Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P2852
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMINDO MONTEIRO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE ADOLESCENTES
CRIME PÚBLICO
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Nº do Documento: SJ200310220028523
Data do Acordão: 10/22/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3 J CR T J OEIRAS
Processo no Tribunal Recurso: 1815/97
Data: 07/09/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : I. O crime de prática de actos sexuais com adolescentes, quanto consista na prática de actos homossexuais de relevo, com menores de idade compreendida entre os 14 e 16 anos, p. e p. pelo artº. 175.º, do CP, é de natureza semi-pública.
II. Sempre que o interesse do menor o justifique, nos termos do artº. 178º nº. 1, do CP, o M. P. pode dar início ao procedimento criminal, não carecendo o processado de ulterior ratificação pelo ofendido.
III. A intervenção do M. P. é justificada, e mais do que isso, estatutariamente imposta, sempre que se trate de menores oriundos de famílias desestruturadas, internados em estabelecimentos de reeducação, que abandonaram, dedicando-se à prostituição, da qual sobrevivem, entregues a si mesmo, em situação de grave perigo físico e moral.
IV. O M. P., em tal caso, não sofre de qualquer limitação no exercício dos seus poderes, enquanto titular do exercício da acção penal, nos termos dos artºs. 49º, 53º, 241º, 243º, 262º, 263º, 264º, 267º, do CPP.
V. O crime p. e p. no artº. 175º, do CP, no segmento em que no tipo descritivo se basta com a prática de actos homossexuais de relevo, não exigindo para sua configuração, diversamente do que sucede com o crime de abuso sexual de menores, p. e p.pelo artº. 174º, do CP, da inexperiência sexual da vítima, não enferma de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade.
VI. Os dois tipos legais de crime prevêem situações completamente distintas; no caso do artº. 174º do CP, a prática de actos heterossexuais, por maior, com menor de idade compreendida entre 14 a 16 anos, de cópula, coito anal ou coito oral, com abuso da sua inexperiência sexual; o artº. 175º, do CP, a prática de actos homossexuais, com relevo, por maior com menores de idade entre 14 e 16 anos.
VII. A não exigência de abuso da inexperiência sexual radica na diversa gravidade dos actos previstos nos dois tipos legais; os actos homossexuais sempre foram considerados mais graves do que os heterossexuais, pelos efeitos que causam ao nível da formação da personalidade, da auto-estima, relacionamento social e sexual futuro, integração social, aprendizagem e capacidade de concentração do adolescente; em ambos os casos se trata de práticas não normais à face da lei, porém mais normais os actos heterossexuais quando confrontados com os actos homossexuais.
VIII. O preceito do artº. 175º, do CP, que visa proporcionar e assegurar ao menor um desenvolvimento sem perturbações no que à esfera sexual respeita, trata, pois, desigualmente situações que, objectivamente, são diferenciadas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

No 3º. Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Oeiras, em processo comum, com o nº. 1815/97.OTAOER, com intervenção do tribunal colectivo, foi submetido a julgamento A, devidamente identificado nos autos, vindo, a final, a ser condenado como autor material da prática de:
Um crime de actos homossexuais com adolescentes, p. e p. pelo artº. 175º nº. 1, do CP., na forma continuada (na pessoa do ofendido B), na pena de 22 (vinte e dois meses de prisão) e de um crime de actos homossexuais com adolescentes, p. e p. pelo artº. 175º nº. 1, do CP (ofendido C), na pena de 20 (vinte) meses de prisão, em cúmulo jurídico na pena unitária de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão.

I. Inconformado com a decisão do Colectivo que assim o condenou, interpôs o arguido recurso, de cuja motivação se retiram as seguintes conclusões:
O artº. 175º do CP., quando confrontado com o artº. 174º do CP. está em clara violação da Constituição, particularmente dos seus artºs. 13º nº. 1 e 26º nº. 1 e várias convenções internacionais às quais Portugal aderiu, entre elas se contando a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Tal preceito trata diferentemente os comportamentos consoante a natureza dos actos sexuais, revelando um desvalor especial da homossexualidade, assentando na convicção de que as relações heterossexuais são "normais".
É que se os requisitos que são exigidos para o crime de actos sexuais com adolescentes fossem os mesmos que os exigidos para os crimes de actos homossexuais com adolescentes, o arguido teria sido absolvido dos crimes pelos quais foi condenado, porque custaria a acreditar que ele teria abusado da inexperiência sexual do B e de C.
Os actos sexuais de relevo apenas são puníveis, quando praticados com menor entre 14 e 16 anos, abusando-se da sua inexperiência, nos termos do artº. 174º nº. 1, do CP., porém, tratando-se de actos homossexuais nos termos do artº. 175º, do CP, não se faz semelhante exigência.
Deve, pois, declarar-se a inconstitucionalidade do artº. 175º, do CP., absolvendo-se o arguido dos crimes por que foi condenado.
Nos termos do artº. 178º, nº. 1, do CP., o crime de abuso sexual de menores e o de homossexuais com adolescentes dependem de queixa.
D, E e F não apresentaram queixa contra o arguido e G só apresentou queixa contra o arguido quando já tinha 17 anos de idade, tendo o direito de queixa caducado nos termos do artº. 115º, nº. 1, do CP..
A questão de se aferir se o M.P. carece de legitimidade para o exercício da acção penal não se apresenta como meramente académica pois o arguido foi condenado em 20 meses de prisão como autor de um crime de actos homossexuais com adolescentes em que seria ofendido C.
Ao dar início ao procedimento o M.P. invocou que "...Tal é o interesse das próprias vítimas, não havendo nos autos qualquer elemento que o desaconselhe. Aliás as mesmas prestaram declarações esclarecedoras nos autos. Ouvidos, não vieram declarar não pretender procedimento criminal".

Essa fundamentação é manifestamente insuficiente.
O próprio Colectivo reconheceu que M.P. deveria ter desenvolvido um pouco mais, no seu despacho, os motivos que o levaram a tomar a incitativa quanto ao exercício da acção penal.
Ora se o Colectivo assim considerou, deveria ter declarado que o M.P. carecia de legitimidade para o exercício da acção penal relativamente aos factos da acusação em que seria ofendido o D, o E e o G e arquivar os autos.
Não se aceita a interpretação feita pelo Colectivo de que o artº. 178º nº. 2, do CP, na redacção introduzida pela Lei nº. 65/98, de 2/9, que passou a ser o nº. 4 deste mesmo preceito em conformidade com a redacção introduzida pela Lei nº. 99/2001, de 25/8, no sentido de conferir natureza pública ao crime por que foi acusado.
A natureza semi-pública é conferida aos crimes previstos no artº. 178º, nº. 2, do CP, porque a intervenção do direito penal pode ser mais prejudicial do que benéfica.
O nº. 2 do artº. 178º, do CP., apenas permite ao M.P. tomar as providências necessárias aos interesses da vítima, mas não deduzir uma acusação sem ter havido previamente a apresentação de uma queixa-crime por parte do seu titular. - Ac. Rel. Porto, de 3.12.97, C.J., Ano XII, tomo V, 233 e segs.
Deveria o M.P. ter-se abstido de acusar o arguido pela prática dos factos em que seriam ofendidos D, E e G, por falta de legitimidade, mas tendo-o feito o Colectivo devia ter declarado a ilegitimidade do M.P. para acusar, como o arquivamento dos autos.

