Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22208/18.2T8PRT.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: CONDOMÍNIO
LEGITIMIDADE PASSIVA
LEGITIMIDADE ADJETIVA
INFILTRAÇÕES
PARTES COMUNS
PROPRIEDADE HORIZONTAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RECURSO PER SALTUM
DESPACHO SANEADOR
Data do Acordão: 06/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A legitimidade processual é o pressuposto adjetivo através do qual a lei seleciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo trazido a Juízo, aferida em vista de um critério substantivo - o interesse em demandar e em contradizer - .

II. O critério para apreciar da legitimidade passiva prende-se com o “o interesse em contradizer” manifestado pelo prejuízo que da procedência da ação advenha para o demandado, enquanto sujeito da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor que, de todo, deve ser confundido com o pressuposto processual positivo, ou seja, uma condição que deve estar preenchida para que possa ser proferida a decisão de mérito, a denominada legitimidade ad causam.

III. Invocando a demandante infiltrações, decorrentes das partes comuns do edifício constituído em regime de propriedade horizontal que integra a sua fração, as quais lhe determinaram danos, pedindo não só a condenação na realização das obras de restauro e impermeabilização das partes comuns do edifício, mas também a condenação pelos prejuízos sofridos na fração de que é proprietária, distinguimos estar em causa a responsabilidade legal do Condomínio decorrente do regime da propriedade horizontal a par da responsabilidade extracontratual do Condomínio, nos termos dos artºs. 1305º, 483º, 562º e 566º do Código Civil, donde, será o Condomínio, enquanto figura orgânica que representa o universo de condóminos, que tem interesse em contradizer, manifestado pelo prejuízo que da procedência da ação lhe pode advir, assumindo a legitimidade passiva, e não os condóminos, considerados autonomamente.

Decisão Texto Integral:

   Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I – RELATÓRIO

1. Luís Pedro Marques Unipessoal, Lda. propôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, BB, CC, DD, EE, Sindicato dos Médicos do Norte, FF, GG,HH,II, PPS – Produtos Periféricos e Sistemas, Lda., JJ, LL, MM, NN, pedindo a condenação destes a realizar as obras de restauro e impermeabilização do terraço do 1º andar;  a pagar à Autora a quantia de €14.670,00, outrossim, a quantia de €16.000,00€; e ainda €100,00 por cada dia de atraso na realização das obras peticionadas.

Articulou com utilidade que é dona e legitima proprietária da fração “B” do prédio sito na …, …-… …, sendo que a aludida fração apresenta defeitos e vícios, designadamente, fissurações no interior do lanternim e nas paredes da garagem; tubos de drenagem das águas pluviais, nomeadamente, no que respeita aos seus acessórios de ligação e à vedação das juntas, bem como, apresenta infiltrações várias, a par de que se verifica a existência de diversos pontos de entrada de água, diretamente relacionados com a chuva, na área imediatamente abaixo do terraço do 1.º andar, identificados no relatório pericial junto aos autos que seriam reparadas caso se procedesse às necessárias obras, nomeadamente, no terraço do 1º andar.

Os mencionados defeitos derivam, ou têm como causa, vícios nas partes comuns do edifício, concretamente no aludido terraço do 1.º andar, os quais terão danificado o sistema de impermeabilização da fração da Autora.

A Autora, através do seu legal representante, denunciou tais defeitos, por várias vezes aos Réus, sendo os condóminos, no seu conjunto e na proporção das respetivas quotas, os titulares dos direitos ou das obrigações, dos créditos ou dos débitos emergentes de responsabilidade civil quanto às partes comuns do prédio, daí que, a reparação dos defeitos e vícios existentes na fração autónoma da Autora, porque causados pelas deficiências detetadas numa das partes comuns do prédio, compete aos Réus, cujo custo ascende a, pelo menos, €14.670,00.

Acresce que a Autora se encontra privada da fruição da sua fração por conta da inércia dos Réus, que insistem na não reparação do terraço do 1.º andar, bem como insistem na não reparação dos danos que tal defeito desencadeou na fração da Autora, causando também, por isso, prejuízos à Autora, que se encontra impossibilitada de rentabilizar a sua fração, designadamente, através do arrendamento da mesma, sofrendo, até à presente data, um prejuízo patrimonial nunca inferior a €16.000,00, valor a que corresponde o valor mensal que a Autora deixou de auferir a título de arrendamento desde a data em que adquiriu a fração em causa até à presente.

