Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3444
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: FRANQUIA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
SOCIEDADE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: SJ2007101134447
Data do Acordão: 10/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. O contrato de franquia integra-se no género contrato de distribuição indirecta integrada, é atípico, não sujeito a forma específica, por via do qual o franquiador concede ao franquiado, mediante determinada contrapartida pecuniária, a utilização em certa zona geográfica, sob o seu controlo e fiscalização, de marcas, nomes, insígnias, processos de fabrico ou técnicas comerciais.
2. A facturação por excesso de preço dos produtos alienados pelo franquiador ao franquiado é insusceptível de constituir incumprimento do contrato de franquia pelo primeiro.
3. A estrutura do recurso de revista é essencialmente jurídica, onde a sustentação de posições jurídicas, porventura desconformes com a correcta interpretação ou aplicação da lei, não basta à conclusão no sentido da litigância de má fé de quem as sustenta.
4. A sanção decorrente da litigância de má fé das sociedades recai sobre quem as tenha representado no processo.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
AA Portugal - Confecções de Algodão, SA intentou, no dia 8 de Março de 2000, contra Confecções BB, Lda, e a CC, SA, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação solidária pagar-lhe 5 790 903$ e juros de mora à taxa legal, a última até ao montante de 4 000 000$, com base no incumprimento de um contrato de fornecimento de mercadorias celebrado com a primeira e na garantia prestada pela última, bem como a condenação daquela a retirar do respectivo estabelecimento os elementos com referência aos produtos da marca que representa.
Em contestação, a primeira ré impugnou o montante indicado pela autora, afirmando ser de valor inferior, e a segunda afirmou estar a sua garantia limitada pelo valor do débito da primeira.
Feito o julgamento, foi proferida sentença, da qual a ré Confecções BB Ldª apelou, e a Relação, por acórdão proferido no dia 28 de Abril de 2005, anulou-a a fim de serem ouvidas testemunhas.
Realizado novo julgamento, foi proferida nova sentença no dia 10 de Maio de 2006, por via da qual as rés foram solidariamente condenadas a pagar à autora € 19 906,54 e, quanto aos juros de mora à taxa legal, apenas a ré Confecções BB, Ldª.
Interpôs a ré Confecções BB Ldª recurso de apelação, e a Relação, por acórdão proferido no dia 15 de Março de 2007 negou-lhe provimento.

Interpôs Confecções BB Ldª recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- ao adquirir a colecção da mercadoria em Madrid, a recorrente organizava o valor da encomenda, aplicava a referida taxa de câmbio vigente e determinava o exacto valor da colecção a receber e da sua venda ao público na loja de Tomar;
- a recorrida facturava os produtos por um valor dividido por 1.85 ou 1.93, e aplicava capciosamente o imposto sobre o valor acrescentado à totalidade de cada factura e não ao produto individual;
- o acórdão não apreciou a questão da aplicação pela recorrida da taxa inominada de 1.45 não prevista no contrato nem decidiu em conformidade o incumprimento da sua cláusula sexta, quanto à margem de lucro que aceitou ser calculada sem imposto sobre o valor acrescentado;
- a Relação incumpriu, por isso, a alínea c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil;
- a aplicação ilegal da referida taxa não tem acolhimento expresso no clausulado do contrato, o que implica incumprimento contratual por parte da recorrida;
- como no contrato não vem fixada taxa, é de pressupor que a conversão das pesetas em escudos devia fazer-se à taxa de câmbio legal vigente de 1.204, porque o negócio foi estipulado em pesetas;
- a recorrida incumpriu o contrato porque utilizou, de forma ilegal, uma taxa de 1.45 ao facturar em escudos a mercadoria vendida à recorrente em pesetas;
- a recorrida incumpriu a cláusula sexta do contrato porque facturou os produtos por um valor em escudos aproximado do valor da venda ao público dividido por 2.15;
- a utilização arbitrária de tal taxa originou a errada ampliação de 24,6% do valor das facturas de venda da mercadorias, encareceu os produtos e prejudicou a recorrente e os consumidores;
- ao decidir como decidiu, a Relação também violou o artigo 406º do Código Civil, pelo que o acórdão deve ser revogado e substituído por outro que declare o incumprimento do contrato pela recorrida.

