.

XXVII. Assim, as cartas remetidas aos executados, no dia 06/07/2017 (Docs. 3 e 4 da contestação de embargos) a comunicar a integração no PERSI e, no dia 10/08/2017, a comunicar a posterior extinção do PERSI (Does. 5 e 6 da contestação de embargos), são remetidas, para o domicílio convencionado das partes EM AUTOMÁTICO pelo sistema central do Banco, através de correio simples.

XXVTII.  Como é bom de ver, só através dos meios eletrónicos é possível dar cumprimento, em prazo tão curto, aquele dispositivo legal.

XXIX. O que o Tribunal de 1.ª Instância fez, foi introduzir uma formalidade - envio através de carta registada com aviso de receção - que não vem prevista direta ou indiretamente no Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de Outubro.

XXX. O entendimento do Tribunal de 1.ª Instância de que o envio das comunicações só se provam pelo registo das mesmas que o douto acórdão recorrido acolheu ao confirmar a sentença proferida, não tem na letra da lei, um mínimo de correspondência verbal, não respeitando, assim o que dispõe o art. 9.º do Código Civil.

XXXI. Resulta dos autos que, o aqui Recorrente, deu cumprimento integral ao que vem previsto no Decreto-Lei nº 227/2012 de 25 de Outubro, não se verificando, a excepção dilatória inominada por falta de cumprimento do PERS1, que levou o Tribunal de 1- Instância a absolver os embargantes da instância, nos termos do art.2 576- do CPC a qual foi confirmada pelo douto acórdão recorrido, pelo que, a execução não poderá ser extinta, devendo, antes, prosseguirem os autos para julgamento das questões suscitadas nos embargos de executado.

XXXIL O douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora não se pronunciou sobre a questão da interpretação dada pelo Tribunal de 1.ª Instância de que as cartas simples juntas aos autos pelo Embargado na contestação sob os Docs. 3,4,5 e 6, pelo facto de não terem sido registadas, não preenchem os requisitos previstos no Decreto-Lei n5 227/2012 de 25 de Outubro, o que acarreta a nulidade do douto acórdão recorrido, nos termos do art.º 615.º/d) do CPC.

XXXIII. Violou, assim, o douto acórdão recorrido, o disposto, designadamente, n.º art.º 9e e 342.º do Código Civil, arts..º 413.º e 576.º do CPC e arts.º 3.º/h), 14.º/4 do Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de Outubro.”.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC) mostra-se submetida à apreciação deste tribunal a seguinte questão:
Ø Da suficiência da decisão fáctica para apreciação da observância das regras do procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI)

1. Os factos

O tribunal a quo fixou a seguinte factualidade:
1. Serve de título executivo o acordo de empréstimo bancário junto aos autos principais.
2. Relativamente às comunicações relativas ao PERSI, o embargado informa que apenas foram enviadas cartas por correio simples.

2. O direito

Questão prévia: Da (in)admissibilidade da revista excepcional

Estando em causa recurso do acórdão da Relação que conheceu dos embargos de executado há que aplicar as disposições dos artigos 671.º e seguintes, do CPC (artigos 852.º e 854.º, ambos do CPC).

Nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida pela 1ª instância.

No caso, não há dúvida de que ocorre identidade no sentido da decisão (o acórdão recorrido confirmou a sentença que absolveu a Embargante da instância executiva, corroborando os seus fundamentos). Todavia, não se verificou unanimidade do colectivo de Juízes Desembargadores, uma vez que a uma das Exmas. Desembargadoras votou vencida nos termos de declaração que juntou[2].

Assim sendo, encontra-se afastada a situação de dupla conformidade decisória, e, por isso, não tem cabimento a pretendida revista excepcional (que está prevista apenas para situações de dupla conforme), cabendo conhecer do recurso interposto enquanto revista normal.


1. Da suficiência da decisão fáctica para apreciação da observância das regras do procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI)

Em causa nos embargos cabia apreciar se, no caso, se verificava falta de cumprimento do PERSI.

