Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
577/14.3TBALR-E.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
SANEADOR-SENTENÇA
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 02/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DO RECURSO NORMAL; ENVIADO À FORMAÇÃO PARA APRECIAÇÃO NOS TERMOS DO ARTIGO 672º, Nº 3
DO CPCIVIL.
Sumário :
I - Não havendo o recorrente colocado em crise os factos considerados pelo juiz a quo para fundamentar a sua decisão de absolvição da instância dos réus, nem tendo tido lugar sequer qualquer tipo de produção de prova em sede de julgamento cuja reapreciação fosse pedida perante o tribunal da Relação, em termos da sua impugnação ao abrigo do disposto no art. 640.º, n.os 1 e 2, do CPC, limitando-se a parte a sustentar que, para além dos factos considerados, há outros por si alegados que permitiriam proferir decisão oposta relativamente à afirmada violação da autoridade do caso julgado, não se verifica utilização incorrecta dos poderes em matéria de facto conferidos à 2.ª instância pelo art. 662.º do CPC.
II - Com efeito, apenas foi questionado o fundamento jurídico substantivo que alicerçou a decisão de violação da autoridade do caso julgado em face a todos os elementos que os autos forneciam na fase do seu saneamento, entendendo a recorrente que a conclusão a extrair deveria ser a contrária daquela que foi proferida pela 1.ª instância.
III - Esta decisão de mérito, constante do acórdão recorrido e pertinente ao âmbito estritamente jurídico da causa, traduz tão somente a integral confirmação da análise já realizada em 1.ª instância, bem como da solução jurídica consequentemente adoptada, nas quais o tribunal da Relação inteiramente se louvou.
IV - Ora, constando dos autos todos os factos invocados pelo recorrente, o tribunal da Relação poderia tê-los considerado se não tivesse entendido suficientes e relevantes para suportar a decisão de 1.ª instância precisamente aqueles que esta elencou, não conferindo destaque bastante aos restantes (exactamente pela mesma razão que motivou o juiz a quo a estribar-se na suficiência desses elementos), constituiu-se assim dupla conforme nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC, impeditiva da interposição de revista normal prevista no art. 671.º, n.º 1, do CPC, restando ao recorrente a figura da revista excepcional, prevista no art. 672.º do CPC, de que, igualmente e a título subsidiário, se socorreu.
Decisão Texto Integral:


Processo nº  577/14.3TBALR-E.E1.S1.

Acordam, em Conferência, os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Sessão).
Apresentado o presente recurso de revista ao relator para apreciação liminar, foi por este proferida decisão singular nos seguintes termos:
“Veio AA propor acção de restituição e separação de bens e de verificação ulterior de créditos, nos termos do disposto no artº 146º do CIRE, contra:
1) Massa Insolvente de BB;
2) Massa Patrimonial que constitui a herança do insolvente CC representada pelo senhor Administrador de insolvência, DD;
3) BB,
4) Herança Jacente de CC;
5) Os credores da Massa Insolvente de BB e, da Massa Patrimonial que constitui a herança do insolvente CC; e
6) EE.
Alegou essencialmente:
Adquiriu o imóvel (que identifica), verbalmente, em 1978, vivendo no mesmo como sua proprietária desde então.
Em 1999 fez escritura de justificação notarial invocando a usucapião como forma de aquisição.
Quando em 10 de Julho de 2000 assinou a escritura pública estava convencida que não perderia o direito de usufruto sobre o imóvel.
Continuou a residir na mesma casa desde então, não tendo recebido qualquer dinheiro pelo contrato de venda nem dos insolventes, nem do Banco Santander Totta, S.A. que registou a hipoteca sobre o mesmo.
Em Janeiro de 2015, apareceu o requerido EE alegando ter adquirido o prédio através duma execução fiscal.
Na providência cautelar que propôs por apenso aos autos foi homologada transação judicial entre a A. e a massa insolvente reconhecendo o direito de uso e habitação vitalício da A. sobre o imóvel.
Em face do exposto, quer por nulidade, por simulação, do negócio subjacente à constituição da hipoteca do Banco Credito Predial Português, atual Banco Santander Totta, S.A., quer por aquisição do direito de propriedade da A. por usucapião sobre o imóvel, não pode o Banco Santander Totta SA adjudicar o imóvel no âmbito da liquidação, com cancelamento do registo do ónus do direito reconhecido à A. em transação judicial no Processo n.º577/14.....
Conclui pedindo:
1) a título principal que se declare a nulidade ou mesmo inexistência do negócio celebrado pela escritura realizada na Agência de ... do Crédito Predial Português SA, em 10/07/2000, de folhas 90 verso a folhas 91 do livro de notas para escrituras diversas no ... Cartório Notarial de ... nº ..., por cautela, pelo menos na parte referente à venda do Usufruto do imóvel e, consequentemente, a nulidade da hipoteca constituída pelos insolventes a favor do credor Banco Santander Totta SA– sucessor do Crédito Predial Português SA; e
2) a título subsidiário, se declare a sua aquisição do respetivo direito de propriedade por via da usucapião que retroage a 1978, sendo, em consequência, proferida sentença que declare que a A. adquiriu por usucapião o imóvel ou pelo menos do direito vitalício do seu usufruto e, a declaração de nulidade do negócio celebrado posteriormente pela escritura supramencionada; e em consequência,
3) seja ordenado o cancelamento do registo de apreensão a favor da Massa Insolvente e da Massa Patrimonial atrás mencionadas e todos os outros registos que conflituem como seu direito, e, bem assim, ordenada a restituição a favor da A.
