Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P3722
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: BURLA AGRAVADA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
OFENDIDO
ILAÇÕES
CONCLUSÕES DAS INSTÂNCIAS
MATÉRIA DE FACTO
TENTATIVA
Nº do Documento: SJ200212120037225
Data do Acordão: 12/12/2002
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário : 1 - O crime de burla desenha-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar, e é integrado pelos seguintes elementos: intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;
por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;
determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.
2 - É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, e actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro.
3 - Esses actos além de astuciosos devem ser aptos a enganar, não sendo, no entanto, inevitável que se trate de processos rebuscados ou engenhosos, podendo o burlão, numa "economia de esforço", limitar-se ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima concreta.
4 - O que pode ocorrer quando se verifica toda uma aproximação do burlão à vítima, a criação de relações pessoais que permitiram que de forma simples esta tenha sido enganada com recurso a meios simples (uma história comovente, grandes protestos de seriedade e amizade, desespero e choro, insistência e garantia de que a arguida iria receber muito dinheiro) para ser convencida a entregar os cheques, ela que não usava cheques para si.
5 - O n.º 1 do art. 417.º do C. Penal não se refere somente ao prejuízo causado ao burlado, mas também ao prejuízo patrimonial causado a outra pessoa, pela prática dos actos praticados, por meio do erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocado pelo burlão.
6 - É jurisprudência pacífica do STJ que as conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do tribunal de revista, salvo se as instâncias ao extrair aquelas conclusões ou ilações não se limitam a desenvolver a matéria de facto provada, e a alteraram.
7 - A vítima fica em situação económica difícil se por virtude da burla fica desapossada das suas poupanças e incapaz de honrar compromissos anteriormente assumidos.
8 - A posição assumida Ac. do STJ de 14-12-89 (BMVJ 384, pág. 314), de que "o crime de burla agravada previsto e punível pelo art. 314.º, al. c), do CP/82 não admite a figura da tentativa" já não colhe perante o Código Penal revisto em 1995, porquanto a não reparação deixou de ser elemento típico da qualificação [art. 218.º, n.º 2, al. a)] e passou a ser considerada, por força do n.º 3 do art. 218.º, em conexão com o art. 206.º do mesmo diploma, como pertinente ao instituto da atenuação especial da pena, deixando, deste modo, intocado o tipo legal do crime de burla qualificada.
9 - De todo o modo a reparação do prejuízo não equivale a restituição, como o reconhece o legislador do C. Penal de 1982 no art. 301.º: a restituição visa essencialmente o furto e a apropriação ilícita, e a reparação integral os restantes casos e mesmo o furto ou apropriação ilícita quando não for possível a restituição.
10 - O segmento final da al. c) do art. 314.º do C. Penal de 1982 «e não for reparado pelo agente, sem dano ilegítimo de terceiro, a até ser instaurado o procedimento criminal» não tem por fim fundar a agravação, antes pelo contrário, visa afastar tal agravação quando, por virtude da reparação sem dano ilegítimo de terceiro, se tiver reduzido a ilicitude e logo a razão da gravação ditada pelo primeiro segmento da norma. Portanto, nos casos em que a natureza das coisas não permitir a reparação do prejuízo causado, funciona a agravativa, sem que se possa ter por discriminados negativamente os agentes. É que não podendo ser reparado o prejuízo causado pelo agente, não é diminuído o grau de ilicitude por forma a justificar uma moldura penal mais branda.
Decisão Texto Integral: SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I

1.1. O tribunal Colectivo do 2º Juízo Criminal de Portimão (processo n.º 383/99.3 JAPTM), por acórdão de 6.6.2002, julgou parcialmente procedente por parcialmente provada a acusação pública e, além do mais, condenou arguida MCGC, com os sinais nos autos, como autora dos seguintes crimes:

1 crime de burla qualificada dos art.ºs 217º e 218º n.º 2 al. a) do C. Penal, (a que correspondem os factos relativamente á ofendida SIRL e aos cheques pertença desta que a arguida utilizou) na pena de 3 anos de prisão.

1 crime de burla informática do art. 221º n.º 1 do C. Penal, (a que corresponde ao levantamento dos 11.000$00 na ATM com o cartão da SIRL), na pena de 90 dias de multa á taxa diária de 5 Euros, ou seja na multa global de 450 Euros;

1 crime de burla do art. 217.º n.º 1 do C. Penal (a que corresponde aos factos em que é ofendida MVJ) na pena de 120 dias de multa á taxa diária de 5 Euros, ou seja na multa global de 600 Euros;

1 crime de burla qualificada dos art.ºs 217º e 218º n.º 2 al. c) do C. Penal, (a que corresponde aos factos em que é ofendida a PT, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão:

1 crime de falsificação de documento do art. 256º n.º 1 al. a) do C. Penal, a que corresponde aos factos relativos á CGD, na parte em que a arguida "falsifica" as duas cartas endereçadas a esta instituição, para proceder ás transferências da conta a prazo da PT para a conta á ordem), na pena de 120 dias de multa á taxa diária de 5 Euros, ou seja na multa global de 600 Euros;

1 crime de furto do art. 203º n.º 1 do C. Penal, (a que corresponde aos factos em que a arguida subtrai os cheques da PT), na pena de 90 dias de multa á taxa diária de 5 Euros, ou seja na multa global de 450 Euros;

1 crime de falsificação de cheque do art. 256º n.º 1 al. a) e n.º 3 do C. Penal, (relativamente aos 2 cheques no montante de 1.800.000$00, pertença da PT) na pena de 240 dias de multa á taxa de 5 Euros, ou seja na multa global de 1.200 Euros;

ao crime de burla qualificada na forma tentada dos art.ºs 217º e 218.º, n.º 1, 22.º e 23.º do C. Penal, (a que correspondem aos factos relativamente aos dois cheques atrás referidos e que a arguida não conseguiu proceder ao seu levantamento) na pena de sete meses de prisão (considerando-se aqui a moldura legal abstracta aplicável, uma vez que se trata de crime tentado e que é: mínimo de um mês de prisão e máximo cinco anos e sete meses de prisão):

e na pena única de 4 anos de prisão e 750 dias de multa á taxa diária de 5 Euros, ou seja na multa global de 3750 Euros, considerando as 3 condenações anteriores:

- condenação (processo comum Colectivo n.º 299/98 OJAPTM do 1.º juízo de Portimão) em 12.12.2000, factos cometidos no 1º semestre de 1998, pela prática de 1 crime de furto simples do art. 203.º n.º 1 do C. Penal na pena de 90 dias de multa á taxa diária de 1.000$00 , pela pratica de 1 crime de burla simples do art. 217º n.º 1 do C. Penal, na pena de 120 dias de multa á taxa diária de 1.000$00 e pela prática de 1 crime de burla qualificada dos art.ºs 217º n.º 1 e 218.º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 180 dias de multa á taxa diária de 1.000$00.

- condenação (processo comum singular n.º 266/97.1 JAPTM do 1.º Juízo Criminal de Portimão) em 23.05.2002 , por factos cometidos em 22 de Maio de 1997, pela prática de 1 crime de falsificação agravada do art. 256.º n.º 1 al. a ) e 1 crime de burla do art. 217.º n.º 1 do C. Penal nas penas de, respectivamente, 150 e 80 dias de multa á taxa diária de 3 Euros, e

- condenação (processo comum singular n.º 396/99.5JAPTM do 2º juízo criminal de Portimão) em 23.10.2000, por factos cometidos em dia não apurado do mês de Julho de 1999, pela prática de 1 crime de falsificação de documento do art. 256.º, n.º 1, a) do C. Penal , na pena de 150 dias de multa á taxa diária de 600$00.

e, julgando parcialmente procedentes os pedidos cíveis formulados, decidiu absolver a CGD do pedido e condenar-se a demandada (arguida) a pagar á ofendida PT a quantia de 3491,59 Euros á qual acrescem juros a contar do trânsito e até integral pagamento; condenar a arguida a pagar 384,07 Euros á ofendida SIRL , e a pagar 199,52 Euros á ofendida MVJ.

1.2. Partiu o Tribunal recorrido, para tanto, da seguinte factualidade:

A arguida MCGC conheceu a SIRL quando esta última trabalhava ao balcão de uma geladaria da Praia da Rocha, que a arguida frequentava assiduamente.

Iniciou-se uma estreita relação de amizade entre ambas, que permitiu à arguida tomar conhecimento aprofundado sobre a vida da SIRL, nomeadamente sobre as suas contas bancárias.