A 1.ª instância julgou os embargos (procedentes) na fase do saneador, absolvendo a Executada da instância executiva[3], entendendo que os autos continham os elementos factuais necessários para proferir decisão quanto à verificação da excepção dilatória inominada falta de cumprimento do PERSI. Mostra-se alicerçada na seguinte ordem de argumentos:

- encontrando-se a situação dos autos abrangida pelo PERSI, a integração da executada no PERSI e a respectiva extinção teriam de lhe ser devidamente comunicadas, em suporte duradouro, ou seja, a sua representação através de um instrumento que possibilitasse a sua reprodução integral e inalterada, e, portanto, reconduzível à noção de documento constante do artigo 362.º, do Código Civil, impedindo, por isso, que a respectiva demonstração possa ser feita com recurso à prova testemunhal (artigo 364.º, do Código Civil);

- tratando-se de declarações receptícias, constituía ónus da Embargada/Exequente demonstrar a existência dessas comunicações, o seu envio e a sua recepção pela executada;

- a mera alegação por parte do banco Exequente de que as cartas relativas ao PERSI (que juntou) foram enviadas por via postal simples constitui meio insuficiente para demonstrar tal envio (carecendo de um elemento objectivo que o corrobore: um a/r, um registo, um aviso ou uma referência posterior a essa carta numa outra).

Este entendimento mostra-se certificado pelo acórdão recorrido que referiu a tal respeito:

Antes de se discutir se as cartas simples preenchem a finalidade prevista pelo legislador era necessário partir do pressuposto que o seu envio foi uma realidade. No entanto, no caso em apreço e perante a matéria que foi dada como provada e que não foi alvo de impugnação por alegado erro de julgamento, não temos como assente esse facto - o envio.

O que está provado é que o exequente informou que relativamente às comunicações relativas ao PERSI, apenas foram enviadas cartas por correio simples. Ou seja, está provado, apenas, que o ora recorrente deu essa informação ao Tribunal, o que não significa que o respetivo envio tenha sido, efetivamente, efetuado e as cartas tenham sido rececionadas pelos destinatários.

Por isso, não constando do acervo fatual dado como provado que o envio das cartas tivesse sido efetuado e não tendo sido o julgado de facto alvo de impugnação por alegado erro de julgamento em conformidade com o que dispõe o artº 640º do CPC, não está demonstrado um facto essencial determinante para apreciação da questão e aferir da bondade da posição do exequente na qual defende que o envio de cartas simples preenche os requisitos exigidos pela lei. Apesar de constarem cópias de escritos no processo que o recorrente diz ter enviado aos executados no âmbito da respetiva integração no PERS1, o certo é, que estes, quando lhes foi dado conhecimento do respetivo teor, impugnaram a força probatória de tais documentos, afirmaram que não receberam as aludidas cartas, não sabendo se foram efetivamente enviadas, porque o remetente nem sequer comprova o respetivo envio”.

Verifica-se, assim, que o tribunal a quo, sem tomar posição quanto à questão da suficiência da formalidade através de carta simples para as comunicações de integração e extinção do PERSI, entendeu, tal como a 1ª instância, que não foi feita nos autos a demonstração do envio à Executada/Embargante da comunicação de integração no PERSI, que constituía ónus da Exequente/Embargada, porquanto, segundo o acórdão, tal demonstração não se basta com “cópias de cartas alegadamente enviadas (pelo correio) e as declarações do seu legal representante e os depoimentos de testemunhas (funcionários do Banco) se não constar dos autos mais nenhuma prova documental a esse respeito, designadamente talão de registo, prova de depósito, aviso de entrega da qual resulte a expedição e muito menos a receção dessas cartas (ou mesmo outra correspondência comprovadamente rececionada em que seja feita menção àquelas).”

Na revista o Banco vem sustentar a suficiência da referida prova (através da junção das cartas enviadas respeitantes à abertura e extinção do PERSI), defendendo que a lei não exige que tais comunicações sejam realizadas por correio registado com A/R, podendo ser feitas através de correio simples ou por correio eletrónico. Considera, por isso, que o tribunal introduziu uma formalidade – o envio através de carta registada com aviso de recepção - que não se encontra prevista na lei.

Por outro lado, invoca que o tribunal deveria ter viabilizado a produção de prova por forma a permitir a possibilidade de demonstrar o envio das missivas.

Quanto a este último aspecto assiste-lhe razão.

1.1 Mostra-se pacífico nos autos que a situação sob apreciação assume integração no denominado PERSI, previsto no DL n.º 227/2012, de 25.10[4], que estabelece os princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e cria a rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações.

Tal diploma, conforme esclarece o seu preâmbulo, pretendeu “(…) estabelecer um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas.

Em concreto, prevê-se que cada instituição de crédito crie um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI), fixando, com base no presente diploma, procedimentos e medidas de acompanhamento da execução dos contratos de crédito que, por um lado, possibilitem a deteção precoce de indícios de risco de incumprimento e o acompanhamento dos consumidores que comuniquem dificuldades no cumprimento das obrigações decorrentes dos referidos contratos e que, por outro lado, promovam a adoção célere de medidas suscetíveis de prevenir o referido incumprimento.
Adicionalmente, define-se um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor.”.