Citados os RR, apenas o Banco Santander Totta, S.A. veio contestar os termos da acção.
Alegou essencialmente:
A A. ouviu a leitura dos termos da escritura pública celebrada com os insolventes, pelo que conhece que vendeu a plena propriedade do imóvel aos mesmos e que assumiu que recebeu o preço.
Por conseguinte, não pode opor a nulidade decorrente da simulação que invoca a terceiros de boa fé como é o caso de todos os credores da massa insolvente.
Tendo passado a mera detentora do imóvel após a venda, a posse que possa ter do mesmo desde então é de má fé e sem registo, pelo que ainda não decorreu o prazo para a aquisição do mesmo por usucapião.
Por fim, não tendo o Banco Santander Totta, S.A. sido parte no procedimento cautelar, não são os termos da transação aí homologada oponíveis.
A A. veio responder à defesa por exceção, sustentando os pedidos que formulou na p.i..
Aquando do saneamento dos autos proferido saneador-sentença nos seguintes termos:
“(…) Compulsados os autos, constata o Tribunal que:
1. Em 10-12-2014 foi proferida sentença de insolvência, no processo principal, de BB e esposo CC, entretanto falecido;
2. Em 28-1-2015 a A. AA instaurou, contra os insolventes e EE, providência cautelar comum de manutenção da posse do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial ..., ..., sob o nº ..., alegando para o efeito ser proprietária, de forma ininterrupta, desde 1978 do prédio em causa, tendo sempre habitado no mesmo na qualidade de sua proprietária, sendo nula, por simulação, a escritura de compra e venda que em 2002 celebrou com os insolventes declarando que lhes vendia o imóvel em causa.
3. Em 29-1-2015 foi apreendida para a massa insolvente o referido imóvel, identificado como verba nº 5.
4. Em 27-11-2015 foi alcançada transação judicial entre a A. AA e a massa insolvente (única contestante) nos autos de procedimento cautelar, nos seguintes termos: «As partes reconhecem o direito de uso e habitação vitalício à requerente e, nesses termos, acordam que seja mantida a posse do imóvel descrito no artigo 1º do requerimento inicial a favor de AA, enquanto a mesma for viva.»
5. A transação foi objeto de imediato despacho, homologando-a nos seguintes termos «Considerando o objeto dos presentes autos, que se encontra na disponibilidade das partes e apenas no limite do mesmo, homologa-se a presente transação no que à manutenção provisória da posse da Requerente AA, sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., ..., sob o n.º ..., diz respeito e, em consequência, julgo extinta a instância, nos termos do disposto nos artigos 283º/2, 284º, 289º/1/a contrario, 299º/1/3 e 277º/d), todos do Código de Processo Civil.».
6. Em 29-6-2016, foi proferido despacho no apenso C, pacificamente transitado em julgado entre as partes, onde se fez constar que «não existe lugar à necessidade de propositura de qualquer ação principal quando a transação resolva, por acordo, em termos definitivos, a composição do litígio. Pelo exposto, indefere-se a pretensão dos RR de ser levantada a providência cautelar, por caducidade da mesma.», considerando-se que ficou reconhecido entre a aí requerente - AA – e os requeridos – EE e ora insolventes, representados pelo Sr. AI - direito de uso e habitação vitalício da requerente sobre o imóvel apreendido para a massa insolvente como verba nº 5 e, nesses termos, que fosse mantida a posse do imóvel a favor de AA, enquanto a mesma for viva.
A mesma Autora do procedimento cautelar, AA vem agora requerer, contra os mesmos insolventes e sua massa insolvente, e contra os credores da mesma, relativamente ao mesmo imóvel, o reconhecimento do seu direito de propriedade, ou subsidiariamente um direito de usufruto, resultantes da simulação do negócio de compra e venda do imóvel aos insolventes, ou subsidiariamente da aquisição do mesmo por usucapião (tudo argumentos aduzidos na providência cautelar).
Conforme já consignámos anteriormente, esta pretensão da A. constitui, salvo melhor entendimento, violação da autoridade de caso julgado.
Efetivamente segundo Rodrigues Bastos (“Notas ao Código de Processo Civil”, Volume III, páginas 60 e 61.), “... enquanto que a força e autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica, a exceção destina-se a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual”.
A este propósito, tem vindo a ser sustentado maioritariamente, na esteira da doutrina defendida por Vaz Serra (R.L.J. 110º/232), que a força do caso julgado não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita, antes se estende à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, tudo isto “... em nome da economia processual, do prestígio das instituições judiciárias e da estabilidade e certeza das relações jurídicas” (Acórdão do S.T.J. de 10/7/97 in C.J. S.T.J., V, II, 165)”.
O alcance e autoridade do caso julgado não se pode, pois, limitar aos estreitos contornos definidos nos artºs 580º e seguintes para a exceção do caso julgado, antes se estendendo a situações em que, apesar da ausência formal da identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento daquela figura jurídica está notoriamente presente.