Deve o acórdão ser revogado na parte em que considerou procedente a excepção suscitada na contestação pelo arguido e substituído por outro que declare a ilegitimidade do M.P. para o exercício da acção penal relativamente aos factos constantes da acusação nos quais seriam ofendidos D, E e G, determinando o arquivamento dos autos.
As penas aplicadas ao arguido foram excessivas, existindo, até, uma incoerência entre elas, muito próximas entre si, contemplando, no entanto, situações muito diferentes.
O Colectivo não ponderou situações e circunstâncias que se mostram definidas nos autos e que levariam a uma fixação mais leve.
De facto os arguidos, segundo revelam os autos, eram prostitutos que frequentavam o Terreiro do Paço e o Parque Eduardo VII.
Eles tomaram a iniciativa de vir ao encontro do arguido sabendo e querendo ter relacionamento com ele.
O arguido nunca tomou a seu cargo qualquer acto de persuasão ou medida de coacção sobre os referidos B e C para terem relacionamento com ele.
O arguido apenas teve encontros com o ofendido B durante um único mês e só teve um encontro com o C, logo não de forma reiterada, persistente e de forma quase compulsiva, ao contrário do que foi julgado pelo Colectivo.
Qualquer pessoa que se dirija hoje ao Parque Eduardo VII, Cais do Sodré ou Terreiro do Paço encontra pessoas a prostituirem-se, sem qualquer tipo de repressão policial.
Os factos por que o arguido foi condenado deram-se antes de a comunicação social ter suscitado uma autêntica "cruzada" contra os crimes de abuso sexual de menores, não tendo aquela qualquer escrúpulo em exibir filmes ou reportagens com menores vítimas da chamada pedofilia.
O Colectivo não considerou o facto de o arguido ter leccionado num liceu, onde abundam adolescentes, sem ter tido uma única queixa por parte dos seus colegas, pais ou alunos.
O arguido, é, de resto, reputado um bom profissional pelos seus pares.
Estes factos provam que a vontade de relacionamento sexual não podia ser "quase compulsiva", não se justificando uma tão forte necessidade de prevenção.
O Colectivo não considera que o arguido já sofreu uma pena muito severa, tendo sido condenado na praça pública e que nunca mais poderá voltar a dar aulas.
O arguido teve bom comportamento no estabelecimento onde se encontra preso em prisão preventiva.
Foi detido em 7 de Agosto de 2001 no Aeroporto de Casablanca, em Marrocos, onde permaneceu até 6 de Março de 2002, numa prisão em que as condições eram imundas e extremamente precárias.
O arguido esteve preso numa cela contendo 3, 5 metros por 3, 5 metros, uma retrete, um lavatório e com 20 reclusos.
Assim o Colectivo nunca deveria ter aplicado ao arguido uma pena de prisão tão pesada e nunca superior à pena de prisão preventiva cumprida.

Deve, pois, o arguido ser condenado na pena de 11 meses de prisão, pela prática de um crime de actos homossexuais com adolescentes, em forma continuada, p. e p. pelo artº. 175º nº. 1, do CP., de que foi vítima B e, por igual crime, na pessoa do C, em 6 meses de prisão, revogando-se o acórdão recorrido, fixando-se, em cúmulo jurídico, tendo em apreço os factos e a personalidade do agente, uma pena de 8 a 12 meses de prisão, suspensa na sua execução.

II. Em contramotivação, o Exmo. Procurador Adjunto defendeu o acerto da decisão recorrida e, neste STJ, o Exmo. Procurador Geral-Adjunto, na vista que teve dos autos, requereu que se procedesse ao julgamento.

III. Colhidos os legais vistos, e realizada a audiência, cumpre decidir, considerando que o Colectivo deu como assente o seguinte complexo factual:
Em data não apurada do ano de 1999, um indivíduo de alcunha "...", contactou D, nascido a 6 de Abril de 1993, dizendo-lhe que o arguido A, estaria disposto a dar-lhe dinheiro caso acedesse a manter com ele relações de índole sexual.
D aceitou tal proposta, dispondo-se a encontrar-se com o arguido A para aquele efeito.
Na altura, D era aluno interno na Casa Pia de Lisboa, onde tinha sido admitido em 29 de Julho de 1996, contava 13 (treze) anos de idade, devido à incapacidade educativa dos pais adoptivos para lidar como os seus problemas de comportamento.
Na sequência desta combinação e durante o ano de 1999 verificou-se o primeiro encontro entre o D e o arguido A que teve lugar no Centro Comercial ..., no Parque das Nações, em Lisboa (o qual abriu ao público no dia 21 de Abril de 1999).
Seguiram, depois, para a residência do arguido A, sita na Rua ..., em Santo Amaro de Oeiras.
Aí, no seu quarto, o arguido A, colocou a sua boca no pénis de D, fazendo sucessivos movimentos até à ejaculação deste.
Terminadas tais práticas, o arguido A, entregou a D uma quantia entre os 5.000$00 (cinco mil escudos) e os 6.000$00 (seis mil escudos), na sequência do previamente combinado.
Desde esse dia e durante mais de um ano, algumas vezes por mês, em períodos temporais não determinados, D e o arguido A encontravam-se, após prévia combinação, na residência deste, onde mantiveram, um com o outro, relacionamento sexual nos mesmos moldes descritos supra e mediante a mesma quantia pecuniária.
Durante o final do ano de 1999 e no ano de 2000, em algumas ocasiões - em número não superior a quatro -, quando D se dirigiu à casa do arguido aí encontrou o arguido H.
Nessas alturas, D e o arguido H dirigiam-se para o interior de uma das divisões da casa, onde o arguido H colocava a sua boca no pénis de D, fazendo sucessivos movimentos até à ejaculação deste.
O arguido H pagava, então, a D, por tais actos, quantias entre os 5.000$00 (cinco mil escudos) e os 6.000$00 (seis mil escudos).
Em data não determinada do ano de 1999, situada entre os meses de Setembro e Dezembro, D, apresentou B, nascido a 1 de Outubro de 1984, que na altura contava 14 (catorze) ou 15 (quinze) anos de idade, ao arguido A.
Fê-lo com o propósito de proporcionar o relacionamento de índole sexual entre B e o arguido A, sabendo que este estava predisposto à prática desse tipo de actos e a pagar contrapartidas monetárias por essa mesma prática.
O arguido A aceitou, então, passar-se a relacionar em termos sexuais, com B e a pagar-lhe por tais práticas.
B era, na altura, aluno interno da Casa Pia, no Colégio ..., do qual se ausentava frequentemente, sem qualquer autorização dos responsáveis daquela instituição.
Nessas ocasiões, vagueava pelas ruas sem ter dinheiro para comer.
Veio a ser internado no Centro Educativo ... em 19 de Abril de 2000, donde saiu em 9 de Junho de 2000, por decisão do Tribunal de Família e Menores de Lisboa.
Na sequência do combinado entre o arguido A e B, por várias ocasiões, e em número não inferior a uma dezena, situada entre os meses de Setembro e Dezembro do ano de 1999, o arguido A encontrou-se com B no seu apartamento sito na Rua ..., em Santo Amaro de Oeiras.
Habitualmente, o arguido ia buscar o B, no seu veículo automóvel de marca Rover e matrícula RC, à estação fluvial do Terreiro de Paço e trazia-o até á garagem do prédio, dizendo-lhe para baixar o chapéu de forma a não ser visto pelos vizinhos.
Da garagem, seguiam directamente para o apartamento, situado no 4º andar do prédio.
Aí, no interior do seu quarto, e em todas estas ocasiões, o arguido A masturbava-se em frente do B.
Seguidamente, acariciava-o.
Colocava a sua boca no pénis de B, fazendo sucessivos movimentos até á ejaculação deste.
O arguido A roçava o seu pénis junto do ânus do B até ejacular.
Como contrapartida monetária pela prática de tais actos o arguido A entregava a B a quantia de 5.000$00 (cinco mil escudos).
O arguido A admitiu como possível que B tivesse 14 (catorze) /15 (quinze) anos de idade e actuou conformando-se com esse facto, querendo e conseguindo ter com ele o relacionamento sexual descrito.
No mês de Outubro de 1998, nos Restauradores em Lisboa, o arguido A, travou conhecimento com o assistente E, nascido a 24 de Outubro de 1982.
O assistente E provém de uma família de fracos recursos económicos, vivendo com dificuldades e necessitando de dinheiro para o seu dia a dia.
Encontrava-se, nessa altura, ligado ao consumo de estupefacientes.
O arguido A propôs, então, ao assistente E entregar-lhe determinada contrapartida monetária se acedesse a praticar consigo actos sexuais.
O assistente E concordou com a proposta e foram para o apartamento do arguido A, sito na Rua ..., em Santo Amaro de Oeiras.
Aí, no interior do seu quarto, o arguido A colocou na sua boca o pénis de E, fazendo sucessivos movimentos até à ejaculação deste.
Desde então, e até 4/5 meses antes de Junho de 2001 (altura em que o assistente E veio a ser preso) várias vezes por mês -. embora não na totalidade dos meses do ano -, o arguido A manteve com o assistente E, na sua residência, relacionamento sexual introduzindo na sua boca o pénis de E fazendo sucessivos movimentos até à ejaculação deste, masturbando-se em frente deste e roçando o pénis no seu ânus até ejacular.
Como contrapartida por tais práticas o arguido A entregava a E, por cada vez que com ele mantinha relacionamento sexual, a quantia de 5.000$00 (cinco mil escudos).
Em algumas ocasiões em que E se dirigiu à casa de A, encontrava-se no local o arguido H, que se identificava como "...".
Durante o ano de 1999 ou 2000, por diversas vezes, em número não concretamente apurado, no interior da residência do arguido A, que este proporcionara para o efeito ao arguido H, este colocou na sua boca o pénis do assistente E, fazendo sucessivos movimentos até ejaculação deste.
Neste período temporal o assistente E e o arguido H, mantiveram, um com o outro, por uma vez, um relacionamento sexual deste tipo no interior de um quarto de pensão, na Baixa, em Lisboa.
O arguido H pagava-lhe, por tais actos, 5.000$00 (cinco mil escudos).
Em data não apurada do Verão de 1999, indivíduo cuja identidade se não apurou, dirigiu-se a C, nascido a 11 de Julho de 1984, na altura com catorze ou quinze anos de idade, dizendo-lhe que podia ganhar dinheiro se tivesse relacionamento sexual com homens.
C mostrou-se receptivo a esta proposta.
C frequentava, na altura, o Parque Eduardo VII, em Lisboa, dedicando-se à prostituição masculina.
Então, o tal indivíduo contactou o arguido A, combinando um encontro entre este e C, com vista ao estabelecimento de práticas sexuais entre os dois mediante o pagamento pelo arguido de determinação remuneração.
O arguido A respondeu para irem ter a casa dele.
O dito indivíduo e C apanharam o comboio e desceram na estação de Santo Amaro de Oeiras, onde esperaram pelo arguido A, que se fazia transportar no seu automóvel.
Quando este chegou, C entrou na viatura e seguiram, ele e o arguido A, para a residência deste último, sita na Rua ..., em Santo Amaro de Oeiras.
Aí, no seu quarto, o arguido A começou a acariciar o pénis e os testículos de C.
De seguida introduziu o pénis deste na sua boca, enquanto se masturbava até à ejaculação.
O arguido A admitiu como possível que C tivesse 14 (catorze) / 15 (quinze) anos de idade e actuou conformando-se com esse facto, querendo e conseguindo ter com ele o relacionamento sexual descrito.
Terminadas as mencionadas práticas sexuais, o arguido A, em conformidade com o acordado, entregou a C a quantia de 5.000$00 (cinco mil escudos).
Em data certa não apurada do ano de 1997, na Trafaria, o arguido A entabulou conversa com F, nascido em 25 de Março de 1982, que à data contava 15 (quinze) anos de idade, quando este se encontrava com um amigo, de nome I, da mesma idade.
Convidou-os a dar um passeio com ele, até à Fonte da Telha, no seu veículo automóvel.
Os mesmos aceitaram.
Pelo caminho, o arguido A perguntou-lhes se lhes podia mexer e acariciar o pénis, dando-lhes em troca determinada quantia em dinheiro.
F e o seu acompanhante acederam a tal proposta.
O arguido A começou, então, a acariciar-lhes o pénis e os testículos de cada um.
De seguida introduziu o pénis de um dos menores e, depois, o pénis do outro, na sua boca, fazendo movimentos sucessivos até aqueles ejacularem.
Após, e como contrapartida pela prática de tais actos, entregou a cada um a quantia de 3.000$00 (três mil escudos).
Nessa altura, em circunstâncias não determinadas, F disse ao arguido A que tinha 16 (dezasseis) anos de idade, bem sabendo que tal não era verdade, uma vez que apenas contava 15 (quinze) anos).
Depois desse dia, e ainda durante o ano de 1997, o arguido A, encontrou-se com F e deslocou-se com este para as matas junto das praias de S. João, onde, no interior do seu veículo automóvel, praticava com F actos idênticos aos referidos supra e mediante o pagamento da mesma contrapartida monetária.
O arguido A admitiu como possível que F tivesse 15 (quinze) anos de idade e actuou conformando-se com esse facto, querendo e conseguindo ter com ele o relacionamento sexual descrito.
Ao facultar a utilização da sua casa ao arguido H, sabia e queria o arguido A facilitar a prática por este dos actos sexuais referidos supra com os jovens acima referidos.
O arguido A agiu livre e conscientemente, bem sabendo que os seus comportamentos eram proibidos e punidos por lei.
O arguido A não tem antecedentes criminais registados.