Entretanto, alegando que não era titular de qualquer conta bancária, a arguida pediu à SIRL que esta permitisse que fossem realizados depósitos na sua conta, depósitos esses a efectuar, segundo a arguida, pelos seus pais.

Dada a autorização por parte de SIRL, foram efectuados diversos depósitos na sua conta n.° ..., do balcão da Mexilhoeira Grande da Caixa de Crédito Agrícola Mútua do Barlavento Algarvio, quantias essas que SIRL foi levantando, para a entregar em seguida à arguida.

Uma vez que tais levantamentos causavam incómodos à SIRL em virtude das deslocações que tinha que fazer, esta confiou à arguida o cartão multibanco da referida conta, para que esta pudesse, ela própria, levantar, num "ATM", as quantias que fossem sendo depositadas, fornecendo-lhe o respectivo código pessoal.

A detenção do cartão de débito permitiu à arguida até finais de Agosto de. 1999, altura em que o devolveu à SIRL, ter constante conhecimento dos movimentos e saldos da conta em causa.

A 3 de Agosto de 1999, a arguida surgiu no local de trabalho de SIRL, situado no bar do Hospital do Barlavento Algarvio, situado em Portimão, simulando grande inquietação, confidenciando à sua amiga que tinha uma dívida de 10.000$00 que não conseguia pagar, pedindo à SIRL que lhe emprestasse tal dinheiro.

Como a SIRL não dispunha consigo do dinheiro suficiente a arguida solicitou então à amiga que esta lhe entregasse um cheque titulando tal quantia.

Todavia a SIRL não dispunha de cheques visto não lhe ser habitual usar tais títulos de crédito.

A arguida teatralizou então um grande desespero, chorando, acabando por convencer a SIRL a dirigir-se ao seu banco para adquirir um cheque avulso, o que esta fez nesse mesmo dia, comprando uma carteira de quatro cheques, número mínimo de cheques que o banco fornecia.

No dia seguinte, a 4 de Agosto de 1999, conforme combinado, a arguida voltou ao local de trabalho da SIRL para receber o cheque que lhe tinha pedido emprestado, verificando então, ao ser-lhe mostrada a carteira de cheques que a SIRL dispunha afinal de quatro cheques.

A arguida começou então a falar de outras pequenas dívidas que mantinha e que devia dinheiro à advogada que lhe patrocinava uma acção de divórcio que corria em Lisboa, dizendo ainda que quando estes processo ficasse resolvido iria receber 25 mil contos.

Todavia, a arguida é divorciada. tendo o seu último casamento sido declarado dissolvido por decisão datada de 16 de Maio de 1989

A arguida acabou por convencer a SIRL a entregar-lhe os quatro cheques já assinados mas por preencher, com os números 9?53135474 e 8353135475, 7453135476 (que se encontra junto a fls. 36) e 6553135477 (que se encontra

Na referida conta de SIRL encontravam-se depositados 77.000$00 provenientes do último salário por esta recebido, tendo a arguida conhecimento preciso deste saldo.

Ainda a 4 de Agosto de 1999, a arguida entrou no estabelecimento comercial pertencente a JBMF, situado na Praia da Rocha, ao qual pediu que lhe trocasse um cheque por numerário.

Como já conhecia a arguida da Praia da Rocha, JBMF acedeu ao seu pedido, entregando-lhe 65.000$00 em dinheiro, que a arguida fez seu, em troca do cheque n.° 474 , que a arguida preencheu na sua presença.

Tal cheque foi depositado em conta pertencente a JBMF, sendo o mesmo pago.

Mais tarde, após calcular a quantia em dinheiro que ficaria disponível na conta de SIRL, uma vez levantada a quantia titulada pelo cheque n.° 474, a arguida, através do cartão "multibanco" que a SIRL lhe emprestara, levantou, numa "ATM", 11.000$00 da conta desta, fazendo-os seus.

A 5 de Agosto de 1999, a arguida MCGC, encontrou-se com HRMR, à qual devia 170.000$00, dizendo-lhe que iria pagar-lhe tal quantia emitindo a seu favor um cheque dessa importância.

Pelo que, a arguida preencheu o cheque n.° 475, entregando-o em seguida à HRMR.

Esta, ao verificar que o cheque não se encontrava assinado pela arguida, nem estava sacado sobre uma sua conta, pediu explicações à arguida

A arguida disse que não havia nenhum problema, telefonando em seguida à SIRL, a qual falou com HRMR, que apenas lhe confirmou ter efectivamente assinado o cheque, uma vez que a conversa foi bruscamente interrompida pela arguida, desligando o telefone.

O referido cheque viu o seu pagamento recusado sendo devolvido por falta de provisão em 11 de Agosto de 1999.

A dívida de 170.000$00 que a arguida mantinha para com a HRMR foi originada pelos factos constantes da certidão junta a fls. 234 a 237 (que se dá aqui por inteiramente reproduzida), na qual se acusa a arguida da prática de um crime de falsificação de documento e de um crime de furto.

Igualmente nos primeiros dias de Agosto de 1999, a arguida comprou diversas peças em ouro a EMLQMT e a SMAR, as quais se dedicam à venda ambulante de objectos de ourivesaria, peças essas com um valor total de 2.500.000$00 das quais a arguida tomou posse de imediato.

Para pagamento deste valor, a arguida preencheu o cheque n.° 476, que se encontra junto a fls. 36, nele inscrevendo o montante total em dívida, emitindo-o em nome de SMAR e datando-o para o dia 5 de Setembro de 1999.

Apresentado o mesmo cheque a pagamento em 7 de Setembro de 1999, viu o mesmo o seu pagamento recusado, por falta de provisão da conta sacada.

A 8 de Agosto de 1999, a arguida entrou na Ourivesaria "...", situada na Avenida Tomás Cabreira, na Praia da Rocha, propriedade de AMDRV, na qual trabalha CPRI, amiga da arguida.

A arguida comprou então no referido estabelecimento uma peça de ourivesaria no valor de 19.000$00, preenchendo para o seu pagamento o cheque n.° 477 (que se encontra junto a fls. 64), titulando o mesmo valor, emitindo-o a favor de AMDRV.

Apresentado o referido cheque a pagamento, foi o mesmo devolvido por falta de provisão da conta sacada em 12 de Agosto de 2000.

A 10 de Agosto de 1999, a arguida voltou ao local de trabalho da SIRL , dizendo-lhe, desta vez, que se tinha enganado a preencher dois dos quatro cheques que havia recebido, pedindo à amiga que comprasse outros cheques para substituir os inutilizados.

Sensibilizada pela aparente aflição da arguida, a SIRL dirigiu-se, no mesmo dia, na companhia da arguida, ao balcão de Portimão da CCAM do Barlavento Algarvio, onde adquiriu uma nova carteira contendo quatro módulos de cheque.

À saída do banco, cedendo às insistências da arguida. a SIRL acabou por lhe entregar não dois, mas os quatro cheques anteriormente adquiridos, já por si assinados e por preencher, recebendo a arguida os cheques com os números 7153139130, 6253139131, 5353139132 e 4453139133 .

No mesmo dia, a 10 de Agosto de 1999, a arguida contactou a sua amiga, CPRI, à qual devia dinheiro, dizendo que lhe iria pagar as suas dívidas.

Logo após, a arguida emitiu a favor da CPRI os cheques n.°s 130 e 131, ambos datados de 10/8/1999, respectivamente titulando as quantias de 600.000$00 e 20.000$00.

Apresentados a pagamento, foram os mesmos cheques devolvidos em 12 de Agosto de 1999, por falta de provisão da conta sacada.

Entretanto, nos inícios de Agosto de 1999, a arguida entrou na Tabacaria "......" situada na Praia da Rocha e pertencente a MVJ, simulando encontrar-se em grande aflição.

Procurando demonstrar desespero, a arguida pediu ajuda a MVJ, dizendo estar grávida e que lhe tinha sido furtada a sua carteira, a qual continha todos os seus documentos e cheques, pelo que não dispunha de dinheiro, sequer para comer.

A arguida pediu então a MVJ que lhe emprestasse 15.000$00, que lhos pagaria logo que pudesse, assim que resolvesse a situação no seu banco.

Uma vez que MVJ conhecia arguida da Praia da Rocha e sentiu pena desta por se encontrar grávida, anuiu em emprestar-lhe os 15.000$00.