O Acórdão da RC de 28.09.2010 distingue deste modo a exceção de caso julgado e a autoridade de caso julgado: “A exceção de caso julgado destina-se a evitar uma nova decisão inútil (razões de economia processual), o que implica uma não decisão sobre a nova ação, pressupondo a tríplice identidade de sujeitos, objeto e pedido. A autoridade de caso julgado importa a aceitação de uma decisão proferida em ação anterior, que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda, visando obstar a que a relação ou situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outra sentença, não sendo exigível a coexistência da tríplice identidade, prevista no art.498 do Código de Processo Civil”.
Escrevem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto (“Código de Processo Civil anotado”, vol. 2º, 2ª ed., pág. 354.): “a exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado; pela exceção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…). Mas o efeito negativo do caso julgado nem sempre assenta na identidade do objeto da primeira e da segunda ações: se o objeto desta tiver constituído questão prejudicial da primeira (e a decisão sobre ela deva, excecionalmente, ser invocável) ou se a primeira ação, cujo objeto seja prejudicial em face da segunda, tiver sido julgada improcedente, o caso julgado será feito valer por exceção”.
De acordo com o nº 1 do artigo 619º do Código de Processo Civil, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º”.
Ou seja, quando a decisão se torna definitiva, por não poder já ser suscetível de reclamação, nem de recurso ordinário, a mesma transita em julgado, formando-se então o caso julgado: formal, com efeitos apenas no processo em que foi proferida, quando não tenha conhecido de mérito; e material, com efeitos dentro e fora do processo em que haja sido proferida, quando tenha sido de mérito.
Escrevem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto (“Código de Processo Civil anotado”, vol. 2º, 2ª ed., pág. 3713.) “seja qual for o seu conteúdo, a sentença produz, no processo em que é proferida, o efeito de caso julgado formal, não podendo mais ser modificada (art. 672). Mas, quando constitui uma decisão de mérito (“decisão sobre a relação material controvertida”), a sentença produz também, fora do processo, o efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual (…), distinguindo-se, neste, o efeito negativo da inadmissibilidade duma segunda ação (proibição de repetição: exceção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade de caso julgado).
(…) Fala-se do efeito preclusivo do caso julgado para caracterizar esta inadmissibilidade de qualquer ulterior indagação sobre a relação material controvertida (…)”.
Ora, porquanto a pretensão da A. nos vertentes autos é, na ótica do Tribunal, desrespeitadora do princípio da preclusão, ofendendo a autoridade do caso julgado da composição definitiva do litígio alcançada no apenso de providência cautelar supra identificado, tem a vertente ação de ser liminarmente indeferida, por verificação da exceção de violação da autoridade do caso julgado, ao abrigo do art. 578º e 278º/1-e) do CPC.
Sempre se dirá, a propósito do esclarecimento da A. que antecede referente à motivação subjacente à instauração da vertente ação, que o direito de uso e habitação que lhe foi reconhecido no apenso C, em litígio composto apenas entre si e a massa insolvente e EE, tem uma configuração distinta dos direitos de propriedade plena e de usufruto que agora veio alegar, pelo que não se compreende a salvaguarda que, alegadamente, pretende.
Já quanto ao reflexo que o direito de uso e habitação da aqui A. tem nos termos da venda do imóvel no apenso de liquidação, deve a A. atentar naquele que é a jurisprudência maioritária sobre o tema, designadamente do TRE, plasmada no acórdão de 16-5-2019, proferida no proc. nº 3028/14.0TBSTB-D.E1 (se bem que não seja este o apenso adequado à apreciação da questão):
«(…) pode ver-se, entre outros, o Ac. da R.P. de 27/2/2007, disponível in www.dgsi.pt, onde se afirmou o seguinte:
- O direito de uso (art.º 1484.º, n.º 1, do CC) é um direito real limitado em que os poderes de uso ou de fruição são reconhecidos apenas ao seu titular segundo um critério finalista e não em termos absolutos: a sua medida é a das necessidades do seu titular e respetiva família – sublinhado nosso.
Voltando agora ao caso em apreço, constata-se que a executada FF, ora apelante, tem registado a seu favor, desde 2012, o direito de uso e habitação do imóvel devidamente identificado nos autos, sendo certo que, por outro lado, desde data anterior – ou seja, desde 1999 – a exequente tem uma hipoteca registada a seu favor sobre o imóvel em questão.
Ora, como vimos supra, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 1488.º do Cód. Civil, o direito de uso e habitação não pode ser onerado por qualquer modo, sendo inalienável e impenhorável.
E, nesta sequência, importa ter presente o estipulado no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, no qual é afirmado que, na venda em execução, “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia (…)”.
Por isso, é nosso entendimento que o direito de uso e habitação da executada (…), tendo sido registado em momento posterior à garantia hipotecária da exequente, caducou, inexoravelmente, com a venda em execução do referido imóvel, por força do disposto no citado nº 2 do artigo 824.º do Código Civil, não devendo assim o direito de propriedade da exequente ser afetado e/ou limitado por qualquer forma.».
Por conseguinte, a salvaguarda do direito da aqui A., caso a mesma mantenha o entendimento que não é extinto com a venda do imóvel no apenso de liquidação, terá de ser acautelada em ação instaurada para o efeito, contra o adquirente caso este não reconheça o direito em causa (não tendo sido interveniente na transação alcançada no apenso C, não está vinculado aos termos da mesma – Ac. STJ de 12-4-2018), nada tendo a ver com a insolvência ou a administração.