IV. O arguido A é oriundo de Wokingham, Inglaterra.
É o terceiro de cinco filhos de um casal (já falecido), de médio estatuto sócio-económico.
O arguido integrou o agregado de origem até aos dezoito anos de idade.
Ingressou no sistema educativo na idade própria, concluindo com sucesso o equivalente ao ensino secundário.
Seguidamente, prosseguiu os estudos a nível superior completando em 1968 o certificado em educação pela Universidade de Londres e o bacharelato em Física, Matemática e Filosofia, em 1980, pela Universidade Aberta de Londres.
Um ano mais tarde o arguido A veio a obter um mestrado em Educação e Filosofia pela Universidade de Sussex.
Daí em diante já habilitado com a formação específica para trabalhar, o arguido A desempenhou funções de professor do ensino secundário em colégios diversos, tanto em Inglaterra como no estrangeiro, nomeadamente em Gibraltar e na Arábia Saudita.
Aqui exerceu funções de professor para oficiais da Real Força Aérea de Omam.
Após a candidatura é admitido como professor no Colégio ..., em Carcavelos, onde permaneceu até meados de 2000.
Era considerando um bom profissional, nada havendo a registar quanto ao seu comportamento nesse estabelecimento de ensino.
É um indivíduo sociável, mas reservado no que se refere à sua vida particular.
Em finais de Agosto de 2000 deslocou-se à Holanda durante aproximadamente três semanas a fim de visitar um amigo de longa data, seguindo viagem para Londres, com permanência em casa de amigos.
Posteriormente regressou ao seu emprego anterior na Arábia Saudita, onde leccionou novamente até Julho de 2001.
À data da detenção encontrava-se em Marrocos juntamente com o co-arguido H.
Foi detido no Aeroporto de Casablanca e durante cerca de 7 meses permaneceu nessa condição até ser extraditado para Portugal.
Encontra-se preso em Portugal desde 6 de Março de 2002.
Deu entrada no Estabelecimento Prisional de Caxias na mesma data.
Tem revelado um comportamento correcto, conforme as regras da instituição.
Não se encontra integrado em qualquer actividade laboral. Ocupa parte do seu tempo em leituras na sua cela, usufruindo dos seus tempos de recreio.

V. O arguido H pertence a uma família aristocrata londrina. Até aos 17 anos viveu no seu país em condição social e familiar privilegiada, integrado no agregado de origem constituído pelos progenitores e irmã.
Os pais, latifundiários empreendedores, deslocaram-se para Portugal em finais dos anos 40, onde adquiriram grandes propriedades no Alentejo, tendo-se instalado numa moradia em Sintra.
A partir dessa data o arguido H foi estudar para a Suíça, tendo-se graduado em " Business".
Foi "conselor" em diversas escolas suíças.
O arguido H vive a maior parte do tempo na Suíça onde se encontra integrado em contextos sócio-culturais diferenciados, nomeadamente em meios artísticos.
Nunca constituiu família nem viveu maritalmente o que lhe acarreta um modo de vida pautado por alguma solidão.
Nos períodos de tempo em que permanece em Portugal o arguido H reside só e dedica-se a actividades ligadas a negócios relativos a propriedades que adquiriu, designadamente na zona de Troia, sendo que as que herdou foram ocupadas após o 25 de Abril de 1974.
O arguido H não tem antecedentes criminais.
O arguido H desloca-se, com muita frequência, por motivos profissionais e de negócios, a países como os EUA, Canadá, Inglaterra e Suíça, entre outros.
O arguido visitava frequentemente o arguido A na sua residência sita na Rua ..., em Santo Amaro de Oeiras, detendo um dos comandos da respectiva garagem colectiva.
No dia 28 de Setembro de 2000, o arguido A encontrava-se em Inglaterra.
De 10 de Julho até 26 de Agosto o arguido A esteve em Marrocos, tendo viajado, depois, até à Holanda.

VI. As questões suscitadas, pelo arguido, da natureza semipública, do crime de abuso sexual na pessoa dos menores B e C e da falta de queixa criminal quanto aos menores D, E, F e G, aquelas impeditivas da acusação pela legitimidade do M.P. e da desconformidade à Constituição da norma do artº. 175º, do CP, por desrespeito ao princípio da igualdade, na medida em que prescinde para integração da acção típica, prevendo e punindo actos homossexuais com adolescentes, da sua inexperiência, pressuposto de que o artº. 174º, do CP, prevendo e punindo a prática de actos sexuais (heterossexuais) não abdica, conducente a tratamento díspar dos acusados, ocupam tratamento prioritário, à face dos artºs. 311º, nº. 1, 338º nº. 1, 368º nº. 1, 48º, 48º, 49º e 241º, do CPP e 204º, da CRP, ambas consequentes de inviabilidade punitiva, por carência de legitimidade processual do M.P. e da desaplicação proposta da norma de punição.