A 10 de Agosto de 1999, a arguida tornou ao mesmo estabelecimento, agradecendo então a MVJ o empréstimo, dizendo então que ainda não tinha conseguido desbloquear a situação no seu banco.

Por esse motivo, a arguida pediu à MVJ que lhe emprestasse mais 10.000$00, entregando-lhe então a arguida um cheque no valor total da sua dívida.

MVJ, continuando ainda a sentir piedade da arguida. entregou-lhe mais 10.000$00. recebendo em troca o cheque n.° 132, no valor de 25.000$00, que a arguida preencheu no momento, deixando-o ao portador .

Um ou dois dias depois, a arguida voltou novamente ao mesmo estabelecimento, de novo simulando grande aflição, dizendo, desta feita, à MVJ que o seu automóvel havia sido rebocado pela polícia e que necessitava de 15.000$00 para poder resolver a situação.

Novamente por caridade, MVJ emprestou mais 15.000$00 à arguida.

Entretanto, apresentado a pagamento o cheque que MVJ recebera das mãos da arguida, o mesmo viu o seu pagamento recusado por falta de provisão da conta sacada.

Em consequência, ficou MVJ prejudicada em 40.000$00.

Ainda a 10 de Agosto de 1999, a arguida dirigiu-se às instalações da "Rent-A-Car L", situada em Portimão, à qual o seu companheiro na altura mantinha uma dívida de 428.500$00 resultante do prolongado aluguer de uma viatura automóvel .

A arguida preencheu o cheque n.° 133, nele inscrevendo o total do valor em dívida, entregando-o nas instalações do referido estabelecimento comercial, ficando o mesmo ao portador .

Apresentado o mesmo cheque a pagamento, foi o mesmo devolvido a 17 de Agosto de 1999, sendo o seu pagamento recusado por falta de provisão da conta sacada.

A 11 de Agosto de 1999, durante a manhã, a arguida voltou ao local de trabalho da SIRL, dizendo-lhe, simulando choro, que se tinha, de novo, enganado a preencher um dos últimos cheques que a SIRL lhe tinha dado, pedindo-lhe que voltasse ao seu banco para lhe arranjar outros dois cheques.

Apesar de não saber com exactidão o saldo da sua conta, visto desconhecer quais os valores que a arguida tinha entretanto inscrito nos cheques que já tinha recebido, a SIRL disse à arguida que provavelmente já não teria dinheiro disponível na sua conta, ao que a arguida respondeu que tal não tinha importância, pois os cheques agora pretendidos destinavam-se a ser entregues à sua advogada como garantia do futuro pagamento dos seus honorários.

Momentos depois, novamente no balcão de Portimão da CCAMBA, a SIRL tentou comprar uma nova carteira de cheques, o que lhe foi recusado pala funcionária que a atendeu, com o fundamento que a conta não se encontrava provisionada e que estavam a ser devolvidos diversos cheques por falta de provisão, sacados sobre a mesma conta.

A arguida repetiu então perante a funcionária a argumentação anteriormente utilizada, dizendo que os cheques seriam utilizados apenas como garantia de futuros pagamentos, acabando por conseguir que fosse entregue à SIRL um novo cheque, que esta assinou e entregou, por preencher, à arguida, a qual se disse estar com muita pressa e que o preencheria em casa, visto não se recordar da quantia exacta que devia à advogada.

Não se apurou qual a numeração deste cheque, bem como o destino que a arguida lhe deu:

No mesmo dia, durante a tarde, a arguida tornou ao local de trabalho de SIRL, novamente lhe dizendo que se tinha enganado a preencher o cheque recebido de manhã e pedindo-lhe um novo cheque.

Voltando ambas ao balcão de Portimão do mesmo banco para aquela, obter um novo cheque.

Tal cheque acabou por ser entregue à SIRL, após muitas insistências da arguida, não sem antes, por exigência do banco, a SIRL assinasse documento a cancelar o cheque entregue na manhã desse dia, ficando a arguida com mais este cheque, assinado pela SIRL e por preencher, tendo o mesmo o número 3953140567 .

A 19 de Agosto de 1999, para pagamento da quantia de 150.000$00 relativa a rendas que a arguida devia ao seu senhorio AMC, a arguida preencheu o referido cheque n.° 567, titulando o mesmo valor, deixando ao portador e entregando-o ao seu senhorio.

Apresentado o referido cheque a pagamento, foi o mesmo devolvido em 24 de Agosto de 1999, por falta de provisão da conta sacada.

Após o nascimento do filho da arguida, esta contratou para ama da criança PT, com o pagamento de 50.000$00 por mês, iniciando esta a tal actividade em 12 de Novembro de 1999 e terminando-a em 1 5 de Dezembro de 1999.

Entretanto, a arguida tomou conhecimento que PT tinha depositados na sua conta a prazo com o n.° ..., da agência da Trofa da Caixa Geral de Depósitos cerca de 1.000.000$00, que esta destinava ao pagamento de parte do preço da aquisição de um terreno a realizar em 14 de Fevereiro de 2000, data da celebração da respectiva escritura de compra e venda.

A arguida arquitectou então um plano destinado a fazer sua tal quantia em dinheiro.

Na concretização de tal plano, em finais de Novembro de 1999, a arguida pediu à PT que lhe entregasse dois cheques da sua conta à ordem, já assinados e por preencher, alegando que não dispunha momentaneamente de cheques.

Segundo a arguida, o primeiro cheque destinava-se ao pagamento de perfumes no valor de 8.000$00, enquanto que o segundo tinha por fim garantir o pagamento de uma máquina de lavar loiça que a arguida teria adquirido.

Acreditando nas palavras da arguida, PT entregou à arguida dois cheques por si assinados e por preencher, com os números 512815188 e 1012815206, ambos da sua conta à ordem n.° ..., igualmente da agência da Trofa da Caixa Geral de Depósitos.

Uns dias depois, a arguida pediu à PT que lhe entregasse um terceiro cheque assinado e por preencher, alegando que se havia enganado a preencher o cheque com o n.° 188.

PT acedeu ao pedido da arguida, entregando-lhe um terceiro cheque já assinado, pedindo à arguida que lhe devolvesse o cheque inutilizado, o que a arguida aceitou, não o tendo, todavia, devolvido.

Em finais de Novembro e em 10 de Dezembro de 1999, a arguida escreveu duas cartas ao gerente da agência da Trofa, solicitando-lhe que transferisse, respectivamente, 300.000$00 e 400.000$00 da referida conta a prazo para a conta à ordem já mencionada, em ordem a serem levantados dois cheques de idênticos valores sacados sobre a conta à ordem .

Nas mesmas cartas, a arguida imitou pelo seu punho a assinatura de, PT, fazendo-se valer das assinaturas que esta havia colocado nos - cheques em posse da arguida.

Recebidas ambas as cartas na referida agência da CGD, foram ordenadas as transferências em causa, na convicção que aquelas eram da autoria da titular das contas em questão (cfr. extractos das contas de fls. 168, 181, 169 e 180).

Em 24 de Novembro de 1999, a arguida preencheu o cheque n.° 188, nele inscrevendo a quantia de 300.000$00, depositando-o no mesmo dia na conta n.° ... da agência do Pinhel da Caixa Geral de Depósitos da qual é titular o ex-companheiro da arguida, JM.

Em seguida, a arguida deu conhecimento ao JM do depósito, dizendo-lhe que tal dinheiro era proveniente da sua mãe e destinava-se a ajudar no sustento do filho de ambos.

Acreditando nas palavras da arguida, JM procedeu entretanto ao levantamento dos 300.000$00, entregando-os à arguida.

A 7 de Dezembro de 1999, a arguida preencheu o cheque n.° 206, nele inscrevendo a quantia de 400.000$00.

A quantia titulada por tal cheque foi levantada e entregue à arguida em 14 de Dezembro de 1999, após o mesmo cheque ter sido depositado numa conta do Banco Espírito Santo de número não apurado.

Durante o período de tempo em que PT trabalhou para a arguida, isto é, entre 12 de Novembro e _de Dezembro de 2000, esta última, aproveitando-se do facto de se encontrar momentaneamente só, retirou dos pertences de, PT, pelo menos seis módulos de cheque a esta pertencentes e relativos à sua conta à ordem já identificada, nomeadamente e entre outros os cheques com os n.°s 12815209 e 9128152208, apoderando-se dos mesmos.