Respondeu a recorrida em síntese de conclusão:
- o recurso deve ser indeferido porque a recorrente nele impugnou a decisão da matéria de facto, em violação do disposto nos artigos 721º, nº 2 e 722º, nº 2, do Código de Processo Civil
- a recorrente não invocou no tribunal da primeira instância nem no da Relação a questão do incumprimento do contrato pela recorrida, não tendo deduzido reconvenção, pelo que é ilegítima a sua inclusão no recurso de revista;
- pretendendo a apreciação de matéria de facto no recurso de revista, cuja falta de poder de cognição do Supremo Tribunal de Justiça não podia ignorar, a recorrente usou expediente que só visa protelar o pagamento do devido;
- deve ser condenada, por litigância de má fé, a indemnizá-la no montante de € 2 500 relativos aos honorários do advogado pelo estudo e elaboração das contra-alegações e às despesas de expediente.

II
É a seguinte a factualidade considerada provada no acórdão recorrido:
1. A autora exerce uma actividade comercial no sector do vestuário e é titular dos direitos de comercialização e distribuição exclusiva para Portugal dos produtos e marca Don Algodon, nomeadamente artigos de confecção, calçado e acessórios, produtos esses alvo de diversas campanhas publicitárias.
2. A ré Confecções BB,Ldª é proprietária de um estabelecimento comercial sito na Rua Serpa ......, n° ...., em Tomar.
3. No desenvolver da sua actividade, a autora celebrou com a ré Confecções BB, Ldª, no dia 7 de Março de 1998, um contrato de cedência dos sobreditos direitos de comercialização, conforme documento de folhas 14 a 23, por força do qual o representante da última declarou que ela se obrigava a adquirir, entre outros, os produtos de vestuário e acessórios disponibilizados pela autora, com o pagamento dos mesmos a 90 dias contados da data de emissão das respectivas facturas, e a vender os sobreditos artigos no seu estabelecimento comercial e a não transaccionar nele quaisquer outros.
4. Para assegurar o pagamento das facturas relativas ao fornecimento de mercadorias disponibilizadas pela autora, foi emitida pela CC, SA, uma garantia bancária a favor desta última, conforme o documento de folhas 24, nos termos da qual a ré CC, SA, através dos seus representantes, declarou constituir-se garante e principal pagadora até ao montante de 4 000 000$.
5. Com a celebração e execução do mencionado contrato, a autora transmitiu à ré Confecções BB, Ldª conhecimentos técnicos e comerciais, de molde a inseri-la no âmbito das empresas que vendem produtos Don Algodon, as quais evidenciam uma certa uniformização que se caracteriza por ostentarem a mesma insígnia e marca e venderem os mesmos produtos, e pelo modo de atendimento dos clientes e decoração e disposição da mercadoria.
6. O estabelecimento comercial da ré Confecções BB, Ldª foi objecto de transformações efectuadas sob a direcção e o conhecimento facultado pela autora., designadamente a nível de decoração, segundo o padrão das lojas que vendem produtos Don Algodon, de molde a criar a aludida uniformização, com o objectivo de facilitar ao cliente/consumidor uma fácil identificação daquelas com os produtos que vendem.
7. A ré Confecções BB, Ldª adquiriu a mercadoria em Madrid, na sede da empresa Don Algodon, em pesetas convertíveis em escudos à taxa de câmbio fixada em 1.204, e a autora facturava-a em escudos, utilizando uma taxa de 1,45, e os produtos ao preço de custo mais 2.15.
8. A ré Confecções BB, Ldª, em execução do que foi acordado em sede do referido contrato de comercialização, adquiriu à autora mercadorias, nomeadamente peças de vestuário a que correspondem as facturas nºs ...........9, ..........0, ...........2, .............3, ...........1, datadas, respectivamente, de 26 de Fevereiro de 1999, 26 de Fevereiro de 1999, 1 de Março de 1999, 29 de Março de 1999 e 27 de Abril de 1999, no valor respectivo de 2 420 199$, 930 483$, 641 197$, 1 071 168$ e 65 291$, sendo que a factura nº 9.........., datada de 24 de Novembro de 1998, no valor de 5 850 000$, corresponde a cedência de marca – royalties.