Pelo exposto, indefere-se o conhecimento da vertente acção, por verificação da excepção de violação da autoridade do caso julgado, absolvendo os RR. da instância”.
Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão datado de 23 de Setembro de 2021, julgou-a improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Consignou para esse efeito:
“(…)Concordamos.,
A função primacial do caso julgado é que a questão que foi julgada não mais o poderá ser de novo. Sobre um determinado conflito recai uma decisão e só uma. O caso julgado garante, assim, que os tribunais não tomem sobre o mesmo caso decisões diferentes. Como escreve Manuel de Andrade, o prestígio dos tribunais «seria comprometido no mais alto grau se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente» (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1979, p. 306; itálico no original).
Mas tem também a função de garantir a certeza ou segurança jurídica. De acordo com o mesmo autor, seria «intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu» (idem, ibidem). Esta função de garantia destina-se também a defender as pessoas destinatárias da sentença; estas pessoas sabem, e contam com isso, que o litígio não será discutido de novo, que a excepção de caso julgado serve para as proteger de nova demanda igual à anterior.
«O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem.
«O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veritate habetur.
«Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão» (negritos no original) (Rui Pinto, «Exceção e Autoridade do Caso Julgado – Algumas Notas Provisórias», publicado na revista Julgar Online, de Novembro de 2018, p. 6).
Como também escrevem Lebre de Feitas e Isabel Alexandre (Cód. Proc. Civil Anotado, vol. 2.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p. 599), a «exceção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela exceção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade de caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito».
No efeito negativo do caso julgado, a identidade de elementos indicados no art.º 581.º, Cód. Proc. Civil, tem de existir; já no efeito positivo tal identidade não é exigível, bastando que o objecto da segunda acção esteja consumido pelo da primeira (seja por conexão ou qualquer outra ligação entre ambos).
No nosso caso temos que foi reconhecido à recorrente o direito de uso e habitação (art.º 1484.º, Cód. Civil), direito real menor que se não confunde com o direito de propriedade. O reconhecimento daquele direito tem em si o sentido de a recorrente não ter outro direito sobre o mesmo imóvel e a sentença que homologou a transação, e que decide a causa «nos precisos limites e termos em que julga» (art.º 621.º, Cód. Proc. Civil), inibe que a recorrente invoque outro direito que não aquele que foi reconhecido: a relação material controvertida está definida e não é lícito voltar a discuti-la: impõe-se a primeira decisão como «pressuposto indiscutível» da segunda. Não podemos esquecer que o direito de que a recorrente se assumiu como titular é um direito diferente daquele que agora invoca; por outro lado, a posse que serve de fundamento há-de corresponder a um determinado direito (art.º 1251.º, Cód. Civil) com exclusão (por incompatibilidade) de outros.
Por estes motivos, entendemos que a sentença é de manter”.
Veio agora a A. interpor recurso de revista (normal) e subsidiariamente de revista excepcional, nos termos do artigo 672º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, fundando a primeira no seguinte argumentário:
“Pretende a recorrente arguir junto do Supremo um não adequado exercício pelo tribunal da Relação dos seus poderes em sede de impugnação da matéria de facto e invocar nulidades que inquinam o acórdão.
Aqui se tratam, evidentemente, de questões novas, apenas reveladas no âmbito do julgamento e da intervenção do tribunal de recurso em 2.ª instância e perfeitamente alheias ao tribunal da sentença – quanto a elas não faz sentido pensar em conformidade ou desconformidade decisória.
E, exatamente a sua arguição é instrumental e visa destruir a dupla conforme que, via, se poderia assumir existir.
Enquanto objecto de recurso para o Supremo estão, portanto, à margem da revista excepcional; e não podem deixar de ser objecto de recurso de revista normal.
Só assim se assegura devidamente o direito ao recurso.
O Tribunal da Relação eximiu-se, de analisar e reapreciar as questões suscitadas o que, na verdade, consubstancia verdadeiro obsctáculo injustificado, ao direito geral dos cidadãos de recorrerem das decisões judiciais que os afectem, nomeadamente da recorrente, unanimemente considerado como uma imanência do direito fundamental de acesso ao direito e de tutela jurisdicional efetiva, que, na nossa Constituição, tem consagração expressa no seu artigo 20º.
Conforme foi já decidido pelo STJ não existe dupla conforme nos casos em que é imputado ao Acórdão da Relação a violação de normas de direito adjetivo no que concerne à apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância, nomeadamente as previstas nos arts. 640º e 662º, ambos do NCPC. (Proc 802/13.8TTVNF.P1.G1A.S1)
A recorrente imputa ao Acórdão da Relação vícios decisórios, na medida em que esta não terá consignado todos factos constantes dos autos, alegados e necessários para se obter uma decisão na Apelação, i.e. uma resposta quanto à questão de saber se existe ou não “autoridade do caso julgado.”
Na perspectiva da recorrente, se tais factos tivessem sido considerados (e que adiante se enunciam), haveria uma conclusão diversa quanto à apreciação existência de caso julgado.