Conclui pela procedência da demanda.

2. Regularmente citados, contestaram os Réus (com exceção dos 5º Réus), embora separadamente, invocando a sua ilegitimidade.


3. Saneada a demanda, o Tribunal recorrido proferiu decisão, consignando a propósito “Ao abrigo do disposto no art. 592.º, n.º 1, al. b), não há lugar à realização da audiência prévia. Fls. 180:

A intervenção principal de terceiros é uma ferramenta apta a promover a sanação de situações de ilegitimidade plural − preterição de litisconsórcio necessário. Por este meio, à parte originária junta-se supervenientemente uma comparte (art. 316.º do CPC). A intervenção principal não se destina a sanar a ilegitimidade simples, fazendo intervier em substituição da parte ou partes originárias ilegítimas, uma nova parte. A ilegitimidade simples é insuprível (dando lugar à absolvição da instância).

Pelo exposto, indefere-se o requerimento de “chamamento” de terceiro.

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Determina o art. 30.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que a aferição da legitimidade das partes se faça segundo o critério do interesse direto em demandar - quanto ao autor - ou em contradizer - quanto ao réu. Por outro lado, a norma contida no n.º 2 do mesmo artigo estabelece que “o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha”. Por último, dispõe ainda a lei no n.º 3 seguinte acerca do modo como se afere a titularidade daquele interesse: “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

O critério operativo utilizado pela lei para identificar o interesse em litigar - titularidade da relação material controvertida tal como ela é delineada pelo autor - reconduz a questão da legitimidade a um plano meramente processual, de índole formal, refletindo a opção do legislador pela tese - já, de algum modo, subscrita no DL n.º 224/82 - classicamente atribuída ao Prof. BARBOSA DE MAGALHÃES na controvérsia que historicamente o opôs ao Prof. ALBERTO DOS REIS. Sublinhe-se, todavia, que não basta a mera alegação do autor de que as partes são legítimas para, assim, ficar resolvido o problema da legitimidade. Com efeito, se o autor se arroga da titularidade do direito - ou atribui ao réu uma obrigação - que, segundo a relação material controvertida por si desenhada, pertence a outra pessoa por si identificada, estar-se-á perante uma questão de ilegitimidade.

Tal como sustentou o Prof. BARBOSA DE MAGALHÃES, em comentário ao afamado Ac. do TRL de 16 de janeiro de 1918, ainda que se suponha a relação jurídica controvertida, o réu não é parte legítima quando não se alegue - através da invocação de factos - que ele seja o sujeito da respetiva obrigação - Gazeta da Relação de Lisboa, Ano 32, n.º 18, p. 176, 2.ª coluna. A legitimidade afere-se, assim, em primeira linha, comparando os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor, com os sujeitos da relação processual. Em caso de disparidade, há ilegitimidade.

“Numa ação intentada por condóminos, em que é pedida a condenação na realização de obras de restauro e impermeabilização do terraço dum prédio urbano em regime de propriedade horizontal, e no pagamento de uma quantia indemnizatória, deverá ser demandado o condomínio, a citar na pessoa do seu administrador” – cfr. o Ac. do TRP de (822/17.3T8VFR.P1), bem como a jurisprudência no mesmo citada. Compreende-se que assim seja. Se, substantivamente, só o condomínio tem o poder de realizar obras nas partes comuns – e não um condómino ou conjunto parcelar de condóminos, isoladamente –, só este pode ser condenado a realizá-las, quando forem devidas.

Veja-se que a condenação dos (restantes) condóminos à realização de obras – isto é, a condenação de cada um deles – obriga cada um a tal prestação – o que é um absurdo. No limite, perante a inércia dos demais, e para evitar uma ação executiva por incumprimento da ordem do tribunal, um deles poder-se-ia ver forçado a executar as obras sozinho. É precisamente para esta ordem de questões que a lei atribui personalidade judiciária ao condomínio, repercutindo-se decisão na esfera jurídica dos condóminos, na proporção da sua permilagem – incluindo da contraparte, se também for condómino.

Por todo o exposto, julgando procedente a exceção de ilegitimidade passiva, absolvo os réus da instância.”