Mais tarde, a arguida preencheu o cheque com o n.° 209, nele inscrevendo a quantia de 1.800.000$00 e nele desenhando, por imitação, uma assinatura idêntica à de PT.

Tal cheque foi apresentado a pagamento em 29 de Março de 2000 e em 7 de Abril de 2000, sendo, em ambas as ocasiões, o seu pagamento recusado. Por insuficiência de fundos da conta sacada.

O mesmo fez a arguida relativamente ao cheque com o n.° 208, preenchendo-o, nele inscrevendo a quantia de 1.800.000$00 e nele imitando a assinatura de PT.

Apresentado este ultimo cheque a pagamento em 4 de Abril de 2000. foi novamente o seu pagamento recusado por falta de provisão da conta sacada.

Entretanto, a arguida ficou impedida de continuar a utilizar os cheques de PT, uma vez que esta, ao descobrir a sua utilização abusiva, deu ordem ao seu banco para os mesmos serem cancelados .

Por via da conduta da arguida, PT ficou lesada em 700.000$00, permanecendo, desde então, privada da quase totalidade das suas poupanças e em sérias dificuldades económicas, impossibilitada de observar os compromissos anteriormente assumidos por si, nomeadamente o pagamento do preço da aquisição de um terreno por si acordada.

A arguida agiu com o propósito alcançado de levar SIRL a entregar-lhe sucessivamente dez cheques na conta pessoal desta, por preencher e já assinados, convencendo-a que tais cheques se destinavam ao pagamento de pequenas dívidas por si mantidas e que não conseguia satisfazer de outro modo, bem como para serem utilizados como garantia de futuros pagamentos, simulando encontrar-se em grande aflição e narrando factos que sabia não corresponderem à verdade, levando-a ainda a entregar-lhe mais cheques, na convicção que se destinavam a substituir os anteriores alegadamente mal preenchidos, o que era mentira.

Todavia, na posse de tais cheques, a arguida preencheu-os e entregou-os para pagamento de diversas quantias, num total de 3.977.500$00, resultantes de várias dívidas de grande valor que a arguida mantinha ou que entretanto contraiu e também uma divida de terceiro, dos quais apenas um, no valor de 65.000$00 foi pago, quantia em que SIRL ficou prejudicada, ficando os restantes tomadores dos cheques prejudicados nos valores titulados pelos cheques por si recebidos.

A arguida, na posse do cartão multibanco que lhe havia sido emprestado por SIRL cujo empréstimo se destinava apenas a que a arguida pudesse levantar dinheiro a si pertencente que ia sendo depositado na conta respectiva, utilizou-o para proceder ao levantamento de 11.000$00 que ainda se mantinham, a conta e pertencentes à SIRL não ignorando que tal dinheiro não lhe pertencia e que o fazia contra a vontade da sua proprietária.

A arguida, novamente simulando uma situação de desespero e narrando factos que sabia serem falsos, levou a que MVJ, sentido pena de si, por acreditar nas desgraças que a arguida lhe contava, lhe tenha emprestado em três ocasiões quantias monetárias num total de 40.000$00, que a arguida, apesar de o ter prometido, não lhe pagou posteriormente.

A arguida, alegando necessitar deles para efectuar uma pequena despesa e para garantir um pagamento futuro, o que não correspondia à verdade, levou a que PT lhe entregasse três cheques na sua conta à ordem, convencida que o seu destino seria esse.

Porém, a arguida, na posse de tais cheques e conhecedora da situação bancária de PT, forjou duas cartas destinadas ao gerente do banco desta, nas quais imitou assinaturas parecidas com a usada por PT, dando ordem de transferência de 300.000$00 e 400.000$00 da conta a prazo para a conta à ordem desta.

Realizadas as transferências, apenas por convicção que as cartas haviam sido escritas e assinadas pela titular das contas, a arguida preencheu e levantou dois cheques titulando tais valores, fazendo suas tais quantias, não ignorando que, por força desses factos, colocava PT em sérias dificuldades económicas, desapossada das suas poupanças e incapaz de honrar compromissos anteriormente assumidos.

A arguida, ao apoderar-se de, pelo menos, seis módulos de cheque pertencentes a PT, não ignorava que os mesmos não lhe pertenciam e que o fazia contra a vontade da sua proprietária.

Na posse desses cheques, a arguida preencheu dois deles, neles inscrevendo a quantia de 1800.000$00 e imitando pelo seu punho a assinatura de PT.

Mais tarde, com os mesmos cheques, a arguida procurou levantar as quantias por eles tituladas, criando a convicção de que se tratavam de cheques emitidos, preenchidos e assinados pela sua titular, só não conseguindo levantar tais quantias por a conta sacada não se encontrar suficientemente provisionada e só não dando igual destino aos restantes cheques de que se apoderou por os mesmos terem sido entretanto cancelados por PT.

A arguida agiu sempre de forma deliberada livre e consciente, bem sabendo serem os seus comportamentos proibidos e punidos por lei, com o que se conformou.

A arguida não desempenha actividade profissional remunerada de forma continua, trabalhando esporadicamente na actividade imobiliária .

Tem 3 filhos, paga renda de casa no valor de 70.000$00 e aluga quartos auferindo nesta actividade 60.000$00 mensais.

A arguida pagou posteriormente aos ofendidos, as seguintes quantias:

- À HRMR pagou 80.000$00;

- A AMDRV pagou 19.000$00;

- A AMC pagou 150.000$00

- À rent-a-car foi pago, posteriormente pelo companheiro da arguida a quantia de 428.500$00.

A arguida foi condenada nos seguintes processos, todos eles já transitados em julgado, nos seguintes crimes e penas:

- No processo comum Colectivo n.º 299/98 OJAPTM do 1º juízo do Tribunal Judicial da comarca de Portimão, foi a arguida condenada em 12.12.2000, por factos cometidos no 1º semestre de 1998, pela pratica de um crime de furto simples, p.p. no art.º 203º n.º 1 do Código Penal na pena de 90 dias de multa á taxa diária de 1.000$00, pela pratica de um crime de burla simples, p.p. pelo art.º 217º n.º 1 do Código Penal, na pena de 120 dias de multa á taxa diária de 1.000$00 e pela pratica de um crime de burla qualificada p.p. pelo art.º 217º n.º 1 e 218º n.º 1 do Código Penal, na pena de 180 dias de multa á taxa diária de 1.000$00.

- No processo, comum singular n.º 266/97.1 JAPTM do 1º Juízo criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Portimão, foi a arguida condenada em 23.05.2002, por factos cometidos em 22 de Maio de 1997, pela pratica de um crime de falsificação agravada p.p. pelo art.º 256º n.º 1 al. a ) e um crime de burla pp. art.º 217º n.º 1 do Código Penal nas penas de, respectivamente, 150 e 80 dias de multa á taxa diária de 3 Euros, e

- No processo comum singular n.º 396/99.5JAPTM do 2º juízo criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Portimão, foi a arguida condenada em 23.10.2000, por factos cometidos em dia não apurado do mês de Julho de 1999, pela pratica de um crime de falsificação de documento, p.p. pelo art.º 256º n.º 1 a) do Código Penal, na pena de 150 dias de multa á taxa diária de 600$00.

Não se provou:

Que fosse a arguida que directamente tivesse uma dívida para com a ofendida Rent-A-Car L em virtude de um prolongado aluguer de uma viatura automóvel que a arguida utilizasse nas suas deslocações;

Que desta vez a SIRL (vide último parágrafo da acusação - fls. 6), ofereceu resistência aos intentos da arguida , acabando todavia , por ceder ás suas pressões ao ser ameaçada pela arguida que , se não o fizesse , esta contaria tudo aos pais e namorado da SIRL e que o pedido da indemnização que a arguida havia formulado no seu processo de divórcio ficaria bloqueado; que após prolongada discussão a SIRL tenha de novo cedido ás pressões da arguida (vide fls. 7 da acusação - parágrafo 6º)

O art.º 7º da Contestação, ou seja que a demandante se tenha antes certificado que nessa conta dispunha apenas de 20.000$00 , tendo inclusive perguntado a um funcionário da C.G.D. se os seus cheques serviam só para movimentar a sua conta á ordem, ao que lhe foi respondido afirmativamente; que tenha sido transferida a quantia de 300.000$00 da conta a prazo da demandante identificada no art.º 9º para a conta á ordem em virtude de ter sido apresentado a pagamento o 1º cheque no valor de 300.000$00, sem que esta tivesse sido contactada ou lhe tivesse sido exigida qualquer declaração, uma vez que tal transferência, não foi solicitada pela arguida através de nenhuma carta, tendo assim sido feita tal transferência sem autorização da demandante, tendo agido o funcionário da Caixa Geral de Depósitos da agência de Portimão de forma irresponsável, tendo sido por causa destes factos que a arguida preencheu o segundo cheque, este no valor de 400.000$00; que a demandante tenha tido de recorrer a empréstimos de familiares para poder pagar parte do preço da aquisição do terreno no dia 14 de Fevereiro de 2000, data da celebração da respectiva escritura de compra e venda; que a demandante se encontrava á data de tais factos grávida de um mês, pelo que ficou desesperada ao ver-se sem dinheiro, longe de casa e sem emprego, valendo-se uma vez mais de ajuda de familiares, a quem teve de recorrer e em casa de quem permaneceu até ao nascimento de seu filho. Não se provaram os danos não patrimoniais contidos nos pedidos de fls. 266 e 264.