Nesta estrita medida, uma vez que as questões são suscitadas pela primeira vez perante a Relação, no âmbito do recurso de apelação, invocando a violação de preceitos de natureza adjetiva e de natureza substantiva, no que concerne à delimitação dos factos provados e não provados, não se pode afirmar que, relativamente a esse segmento do Acórdão recorrido, se verificou uma situação de dupla conformidade.
O recurso de revista que foi interposto pela recorrente é de admitir na medida em que nele é invocada a violação de lei adjetiva e substantiva, no que concerne à impugnação da decisão da matéria de facto, matéria esta que, conforme se explicitou em pontos anteriores, não está abarcada pela situação de dupla conformidade e bem assim pela existência do vício decisório.
II
A REVISTA e os seus fundamentos
a) O tribunal da RELAÇÃO considerou, apenas os seguintes factos para proferir a sua decisão, quando deveria considerar, também, os que adiante se indicaram na motivação do recurso apresentado pela recorrente da sentença da 1ª Instância.
(...)
Vejam-se, agora, os factos invocados pela recorrente na apelação e que constam dos autos:
“ Os factos
1. 2. e 3. (coincidentes)
4. Como causa de pedir da Providência Cautelar, invocou a requerente AA (ora recorrente) no artigo 13º da PI que “No início de Janeiro de 2015, data em que não sabe precisar, apareceu em sua casa o requerido EE, a dizer que tinha que abandonar a casa, pois tinha-a comprado num leilão nas Finanças de ... em que eram executados BB e CC.” (cfr PI da P. Cautelar)
Mais invocou, no artigo 15º, que “Uns dias depois apareceu novamente o Requerido EE a fazer medições do terreno todo e da casa da requerente, o que deixou ainda mais a requerente preocupada e receosa.
E, no artigo 16º A requerente receia que seja obrigada a sair da sua casa, por ordem do Requerido, que já a ameaçou pois que tinha comprado o prédio em causa e que era dele”. (cfr PI da P. Cautelar)
5. (coincidente com nº 4)
6. (coincidente com nº 5)
7. (coincidente com nº 6)
8. Em 18/07/2018 a recorrente AA intentou, por apenso a estes autos de insolvência, a presente ação contra:
A Massa Insolvente de Massa Insolvente de Massa Insolvente de BB,; A Massa Patrimonial que constitui a Herança do insolvente CC; Os Devedores, BB e a Herança Jacente de CC; Os credores, da Massa Insolvente de BB e da Massa Patrimonial que constitui a Herança do insolvente CC; E, EE, solteiro, NIF ..., residente em Rua..., ... ....
9. Alegou e peticionou nos termos da PI que se dá por integralmente reproduzida, nomeadamente, alegou que o Credor Banco Santander pretende adjudicar o imóvel mencionado e pretende que seja cancelado o registo do ónus do direito reconhecido em transacção judicial no Processo n.º 577/14...., à A. – conforme ap. ...11 de 29/09/2016 ( Doc 2), pondo em causa o seu direito. (cfr art. 50º da PI)
10. Peticionou que, “Sendo nulos, como invocado pela A., os negócios de compra e venda do imóvel (ou pelo menos parcialmente na parte do direito ao usufruto) deve a hipoteca, acessória do mútuo constituída pelos insolventes a favor do Banco Crédito Predial Português – actual Banco Santander Totta, ser considerada nula (pelo menos parcialmente e por isso reduzida judicialmente nos termos do art. 730º nº 3 do Código Civil), ordenando o respectivo cancelamento registral caso se entenda necessário em face da transacção dos autos e respectivo registo, e ordenar-se a separação do direito ao usufruto da massa insolvente.” (cft art 52º da PI).
11. Peticionou, também, a A., o reconhecimento da nulidade ou mesmo inexistência do o negócio celebrado pela escritura realizada na Agência de ... do Crédito Predial Português SA, em 10/07/2000, de folhas 90 verso a folhas 91 do livro de notas para escrituras diversas no ... Cartório Notarial de ... nº ..., por cautela, pelo menos na parte referente à venda do Usufruto do imóvel e consequentemente nula a hipoteca constituída pelos insolventes a favor do credor Banco Santander Totta SA – sucessor do Crédito Predial Português SA;
12. Peticionou, ainda, a A., “subsidiariamente para o caso da causa de pedir anterior não ser julgada verificada pelo Tribunal) a sua aquisição do respectivo direito de propriedade por via da usucapião que retroage a 1978, sendo, em consequência, proferida sentença que declare que a A. adquiriu por usucapião o imóvel ou pelo menos do direito vitalício do seu usufruto e, a declaração de nulidade do negócio celebrado posteriormente pela escritura supra mencionada; e em consequência, ordenado o cancelamento do registo de apreensão a favor da Massa Insolvente e da Massa Patrimonial atrás mencionadas e todos os outros registos que conflituem como seu direito, e, bem assim ordenada a restituição a favor da A.”
Verifica-se, assim, que o Tribunal da Relação, no âmbito do recurso de apelação, violou os preceitos de natureza adjetiva e de natureza substantiva, no que concerne à delimitação dos factos provados e não provados e baseou o Acórdão apenas em parte dos factos que deveria ter considerado, pelo não se pode afirmar que, relativamente a esse segmento do Acórdão recorrido, se verificou uma situação de dupla conformidade na estrita medida, uma vez que as questões de facto invocadas pela recorrente foram suscitadas pela primeira vez perante a Relação.