À questão da legitimidade "ad agendum" pertine o artº. 178º nº. 1, do CP, estabelecendo a natureza semi-pública do crime da actos homossexuais com adolescentes, fazendo depender, como princípio-regra, o procedimento criminal da queixa, mas abrindo excepções.
A queixa apresenta-se, então, como condição objectiva de punibilidade, exterior ao tipo legal, mas imprescindível ao desenrolar da acção penal; como limitação ao princípio da oficialidade, na medida em que o M.P. promove o exercício da acção penal depois de o ofendido lhe levar o conhecimento do facto criminoso ou depois de o ter feito perante entidade com o encargo legal de lho transmitir (artºs. 48º, 49º, 248º e 248º, do CPP) e uma excepção ao princípio da imutabilidade da acusação pública, à qual é possível pôr termo por desistência até à publicação da sentença em 1.ª instância, desde que não haja oposição do ofendido - artº. 116º do CP e 51º, do CPP..

Consigne-se que o direito penal vem merecendo nos últimos 15/20 anos uma nova projecção, longe estando os tempos da aposta convicta na ressocialização do delinquente e da intervenção penal mínima, tendendo a ser promovido a instância de pedagogia social, assumindo-se o direito penal numa dimensão de promotor da segurança interna e de "alavanca de luta contra as desigualdades ou contra os poderosos, política ou economicamente", escreve o Exmo. Procurador Geral-Adjunto, Dr. Maia e Costa, junto deste STJ, in Do Crime de Maus Tratos, Cadernos Hipátia, edição da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, 41.
É nesta linha de entendimento que surgem propostas de neocriminalização de condutas na área da sexualidade e se aperfeiçoam mecanismos de intervenção alargada, em moldes de a malha legal comportar um leque cada vez mais amplo, modo dissuasor de práticas sexuais, comunitariamente intoleráveis, com menores.
Assim alcança compreensão que no crime de actos homossexuais contra adolescentes, praticado por maior contra menor de idade compreendida entre 14 a 16 anos, pode o M.P. dar início ao procedimento criminal se o interesse da vítima o impuser - artº. 178º nº. 4, do CP. - na redacção dada pela lei nº. 99/2001, de 25/8 correspondendo à anterior vertida no nº. 2 do preceito.
Na evolução da redacção do preceito, nota-se que na sua redacção inicial, se assiste à legitimação da intervenção, subsidiária, do M.P., quando especiais razões de interesse público o impusessem, para se fixar, nas duas formulações últimas, o apelo à ponderação do interesse da vítima, subalternizando-se o interesse público.
As vítimas deste tipo de crime são, como regra, as crianças desprotegidas e mesmo marginalizadas. Os casos de que mais se tem tido conhecimento implicam crianças de rua, que se prostituem ou deixam filmar em troca de roupas de marca ou de refeição a contento, "crianças incomodativas", "desagradáveis" e que não "despertam grande simpatia", do público em geral, na expressiva caracterização de Eliana Gersão, na Revista Infância e Juventude, Ano de 1997, Abril-Junho, 27.
O recurso á prostituição tem sido mesmo visionado como estratégia de sobrevivência dos chamados "meninos de rua".

VII. O critério estruturante para aferir da legitimidade excepcional do M.P. é a resultante da ponderação de interesses, entre o benefício da promoção da acção penal para o menor de idade compreendida entre os 14 e os 16 anos, vítima de actos homossexuais e o do prejuízo que derivaria da omissão da acção penal pelo titular do direito de queixa, nos termos do artº. 113º, do CP, deixando impune o agente.
Sempre que da promoção da acção penal resulte evidente benefício em termos de protecção da vítima adolescente o M.P. deve intervir. (Cfr. Prof.ª Maria João Antunes, in Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 594).

Haverá, na opção, que ter presente que o bem jurídico a proteger é o desenvolvimento, sem perturbações, no que à esfera sexual diz respeito
Paira na mente do legislador a consideração de que as experiências homossexuais com menores de certa idade são, em regra, traumatizantes, acarretando prejuízos ao desenvolvimento psíquico, social e intelectual do jovem. É conhecido no mundo da psicologia e psiquiatria o cortejo de malefícios dos menores vítimas de abuso sexual abrangendo um leque nefasto, conglobando a ansiedade, a depressão, a chamada PTSD (trauma), baixa de autoestima, disfunções sexuais, doenças sexualmente transmissíveis, sentimentos de culpa, perturbação de comportamento, dificuldades de aprendizagem e indesejada gravidez, entre outros.
É que, na faixa etária prevista no artº. 175º, do CP, os actos homossexuais ora facilitam a prostituição no país ou no estrangeiro, ora emergem de uma situação de ascendência social, familiar ou económica do agente, desmerecendo a confiança depositada pelo menor, criando nele uma quebra de auto-estima, de vulnerabilidade pessoal e social futura e um sentimento de vergonha, que o estigmatiza ao longo da vida, razão da intervenção do direito penal.
O critério fundamentador de tal intervenção subsidiária do M.P. não tem que ser exaustivamente traçado nos autos, porém o M.P. há-de habilitar o Tribunal, fornecendo-lhe razões bastantes, por si só ou em conjugação com o que resulta dos autos, até porque se está em face de pressuposto processual de conhecimento oficioso, não estando o tribunal sujeito a limitação na indagação dos seus contornos, de molde a concluir-se pela vantagem que há em desencadear mecanismos de reacção penal.