O PERSI caracteriza-se por comportar três fases essenciais: uma inicial, outra de avaliação e proposta e de negociação (artigos. 14.º, 15.º e 16.º, do DL n.º 227/2012), extinguindo-se, nos termos previstos no artigo 17.º, do referido diploma.

De acordo com o disposto nos artigos 14.º, n.º 4 e 17.º, n.º 3, do citado DL, a integração no PERSI e a extinção do procedimento, têm de ser comunicadas pela instituição de crédito ao cliente “através de comunicação em suporte duradouro”, sem prejuízo dos requisitos exigíveis quanto ao conteúdo dessas comunicações.

As instâncias seguiram o entendimento que vem sendo seguido na jurisprudência[5] (que as partes não refutam) no sentido de que a quer comunicação de integração no PERSI, quer a de extinção do mesmo, constituírem condição de admissibilidade da acção (declarativa ou executiva), consubstanciando a sua falta uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância (artigo 576, nº 2, do CPC)[6].

No que se refere à concretização do conceito de comunicação em suporte duradouro, a alínea h) do artigo 3.º define-a como “qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas.”.

O acórdão recorrido considerou que o banco Embargado não havia feito a demonstração de ter enviado à Executada as cartas/comunicações (de integração no PERSI e extinção) que juntou aos autos, tendo subjacente o entendimento de que a prova do envio e da respectiva recepção não poderia ser feita com recurso a prova testemunhal.

Se é certo que o acórdão recorrido não tomou posição quanto ao meio/forma através do qual as referidas comunicações devem ser feitas, designadamente, quanto à exigência de carta registada com A/R, não é menos certo que, no caso, não se lhe impunha fazê-lo[7] porquanto a questão que cabia apreciar não respeitava à forma da comunicação que a lei estabelece, mas à demonstração do efectivo envio dessas comunicações e da sua recepção pelos destinatários[8], aspecto que, sem dúvida, constitui ónus da Exequente (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), enquanto condição de admissibilidade da própria execução.

O tribunal recorrido concluiu, na esteira da 1ª instância, que a Embargada não tinha provado o envio da comunicação de ingresso da Executada no PERSI, partindo da inviabilidade do referido facto – envio da carta – poder ser demonstrado no processo, designadamente através de prova testemunhal (em decorrência do que dispõem os artigos 364.º, n.º 2, e 393.º, nº 1, do Código Civil).

Entendemos, porém, que tal conclusão não tem em linha de conta a fase processual em que o tribunal de 1ª instância entendeu estar em condições de conhecer dos embargos.

Com efeito, embora a simples junção aos autos das referidas cartas[9] e a alegação de que foram enviadas à Executada, não constituam, por si só, prova do respectivo envio e da consequente recepção das mesmas pela Executada (a qual aliás, em resposta à contestação, referiu não as ter recebido), há que ter presente que, no caso, em acolhimento do convite feito pelo tribunal para que o Banco documentasse o PERSI, o Embargado veio informar que as cartas a comunicar à Embargante a integração no PERSI e a posterior extinção foram enviadas para a morada constante da escritura junta com o requerimento executivo e através de correio simples.

Trata-se, por isso, de matéria alegada que juntamente com a anterior apresentação das cartas (que, sublinhe-se, por si só não demonstram o envio e recepção pela Executada) deveria ter sido considerada como princípio de prova desse envio[10].

Assim, tendo o tribunal dado por provado apenas que o embargado informa que apenas foram enviadas cartas por correio simples, uma vez que a Embargada alegou matéria de facto pertinente – envio efectivo das cartas - o processo deverá prosseguir para discussão e prova dessa factualidade alegada.

Consequentemente, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 682.º do CPC, impõe-se o reenvio do processo para o tribunal a quo para ampliação da decisão de facto em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.

Procedem, assim, as conclusões do recurso.

IV – DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em anular o acórdão recorrido para ampliação da decisão de facto, nos termos indicados.

Custas pela Embargante.

Lisboa, 13 de Abril de 2021

Graça Amaral (Relatora)

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

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[1] Execução instaurada também contra BB que, com os mesmos fundamentos, deduziu, separadamente, embargos constituindo o apenso A, objecto de apreciação conjunta na sentença proferida.
[2] Do seguinte teor: “Não estando, ainda, provado ou não provado que o exequente remeteu as cartas em causa para a morada em que os executados vivem e que as cartas não vieram devolvidas, o processo não continha todos os elementos necessários para a decisão sobre a excepção.
Por isso, revogaria a decisão recorrida e determinaria o prosseguimento dos autos.”.