4. Inconformada com o decidido, a Autora interpôs recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, aduzindo as seguintes conclusões:

“A) Resulta da Douta Sentença ora recorrida de que “só o condomínio tem o poder de realizar obras nas partes comuns – e não um condómino ou conjunto parcelar de condóminos, isoladamente –, só este pode ser condenado a realizá-las, quando forem devidas.” o que a Recorrente não pode aceitar.

B) E não pode aceitar dado que a ação foi interposta contra a totalidade dos condóminos do prédio e não a um seu conjunto parcelar e porque o condomínio e/ou o seu administrador não tem qualquer responsabilidade pela não realização das obras nas zonas comuns peticionadas pela Recorrente.

C) Com efeito, conforme requerimento apresentado pelo Recorrente em 11.10.2020, referência …, o administrador do condomínio convocou, conforme lhe competia, a assembleia de condóminos para deliberar a realização das obras em causa.

D) Porém, foram os condóminos ora Recorridos quem expressamente recusou a sua realização, conforme resulta aliás das atas nº 15, 16 e 17 relativas às assembleias celebradas nos passados dias 27 de Março de 2018, 15 de Maio de 2018 e 19 Junho de 2018 juntas, nomeadamente, à Douta Contestação apresentada pela R. EE a 07.12.2018, referência ….

E) Os próprios Recorridos que contestaram esta lide, confessam e reiteram a sua firme recusa em deliberarem a realização das peticionadas obras.

F) Desta forma, estando em causa a recusa em deliberar a pretensão da Recorrente por parte dos Recorridos, a presente lide tinha de ser proposta contra quem não permitiu a realização das obras – os condóminos – e não o Condomínio na pessoa do seu Administrador.

G) Importa ainda salientar que o Condomínio, na pessoa do seu Administrador, estava totalmente impedido de efectuar as obras em causa atenta a recusa da assembleia de condóminos, pois o seu administrador tem de respeitar e executar as deliberações respetivas, conforme resulta do artigo 1436º al. h) do Código Civil.

H) É inelutável que face à recusa, personalizada, por parte dos condóminos, em efectuar as obras nas zonas comuns do prédio, estes têm óbvia legitimidade em serem demandados nos termos peticionados.

I) Não se pode aceitar que este entendimento seja um absurdo conforme resulta da Douta Sentença ora recorrida, porquanto é certo que as regras da solidariedade passiva estão previstas no Ordenamento Jurídico Português, mormente nos artigos 512º e seguintes do Código Civil e o direito de regresso entre codevedores no artigo 524º do mesmo Código, de acordo aliás com Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.11.2018 que infra se transcreve.

J) Importa ainda salientar que o Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto invocado na Douta Sentença ora recorrida não tem, “in casu”, qualquer aplicabilidade, pois a situação nele dirimida diz respeito a uma recusa de realização da obra por parte do administrador do condomínio e não a uma recusa formalizada em acta por parte dos condóminos, conforme resulta da presente lide.

K) A responsabilidade pessoal dos condóminos está extremamente bem escalpelizada no Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.11.2018, relativo ao processo 369/08.9TCSNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, no qual é vertido que: “não se negue legitimidade passiva aos condóminos, em ações contra eles individualmente propostas com base em corresponsabilização, enquanto comproprietários, por danos causados pelas partes comuns do prédio(vide, v.g., acórdão da Relação de Lisboa, de 10.3.2010, processo658/07.0TBBRR.L1-7; Relação de Lisboa, de 02.10.2012, processo5559/09.4TVLSB.L1-1).”,

L) mais dispondo que, “Ainda que a legitimidade passiva seja do condomínio representado pelo administrador, não há qualquer obstáculo legal para que a acção seja proposta também contra os condóminos, em sede responsabilidade solidária, tal como os Aas fizeram, porque a jusante poderão serão os mesmos responsáveis pelo montante que se vier apurar na proporção das respectivas quotas/permilagem (por exemplo, na hipótese do condomínio não ter fundo para o efeito).Assim, da forma como foi configurada a acção, não se verifica a existência de ilegitimidade passiva dos condóminos….”