II

2.1. Inconformada, a arguida recorreu para este Tribunal, pedindo a revogação do acórdão que a condenou e sua substituição por outro que a absolva da prática dos dois primeiros ilícitos supra, e a condene pela prática, na forma tentada, de um crime de burla simples.

Ou caso assim não se entenda,

Seja proferida outra decisão, em substituição da recorrida, que a condene pela prática de 2 crimes de burla simples e pela prática, na forma tentada, de 1 crime de burla na sua forma simples.

E sempre seja proferida sentença que a condene, após cúmulo jurídico de todas as penas em concurso, em pena de prisão única nunca superior a 2 meses de prisão suspensa na sua execução cumulada com a pena de multa próxima da efectivamente aplicada.

Para tanto concluiu na sua motivação:

1. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão de fls. proferido nos autos à margem identificados, no qual o Tribunal " a quo " condenou a arguida aqui recorrente pela prática de um crime de burla qualificada na pena de três anos de prisão (artigos 217º, 218º,nº 2, al. a) do C.P), um crime de burla qualificada na pena de dois anos e quatro meses prisão (art.º 217º e 218º,nº 2, al. c) do CP) e um crime de burla qualificada na forma tentada, na pena de sete meses de prisão (art.º 217º, 218º,nº1, 22º e 23º, do C.P) e em cúmulo jurídico destas penas com a dos demais crimes de que vem acusada e das que foi condenada em três outros processos, na pena única de quatro anos e setecentos e cinquenta dias de multa.

2. Ocorre que, quanto ao crime de burla qualificada, p. e. p pelos art.ºs 217º e 218º, nº 2 al. a) do C.P., (a que corresponde os factos relativamente à ofendida SIRL) não se verificam os pressupostos necessários ao tipo legal, in casu mormente a existência da "astúcia" relativamente ao erro ou engano sobre a realidade transmitida pela arguida' à ofendida, e que terão determinado esta última (segundo o douto acórdão) a proceder à entrega dos cheques.

3. Por outro lado, e caso se entenda que tal erro, nos moldes em que é legalmente configurado, existiu em aferir, se do ponto de vista do quantum do prejuízo, a conduta da arguida caí na previsão da burla simples ou da burla agravada.

4. Quanto ao primeiro dos requisitos apontados, direito pode efectivamente reclamar que não sejam os próprios indivíduos a elevar as cotas de risco em termos que ultrapassem o limiar de que a lei, de forma abstracta e típica, faz depender a sua intervenção, pelo que face aos princípios de subsidiariedade e da proporcionalidade a ofendida colocou-se fora do âmbito de tutela da norma penal incriminatória.

5. De facto, o erro da vítima há-de, não só, medir-se pela medida da "dúvida concreta" e da "dúvida difusa" como pela assumpção voluntária de atitudes de não agir ou alargar o âmbito da informação disponível, aceitando ou recusando os riscos inerentes à sua conduta. Se a vítima não assume nenhuma destas atitudes alternativas, embora tal lhe fosse possível ou exigível, então falha a sua carência de tutela "e por isso falha o aplicabilidade do elemento da factualidade típica do erro, com a consequência de ter que se excluir, pelo menos, a condenação por burla consumada".

6. É imprescindível a factualização expressa e inequívoca das práticas integradoras da indução em erro ou da força do engano, pois que só a partir da concretização dessas práticas e das suas cambiantes envolventes é licito e possível exprimir um juízo valorativo e seguro acerca da vulnerabilidade do sujeito passivo da infracção e consequentemente da "eficácia frutuosa da relação entre os actos configurativos da astúcia delineada e do erro ou engano engendrados e a cedência do lesado na adopção de atitudes a ele ou a outrem prejudiciais". Em suma "é necessário que facticialmente se objective de que unicamente a insídia do agente foi determinante do comportamento da vítima".

7. No caso em apreço, saliente-se que a primeira abordagem da arguida à ofendida para que esta lhe entregue o primeiro cheque é efectuada sob a alegação de uma dívida de dez contos que não logrou apurar-se se existia ou não, e como tal não logrou saber-se se a arguida aqui recorrente induziu a ofendida em erro quanto a esta circunstância. Aliás, bem pelo contrário, no demais conteúdo da sentença recorrida infere-se que a arguida tinha dívidas diversas, algumas delas contraídas em datas anteriores à apropriação dos cheques e com os quais visou solver algumas delas.

8. Dos demais factos que a esta ofendida tangem refere-se na douta sentença que a arguida "chorando" acabou por convencer aquela a dirigir-se ao banco para comprar cheques e que, posteriormente "acabou por convencê-la" a entregar-lhe mais quatro cheques, falando-lhe de outras pequenas dívidas que mantinha. Nos dias posteriores sucedem-se circunstâncias recorrentes de pedidos de cheques da arguida à ofendida sob a alegação de engano no preenchimento dos que lhe eram entregues, que segundo a douta sentença o foram por via de simulações de choro e "insistências".

9. Este convencimento e insistência, matizado com choros, não são, de todo, susceptíveis de enformar o conceito de factos astuciosamente provocados, não tendo a virtualidade de subsumir o circunstancialismo fáctico à norma jurídica aplicada.

10. Assim, porque a conduta da ofendida no que à entrega dos títulos, não foi determinada por qualquer circunstância enganosa, com virtualidade de revestir a natureza de "erro ou engano astuciosamente provocados", e como tal penalmente relevante, e porque era exigível à ofendida, face à sucessão de acontecimentos recorrentes que simplesmente negasse a entrega de outros títulos, deveria ter-se decidido, pela absolvição da arguida no que a estes factos concretos tange.

11. Mas, caso assim não se entendesse, sempre a conduta da arguida deveria ter sido subsumida, tão somente à previsão do artigo 217.º do C.P., uma vez que não obstante o número de títulos utilizados apenas um, no montante de sessenta e cinco mil escudos, logrou ser pago, sendo esta a exacta medida do prejuízo patrimonial da ofendida, tal como aliás consta da douta sentença. Ora a previsão do artigo 218.º, n.º 2, al. a) apenas é aplicada quando o valor do prejuízo do ofendido ascende a montante superior a duzentas unidades de conta (art. 202º, al. b) do CP.).

12. E não valerá aqui o argumento que a subsunção deste factos à previsão da burla agravada deriva do valor titulado pela globalidade dos cheques, uma vez que a medida do prejuízo é a do efectivo empobrecimento da ofendida e não o que hipoteticamente se verificaria se os cheques lograssem obter provisão.

13. Assim sendo, e na hipótese de se considerar que, quanto a este factualismo específico a arguida cometeu, de facto, um crime de burla, tal crime é-o na forma simples e não na forma agravado, e em cuja moldura abstracta foi encontrada a dosimetria da pena.

14. Entende assim a recorrente que o Tribunal "a quo" ao decidir como n decidiu fez errada interpretação do direito e incorrecta subsunção à norma, violando o disposto nos artigos 217º e 218º, nº 2 al. a) do C.P.

15. Quanto ao crime de burla qualificada, p. e. p pelos artºs 217º e 218º, nº 2 al. c) do C.P., (a que corresponde os factos relativamente à ofendida PT), há que, de igual forma, apreciar detidamente se estão reunidos os pressupostos ao preenchimento "in casu" do tipo de ilícito, sendo certo além do mais, não ser bastante a verificação do erro ou engano, exigindo-se que os mesmos tenham sido provocados astuciosamente, como inequivocamente resulta do texto legal do artigo 217º, n.º 1 do C.P. "... erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou ... ".