O M.P. fundamentou o seu impulso processual afirmando, em considerandos prévios à acusação, e radicando nos indícios probatórios recolhidos nos autos, que à data do início do processo os menores não tinham, ainda, 16 anos de idade, sendo do interesse das próprias vítimas de abuso sexual por adultos, o impulso oficioso, "não havendo elementos nos autos que o desaconselhe"; "aliás os mesmos prestaram declarações esclarecedoras nos autos" e "ouvidos não vieram declarar não pretender procedimento criminal".
No acórdão recorrido, a págs. 1863 e 1864, traçou-se um quadro humano, que, no geral, como ali se diz, denota estarmos em presença de "jovens desprotegidos, marginalizados e explorados pelos apetites sexuais de indivíduos muito mais velhos (...) que merecem obviamente a protecção do direito penal", nenhum dos quais se opôs à perseguibilidade penal inicial empreendida pelo M.P., tendo um deles mesmo requerido a constituição como assistente - E -, para ali se concluir que se provou que as práticas homossexuais com o D, E e o F tiveram lugar numa fase etária, a que a lei penal não dispensava tutela, embora de menoridade legal, não se provando aquela prática em relação ao G.
No específico caso dos menores, vítimas de actos homossexuais pressupostos na condenação do recorrente, revelam os autos que o menor B era aluno do Colégio ... - Casa Pia, do qual se ausentava sem autorização dos seus responsáveis, vagueando pelas ruas de Lisboa sem ter dinheiro para comer; menos densa não é a moldura existencial envolvente do C, frequentador do Parque Eduardo VII, entregando-se à prática da prostituição, em evidente situação de perigo físico e moral, presas fáceis de predadores sexuais
O próprio recorrente sequer afasta esse défice de integração humana, indubitavelmente por si não ignorado, ao defender que se relevasse a situação de prostitutos do B e C, a sua experiência sexual, não se configuraria o tipo legal descrito no artº. 175º, do CP.
Ambos eram menores de 14 ou 15 anos na data dos factos.
Ao M.P., na diversidade das suas funções, cabe defender os interesses de determinadas pessoas mais carecidas de protecção, entre elas os menores, asseveram os eminentes constitucionalistas Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Const. Ed. 1993, 830, como deriva, de resto, da lei ordinária (artº. 53º nº. 1, do CPP, Leis nºs. 147, de 1/9 e 166/99, de 14/99), do seu Estatuto (artº. 3º nº. 1 a), c) e d) da Lei nº. 47/86, de 15/10, com a última alteração introduzida pela Lei nº. 60/98, de 27/8) e da própria Constituição, mormente do artº. 219º nº. 1.
Nestes termos é, por demais óbvio, que, perante jovens em situação desestruturada familiarmente, indiciada antes da dedução da acusação, como confirmada no acórdão recorrido, a instauração do processo penal não desempenha qualquer forma de intromissão indesejável no núcleo de poderes familiares manifestamente enfraquecidos, como não belisca a esfera de intimidade privada, cuja devassa os ofendidos "a posteriori", ou seja após o desencadear da acção penal, não recriminaram, nenhum obstáculo oferecendo ao exercício do procedimento, do qual não se vislumbram prejuízos indesejáveis para os menores.
Não resulta, assim, que o M.P. não tenha efectuado uma ponderação alicerçada em factos objectivos, embora não abundantemente expressos, das razões que o levassem a intervir e a postergar os titulares do direito de queixa, cujo desinteresse pela sorte dos menores se mostra bem implícito nos actos de vaguear pela cidade, sem meios de subsistência, que levaram um deles a ser internado no Centro Educativo ..., e de recurso à prostituição, um outro, actos tradutores do mais completo abandono dos seus familiares.
O M.P. titularia grave demissão de funções e inqualificável violação do seu estatuto ao ser-lhe relatado na participação policial, que inicia os autos, de 9 de Dezembro de 1997, que o arguido, "suspeito de pedofilia", acompanha menores de idades compreendidas entre os 14 e os 16 anos, "com o aspecto de meninos de rua" e, apesar disso cruzasse as mãos e não iniciasse apurada investigação, como a autoridade policial enfatizava a fls. 3.
Sempre que seja demonstrado o estilo de vida dos menores, e comprovadas as notórias as consequências da respectiva adopção, em manifesto prejuízo para aqueles, à luz de um critério objectivo, que ninguém ouse refutar, ressalta à evidência a legitimidade do M.P., alicerçada no seu interesse, não sendo a apresentação de uma fundamentação menos extensa das razões para intervenção que afastam a legitimidade para iniciar a acção penal, como forma de evitar situações de chocante impunidade, de todo em todo, além do mais, socialmente intoleráveis.
De todo o modo aquela não oposição dos ofendidos, "a posteriori", envolve o implícito reconhecimento de que o M.P. serve os seus desígnios, obedecendo às atribuições que derivam do artº. 53º nº. 1, do CPP., de cooperação na descoberta da verdade material, realização do direito, obedecendo a critérios de objectividade, que repudiam marcas de subjectivismo, arbítrio e abuso.
Apresentando-se-nos desnecessária a queixa, é antitético com aquela desnecessidade submeter a denúncia do facto criminoso à obediência ao prazo previsto no artº. 115º, nº. 1, do CP, uma vez que o prazo temporal de 6 meses, ali previsto, sobre a data do conhecimento do facto, cobra, apenas, aplicação ao titular do direito de queixa, que o M.P. não é, mas, apenas, promotor do exercício da acção penal, em forma subsidiária, além de que poderia ser extremamente difícil, senão mesmo impossível impôr-se ao M.P. tal observância, dado que, em regra, o condicionalismo da prática do delito lhe chega por via diversa do que tem o conhecimento directo, desinteressado, receoso ou negligente em comunicar-lho.
A exigência da observância do prazo de caducidade frustraria, por completo, o âmbito de aplicação da norma do artº. 178º, do CP, tornando-a, praticamente, letra morta, mostrando-se em harmonia com o preceituado no artº. 113º nº. 6, do CP, sobre a legitimidade para o exercício do direito de queixa, consignando que cabe ao M.P. nos casos previstos na lei dar início ao procedimento quando o interesse da vítima o impuser (na redacção anterior "quando razões especiais de interesse público o impuserem").
Não cobra, também, fundamento o argumento do arguido segundo o qual a intervenção processual do M.P. se limitaria à promoção inicial do processo, a tanto se circunscrevendo a sua missão.
Tal interpretação restritiva da função do M.P. não colhe qualquer apoio na letra da lei substantiva e não interfere no estatuto processual penal atribuído ao M.P., de titular do exercício da acção penal e, como tal, dirigindo o inquérito, formulando a acusação e intervindo na fase do julgamento, nos termos dos artºs. 262º, 263º nº. 1, 267º, 283º e 311º e segs., do CPP..
Daquele preceito não deriva, assim, qualquer compressão aos normais poderes do M.P. e nem derrogação dos seus direitos nas citadas fases cruciais processuais; tão pouco se exige a ratificação dos actos processuais praticados pelo M.P., que pressuporia uma restrição á plenitude processual que lhe assiste, como seria ineficaz, por ainda inconciliável com aquela amplitude, qualquer oposição do titular do direito de queixa, uma vez iniciado o processo.
De resto tão pouco existe, com pertinência, uma norma como a do nº. 2, do artº. 152º, do CP (redacção da Lei nº. 65/98, de 2/9), respeitando ao crime de maus tratos e infracção das regras de segurança, que atribuía legitimidade ao M.P. para iniciar o procedimento, pelo crime de maus tratos a cônjuge ou com quem ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, se o interesse da vítima o impusesse, não havendo oposição daquela até à acusação, norma que desapareceu com a Lei nº. 7/2000, de 27/5, vincando a natureza exclusivamente pública do crime.

De concluir, do que fica exposto, que o crime de actos homossexuais com adolescentes, na forma do artº. 175º, do CP, sendo, embora, de natureza semi-pública, consente, excepcionalmente, que o M.P. inicie, sem queixa, oficiosamente, o procedimento criminal, sem submissão ao prazo de denúncia previsto no artº. 115º e qualquer limitação aos direitos consagrados no CPP, segundo o estatuto próprio definido naquele diploma, inclusive ratificação da ritologia processual praticada pelo M.P..
Falha razão, pois, ao arguido.

VIII. Passemos, de imediato, à questão da inconstitucionalidade do artº. 175º do CP, questão onde a polémica instalada ao nível doutrinário conhece alguma dimensão, para o que se torna imperioso trazer à colação e confronto o artº. 174º, do CP..
Dispõe o artº. 174º, que, quem, sendo maior, tiver cópula, coito anal ou coito oral, com menor entre os 14 e 16 anos, abusando da sua inexperiência, é punido com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Por seu turno o artº. 175º preceitua que quem, sendo maior, praticar actos homossexuais de relevo com menor entre 14 e 16 anos ou levar a que eles sejam praticados por outrem, é punido com prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
O tipo legal do artº. 174º prevê e pune actos heterossexuais entre pessoa de maioridade e menor de idade compreendida entre 14 e 16 anos, desde que aquele abuse da inexperiência do menor; o tipo legal de crime previsto no artº. 175.º abdica da inexperiência do menor, e é nessa inexigência, em se tratando de actos homossexuais de relevo com adolescentes, praticados por maior, sendo a vítima menor de 14 a 16 anos que se vê um tratamento discriminatório na incriminação, fonte de ofensa ao princípio constitucional da igualdade.

É esse tratamento distinto, a repousar unicamente na natureza do acto homossexual de relevo, que levanta dúvidas sobre a legitimidade material da incriminação, chegando até a colocar-se a questão da legitimidade do ponto de vista jurídico-constitucional (Prof. Teresa Beleza, Jornadas, I, 1996, 181 e Mouraz Lopes, in Os Crimes contra a Liberdade e Auto determinação Sexual, 98), não devendo estabelecer-se tratamento diferenciado para relações homo e heterossexuais. Assim, também, o entendimento do Prof. coimbrão Costa Andrade, in Consentimento e Acordo em Direito Penal, 1990, 396, assim, ainda, também o do Sr. Procurador-Adjunto Jorge Dias Duarte, in Homossexualidade com Menores - Artigo 175º, do Código Penal, Revista do M.P., Ano 20, Abril/Junho de 1999, 110, que vê plasmada no tipo "...uma reminiscência moralista, traduzindo ainda - mais que implícita, explicitamente - o desvalor com que a homossexualidade é, ainda hoje, encarada em certos sectores sociais".
Da obra de Karl Prelhaz Natscheradetz, Direito Penal Sexual, Conteúdo e Limites, págs. 80-81, destacamos, no mesmo tom, e a propósito, a seguinte passagem:
"Um dos aspectos essenciais da moral das sociedades resultantes da civilização judaico cristã constitui no atribuir à sexualidade uma significação profundamente negativa (...) tendo a doutrina católica tradicionalmente classificado os comportamentos sexuais em "naturais e contranatura", importando reflectir até que ponto tal visão não contribuiu, ainda hoje, para a manutenção (...) do tipo legal em análise, pois que, tradicionalmente, e na nossa envolvência cultural, a homossexualidade está associada à prática de actos "contra natura ".
Este desprendimento de qualquer visão moralista leva mesmo a Prof. Teresa Beleza, a propor que, no futuro, o direito penal a constituir não discrimine as relações homossexuais, nomeadamente exigindo no tipo legal do artº. 175º, também, o abuso da inexperiência do menor e prevendo que o tipo legal de actos sexuais com adolescentes também seja ele preenchido com a prática de actos sexuais de relevo, não cingidamente à cópula, ao coito anal ou coito oral, numa formulação intrasistemática, centrada num só tipo legal - cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, I, 571.