M) “A obrigação dos RR. condóminos para com os AA. emerge de responsabilidade civil extracontratual, sendo, pois, solidária (art.º 497.º n.º 1 do CC). Já ao nível das relações internas, poderá equacionar-se a partilha do encargo, entre os condóminos, de acordo com a medida da culpa de cada um – neste sentido, Moitinho de Almeida, Propriedade horizontal, 3.ª edição, Almedina, p. 98 -, ou de acordo com a permilagem da respetiva fração – Henrique Mesquita, “A propriedade horizontal no Código Civil português, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, XXIII, n.ºs 1 – 4, Jan/Dez 1974, p. 130, nota 118)”

N) Face ao exposto, tem a Recorrente forçosamente de concluir que os Recorridos são parte legítima na presente lide devendo pois esta prosseguir com os seus demais termos até final.

O) A Douta Sentença ora recorrida violou o disposto nos artigos 30º do CPC, 497º nº 1, 512º e seguintes, 524º e 1436º al. h), todos do Código Civil.

SEM PRESCINDIR:

P) Requer a Recorrente o recurso “per saltum” para esse Colendo Supremo Tribunal de Justiça, porquanto se encontram “in casu” preenchidos todos os requisitos dos quais o artigo 678º nº 1 do CPC faz depender a sua admissibilidade ou seja:

- o valor da causa é superior à alçada da Relação;

- o valor da sucumbência é superior a metade da alçada da Relação;

- a Recorrente só suscita, nas suas alegações, questões de direito;

- a Recorrente não impugna qualquer decisão interlocutória.

Termos em que, revogando a Douta Sentença ora recorrida e substituindo-a por outra que considere os Recorridos como parte legítima na presente lide e, em consequência, ordene a prossecução dos presentes autos até final, estarão V. Exas., Venerandos Conselheiros, a produzir a tão habitual e costumada JUSTIÇA!!!!”

5. A Recorrida/Ré/NN apresentou contra-alegações, aduzindo, para o efeito, as seguintes conclusões:

“A. A Ré/Recorrida é parte ilegítima.

B. A alegada obrigação de realizar as obras de restauro e impermeabilização do terraço do primeiro andar e de pagar a indemnização pelos danos alegadamente provocados pelas deficiências detetadas numa parte comum do prédio pertence ao condomínio, representado pelo administrador, e não aos Réus/Recorridos individualmente considerados.

De resto,

C. Aos condóminos não vem imputada qualquer atuação ou omissão, mas, exclusivamente, a qualidade de condóminos enquanto proprietários comuns do prédio que terá originado os danos na fração da Autora/Recorente.

D. No regime da propriedade horizontal, a administração das partes comuns do edifício compete à assembleia de condóminos e ao administrador – cfr. Artigo 1430.º, n.º 1 do Código Civil.

E. Tal como consta da alínea e), do artigo 12.º do CPC, o condomínio resultante da propriedade horizontal tem personalidade judiciária relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.

F. Nos termos da alínea f), do artigo 1436.º do CC, ao administrador compete, nomeadamente, realizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns. Logo, demandado na presente lide deveria ter sido o condomínio, representado pelo seu administrador, a quem compete, nomeadamente, realizar os atos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns.

Assim,

Espera-se que a douta sentença recorrida seja mantida in toto. Decidindo assim, farão Vossa Excelências, Venerandos Conselheiros, inteira e sã JUSTIÇA.”


6. Foram dispensados os vistos.


7. Cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO


II. 1. A questão a resolver, recortada das alegações apresentadas pela Recorrente/Autora/Luís Pedro Marques Unipessoal, Lda., consiste em saber se:

(1) Há fundamento para alterar a decisão recorrida uma vez que, contrariamente ao decidido, e tendo em conta a alegação aduzida na petição inicial apresentada, no que concerne à relação jurídica ajuizada, e consequente pretensão reclamada, verifica-se que os Réus têm legitimidade processual para o pleito em causa?


II. 2. Da Matéria de Facto


A matéria de facto apurada é a que consta do relatório antecedente.


II. 3. Do Direito

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da Recorrente/Autora/Luís Pedro Marques Unipessoal, Lda., não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil - artºs. 635º, n.º 4, e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código Processo Civil -.