16. Considerando a matéria de facto que vem provado é a mesma - em nosso entender e salvo o devido respeito por opinião diversa - insuficiente para que se possa falar em "astúcia", não tendo existido por parte da arguida qualquer conduta ardilosa ou actividade sagaz, tendo esta se limitado a formular solicitação à ofendida PT, para tanto apresentando justificação (que se desconhece se efectivamente seria ou não falsa), que aquela colheu como boa, não averiguado e nem tão pouco se acautelado, como sempre o poderia ter feito. Pelo que, e por ausência de todos os elementos típicos do tipo legal de burla deveria ter sido a arguida absolvida da prática deste crime.

17. Acresce que inexiste ainda um outro requisito do tipo legal consubstanciado num efectivo prejuízo no património do ofendido, já que o crime de burla é um crime de dano - "...determinar outrem à prática de factos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial".

18. Ora, o prejuízo sofrido pela ofendida PT - no valor de 700.00û$00 - não decorre dos factos aqui em apreço mas antes e tão só com os que determinaram a condenação da arguida pela prática de um crime de falsificação de documento p.p. pelo artigo 256º nº 1 al. a ) do CP., mais concretamente com duas ordens de transferência que terão sido subscritas e assinadas pela arguida. Pelo que sempre e com base na inexistência de qualquer prejuízo conexionado com os factos que determinaram a sua condenação por um crime de burla, deveria ter sido proferido douta decisão absolvendo-se a arguida da sua prática.

19. Mas mesmo que assim não se entendesse, a arguida foi condenada pela prática de um crime de burla qualificada, por aplicação da circunstância qualificativa que vem prevista na alínea c) do nº 2 do artigo 218º do C.P., a saber "a pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica ".

20. Ora antes de mais se dirá que não se logrou provar matéria fáctica de onda se possa extrair que, em consequência dos factos em apreço, tenha a ofendido PT ficado em situação económica difícil, sendo o certo que "a situação económica difícil não é uma situação que se possa conceitualizar abstractamente, para depois a aplicar ao caso concreto. Ela há-de ser, antes, avaliada caso a caso, em função da particular situação económica do lesado".

21. Antes resulta e se depreende da matéria de facto quem vem dada como não provada que a ofendida PT terá, ainda assim e inclusivamente, logrado outorgar a escritura de compra e venda do lote de termino. Acresce que não basta a verificação de prejuízo, ainda que levado, para se poder falar de situação económica difícil, pois que, tal circunstância é já parte integrante do tipo legal do crime de burla. Pelo que sempre e a condenar-se a arguida, deveria tê-lo sido feito pela prática de um crime de burla na sua forma simples e não qualificada.

22. Entende assim a recorrente que o Tribunal "a quo" ao decidir como o decidiu fez errada interpretação do direito e incorrecta subsunção à norma, violando o disposto nos artigos 217º e 218º, n.º 2, al. c) do CP.

23. Quanto ao crime de burla qualificada, na forma tentada p. e. p pelos arts 217.º e 218.º, n.º 1, 22.º e 23.º do CP, (a que corresponde os factos relativamente dos dois cheques pertença da PT): entende-se, salvo o devido respeito, que andou mal o douto Colectivo ao condenar a arguida por um crime de burla qualificada na forma tentada, pois que, como decorre do texto legal respectivo que afasta a punibilidade da tentativa.

24. Entende assim a recorrente que o Tribunal "a quo" ao decidir como o decidiu fez errada interpretação do direito e incorrecta subsunção à norma, violando o disposto nos art.ºs 217.º e 218.º, n.º 1, 22.º e 23.º do CP.

25. Em consonância com todo o acima exposto, nunca arguida poderia ter sido condenada pela prática de um crime de burla qualificada na pena de três anos de prisão (artigos 217.º, 218.º, n.º 2, al. a) do C.P) - quanto aos factos referidos em II/A - pela prática de um crime de burla qualificada na pena de dois anos e quatro meses de prisão (art.ºs 217.º e 218.º, n.º 2, al. c) do C.P.) - quanto aos factos referidos em II/B e na prática de um crime de burla qualificada na forma tentada, na pena de sete meses de prisão (art.ºs 217.º, 218.º, n.º 1, 22.º e 23.º, do C.P) - quanto aos factos referidos em II/C- pelo que, salvo do devido respeito, enferma a dosimetria do cúmulo jurídico destas penas com a dos demais crimes de que vem acusada e das que foi condenada em três outros processo, de erro, por excesso.

26. Efectivamente e de acordo com as considerações tecidas supra, deveria a arguida ter sido absolvida da prática destas infracções em concreto.

27. Caso assim não se entendesse sempre a arguida deveria ter sido condenada, quanto ao primeiro dos referido ilícitos, na prática de um crime de burla p. e p. no art. 217.º, n.º 1 do CP., numa pena de multa, não superior a cento e trinta dias, à taxa diária de cinco euros; quanto ao segundo na prática de um crime de burla simples (por inexistência do elementos qualificativo), p. e p. no mesmo dispositivo legal, numa pena de multa, não superior a duzentos dias de multa, à taxa diária de cinco euros; e finalmente quanto ao último dos ilícitos elencados na prática de um crime de burla na forma tentada, p. e p. nos art. 217.º, com referência os nºs 22.º e 23.º, todos do CP., na pena de dois meses de prisão, suspensa na sua execução.

28. E efectuado o cúmulo jurídico de todas as penas em concurso deveria a arguida ter sido condenada em pena de prisão única nunca superior a dois meses se prisão suspensa na sua execução cumulada com a pena de multa próxima da efectivamente aplicada.

2.2. Respondeu o Ministério Público que se pronunciou pelo improvimento do recurso e confirmação da decisão recorrida, concluindo:

1ª. A arguida/recorrente, foi julgada pelo Tribunal Colectivo e condenada pela prática, além de outros, de um crime de burla qualificada previsto e punível pelos artigos 217.º e 218.º n.º 2, al. a) do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, um crime de burla qualificada previsto e punível pelos artigos 217.º e 218.º n.º 2, al. c) do Código Penal, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão e um crime de burla qualificada na forma tentada previsto e punível pelos artigos 217.º e 218.º n.º 1, 22.4 e 23.4 do Código Penal, na pena 7 meses de prisão;

2ª. Da matéria de facto provada resulta que a arguida mentiu às ofendidas de uma forma hábil, primeiro convencendo-as, por um lado, de que os cheques que lhes pedia seriam utilizados para pagar pequenas dívidas e, por outro lado, que aguardava o desfecho do processo do seu divórcio para receber 25.000 contos;

3ª. Assim, a arguida actuou de forma hábil e ardilosa, visando criar nas ofendidas a convicção de que não tinham que ter especiais precauções, já que estavam em causa pequenas quantias, e que a arguida viria a ter largas possibilidades de lhas pagar;

4ª. E num segundo e terceiro momentos a arguida, para fazer render ainda mais os efeitos do engano inicial, voltou a ludibriar as ofendidas com a falsa invocação de que se tinha enganado a preencher cheques, para que elas lhe entregassem outros, na convicção de que eram para substituição dos primeiros;

5ª. Tudo isso a arguida sabia que era falso, e encenava tais situações com a habilidade e fazendo uso da experiência adquirida em vezes anteriores, pois que em muitos aspectos a forma ardilosa como a arguida enganou a ofendida PT foi idêntica àquela como tinha antes enganado a ofendida SIRL;

6ª. Assim aconteceu, designadamente, no que se reporta às "histórias do engano no preenchimento de cheques para obter outros que falsamente dizia destinar à substituição dos anteriores "inutilizados;

7ª. Só em consequência de serem dessa forma enganadas pela arguida, as ofendidas atenderam os pedidos de cheques que ela lhes fez;

8ª. No caso dos cheques da ofendida SIRL, além do prejuízo de 65.000$00 que a ofendida sofreu, têm de considerar-se também os prejuízos sofridos pelas pessoas a quem a arguida depois entregou os cheques, o que tudo ascende, como consta do douto acórdão recorrido, a 3.977.500$00, valor consideravelmente elevado para efeitos do disposto na al. a) do n.º 2 do artigo 218.º do Código Penal;

9ª. E quanto à ofendida PT, consta provado no douto acórdão recorrido que a arguida a deixou privada da quase totalidade das suas poupanças e em sérias dificuldades económicas, impossibilitada de observar os compromissos anteriormente assumidos por si, situação que deve caracterizar-se como difícil situação económica para efeitos do disposto na al. c) do n.º 2 do artigo 218.º do Código Penal;

10ª. Diferentemente do que sucedia na vigência do artigo 314.º. al. c) do Código Penal de 1982, actualmente, nos termos dos artigos 218.º n.º 2, al. a) e n.º 3 e 206.º do Código Penal de 1995, burla é agravada se "o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado, e em caso de reparação do prejuízo pelo agente, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início do julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada;

11ª. Por isso, a reparação do prejuízo causado com o cometimento do crime de burla agravada já não tem a virtualidade de desqualificar o crime, pelo que agora relativamente ao tipo legal de crime de burla agravada em caso de não consumação, o facto é punível como burla agravada na forma tentada e já não como burla simples na forma tentada;

12ª. Assim, no douto acórdão recorrido fez-se correcta qualificação jurídica dos factos praticados pela arguida, na medida em que se julgaram esses factos integradores dos crimes por que foi condenada, pelo que foi feita correcta aplicação e interpretação das normas legais aplicadas, e não foram violadas as normas como tais indicadas pela arguida, nem quaisquer outras.