Nomeadamente, foi suscitada perante a Relação a apreciação dos factos com os números 4 e, 8 a 12, dos FACTOS e que o Tribunal deveria ter tomado por assentes por constarem dos próprios autos.
Ora, o que discute em sede da Revista é a violação da obrigação do Tribunal da Relação de considerar todos os factos dos autos, nomeadamente aqueles que lhe foram apontados pela recorrente na apelação e que se encontram assentes.
Os factos que a recorrente pretendia ver consignados na matéria de facto provada têm uma direta conexão com a (in)existência do caso julgado que foi o motivo essencial pelo qual as instâncias decidiram.
Caso a Relação tivesse considerado a matéria de facto que lhe foi apresentada na Apelação teria, certamente decidido, como se concluiu na motivação do recurso que “Não há repetição de causa pois que uma das partes não é a mesma da primeira causa, nem se pretende a mesma parte dispositiva, pois é diferente o efeito jurídico pretendido, que não se limita a assegurar a manutenção da posse mas diferentes efeitos jurídicos e com outros fundamentos.”
Resulta, assim, que em Revista deve ser ordenado ao Tribunal da Relação que profira novo Acórdão considerando toda a matéria de facto alegada pela recorrente em sede de Apelação”.
Apreciando liminarmente da admissibilidade da revista normal:
A A. recorrente labora num evidente equívoco.
A sentença recorrida foi proferida na fase do saneamento dos autos.
Analisando todos os elementos que o processo lhe facultava, o juiz a quo entendeu que os mesmos habilitavam, conscienciosamente, a decidir no sentido da absolvição da instância dos RR., com fundamento na verificação da excepção de violação da autoridade do caso julgado.
Ou seja, esta decisão final teve em consideração todos os elementos factuais trazidos ao processo pelas partes, havendo o julgador de 1ª instância dado especial e decisiva relevância àqueles que teve por suficientes para justificar o seu veredicto, procedendo, nesse sentido, à sua selecção, fazendo-o através da sintomática expressão: “Compulsados os autos, constata o Tribunal que...”.
Foi interposto pela A. recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora circunscrito, no essencial, à questão jurídica de saber se, perante todos os elementos reunidos nos autos, haveria, ou não, lugar à violação da autoridade de caso julgado, determinante da absolvição da instância dos RR.
O Tribunal de 2ª instância, ao ser confrontado com esta concreta questão jurídica (verificação, ou não, de violação da autoridade de caso julgado), dispunha de todos os elementos apresentados nos autos para sindicar a decisão recorrida e porventura alterá-la.
Ora, o que sucede é que Tribunal da Relação chegou exactamente à mesma conclusão que fora perfilhada pelo juiz a quo, adoptando basicamente a mesma fundamentação que aí fora explanada, sem a menor divergência ou ressalva.
Segundo o seu veredicto, todos os elementos juntos aos autos (e que terá analisado) justificavam (da mesma forma) que se concluísse pela verificação da violação da autoridade de caso julgado, com a consequente absolvição dos RR. da instância.
Ou seja, segundo o seu entendimento o estado dos autos habilitava a imediata decisão, sendo verdadeiramente importantes e decisivos os factos já salientados pelo juiz a quo (e não outros).
Por isso mesmo não destacou, por desnecessário, outros elementos de facto, sendo os consignados na sentença recorrida plenamente suficientes (na sua óptica) para a conclusão já extraída em 1ª instância, sendo certo que para a reanálise da questão jurídica suscitada na apelação não se encontrava minimamente vinculado a qualquer círculo restrito de elementos, dispondo, de forma ampla, de toda a matéria alegada pelas partes e suportada pelos documentos juntos dotados de força probatória plena.
Ou seja, a situação sub judice é, por sua própria natureza, completamente diversa da referenciada pela recorrente e que, no seu dizer, habilitaria a interposição da revista, nos termos gerais do artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil, evitando a dupla conforme.
Cita, a recorrente, para este efeito, os casos de rejeição da impugnação de facto por incumprimento das exigências legais consignadas no artigo 640º, nº 1 e nº 2, do Código de Processo Civil, ou a incorrecta utilização pelo Tribunal da Relação dos seus poderes de sindicância previstos no artigo 662º do Código de Processo Civil.
Ora, estas duas situações – que afastam indiscutivelmente a dupla conforme, dado serem decisões que, por sua natureza, só acontecem, pela primeira e única vez, no Tribunal da Relação – nada têm a ver com o que se passou nos presentes autos.
In casu, a recorrente não colocou verdadeiramente em crise a autenticidade dos factos considerados pelo juiz a quo para fundamentar a sua decisão de absolvição da instância dos RR., nem houve lugar sequer a qualquer tipo de actividade instrutória (produção de prova) em sede de julgamento cuja reapreciação fosse pedida perante o Tribunal da Relação, nos termos da sua impugnação ao abrigo do disposto no artigo 640º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Ao invés, o que a recorrente alegou foi que, para além dos factos considerados, existiam outros por si alegados que permitiriam proferir decisão oposta relativamente à afirmada violação da autoridade do caso julgado.