II. 3.1. Há fundamento para alterar a decisão recorrida uma vez que, contrariamente ao decidido, e tendo em conta a alegação trazida à petição inicial apresentada, no que concerne à relação jurídica ajuizada, e consequente pretensão reclamada, verifica-se que os Réus, condóminos, têm legitimidade processual para o pleito em causa? (1)

Delimitado o objeto do recurso, passemos à questão vertida nas conclusões das doutas alegações da Recorrente/Autora/Luís Pedro Marques Unipessoal, Lda., e, nesta medida importará apreciar se, considerados os factos jurídicos apresentados em Juízo e a pretensão arrogada, a subsunção jurídica, deverá ser diversa da sustentada pelo Tribunal a quo.

Vejamos.

O Tribunal recorrido, ao proferir despacho saneador, conheceu da exceção de legitimidade passiva invocada, entendendo que a mesma é procedente, conduzindo à absolvição da instância dos Réus porquanto, conforme sustenta “(…) A legitimidade afere-se, assim, em primeira linha, comparando os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor, com os sujeitos da relação processual. Em caso de disparidade, há ilegitimidade.

“Numa ação intentada por condóminos, em que é pedida a condenação na realização de obras de restauro e impermeabilização do terraço dum prédio urbano em regime de propriedade horizontal, e no pagamento de uma quantia indemnizatória, deverá ser demandado o condomínio, a citar na pessoa do seu administrador” - cfr. o Ac. do TRP de (822/17.3T8VFR.P1), bem como a jurisprudência no mesmo citada.

Compreende-se que assim seja. Se, substantivamente, só o condomínio tem o poder de realizar obras nas partes comuns - e não um condómino ou conjunto parcelar de condóminos, isoladamente -, só este pode ser condenado a realizá-las, quando forem devidas.

Veja-se que a condenação dos (restantes) condóminos à realização de obras - isto é, a condenação de cada um deles - obriga cada um a tal prestação - o que é um absurdo. No limite, perante a inércia dos demais, e para evitar uma ação executiva por incumprimento da ordem do tribunal, um deles poder-se-ia ver forçado a executar as obras sozinho. É precisamente para esta ordem de questões que a lei atribui personalidade judiciária ao condomínio, repercutindo-se decisão na esfera jurídica dos condóminos, na proporção da sua permilagem – incluindo da contraparte, se também for condómino.”

No fundo, o aresto recorrido sustenta a procedência da exceção invocada de legitimidade passiva partindo do pressuposto de que pedida a condenação na realização de obras de restauro e impermeabilização do terraço dum prédio urbano em regime de propriedade horizontal, e no pagamento de uma quantia indemnizatória, deverá ser demandado o condomínio, a citar na pessoa do seu administrador, uma vez que, substantivamente, só o condomínio, e apenas este, tem o poder de realizar obras nas partes comuns, e não um condómino ou conjunto parcelar de condóminos, isoladamente, daí que ao ser reclamada a condenação na realização de obras em partes comuns do prédio, só o condomínio as poderá realizar, quando forem devidas.

Como sabemos, dita o nosso direito adjetivo civil que, findos os articulados, se conheça da fase do saneador e da condensação, apreciando os pressupostos da regularidade e validade da instância, sem deixar de apreciar quaisquer questões prévias, exceções dilatórias e perentórias, quando deduzidas ou do conhecimento oficioso, bem como, seja apreciado o mérito da causa quando, fundamentadamente, se entenda ser o caso.

É precisamente a bondade do proferido despacho saneador, ao conhecer da invocada exceção de legitimidade passiva que está em causa, ou seja, importa saber em quem radica a legitimidade passiva para a presente ação: se nos condóminos demandados, como sustenta a Recorrente/Autora/Luís Pedro Marques Unipessoal, Lda., ou no condomínio, como decidiu o Tribunal a quo.

Estatui o art.º 30º do Código Processo Civil sobre o conceito de legitimidade (mantendo o regime já anteriormente adotado no direito adjetivo civil)

“1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.

2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.

3 - Na falte de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”

Daqui decorre que a legitimidade processual é o pressuposto adjetivo através do qual a lei seleciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo trazido a Juízo. A legitimidade processual é aferida em vista de um critério substantivo - o interesse em demandar e em contradizer - .

Para o que interessa ao caso trazido a Juízo, importa sublinhar que ressalta da previsão adjetiva civil consignada que o critério para apreciar da legitimidade passiva, prende-se com o “o interesse em contradizer”, manifestado pelo prejuízo que da procedência da ação advenha para o demandado, enquanto sujeito da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor que, de todo, deve ser confundido com o pressuposto processual positivo, ou seja, uma condição que deve estar preenchida para que possa ser proferida a decisão de mérito, a denominada legitimidade ad causam.