9. Na factura n° .............2, de 1 de Março de 1999, verifica-se que a referência ...........8 - malha -, se encontra facturada ao preço unitário de 4 930$, com o imposto sobre o valor acrescentado de 17%, o que perfaz 5 768$.
10. Na etiqueta correspondente à malha aludida em 9 consta o preço de 10 650$, na factura n° ...........9, de 26 de Fevereiro de 1999, a referência ...........2 - saia - encontra-se facturada pelo preço utilitário de 6 552$, acrescendo o imposto sobre o valor acrescentado de 17%, o que perfaz 7 666$, e na etiqueta correspondente à saia consta o preço de 14 850$.
11. A ré Confecções BB, Ldª pagou à autora 5 187 434$, em relação ao que foram emitidos os seguintes recibos: n° ............5, datado de 31 de Dezembro de 1998, no valor de 5 000 000$; n° ...........8, datado de 9 de Agosto de 1999, no valor de 59 551$; n° ...........1, datado de 5 de Julho de 1999, no valor de 1 071 168$, sendo que a verba de 121 168$ se refere à liquidação parcial da factura n° ..........9.
12. Foi abatida ao montante devido pela ré Confecções BB, Ldª a quantia de 5 740$, à qual acresce imposto sobre o valor acrescentado à taxa de 17%, e em consequência tal verba foi creditada tempestivamente no saldo de conta-corrente desta última.
13. A autora solicitou o pagamento à ré Confecções BB, Ldª, e a ré CC, SA, na qualidade de garante e principal pagadora, foi instada diversas vezes para proceder ao pagamento até ao limite da responsabilidade que assumiu, conforme documentos de folhas 49 a 90.
14. A ré CC, SA disponibilizou-se a pagar à autora a quantia de 847 891$, valor que, no dizer da mesma, foi transmitido pela sua cliente, Confecções BB, Ldª como o único que estava em dívida.
15. A ré CC, SA enviou uma carta à autora a comunicar-lhe que iria proceder ao pagamento do montante de 847 891$, valor este que lhe foi transmitido pela ré Confecções BB, Ldª como sendo o único em dívida e a aguardar pagamento, e nunca obteve dela qualquer resposta a essa carta.
16. A ré Confecções BB, Ldª deu conhecimento à autora de que não eram verdadeiros os valores das facturas, e também transmitiu tal factualidade à CC, SA, mantendo sempre a posição de aceitar que última pagasse o valor de 847 891$.
17. Até à presente data, a ré CC, SA não procedeu ao pagamento do montante reclamado pela autora, e foram-lhe enviadas cópias das facturas aludidas sob 8, assim como o comprovativo das entregas feitas pela autora.
18. Só após ter cessado o fornecimento de produtos Don Algodon, a ré Confecções BB, Ldª começou a vender outros produtos, designadamente vestuário e acessórios de homem, os quais em nada se confundem com os da empresa Don Algodon.
19. A ré Confecções BB, Ldª alterou a disposição das montras, a colocação dos produtos nas montras e nas prateleiras, a disposição do balcão, retirando o reclame luminoso, o toldo com o logotipo Don Algodon, e os autocolantes Don Algodon dos vestiários.
20. A clientela de produtos Don Algodon era exclusivamente feminina, passando os produtos vendidos a destinar-se apenas à clientela masculina.
21. A autora contratou com DD e EE a venda de produtos Don Algodon em Abrantes, inaugurando-se em 18 de Setembro de 1999, na Rua Dr. Ber......... ............... uma casa Don Algodon.
22. A ré Confecções BB, Ldª pagou todas as obras na loja de Tomar, qualquer cliente da loja Don Algodon, ao entrar na loja da primeira, verifica que não se trata de loja Don Algodon, e não se justifica a retirada de "todos os elementos decorativos criados sob a direcção e o saber - fazer facultado pela autora.", os quais inexistem, e era em Madrid que Confecções BB, Ldª escolhia a colecção de roupa disponível.