III

Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público teve vista dos autos.

Colhidos os vistos, teve lugar audiência. Nela, a representante do Ministério Público remeteu para a resposta à motivação quanto à impugnação da qualificação jurídica e à situação económica difícil em que ficou a ofendida e suscitou a questão da unificação da entrega dos 10 cheques numa única conduta, num único crime. A defesa manteve a posição assumida na motivação.

Cumpre, pois, conhecer e decidir.


IV

E conhecendo.

4.1. A recorrente começa por discordar da qualificação jurídica dos factos efectuada na decisão recorrida, pretendendo que só cometeu 1 crime tentado de burla simples, ou, quando muito, 2 crimes de burla simples consumada e 1 crime de burla tentado.

4.1.1. Quanto aos factos relativos à ofendida SIRL, sustenta a recorrente, não se verificar a "astúcia" exigida pelo tipo referente ao erro ou engano sobre a realidade transmitida pela arguida à ofendida, e determinaram esta última a proceder à entrega dos cheques (conclusão 2.ª), antes a vítima assumiu voluntariamente a atitude de não agir ou alargar o âmbito da informação disponível, aceitando os riscos inerentes à sua conduta pelo que falha a aplicabilidade do elemento da factualidade típica do erro (conclusões 3ª, 4ª e 5.ª), sendo que não está feita a factualização expressa e inequívoca das práticas integradoras da indução em erro ou da força do engano (conclusão 6.ª).

A arguida começou por pedir à ofendida para que lhe entregar um cheque, a alegação de uma dívida de 10 contos, que não se apurou se existia e, portanto, se a arguida induziu a ofendida em erro, inferindo-se da sentença que a arguida tinha dívidas diversas, algumas contraídas em datas anteriores à apropriação dos cheques e com os quais visou solver algumas delas (conclusão 7.ª).

Quanto à entrega dos títulos, ela não foi determinada por "erro ou engano astuciosamente provocados" porque era exigível à ofendida, face aos antecedentes que a negasse (conclusão 10.ª). A circunstância da arguida "chorando" acabar por convencer a ofendida a dirigir-se ao banco comprar cheques e "acabou por convencê-la" a entregar-lhe mais 4 cheques, falando-lhe de outras pequenas dívidas que mantinha, e de posteriormente sucederem recorrentes pedidos de cheques da arguida à ofendida sob a alegação de engano no preenchimento dos anteriores (conclusão 8.ª), não é susceptível de enformar o conceito de factos astuciosamente provocados (conclusão 9.ª).

Vejamos.

Foi a recorrente condenada como autora do crime de burla qualificada dos art.ºs 217.º e 218.º n.º 2, al. a) do C. Penal, pelos factos relativos á ofendida SIRL e aos cheques sua pertença que aquela utilizou.

Dispõe o art. 217.º burla que:

«1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

2. A tentativa e punível.

3. O procedimento criminal depende de queixa.

4. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 206º e na alínea a) do artigo 207º.»

São, assim, elementos do crime de burla:

intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;

por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;

determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial (Acs. do STJ de 8.2.01, proc n.º 2745/01-5 e de 18.1.91, Acs STJ IX, 1, 218, do mesmo Relator e Ac. de 18-10-2001, 2362/01-5, também subscrito pelo Relator do presente).

O crime de burla apresenta-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar (Ac. de 19-12-1991, BMVJ 412-234).

Os elementos que preenchem e informam a tipicidade do crime de burla são o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, com intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo (Ac. de 11-10-2001, proc. n.º 1295/01-5, Acs STJ ano IX t 3 pág 192).

Vejamos, agora, o elemento questionado pela recorrente: o erro ou o engano.

Na 1.ª Comissão Revisora do C. Penal referiu «ao lado do erro coloca-se o engano. Mas também não basta qualquer erro; é necessário que ele tenha sido provocado ou aproveitado astuciosamente» (BMVJ 287-41)

«A mera mentira verbal pode, pois, dada a redacção deste artigo, ser meio do induzimento em erro ou do engano, excepto se a mentira for tal que a mais elementar prudência aconselha a que não seja acreditada (salvo se se provar que a vítima, por completa ignorância, ou outro motivo relevante do agente - uma deficiência passageira do raciocínio ou da atenção, resultante, por exemplo, de abalo moral recente - não estava em condições de se precaver)» (Simas Santos e Leal-Henriques, C. Penal Anotado, II, págs 837-89

No Comentário Conimbricence (A. Almeida Costa, II, pág. 301) referem-se a propósito deste elemento três modalidades: «quando o agente provoca o erro de outrem, descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas (sob a forma oral ou escrita), uma falsa representação da realidade. A segunda observa-se na hipótese de o erro ser ocasionado, não expressis verbis, mas através de actos concludentes, i.e., de condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo - a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da actividade -, mostram-se adequados a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro. Em terceiro lugar, refere-se a burla por omissão: ao contrário do que sucede nas situações anteriores, o agente não provoca, agora, o engano do sujeito passivo, limitando-se a aproveitar o estado de erro em que ele já se encontra»

Também sobre este elemento se tem pronunciado de forma pacífica este Supremo Tribunal de Justiça em diversos arestos, cuja doutrina se mantém inteiramente válida.

Ao lado do erro como meio de execução da burla coloca-se também o engano. É necessário que o erro ou engano tenham sido provocados astuciosamente pelo agente da infracção; isto é, usando de um meio engenhoso para se enganar ou induzir em erro. Trata-se de uma exigência que acresce a um dolo que já de per si é específico, pois que se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo (Ac. do STJ de 02-07-1992, proc. n.º 42779).

(1) O burlado nas hipóteses de erro, como de engano, só age contra o seu património ou de terceiros por que tem um falso conhecimento da realidade. simplesmente esse seu falso convencimento nasce, no caso do mero engano, da mentira que lhe é dada a conhecer pelo burlão. (2) A vítima, ao ser induzida em erro toma uma coisa pela outra, pertencendo ao agente a iniciativa de causar o erro. Na manutenção do erro a vítima desconhece a realidade, o agente perante o erro já existente, causa a sua persistência, prolongando-o, ao impedir, com a sua conduta astuciosa ou omissiva do dever de informar, que a vítima se liberte dele. (3) O segundo momento do crime de burla é a prática de actos que causem prejuízos patrimoniais. (4) Tem de existir uma relação entre os meios empregues e o erro e o engano, e entre estes e os actos que vão directamente defraudar o património de terceiros ou do burlado. Mas se o engano é mantido ou produzido e se lhe segue o enriquecimento ilegítimo no sentido civil em prejuízo da vítima, não há lugar a indagações sobre a idoneidade do meio empregue, considerado abstractamente. Da mesma forma não importa apurar se esse meio era suficiente para enganar ou fazer cair em erro o homem médio suposto pela ordem jurídica, uma vez que uma eventual culpa da vítima não pode constituir uma desculpa para o agente (Ac. de 19-12-1991, BMVJ 412-234).