O direito penal sexual, após a entrada em vigor do CP de 82, por iniciativa do legislador, mostra-se estruturado à margem de qualquer visão moralista, próxima de uma concepção de arco alargado. A nível da homossexualidade o nosso direito penal sexual não é conservador, escreve Rui Pereira, in Sub Judice, II, 1996, 43 e segs. Tudo o que a nível de comportamento sexual não é proibido é, simplesmente, permitido, na expressão da teoria liberal de sociedade aberta, de Stuart Mill.
A interferência na liberdade individual surge, pois, na compreensão do princípio teórico, para evitar a ocorrência de dano a outrem; de acordo com tal teoria não parece que deva suprimir-se a individualidade da pessoa para garantir aos outros um aumento da sua realização pessoal.

Sem, ainda, avançar solução, diremos que é ao legislador que incumbe as decisões de criminalização ou descriminalização. Tais decisões seguem de perto a evolução histórica das sociedades às quais se destinam, revelando-se estritamente condicionadas pelos dados da estrutura social, por substratos directamente políticos, pelos interesses dos grupos sociais e pelas representações axiologicamente nelas prevalentes em qualquer momento histórico, como teoriza o Prof. Figueiredo Dias, in Lei Criminal e Controle da Criminalidade - O Processo Legal-Social de Criminalização e Descriminalização - Rev. Ord. Advogados, 1976, 69 e segs..
A autonomia da criminalização ou descriminalização que cabe ao legislador é retirada ao aplicador da lei, ao simples julgador, na pressuposição de que todas as leis são justas, usufruindo aquele, apenas, do poder de recusar a sua aplicação com o fundamento de que infringem a lei constitucional ou princípios nela consagrados - artº. 204º, da CRP.
Ora se o legislador elevou à categoria de elemento constitutivo do tipo a simples prática de actos homossexuais de relevo, sem exigir a inexperiência do menor, é porque assim o teve por justo e mais adequado para responder às concepções reinantes, ao momento histórico e suas exigências, não cabendo ao julgador sobrepõr-se-lhe.
Em nosso ver, e respeitando entendimento em contrário, não é preciso apelar a qualquer concepção moralista, que repugna ao fautor da lei, para se enraizar, numa concepção objectiva, razão para se não exigir como elemento constitutivo do crime de prática de actos homossexuais a inexperiência do menor.
A prática de actos homossexuais de adultos com menores é na envolvência cultural de hoje, encarada, em larguíssimos sectores sociais e humanos, na esmagadora maioria dos cidadãos, objectivamente mais grave do que a prática de actos heterossexuais com menores, pelos efeitos que conduz, repercutindo aquela uma prática de menor normalidade e a última, apesar de ainda condenável, maior normalidade.
Não que, e nisto se afirma a nossa discordância com o recorrente una daqueles actos sejam normais e outros anormais, o que sucede é que na gravidade objectiva entre uns e outros é possível estabelecer uma escala gradativa de violação, que pende mais desfavoravelmente para o agente do crime desenhado no artº. 175º, do CP.
As experiências homossexuais de adultos com menores, independentemente da experiência sexual da vítima, são substancialmente mais traumatizantes, por representarem um uso anormal do sexo, condutas altamente desviantes, por serem contrárias à ordem natural das coisas, comprometendo ou podendo comprometer a formação da personalidade e o equilíbrio mental, intelectual e social futuro da vítima, desencadeando, também, colateralmente, efeitos danosos de um ponto de vista social, fenómenos disfuncionais em grau mais elevado, à partida, do que os actos heterossexuais com adolescentes, mesmo sem experiência sexual.
O tipo delineado repercute a intolerância social aos abusos sexuais sobre menores, a função do direito penal é, então, a de agir como mecanismo de controle social, não comportando aquela disfuncionalidade qualquer espécie de implicação ética, no dizer de Amelung referenciado na obra de Karl Prelhaz Natsheradetz, pág. 116.
O poder do Estado, não serve para reforço de padrões puramente morais ou religiosos. Os Governos não podem controlar comportamentos que não possuem qualquer significado especial, tais assuntos ficam melhor confiados à religião, à educação e a outras influências sociais
Se é certo que ao legislador falha em absoluto, no dizer de Roxin, legitimidade para punir condutas não lesivas de bens jurídicos, apenas em função da imoralidade, outrossim deverá o direito penal intervir na punição das condutas sexuais que mais gravemente atentem contra a liberdade sexual do ofendido ou a sua autodeterminação, privando-o da disposição de um dos aspectos mais intimamente ligados à sua auto-realização pessoal, como é a sua actividade e liberdade sexual - cfr., ainda, Karl Prelhaz Natsheradetz, op. cit., 141.

A figuração do tipo responde às mais profundas exigências de repressão criminal na matéria e traduz a mais correcta opção e rumo de política legislativa face às concepções sociológicas que não correm de feição em vista de um abrandamento punitivo sustentado, sem fundamento, pelo arguido.

IX. Quando no artº. 13º nº. 1, da CRP se preconiza que todos os cidadãos tem a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, não se trata de firmar um qualquer igualitarismo. É, antes, igualdade, proporcionalidade.
O princípio exige que se tratem por igual situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionando justiça.
O princípio, como é entendido sem discrepância, não proíbe que a lei estabeleça distinções, veda, isso sim, o arbítrio, proibindo as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem justificação razoável, sem fundamentação aparente, visível.
Proíbe que se tratem por igual situações dissemelhantes e a discriminação com base em diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas.

Fora disso, respeitados estes limites, como o TC, no seu Ac. de 9/2/88, in BMJ nº. 374, 144, doutrinou que o legislador goza de inteira liberdade, por isso na situação que nos ocupa, ressalvando opinião contrária, o legislador ao diferenciar, nos tipos legais em confronto, actos substancialmente distintos, repetimos actos heterossexuais e homossexuais, de adultos com menores de idade compreendida entre os 14 e 16 anos, age em conformidade constitucional, respeitando o princípio, ao configurar tipos legais diferenciados nos seus elementos constitutivos, sem discriminação dos actos homossexuais.
O legislador, ao proceder assim, não estabelece diferenciações sem fundamento material bastante, de forma irrazoável, movido por injustificada e arbitrária razão, antes trata de forma desigual à luz de um padrão objectivo o que o deve ser, e que são as relações homossexuais de relevo de pessoa maior com menores de idade entre os 14 e 16 anos, quando comparativamente com actos entre pessoas de sexo diferente, entre menores de 14 e 16 anos e maior.

Na clivagem jurídico-penal a que se assiste não deixa de ser actuante, igualmente, o conhecimento de que é mais livre e prematuro o consentimento dos adolescentes para a prática de actos heterossexuais, sendo mais tardio o processo genético de formação de vontade de adesão dos adolescentes para a prática de actos homossexuais.
Até mesmo para alguns autores o exercício da sexualidade entre menores pode afectar o livre desenvolvimento da respectiva personalidade e produzir alterações importantes sobre a sua vida futura e seu equilíbrio psíquico, embora se perfilem posições opostas, como nos dá nota Muñoz Conde, in Derecho Penal - Parte Especial, 11ª ed. 117.
Improcede, também, a invocada inconstitucionalidade material do artº. 175º, do CP, cuja desaplicação se intenta.

X. Quanto ao excesso de pena de que o recorrente se diz vítima, vejamos:
A necessidade de pena justa é uma das questões que, desde sempre tem preocupado quem a aplica, quem a determina compulsivamente e, naturalmente, quem a suporta e a sociedade.
Toda a pena que não derive de absoluta necessidade é tirânica, escrevia Montesquieu, citado pelo Beccaria, in Dos Delitos e das Penas, edição de 1766, reeditada pela Fundação Gulbenkian, 1998, pág. 64, obra de uma contemporaneidade incontornável, repassada de um inexcedível humanismo. Todo o acto de autoridade, de um homem sobre outro homem, que não derive de absoluta necessidade é tirânico. Assim se firmou, de resto, no artº. 8.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Foi a necessidade de sofrer pena que levou o seu criador a sacrificar a liberdade humana, pois é de difícil entendimento alguém fazer dádiva gratuita de parte da liberdade a favor do bem público.
A pena excessiva é injusta e um desperdício; para LIZT "só a pena necessária é justa" e, quanto mais próximo e perto do delito, tanto mais justa e útil ela será, é um ensinamento inultrapassável de Beccaria
Impor uma pena não é acontecimento metafísico, mas uma amarga necessidade numa comunidade de seres imperfeitos, como são os homens.
A pena visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, em caso algum podendo ultrapassar a medida da culpa do agente, nos termos do artº. 40º nºs. 1 e 2, do CP.
A pena, dentro dos limites estabelecidos na lei, é função da culpa do agente e das necessidades de prevenção, ganhando relevo, ainda, aquelas circunstâncias que não fazendo parte do tipo legal, atenuam ou agravam a responsabilidade criminal do agente - artº. 71º nºs. 1 e 2, do CP..
O bem jurídico a proteger, no caso vertente face ao tipo legal preenchido pela conduta do arguido, do artº. 175º, do CP, é o relevante direito do menor de idade compreendida entre 14 e 16 anos, ao desenvolvimento, sem perturbações, da sua sexualidade, que sofre, aos olhos do legislador, grave compressão e afectação na prática de actos homossexuais de relevo.