No fundo, questionou o fundamento jurídico substantivo que alicerçou a decisão de violação da autoridade do caso julgado em face de todos os elementos que os autos forneciam na fase do seu saneamento, entendendo que a conclusão a extrair deveria ser a contrária daquela que foi proferida (pela 1ª instância).
Ora, constando dos autos todos estes factos na fase do seu saneamento, o Tribunal da Relação poderia tê-los considerado, se não tivesse entendido suficientes e relevantes para suportar a decisão de 1ª instância precisamente aqueles que esta elencou, não conferindo destaque bastante aos restantes (exactamente pela mesma razão que motivou o juiz a quo a estribar-se na suficiência desses elementos).
E esta decisão de mérito, constante do acórdão recorrido e pertinente ao âmbito estritamente jurídico, traduz tão somente a integral confirmação da análise já realizada em 1ª instância, bem como da solução jurídica consequentemente adoptada, nas quais o Tribunal da Relação inteiramente se louvou.
Ou seja, a presente questão jurídica (violação da autoridade do caso julgado) apenas poderia ser discutida e apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça no plano geral da recorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação.
Pelo que, neste tocante, verificou-se efectivamente dupla conforme, nos termos gerais do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil, traduzida na plena concordância da instância superior quanto todos os fundamentos essenciais que conduziram à decisão de absolvição da instância assumida na instância inferior.
Por outro lado, a decisão impugnada não se enquadra no âmbito da alínea a) do nº 2 do artigo 629º do Código de Processo Civil, por não assentar, ela própria na invocada violação de caso julgado que tivesse ocorrido (não havendo a recorrente feito a mínima alusão a este normativo).
(Neste sentido, vide Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, Almedina 2020, 6ª edição, a página 54, onde pode ler-se: “(...) a admissibilidade excepcional do recurso não abarca todas as decisões que incidam sobre a excepção dilatória do caso julgado, mas apenas aquelas de que alegadamente resulte ofensa do caso julgado já constituído, efeito que tanto pode emergir da assunção expressa de que a decisão recorrida não representa a violação de caso julgado, como do facto de ser proferida decisão sem consideração do caso julgado anteriormente formado (ofensa implícita), Estão por isso excluídas desta previsão especial as situações em que se afirme a existência da excepção de caso julgado (absolvendo o réu da instância) ou se assumam os efeitos da autoridade de caso julgado emergente de outra decisão. Efectivamente, nestes casos, não se verifica qualquer violação do caso julgado, antes a prevalência de outra decisão já transitada em julgado, situação que fica sujeita às regras gerais sobre a recorribilidade (artigo 629º, nº 1) e oportunidade de impugnação (artigos 644º e 671º). Em suma, a admissibilidade especial de recurso ao abrigo deste preceito depende dos seguintes pressupostos: - Decisão de 1ª instância ou acórdão da Relação a que seja imputada ofensa de caso julgado formal ou material, excluindo-se, pois, deste regime os casos em que tenha sido afirmada na decisão recorrida a excepção de caso julgado ou a autoridade de caso julgado”.
Vide igualmente, a este propósito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2021 (relatora Rosário Morgado) proferido no processo nº 1181/14.1TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 2021 (relator Oliveira Abreu) proferido no processo nº 2218/15.2T8VCT-A.G2.S1, publicado in www.dgsi.pt;) o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Setembro de 2021 (relator Ricardo Costa) proferido no processo nº 6099/16.0T8VIS-S.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Fevereiro de 2021 (relator Nuno Pinto de Oliveira) proferido no processo nº 26151/16.1T8LSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
Pelo que a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Évora em referência apenas será viável por via da eventual admissão, por parte da Formação, da revista excepcional – que a recorrente interpôs, a título subsidiário, avocando em seu favor o disposto no artigo 672º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, encontrando-se reunidos, in casu, todos os pressupostos gerais de recorribilidade.
Oportunamente, serão os autos remetidos à Formação, nos termos e para os efeitos do artigo 672º, nº 3, do Código de Processo Civil”.
Notificado nos termos do artigo 655º, nº 1, do Código de Processo Civil, a recorrente manifestou-se inequivocamente no sentido de que a revista é, a seu ver, admissível, não concordando portanto com a posição assumida pelo relator.
Referiu a este propósito:
 “Tem V.Exa toda razão na parte da decisão que refere que o Julgador da 1ªInstância mencionou ter compulsado os autos.
Discorda-se, contudo, que de tal afirmação, comum e de rotina -“Compulsados os autos, constata o Tribunal que...” se possa concluir sem mais, como se concluiu, que efetivamente se consideraram (na decisão) todos factos trazidos aos autos pelas partes, nomeadamente e particularmente, aqueles que o mesmo Julgador deu por assentes.
Não bastará a mera (tal) afirmação, quando do teor da decisão da 1ª Instância nada resulta, e, substantivamente, que terão sido analisados, e considerados ou desconsiderados os factos aduzidos.
Quanto à decisão da Relação, constata-se, que desta nem sequer consta a já mencionada afirmação de “Compulsados os autos” .
Será suficiente, para se decidir que a Revista não deve ser admitida, a presunção de que o Tribunal da Relação “terá analisado todos os elementos juntos aos autos”, ? (n/subl. e reordeordamento da frase citada).
Discorda-se, sempre respeitosamente, que o Tribunal da Relação tenha analisado todos os elementos juntos aos autos pois que, tal não resulta da própria decisão, nem a Relação o afirmou, como, por rotina, o fez o Tribunal da 1ª Instância.