[3] Nos termos dos artigos 18.º, n.º 1, alínea b) e 21.º, do Decreto-lei n.º 227/2012 de 25-10, e 576.º n.ºs 1, 2, 577.º, 578.º e 573.º, n.º 2, parte final, do CPC.

[4] O regime previsto no referido diploma aplica-se, pois, a situações de incumprimento dos contratos de crédito (referidos no artigo 2.º, n.º 1), destinando-se apenas aos clientes bancários enquanto consumidores na acepção da LDC. E, conforme dispõe o seu artigo 2.º, tal regime aplica-se aos seguintes contratos de crédito celebrados com clientes bancários:

a) Contratos de crédito para a aquisição, construção e realização de obras em habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento, bem como para a aquisição de terrenos para construção de habitação própria;

b) Contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre bem imóvel;

c) Contratos de crédito a consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de junho, com exceção dos contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em documento autónomo;

d) Contratos de crédito ao consumo celebrados ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de setembro, alterado pelos Decretos-Leis n.os 101/2000, de 2 de junho, e 82/2006, de 3 de maio, com exceção dos contratos em que uma das partes se obriga, contra retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de uma coisa móvel de consumo duradouro e em que se preveja o direito do locatário a adquirir a coisa locada, num prazo convencionado, eventualmente mediante o pagamento de um preço determinado ou determinável nos termos do próprio contrato;

e) Contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de reembolso do crédito no prazo de um mês.
[5] Cfr. sumário do acórdão deste tribunal de 19-05-2020 (Processo n.º 6023/15.8T8OER-A.L1.S1, acessível através do portal de pesquisa ECLI): (…) 2. Enquanto o mutuante não proporcionar ao devedor consumidor a oportunidade para encontrar uma solução extrajudicial, tendo em vista a renegociação ou a modificação do modo de cumprimento da dívida, não lhe é permitido o recurso à via judicial para fazer valer o seu crédito (como se extrai do art.18º daquele diploma). 3. O cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da ação executiva movida por uma entidade financeira contra um devedor consumidor, cuja ausência se traduz numa exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância.  
[6] Note-se, como faz realçar o acórdão deste tribunal de 16-12-2020, o PERSI, enquanto instrumento para a prevenção de incumprimento no crédito bancário, não se basta com o cumprimento formal, pela instituição de crédito, do dever de integração do cliente bancário no procedimento, sendo-lhe exigida a observância de deveres específicos e a realização de diligências concretas (cfr. artigo 15.º, do DL 227/2012, de 25-10) – Processo n.º 2282/15.4T8ALM-A.L1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
[7] Ao invés do defendido pela Recorrente não incorreu o acórdão no vício de nulidade por omissão de pronúncia a que alude a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, porquanto se mostra uniforme o entendimento quanto a considerar que a mesma apenas se verifica quando o tribunal se deixe de pronunciar quanto a questões, as quais não incluem os elementos, argumentos ou raciocínios utilizados, quer pelas partes, quer pelo tribunal, para a resolução das questões que efectivamente cumpre apreciar. 
Na verdade, nada obriga a que o tribunal aprecie todos os argumentos invocados pelas partes, impondo-se apenas que indique a razão que serve de fundamento à decisão proferida.
No caso, a questão que se lhe impunha conhecer era a de saber se a Exequente tinha demonstrado o cumprimento do envio da comunicação de integração da Executada no PERSI.
[8] Estão em causa declarações receptícias, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 224.º, do Código Civil.
[9] Juntas com a contestação aos embargos em conjunto com outros documentos, igualmente impugnados pela Embargante.
[10] “Nas demais relações contratuais, é comum que as comunicações entre as partes ocorram pelo envio de carta, simples ou registada. Quando a relação entra em fase litigiosa, é comum que uma das partes negue a receção da carta. Neste contexto, há que valorar o envio da carta como indício da sua receção (indício missio). Ou seja, desde que se prove o facto-indiciário do envio da carta (por testemunhas, tratando-se de carta não registada ou pelo registo, tratando-se de carta registada), haverá que presumir a sua receção. O que fundamenta a presunção é a máxima da experiência no sentido da fiabilidade dos serviços de correios no sentido de que o transporte se efetiva corretamente e a carta chegou em condições ao destinatário.(…). Essa presunção abrange também a recção de faxes ou e-mails, desde que se prove o seu envio regular(..).” - Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, 3ª edição, pp. 298/299, citado no acórdão da Relação de Lisboa de 05-01-2021, Processo n.º 105874/18.0YIPRT.L1-7, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.