III
As questões essenciais decidendas são as de saber se a recorrente está ou não vinculada ao pagamento à recorrida de € 19 906,54 e juros de mora à taxa legal e a indemnizá-la no montante de € 2 500 por litigância de má fé no recurso de revista
A resposta às referidas questões pressupõe a análise da seguinte problemática:
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por omissão de pronúncia?
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida;
- incumpriu ou não a recorrida o referido contrato?
- o preço facturado pela recorrida excede o não o convencionado entre ela e a recorrente?
- tem ou não a recorrida, no confronto da recorrente, direito a indemnização a título de litigância de má fé?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados, da dinâmica processual envolvente e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestoes.

1.
Comecemos pela subquestão de saber se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por omissão de pronúncia.
Alegou a recorrente ter a Relação omitido o conhecimento da questão relativa à taxa de 1,45, imputando, por isso, ao acórdão, a referida nulidade.
Resulta da lei ser o acórdão da Relação nulo quando deixe de se pronunciar sobre questões de que devia conhecer (artigos 668º, nº 1, alínea d), e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O juiz deve, com efeito, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito.
As questões a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
Julgada procedente a nulidade decorrente de omissão de pronúncia pela Relação, se for caso disso, impõe-se a baixa do processo àquele Tribunal a fim de operar a reforma do acórdão (artigo 731º do Código de Processo Civil).
O tribunal de primeira instância respondeu ao quesito vigésimo-quarto no sentido de que a autora facturava a mercadoria adquirida pela primeira ré em escudos, utilizando a de 1.45.
A recorrente impugnou perante a Relação a decisão da matéria de facto com o escopo de aquele Tribunal, reapreciando a prova, alterar a resposta ao mencionado quesito no sentido de apenas dele ficar a constar que a autora facturava a mercadoria adquirida pela primeira ré em escudos utilizando a taxa de câmbio de 1.45.
Para o efeito, afirmou não constar do contrato qualquer taxa e ser de pressupor que na conversão das pesetas ser sempre utilizada a taxa de câmbio legal vigente, à data 1.204, por virtude de o negócio ter sido estipulado em pesetas.
A propósito, expressou a Relação, por um lado, que, pela análise do registo magnético dos depoimentos prestados em audiência e dos demais elementos probatórios constantes no processo, as respostas aos questionados pontos da base instrutória não podiam ser outras.
E, por outro, não ter sido produzida prova bastante quanto à natureza da taxa incidente sobre as mercadorias adquiridas pela apelante e à forma de cálculo do respectivo preço.
Finalmente, referiu a Relação que a apelante não logrou provar o pagamento do preço total respeitante às mercadorias anteriormente fornecidas em termos de, afastadas as regras supletivas do artigo 784º do Código Civil, dever o pagamento de 1 071 168$ ser imputado na correspondente factura.
Conforme acima se referiu, a Relação tem que se pronunciar sobre as questões suscitadas pelas partes, com o sentido acima indicado, mas não sobre todos os argumentos por elas deduzidos.
Considerando a questão que a ora recorrente suscitou à Relação, e a posição que esta expressou sobre ela, a conclusão é no sentido de que aquele Tribunal se pronunciou sobre a mesma, ou seja, não omitiu a pronúncia em causa.
Por conseguinte, não está o acórdão recorrido afectado de nulidade por virtude da omissão de pronúncia a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.

2.
Atentemos agora na natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida.
O contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida, aqui em causa, foi no tribunal da primeira instância qualificado como sendo de franquia, mais conhecido pelo anglicismo franshising.
A referida qualificação não foi posta em causa pelas partes nos recursos de apelação e de revista.
No direito comunitário, a franquia consiste no conjunto de direitos de propriedade industrial ou intelectual relativos a marcas, nomes comerciais, insígnias de estabelecimentos, modelos de utilização, desenhos, direitos de autor, saber-fazer ou patentes (artigo 3º, nº 1, alínea a), do Regulamento CEE nº 4087/88, de 30 de Novembro).
E o contrato de franquia é caracterizado como sendo aquele pelo qual uma empresa - o franquiador - concede a outra - o franquiado, mediante contrapartida financeira directa ou indirecta, o direito de utilizar uma franquia para comercializar determinado tipo de produtos e ou serviços (artigo 3º, nº 1, alínea b) do referido Regulamento).
Trata-se, pois, de uma espécie do género contrato de distribuição indirecta integrada, atípico, não sujeito a forma específica, por via do qual o franquiador concede ao franquiado, mediante determinada contrapartida pecuniária, a utilização, em certa zona geográfica, sob o seu controlo e fiscalização, de marcas, nomes, insígnias, processos de fabrico ou técnicas comerciais.
Dir-se-á, em suma, que o referido contrato se caracteriza pela concessão remunerada por uma empresa a outra do uso dos seus sinais distintivos, com vista à integração da última na rede de distribuição dos seus produtos.
É regido, à luz do princípio da liberdade contratual, pelas respectivas cláusulas contratuais que não contrariem normas imperativas e, no mais, subsidiariamente, pelas regras dos contratos de estrutura próxima e gerais dos contratos.
Ora, tendo em conta os factos provados, especialmente os concernentes ao convencionado pela recorrente e pela recorrida, certo é estarmos perante um contrato de franquia.
Por via dele, por um lado, resultou para a recorrida, que exerce actividade no sector da comercialização de produtos consubstanciados em vestuário, calçado e acessórios, com a designação Don Algodon, a obrigação de garantir à recorrente a utilização do referido direito de utilização.
E, por outro, para a recorrente, a obrigação de adquirir à recorrida, mediante determinado preço lato sensu, os referidos produtos e a pagar-lhe, em certo prazo, o valor correspondente.