O pensamento do legislador de que a pena se propõe finalidades de prevenção vai buscar razão, ainda, em Beccaria que o retirara de Montesquieu, para quem vale mais prevenir os delitos do que puni-los.
E prevenção é tanto a prevenção geral, na forma de afirmação da eficácia e de validade do sistema jurídico penal, de tranquilização da sociedade sobressaltada pelo ilícito, de revigoramento na crença na lei e do sentimento de segurança que a acção criminosa põe em crise - cfr. BMJ 453, 172 e 444, 366.
Mais do que prevenção estritamente negativa ou de terror, de coacção psicológica, que leve futuros delinquentes a afastarem-se do crime, a pena tem de limitar-se ao que é necessário para o restabelecimento da ordem jurídica e crença dos cidadãos no sistema positivo instituído (prevenção positiva ou de integração).
À prevenção especial assinala-se a missão de restituição ao tecido social do agente sem risco de sucumbência, o respeito pelos "padrões-standard" já estabelecidos, a transformação, ao fim e ao cabo, em homem de bem ou, como se afirmou no Ac. deste STJ, de 31/5/2000, Pº. nº. 272/2000, desta 3.ª Sec., proporcionar ao condenado comportamentos alternativas à conduta criminosa, de modo que a pena "tem de responder, sempre positivamente, às exigências de prevenção geral ou de integração".
Na interacção entre estas espécies de prevenção a geral prevalece sobre a especial porque o legislador não abdica do indeclinável direito da tutela da sociedade e sua defesa contra o prevaricador, que atentou contra valores fundamentais de subsistência comunitária.
Os Profs. Figueiredo Dias e Costa Andrade assentam, e assim tem sido sufragado por este Tribunal (cfr. Ac. de 9.2.2000, BMJ 494, 104), em que toda a pena serve funções de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada no seu máximo pelo limite inultrapassável da medida da culpa, dentro deste limite máximo ela é limitada por uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite máximo é oferecido pelo ponto óptimo da tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é definido pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é fixada em função de exigências de prevenção especial em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou de segurança individuais - Direito Penal - Questões Fundamentais - A Doutrina Geral do Crime, 1996.120.

O arguido, mostram os autos, aceitou, após apresentação prévia para o efeito, por D, o relacionamento sexual com o ofendido B, então aluno interno da Casa Pia, do Colégio ..., do qual se ausentava, sem autorização dos seus responsáveis, vagueando pelas ruas de Lisboa, sem condições de sobrevivência, vindo a ser internado, em momento posterior, no Centro Educativo ....
Por várias vezes, e em número não inferior a uma dezena, entre Setembro e Dezembro de 1999, o arguido encontrou-se com o menor no seu apartamento em Oeiras, ficando a sua condução, de carro, a cargo daquele.
Nessas ocasiões, no interior do quarto de dormir do arguido, este masturbava-se à frente do menor, a quem acariciava, colocando a sua boca no pénis do fendido, até à ejaculação.
O arguido roçava o seu pénis junto do ânus do menor até ejacular.
Em contrapartida da remuneração de tais actos entregava a quantia de 5.000$00 (cinco mil escudos).
Em data inapurada do verão de 1999, indivíduo de identidade desconhecida propôs ao ofendido C, que, na altura, se dedicava, no Parque Eduardo VII, à prostituição masculina, o relacionamento sexual com homens, a troco de remuneração.
Aquele desconhecido combinou um encontro entre o arguido e o menor, na estação de Santo Amaro de Oeiras e, concretizado aquele, seguiram no carro do arguido, seu condutor, para a residência deste.
No interior do quarto o arguido começou por acariciar o pénis e os testículos do menor, após o que introduziu o pénis do menor na sua boca e se masturbou até à ejaculação, entregando-lhe a remuneração de 5.000$00.
O arguido admitiu como possível, em relação a ambos os menores, que tivessem 14/15 anos, actuando, conformando-se com esse facto, querendo e conseguindo esse relacionamento.
O dolo, embora eventual, no que à idade respeita, nem por isso deixa de ser directo no que concerne aos demais elementos da acção típica, apresentando-se, na globalidade, muito intenso, perdurante no tempo quanto ao menor B.
O dolo é a intenção criminosa e esta define-se em função do fim; age intencionalmente o que procura realizar, objectivando-o, o fim a que se propõe a vontade; a representação, enquanto representação mental de um facto é a previsão do seu conhecimento futuro; o facto apresenta-se-nos como a realização da intenção.
E também se manifesta a nossa plena concordância à valoração do Colectivo de que o seu grau de ilicitude, que o mesmo é dizer, o grau de contrariedade à lei, de desvalor global da acção criminosa, é muitíssimo elevado, presente no modo de execução dos delitos, natureza dos interesses violados e sua duração.
Porém, neste domínio, no entanto se impõe uma distinção que a matéria de facto, intangível para este STJ, enquanto tribunal de revista, de reexame exclusivo da matéria de direito, nos termos do artº. 432º, do CPP, consente e impõe, factor relevante na tarefa de individualização das penas.
A prática de actos de homossexualismo se se protela no tempo (Setembro a Dezembro do ano de 1999), quanto ao menor B e se abrange contactos (roçar) com o pénis do arguido no ânus daquele até à ejaculação, o acervo factual delimitado inatacavelmente pelo Colectivo quanto ao menor C é mais restrito na medida em que retrata uma acção única, no verão de 1999, (fls. 1826 e 1827), de acariciar os testículos e o pénis e de introdução do pénis do menor na sua boca até à ejaculação
Há um acréscimo de culpa e ilicitude, quando comparadas as infracções praticadas relativamente à pessoa do menor B e por isso a pena há-de ser diferenciada, modo de corresponder à culpa e prevenção e demais critérios fixados no artº. 71º, do CP, já que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa por mais elevadas que se apresentem as exigências de prevenção.
Em desfavor do arguido acorrem os sentimentos revelados de pura satisfação da sua lascívia, através da prática de actos objectivamente escabrosos, repugnantes, na pessoa dos menores, atentatórios do direito à formação da personalidade de uma forma normal e sem agressões exteriores.