Cotejada a pretensão jurídica reclamada, sustentada na invocação de infiltrações decorrentes das partes comuns do prédio ajuizado (constituído em regime de propriedade horizontal) e que afetaram a fração da Autora, integrada no aludido edifício, determinando-lhe danos que identifica, distinguimos que quanto ao pedido de condenação à realização das obras de restauro e impermeabilização do terraço do primeiro andar, está em causa, a responsabilidade legal do Condomínio, nos termos do regime da propriedade horizontal (é pacífico o entendimento de que sobre todos os condóminos, tomados unitariamente, através da figura orgânica do condomínio, cabe a obrigação imposta por lei [artºs. 1430º n.º 1 e 1420º n.º 1, ambos do Código Civil] de cuidar pela conservação e manutenção das partes comuns do edifício, donde, estando em causa as partes do edifício qualificadas como partes comuns [art.º 1421º do Código Civil], é sobre esta mesma entidade, o Condomínio, representada pelo respetivo administrador, que cumpre a especial obrigação de realizar as obras adequadas a reparar vícios existentes nas partes comuns do edifício, nomeadamente, os defeitos suscetíveis de afetar e prejudicar as frações autónomas de cada condómino), e quanto aos restantes pedidos, quais sejam, a condenação pelos ressarcimento dos danos sofridos na fração da demandante, concretamente, no pagamento à Autora da quantia de €14.670,00, a par da quantia de €16.000,00, outrossim, a quantia de 100,00€ por cada dia de atraso na realização das obras reclamadas, estamos no âmbito da responsabilidade extracontratual do Condomínio (ao proprietário de um imóvel é reconhecido o direito a que todos respeitem a integridade do seu prédio, sendo que quem o danificar fica responsável pela reposição dessa integridade e pela indemnização dos danos causados, nos termos dos artºs. 1305º, 483º, 562º e 566º do Código Civil).

Uma nota breve para enunciar que a doutrina (considerando que a propriedade horizontal se traduz [artºs. 1420º e 1421º do Código Civil] na coexistência dum direito real de propriedade singular, que tem por objeto fração autónoma do edifício, com um direito de compropriedade que tem por objeto as partes comuns mencionadas no art.º 1421º do Código Civil [conjunto de direitos que é incindível - art.º 1420º n.º 2 do Código Civil]), entende que o condomínio “é a figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários titulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial, daí a expressão condomínio sobre fracções determinadas.” outrossim, “A instituição legal do condomínio resulta da consideração de que o estatuto da propriedade horizontal se não traduz na simples justaposição ou cumulação, inalterada, do regime de outros direitos reais admitidos por lei (designadamente da propriedade singular ou exclusiva e da compropriedade), não sendo difícil distinguir a situação da propriedade horizontal da situação da compropriedade - os consortes são contitulares de um direito único sobre todo o prédio (um direito que pertence a todos e que incide sobre toda a coisa, nenhum deles dispondo de direitos exclusivos sobre qualquer parte do objecto; na propriedade horizontal, há partes do edifício que pertencem exclusivamente a proprietários singulares, ao lado de outras que pertencem a todos em regime de comunhão)”, Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição, págs. 397 e 398, e, nesta medida, dever-se-á estender a personalidade judiciária a este determinado património autónomo.

O conceito de condomínio consubstanciado no nosso ordenamento jurídico resulta, pois, do desiderato de diferenciar as situações de propriedade horizontal das de simples contitularidade ou comunhão sobre a coisa indivisa.

O condomínio tem personalidade judiciária, nos termos consignados no art.º 12º e) do Código Processo Civil, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, isto é, tem o condomínio a suscetibilidade de ser parte em Juízo, quer do lado ativo, quer do lado passivo, em todas as demandas que se inserem no âmbito dos poderes do administrador (as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal são administradas pela assembleia de condóminos e por um administrador [art.º 1430º n.º 1 do Código Civil]), neste sentido, José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in, Código de Processo Civil anotado, Volume I, 2ª edição, página 21.