3.
Vejamos agora se os factos provados revelam ou não o incumprimento do referido contrato por parte da recorrida.
A este propósito, importa ter em conta, tal como foi referido pela recorrida, não ter este Tribunal competência funcional para a alterar a decisão da matéria de facto proferida pela Relação no que concerne à resposta aos quesitos que a recorrente impugnou no recurso de apelação (artigos 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Certo é que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, isto é, cláusula por cláusula (artigo 406º, nº 1, do Código Civil).
Resulta da lei que o devedor cumpre a obrigação quando realiza, espontânea ou compulsivamente, a prestação a que está vinculado (artigos 762º, nº 1 e 817º do Código Civil).
Decorre do mencionado normativo que o devedor não cumpre a sua obrigação quando não realiza, espontânea ou compulsivamente, a prestação a que se vinculou perante o credor.
Os factos provados não revelam que a recorrida tenha incumprido a obrigação que lhe derivou do contrato de franquia, certo que concretizou a cedência à recorrente do uso dos direitos inerentes aos seus sinais de comercialização e forneceu-lhe os produtos de vestuário e acessórios concernentes.
Na realidade, resulta da argumentação da recorrente, não alguma situação de incumprimento contratual por parte da recorrida, mas tão só a discordância sobre o montante do preço por esta facturado no âmbito de sucessivos contratos de compra e venda dos produtos sob os sinais a que se reporta o contrato de franquia.
Assim, a problemática do incumprimento pela recorrida do contrato de franquia constitui uma falsa ou aparente questão, cuja resposta se basta com a negação do seu relevo ou procedência.

4.
Atentemos agora sobre se o preço facturado pela recorrida excede o não o convencionado entre ela e a recorrente.
As instâncias concluíram que a recorrente tinha omitido, relativamente aos contratos de compra e venda de produtos, celebrados no desenvolvimento do contrato de franquia, ilícita e culposamente, o pagamento do equivalente a € 19 906, 54.
A recorrente alegou ser o seu débito inferior ao apurado, alegando, para o efeito, por um lado, a indevida facturação em escudos com base na taxa de câmbio de 1.45, por ser de pressupor, dada a sua omissão no contrato, dever aplicar a taxa legal vigente de 1.204.
E, por outro, na aplicação capciosa do imposto sobre o valor acrescentado à totalidade do valor de cada factura em desconsideração do concernente produto individual.
E, finalmente, ter a recorrida incumprido a cláusula sexta do contrato na divisão do valor dos produtos por 1.85 ou 1.93.
A recorrente imputou, pois, à recorrida o empolamento da facturação em causa por via da utilização da taxa de 1.45 na conversão das pesetas em escudos - em vez de utilizar a taxa de 1.204 - da divisão do valor do produto assim obtido por 1.85 ou 1.93 e do cálculo capcioso do imposto sobre o valor acrescentado.
A cláusula sexta do contrato de franquia expressa que a autora facturaria os seus produtos por um valor em escudos aproximado ao valor da venda ao público dividido por 2.15.
Conforme acima se referiu, pelos motivos ali indicados, não pode este Tribunal alterar o quadro de facto que nas instâncias ficou assente.
Com relevo para a decisão desta questão, além do que foi convencionado na cláusula sexta do contrato de franquia, apenas está assente ter a recorrente adquirido a mercadoria em Madrid – Espanha - na sede da empresa Don Algodon, em pesetas convertíveis em escudos à taxa de câmbio de 1.204, e a recorrida tê-la facturado em escudos, utilizando uma taxa de 1,45, e os produtos ao preço de custo mais 2.15.
Ignora-se a evolução do câmbio do escudo e da peseta no período em que o contrato de franquia celebrado entre a recorrente e a recorrida foi por estas executado por via dos contratos de compra e venda entre ambas celebrados em relação aos quais é discutido o respectivo preço.
Ademais, não resulta dos factos provados se a mencionada taxa de 1.45 se reporta ao câmbio do escudo e da peseta ou como mais valia inerente ao contrato de franquia.
Acresce não resultar dos referidos factos, antes pelo contrário, que a recorrida não tenha formado o preço relativo aos contratos tendo em conta o que foi convencionado na cláusula sexta do contrato de franquia.
Finalmente, os mencionados factos não revelam a ilegal facturação pela recorrida do imposto sobre o valor acrescentado.
A conclusão é, por isso, face aos factos provados, por um lado, no sentido de que o preço facturado pela recorrida, que está em causa, não excede o convencionado entre ela e a recorrente.
E, por outro, ter sido a recorrente quem incumpriu o convencionado ao não pagar integralmente à recorrida o preço dos produtos que lhe adquiriu com base nos contratos de franquia e de compra e venda acima referidos.