Não deixa de representar demérito profundo a completa indiferença do arguido pela humilde condição económica dos adolescentes em causa, próxima de uma situação de miserabilismo, típica dos "meninos de rua", abusando ou sendo-lhe indiferente esse estado.
O Colectivo deu como assente, para não mais poder ser alterada, a ausência do "mais leve indício de arrependimento ou sequer autocensura" por banda do arguido, que não interiorizou as consequências do seu acto.
O arguido aliciava directamente menores à prática de actos sexuais, mas também se servia de angariadores, a mando seu, a troco de dinheiro para a prática de actos homossexuais, o que, em jovens carentes economicamente e debilitados, os torna presas fáceis dos seus instintos, mais submissos às suas solicitações.
Noticia, ainda, o acórdão que o arguido cedeu, em número indeterminado de vezes, durante os anos de 1999 ou 2000, o seu apartamento, em Santo Amaro de Oeiras, a H, para aí este praticar, como praticou actos sexuais similares com menores.
Não pode ficar sem alusão o facto desqualificante de o arguido haver praticado actos homossexuais com outros menores, que se o colocam fora de responsabilização penal, porque a sua idade de mais de 16 anos não merecer tutela penal, nem por isso deixam de definir, na sua materialidade, uma personalidade viciosa, deformada e da maior insensibilidade tanto com referência aos menores como a padrões éticos e morais.
Em todo o "iter" criminoso revela-se-nos que o arguido manifesta séria dificuldade em manter comportamento futuro conforme ao direito sexual de menores, em ser fiel à conjuntura jurídica respectiva, segundo a lei do país que o acolheu, que não hesitou em afrontar, integrando a agravante prevista no artº. 71º nº. 1 f), do CP.
Comporta, algum relevo atenuativo, mas não exagerado, o facto de não registar antecedentes criminais, o que nem sequer atesta bom comportamento anterior, mas apenas que não chegou ao cadastro criminal até hoje a notícia de facto ilícito, escapando às malhas da lei penal, como o facto de ser reputado um bom profissional no Colégio de ..., em Carcavelos, nada havendo a censurar-lhe aí, em termos de comportamento.
Era o mínimo que, enquanto docente nesse Colégio, se lhe impunha, fazendo parte das suas obrigações profissionais.
Mesmo a considerarem-se provadas - e não o estão - as precárias condições prisionais experimentadas em Marrocos, antes de ser extraditado para Portugal, isso não comporta qualquer valor atenuativo porque não interferem em sede de culpa e de ilicitude. E nem o julgamento que diz ter sido vítima pela opinião pública porque o que ganha significado e relevo é aquele a que foi submetido em tribunal com assistência da plenitude de todos os direitos de defesa.
Por outro lado a invocada circunstância de que no Terreiro do Paço, Cais do Sodré e Parque Eduardo VII, em Lisboa, se pratica, sem repressão, a prostituição masculina, se tal procedimento pode significar censurável inacção policial, é, contudo, ela absolutamente inócua em termos de defesa, sendo-lhe, até nociva tal asserção, porque não pode o arguido a pretexto da prática de actos criminosos justificar o seu, isto suposto que na verdade aquela prática é corrente, além de que a sê-lo não repercute o estado geral do país.
Ao fim e ao cabo é o reafirmar da visão - ultrapassada - de que as crianças que se entregam a tais actos, dos meninos de rua, não passam de meros culpados, menos do que vítimas, assistindo-se, na actualidade, a uma inversão da compreensão dos dados da problemática
Actualmente predomina o direito sagrado de cada um, como fazendo parte integrante da sua pessoa, crescer em equilíbrio harmonioso, ao nível sexual, por forma a que o futuro não reserve um passado de remorso ou vergonha, como bem se acentua no acórdão recorrido.
Desta alegação ressalta, até, que o arguido não mostra qualquer interiorização das danosas consequências do seu acto, repudiando, abertamente, o uso da suspensão da pena, que ao Colectivo se não perfilou como desejável e crível que desempenhasse na sua pessoa o sentido pedagógico e ressocializador que cabe ao instituto, arredando a hipótese de voltar a delinquir - pela simples ameaça da execução da pena - artº. 50º nº. 1, do CP.
Não se prova que, doravante, o arguido fique impedido de exercer funções de docência, o que, de resto, não integraria atenuante, mas um efeito de um acto condenável de sua autoria.

XI. Analisando a medida da pena na perspectiva de prevenção:
No plano da prevenção geral fazem-se sentir ao mais alto nível exigências de reprovação e censura, como forma de revigoramento da lei e crença nos tribunais na defesa dos interesses dos menores atingidos.
O aumento significativo da denúncia de crimes de abuso sexual de menores, de que as cifras oficiais dão conta (mais 200 casos denunciados no primeiro semestre do ano presente em comparação com igual período do ano de 2002), sem denotar uma prática criminosa em crescendo, é tradutora de um aumento da prática criminal naquela área, reclamando que, pela via da pena, se crie sobre os cidadãos em geral, um sentimento dissuasor da sua prática futura e enraizadas motivações de inibição.
O arguido carece de pena de prisão, efectiva, única forma de lhe fazer sentir que os actos em que incorreu são da maior gravidade e reclamam tratamento severo, instrumento de dissuasão da prática de comportamentos similares, da sua merecida correcção e reeducação, em vista da sua reinserção social, que o mesmo é dizer o retorno ao tecido social lesado em condições de não sucumbência futura.
Pese embora no arco penal punitivo se prever, em alternativa à de prisão, até 2 anos, pena de multa, é esta inteiramente de repudiar, por não realizar os fins das penas - artº. 70º, do CP. - de prevenção e de protecção dos bens jurídicos a acautelar com a punição do delito, socialmente chocante.

XII. Uma consideração final temos, ainda, por ajustada na revista do direito aplicado, função primordial deste STJ:
Não se nos anteolha que, no caso vertente, como em tantos outros no mundo do crime sexual, a conduta do agente em relação menor B integre a prática de um crime continuado.
Diremos porquê, com respeito pela opinião contrária:
O crime continuado, na sua conformação legal, no artº. 30º nº. 2, do CP, não prescinde além do mais, de uma reiteração criminosa, levada á prática no quadro de uma circunstância exterior que diminua consideravelmente a culpa, porém se tal reiteração ficar a dever-se a uma certa tendência criminosa enraizada na personalidade do agente, a uma qualidade desvaliosa na sua formação, como teoriza o Prof. Eduardo Corrreia, in Unidade e Pluralidade de Infracções, 251, já não pode falar-se de atenuação e de diminuição da culpa pressuposta na continuação, ficção estabelecida na lei para obviar a acumulações materiais conducentes a penas de duração ilimitada, quase ou mesmo perpétuas.
O agente, no quadro de uma enraizada, não acidentalmente querida, apetência de menores para satisfação da sua lascívia, sabendo da existência de menores que não recusavam propostas no relacionamento homossexual, dada a sua precária condição económica e a sua desinserção social e familiar, era ele que os aliciava ou recorria a angariadores, que lhes proporcionava transporte e atrai ao local de encontro, sendo legítimo concluir pela inexistência de relevantes solicitações exteriores, diminutivas, consideravelmente, da sua culpa. Neste sentido cfr. o entendimento expresso em "O Abuso Sexual de Menores", da autoria de Rui do Carmo, Isabel Alberto e Paulo Guerra, pág. 66, ed. Almedina, 2002.
O arguido, ora recorrente, mais do que guiado pela oportunidade, é ele que cria ou concorre em decisivo para o crime, tendo por móbil o seu desviante apetite sexual sobre jovens indefesos, entregues ao seu destino, desprotegidos.
Embora o procedimento criminoso do agente se manifeste por uma pluralidade de acções (como sucede no crime continuado) há, contudo, uma única resolução criminosa, pelo que o crime é único, à falta visível de uma situação exterior, facilitante da sucessiva sucumbência, afrouxando a resistência à conformidade ao direito, redutora do juízo de censura.

Nestes termos se retira a natureza continuada ao crime de actos homossexuais com adolescentes, p. e p. pelo artº. 175º, do CP, quanto ao ofendido B, sublinhando-se que assiste razão ao arguido quando propugna pela diferenciação de penas aplicáveis em concreto, tendo em vista as pessoas dos ofendidos, sem embargo de se reconhecer que uma pena de prisão próximo do máximo da moldura (2 anos), quanto ao crime na pessoa do menor B, tem pleno cabimento quando o condicionalismo da prática do crime é rodeado de agravantes ou estas excedem largamente o peso das atenuantes e a conduta do agente se mostra digna, pelo grau de culpa e exigências de prevenção e demais circunstâncias do caso, do maior juízo de censurabilidade, como é o caso, conformando-se, ainda, inteiramente à medida da sua culpa, enquanto limite incontornável da pena - artº. 40º nº. 2, do CP.

XIII. Por isso, em provimento parcial do recurso, se condena o arguido pela prática do sobredito crime de prática de actos homossexuais com adolescentes, cometido na pessoa do menor C em 10 (dez) meses de prisão e, como autor do mesmo crime na pessoa do menor B, em 22 (vinte e dois) meses de prisão, em cúmulo jurídico, vistos, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, em 2 (dois) anos e meio de prisão.

Ao Colectivo, que teve um contacto directo com o arguido em julgamento e a imediação das provas, não se colocou sequer a hipótese de suspensão de execução da pena, porque o arguido não lhe ofereceu condições de, em liberdade, pela simples ameaça da execução da pena, na consideração da personalidade do agente, suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior aos factos e demais circunstâncias do caso, não voltar a molestar sexualmente menores, por isso não apostou no juízo de prognose favorável de reeducação e ressocialização do arguido, suposto na adopção do regime de suspensão, desaconselhável por não realizar os fins das penas
E com todo o acerto o fez, nada havendo a censurar-lhe nesse capítulo.

Este Supremo Tribunal de Justiça, em provimento parcial do recurso, condena o arguido na forma descrita, no mais se mantendo inalterada a decisão do Colectivo.

Condena-se o arguido ao pagamento de 15 Ucs de taxa de justiça, acrescendo a procuradoria de 1/2 a favor dos SSMJ.

Lisboa, 22 de Outubro de 2003
Armindo Monteiro (Relator)
Flores Ribeiro
Pires Salpico
Borges de Pinho