Citemos, “Segundo o seu veredicto [o Tribunal da Relação], todos os elementosjuntos aos autos (e que terá analisado) justificavam (da mesma forma) que se concluísse pela verificação da violação da autoridade de caso julgado, com a consequente absolvição dos RR. da instância. “ ( n/subl.)
Como já se disse, o Tribunal da Relação, nada disse, sequer de semelhante, à expressão (rotineira) “Compulsados os autos”.
O Tribunal da Relação deveria ter, pelo menos, explicado qual a razão porque não considerou os factos assentes na primeira Instância (que por isso mesmo não necessitavam de mais prova) os quais lhe foram apontados pela recorrente.
Por isto, não pode, com a devida humildade, aceitar-se a intenção de pronúncia constante do despacho de V.Exª.
O que se pretende discutir em sede da Revista é a violação da obrigação do Tribunal da Relação de considerar (ou desconsiderar) todos os factos dos autos, nomeadamente aqueles que lhe foram apontados pela recorrente na apelação e que se encontravam já assentes.
Os factos que a recorrente pretendia ver considerados pela Relação, consignados na matéria de facto provada, têm uma direta conexão com a (in)existência do caso julgado que foi o motivo essencial pelo qual as instâncias decidiram.
Defende-se que caso a Relação tivesse considerado (toda) a matéria de facto que lhe foi apresentada na Apelação teria, certamente decidido, não que se limitasse a confirmar, sem mais, a decisão anterior, como se concluiu na motivação do recurso que:
“Não há repetição de causa pois que uma das partes não é a mesma da primeira causa, nem se pretende a mesma parte dispositiva, pois é diferente o efeito jurídico pretendido, que não se limita a assegurar a manutenção da posse mas diferentes efeitos jurídicos e com outros fundamentos.”
O Tribunal da Relação eximiu-se, de analisar e reapreciar as questões  suscitadas, o que, na verdade, consubstancia verdadeiro obstáculo, injustificado, ao direito geral dos cidadãos de recorrerem das decisões judiciais que os afectem, nomeadamente da recorrente, unanimemente considerado como uma imanência do direito fundamental de acesso ao direito e de tutela jurisdicional efetiva, que, na nossa Constituição, tem a consagração expressa e constante no seu artigo 20º.
Um facto assente, que deveria ter sido considerado no Recurso perante Relação (e que não foi considerado ou desconsiderado), corresponde ao facto dos sujeitos que intervieram na transação nos autos de providencia cautelar com o n.º 577/14...., serem distintos dos sujeitos contra quem foi movida a presente acção.
A providência cautelar não foi movida contra, o agora, Réu Banco Santander Totta, S.A. – sucessor do Crédito Predial Português, S.A. E, não o foi por mero lapso, mas, porque a ameaça à posse então invocada como causa de pedir não proveio desse Banco, mas do R. EE
Verifica-se, assim, que o Tribunal da Relação, no âmbito do recurso de apelação, violou os preceitos de natureza adjetiva e de natureza substantiva, no que concerne à delimitação dos factos provados e não provados e baseou o Acórdão, apenas, em parte não objectiva dos factos que deveria ter considerado,
Pelo que, não se pode afirmar que, relativamente a esse segmento do Acórdão recorrido, se verificou uma situação de dupla conformidade na estrita medida, uma vez que as questões resultam do julgamento da Relação.
Em face do exposto, e acreditando que V.Exª tomará em consideração as razões ora aduzidas, espera-se que a decisão a proferir seja a de admissão do recurso de Revista ordinário”.
Apreciando:
Não assiste a menor razão ao recorrente quando pugna pela admissibilidade da sua revista.
O seu recurso assenta na (alegada) utilização incorrecta pelo Tribunal da Relação dos seus poderes em matéria de facto, nos termos gerais do artigo 662º do Código de Processo Civil.
Acontece que nos presentes autos não houve lugar à realização da audiência de julgamento, com a produção da prova oferecida pelas partes.
Ao invés, na fase do saneamento dos autos, o juiz a quo entendeu, pelo conjunto de todos os elementos de que dispunha, que a pretensão da A. violava a autoridade de caso julgado, absolvendo o Réu da instância, no que foi acompanhado pelo acórdão recorrido, sem fundamentação essencialmente divergente.
Ou seja, é claro e insofismável que se constituiu dupla conforme nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil, impeditiva da interposição de revista normal prevista no artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil.
A única via para a possibilidade do conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça da presente revista consiste na figura da revista excepcional, genericamente prevista no artigo 672º do Código de Processo Civil, de que a recorrente igualmente, e a título subsidiário, se socorreu.
Em suma, havendo dupla conforme não é admissível a interposição de revista normal nos termos do artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil, competindo à Formação ajuizar da admissibilidade da revista excepcional em conformidade com o disposto no artigo 672º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Oportunamente, serão os autos enviados à Formação.

Pelo exposto, acordam, em Conferência, os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em considerar a inadmissibilidade da revista normal e ordenar a remessa dos autos à Formação, nos termos e para os efeitos do artigo 672º, nº 3, do Código de Processo Civil, para apreciação dos pressupostos da revista excepcional.
                                                    
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2022.


Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida


V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.