5.
Vejamos agora se a recorrida tem ou não direito a ser indemnizada pela recorrente a título de litigância de má fé.
A recorrida fundamentou a sua pretensão de indemnização por litigância de má fé no confronto da recorrente na alegada circunstância de esta última ter deduzido no recurso de revista, onde só podem conhecer-se questões de direito, dolosamente, pedidos confinados à matéria de facto julgados improcedentes no tribunal da primeira instância e na Relação.
Distingue-se nesta matéria, isto é, no plano do ilícito meramente processual, entre a lide temerária e a lide dolosa, no primeiro caso agindo a parte com culpa grave ou erro grosseiro e, no segundo, sabendo não ter razão para litigar e, não obstante, litigou.
Com efeito, resulta da lei ser litigante de má fé, por um lado, o que, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar (artigo 456º, nºs 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Civil).
E, por outro, o que tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito julgado da decisão (artigo 456º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do Código de Processo Civil).
Embora o proémio do nº 2 deste artigo não exclua a abrangência de qualquer das situações previstas nas suas alíneas, a da alínea d), com o conteúdo acima mencionado, dada a sua estrutura, certo é que pressupõe necessariamente o dolo da parte.
Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa entre duas e cem unidades de conta, ou seja, entre € 192 e € 9 600, e em indemnização à parte contrária se esta a pedir (artigos 102º, alínea a), do Código das Custas Judiciais e 456º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Ao invés do que a recorrida alegou, a recorrente não impugnou a decisão da matéria de facto proferida pela Relação para o Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito, limitou-se a invocar a nulidade do acórdão da Relação por não ter conhecido de determinada vertente da matéria de facto e o incumprimento contratual por parte da primeira, daí discorrendo ser inferior ao considerado nas instâncias o direito de crédito daquela.
Assim, o referido comportamento processual da recorrente assenta em determinada interpretação dos factos e das normas jurídicas, sem que se vislumbre ter o mesmo visado a consecução de algum objectivo ilegal ou o protelamento, sem sério fundamento, do trânsito em julgado da sentença proferida no tribunal da primeira instância.
Esta fase do litígio é de estrutura meramente jurídica, onde a sustentação de posições jurídicas, porventura desconformes com a correcta interpretação da lei, não basta à conclusão da litigância de má fé de quem as sustenta.
Assim, ao invés do que a recorrida alegou, a dinâmica processual envolvente não revela a temerária ou a dolosa litigância a que se reportam, respectivamente, as alíneas a) e d) do nº 2 do artigo 456º Código de Processo Civil.
Não ocorrem, por isso, na espécie, os pressupostos de condenação da recorrente por litigância de má fé.
E, ainda que se verificassem, a responsabilidade pelo pagamento da multa e da indemnização pedida pela recorrida não podia recair sobre a recorrente, porque se trata de uma sociedade (artigo 458º do Código de Processo Civil).

6.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados, da dinâmica processual envolvente e da lei.
O acórdão recorrido não está afectado de nulidade por omissão de pronúncia.
A recorrente e a recorrida celebraram um contrato de franquia, a primeira na posição de franquiada e a última na posição de franquiadora, e vários contratos de compra e venda de produtos com os sinais da última, a recorrente como compradora e a recorrida como vendedora.
O preço relativo aos mencionados contratos de compra e venda facturado pela recorrida não excede o que convencionou com a recorrente, e ela cumpriu o clausulado de qualquer dos referidos contratos.
A recorrente, por seu turno, incumpriu, no confronto da recorrida, a sua obrigação de pagamento parcial do preço.
A recorrente não agiu, no recurso de revista, em termos de litigância de má, pelo que a recorrida não tem direito a ser por ela indemnizada a esse título.
Independentemente disso, não o poderia ter, porque a recorrente é uma sociedade.

Improcede, por isso, o recurso, e não há fundamento para a condenação da recorrente por litigância de má fé.
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

11 de Outubro de 2007.

Salvador da Costa (Relator)

Ferreira de Sousa
Armindo Luis