Conforme já enunciamos, a propriedade horizontal é uma figura típica dos direitos reais em que cada condómino é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício. O conjunto dos dois direitos não poderá ser segmentado, ou seja, nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem é lícito renunciar à parte comum como meio do condómino se desonerar das despesas necessárias à sua conservação ou fruição, como decorre inequivocamente da lei.

No direito de propriedade horizontal confluem poderes ou faculdades diferentes, consoante incidam sobre as frações autónomas ou sobre as partes comuns, legalmente referenciados ao direito de propriedade singular quanto às primeiras e à compropriedade no que concerne às últimas, não obstante o seu conjunto constituir um direito incindível (artºs. 1305º e 1405º nº. 1, ambos do Código Civil).

O preenchimento do requisito da legitimidade processual (entendido como condição para a obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa, e não como uma condição de procedência da ação) não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo demandante, bastando a alegação dessa mesma titularidade, elegendo-se a titularidade da “relação material controvertida” tal como a mesma foi alegada no articulado inicial, como critério definidor do referido pressuposto processual.

Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 1997, defende que a legitimidade, enquanto pressuposto processual geral, constitui uma condição cuja verificação é indispensável à obtenção da pronúncia judicial sobre o mérito da causa. Esta consiste numa posição concreta da parte perante uma causa, por isso, a legitimidade “não é uma qualidade pessoal, é antes uma qualidade posicional da parte face à acção”, apurando-se em função da titularidade dos interesses emergentes da relação controvertida tal como ela é configurada pelo autor no momento da sua propositura (isto é, na petição inicial).

Assim, a legitimidade processual caracteriza a concreta posição de quem é parte numa causa, “perante o conflito de interesses que aí se discute e pretende resolver”, posição essa que é “o ser-se a pessoa (ou pessoas) cuja procedência da acção lhes atribui uma situação de vantagem (autor) ou a pessoa ou as pessoas a quem essa procedência causa uma desvantagem”, o réu, neste sentido, Remédio Marques, in, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2011, páginas 372/373.

Enunciado este breve enquadramento jurídico, importa agora, revertendo ao caso sub iudice, saber se os Réus têm interesse direto em contradizer, manifestado pelo prejuízo que da procedência da ação lhes advenha, enquanto sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pela demandante.

Sublinhando que a legitimidade consiste numa posição concreta da parte perante uma causa, não uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, a apurar em função da titularidade dos interesses emergentes da relação controvertida, tal como ela é configurada pela demandante, fácil se torna concluir (atendendo aos factos jurídicos configurados pela Autora, donde emerge a pretensão deduzida, e anunciado o litígio sobre a existência ou âmbito do dever dos Réus, que pressupõe, em conjunto com o direito arrogado pela demandante, a relação jurídica trazida a Juízo), não estarem na presente demanda os correspondentes sujeitos do dever, uma vez que perante os factos aduzidos pela demandante, caberá ao Condomínio do edifício ajuizado, que integra a fração autónoma, propriedade da Autora, e não aos condóminos, considerados autonomamente, a reclamada reparação dos defeitos existentes nas partes comuns do edifício, com consequente realização das obras de restauro e impermeabilização do terraço do primeiro andar, a par do impetrado ressarcimento daqueloutros danos sofridos na fração autónoma da demandante.

Prefigurando a ação nos termos delineados pela Autora, é sobre a figura orgânica do Condomínio/universo de condóminos, e não sobre os condóminos, autonomamente considerados, que recai a obrigação de manter as partes comuns do prédio em condições de não perturbarem ou danificarem a propriedade alheia (de cada uma das frações autónomas, entenda-se), sob pena de incorrer nas consequências do incumprimento de tal obrigação (reconstituição in natura e/ou indemnização em dinheiro).

Tudo visto, concluímos que a legitimidade passiva na presente demanda compete ao Condomínio, sendo este, representado pelo respetivo administrador, quem devia figurar no lado passivo da ação, e não os condóminos identificados, contra os quais foi endereçada a petição inicial.


III. DECISÃO

Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedente o recurso interposto, e, consequentemente, nega-se a revista, mantendo a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente/Autora/Luís Pedro Marques Unipessoal, Lda..

Notifique.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 2 de junho de 2021  


Oliveira Abreu (relator)

Ilídio Sacarrão Martins

Nuno Pinto Oliveira


Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no acórdão proferido, atesto o respetivo voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos, Ilídio Sacarrão Martins e Nuno Pinto Oliveira.