(2) A astúcia posta pelo burlão tanto pode consistir na invocação de um facto falso, como na falsa qualidade, como na falsificação da escrita, ou outra qualquer. Interessa, apenas, que os factos invocados dêem a uma falsidade a aparência de verdade, ou, como diz a lei alemã, o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros. (3) O burlão, actuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar actos em prejuízo do seu património ou de terceiro. É indispensável, assim, que os actos além de astuciosos, sejam aptos a enganar, não se limitando o burlão a mentir, mentindo com engenho e habilidade, revelando uma maior intensidade no dolo e uma maior susceptibilidade dos outros serem convencidos. (4) Longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, a sagacidade do agente comporta uma regra de "economia de esforço", limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. (5) A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado (Ac. de 18-10-2001, 2362/01-5, também subscrito pelo Relator do presente).

Finalmente, (4) por erro deve entender-se a falsa (ou a nenhuma) representação da realidade concreta, a funcionar como vício influenciador do consentimento ou da aquiescência da vítima. (5) O engano a que o art. 217.º, n.º 1, do CP, faz referência, continua a equivaler à mera mentira (a uma mentira pré-ordenada). (6) Para a comprovação do crime de burla ganha vulto a imprescindibilidade de uma factualização expressa e inequívoca das práticas integradoras da indução em erro ou da força do engano, pois que só a partir da concretização dessas práticas e dos seus cambiantes envolventes, é lícito e possível exprimir um juízo válido e seguro acerca da vulnerabilidade do sujeito passivo da infracção e, consequentemente, da eficácia frutuosa da relação entre os actos configuradores da astúcia delineada e do erro ou engano engendrados e a cedência do lesado na adopção de atitudes a ele ou a outrem prejudiciais. (7) - Por outras palavras, é necessário que facticialmente se objective a componente subjectiva de que unicamente a insídia do agente foi determinante do comportamento da vítima. (8) Assim, constando ainda da matéria da facto provada, que na posse do indicado vale de correio o arguido dirigiu-se a uma agência de um banco onde o entregou para depósito numa sua conta bancária, tendo-lhe sido creditada a correspondente quantia, esta factualidade não autoriza o enquadramento jurídico-criminal da correspondente actuação no âmbito previsivo do crime de burla. (9) Com efeito, se a indução em erro ou engano está naturalmente afastada quanto à beneficiária titular do vale do correio (e é ela a autêntica e directa lesada deste processo), também por inverificado se tem de ter aquele requisito no concernente à entidade bancária (ou melhor, ao funcionário desta), que aceitou o vale adulterado pelo arguido e o depositou na conta deste, ausente qualquer dado indicativo ou inculcador de que o procedimento houvesse sido determinado por qualquer actuação enganadora desenvolvida pelo dito arguido e conducente àquela aceitação e àquele depósito. (10) E uma eventual passividade ou falta de cuidado da entidade bancária (ou do funcionário seu), na confirmação da autenticidade da assinatura aposta no vale não é sinónimo de aquiescência motivada por acção daquele tipo. (Ac. de 11-10-2001, proc. n.º 1295/01-5, Acs STJ ano IX t. 3 pág. 192 Cons. Oliveira Guimarães).

Retenhamos no caso presente que o erro ou engano em que a arguida induza (ou mantém) a ofendida não envolve necessariamente a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, limitando-se o burlão, numa "economia de esforço", ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima. É, pois, tomando em consideração as características do concreto burlado que se afere a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente.

Ora, no caso sujeito, verificou-se toda uma aproximação, a criação de relações com a ofendida que permitiu que de forma simples a arguida tenha enganado a ofendida com recurso a meios simples (uma história comovente, grandes protestos de seriedade e amizade, desespero e choro, insistência e garantia de que a arguida iria receber muito dinheiro) para convencer a ofendida a entregar os cheques, ela que não usava cheques para si.

Não tem, pois, base de apoio a tese da arguida que a "vítima assumiu voluntariamente a atitude de não agir ou alargar o âmbito da informação disponível, aceitando os riscos inerentes à sua conduta". Antes se deve afirmar perante a matéria de facto provada que a arguida usou meios adequados e eficazes ao convencimento daquela ofendida, cujas características conhecia.

4.1.2. Subsidiariamente, em relação à mesma ofendida, sustenta a recorrente que deveria ser punida somente pelo crime de burla simples, pois sendo vários os títulos utilizados apenas um, no montante de 65.000$00, foi pago, sendo só este o prejuízo patrimonial da ofendida, quando a previsão do art. 218.º, n.º 2, al. a) apenas se aplica quando o valor do prejuízo do ofendido é superior a 200 unidades de conta (conclusão 11.ª), pois não releva o valor titulado pela globalidade dos cheques (conclusões 12.ª e 13.ª).

Sucede, porém, que o n.º 1 do art. 417.º transcrito não se refere somente ao prejuízo causado ao burlado, mas também ao prejuízo patrimonial causado a outra pessoa, pela prática dos actos praticados, por meio do erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocado pelo burlão.

No caso em análise, a ofendida SIRL, sofreu um prejuízo de 65.000$00, mas da prática dos actos determinados pela conduta censurável da arguida, resultaram também prejuízos para as pessoas a quem a arguida depois entregou os cheques, o que ascende, como consta da decisão recorrida, a 3.977.500$00, valor consideravelmente elevado para efeitos do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 218.º do C. Penal.

Não assiste, pois, razão à recorrente quando pretende que o prejuízo causado pela prática dos actos que determinou foi só de 65.000$00, não ficando em dúvida a qualificação jurídica operada: burla agravada nos termos da falada al. a).

É que se não se deve esquecer, por outro lado, que se verificou unidade de conduta, responsabilizando os cheques entregues a ofendida perante terceiros.

4.1.3. No que se refere ao crime de burla qualificada dos art.ºs 217.º e 218.º, n.º 2, al. c) do C. Penal (factos relativos à ofendida PT), suscita igualmente a recorrente a questão da verificação do erro ou engano, nos mesmos termos em que o fez quanto ao ponto anterior (conclusões 15.ª e 16.ª).

Mas também aqui são aplicáveis, à luz da factualidade apurada, as considerações avançadas quanto à burla em que é ofendida SIRL.

Mas pretende a recorrente que inexiste ainda um outro requisito do tipo legal consubstanciado num efectivo prejuízo no património do ofendido (conclusão 17.ª), já o prejuízo sofrido pela ofendida PT - no valor de 700.000$00 - não decorre dos factos em apreciação mas da falsificação de documento - duas ordens de transferência que terão sido subscritas e assinadas pela arguida, pelo que deveria ter sido absolvida daquele crime (conclusão 18.ª).

Sucede, porém, que a circunstância de frequentemente a burla ser cometida com recurso também a falsificação, ou falsificações, isso não significa que se verifique um só crime.

Aliás, este Tribunal fixou jurisprudência no sentido de que «no caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 313.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes» (Ac. uniformizador de jurisprudência de 19.2.92, DR IS-A de 9-4-92)

Deste modo, não inviabiliza a atribuição do prejuízo à burla, quando a falsificação surge como crime meio do crime final da burla.

Pretende, depois, a recorrente que, diferentemente do que decidiu o Tribunal a quo, a pessoa prejudicada não ficou em difícil situação económica (conclusão 19.ª), pois não se provou matéria de facto de onde se possa extrair essa conclusão (conclusão 20.ª), "antes resulta e se depreende da matéria de facto quem vem dada como não provada que a ofendida PT terá, ainda assim e inclusivamente, logrado outorgar a escritura de compra e venda do lote de termino" (conclusão 21.ª).

Desde logo, importa notar que a matéria de facto não provada não se pode deduzir, nos termos pretendidos pela recorrente, o que pode sim ter lugar, mas a partir dos factos provados.

Depois, como é jurisprudência pacífica do STJ, as conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que escapam à censura do tribunal de revista, salvo se as instâncias ao extrair aquelas conclusões ou ilações não se limitam a desenvolver a matéria de facto provada, e a alteraram (Cfr. Acs de 30.11.00, proc. n.º 2808/00, de 22.2.01, proc. n.º 4129/00, de 5.4.01, proc. n.º 961/01, de 11.10.01, proc. n.º 2363/01, de 18.10.01, proc. n.º 2147/01, de 16.5.02, proc. n.º 1384/02 e de 2.5.02, proc. n.º 357/02 do mesmo Relator).

Ora, a conclusão do Tribunal recorrido de que a prejudicada ficou em situação económica difícil, mostra-se tirada na sequência dos factos instrumentais que foram dados como provados, em nada os alterando.

Com efeito, está provado que: "realizadas as transferências, apenas por convicção que as cartas haviam sido escritas e assinadas pela titular das contas, a arguida preencheu e levantou dois cheques titulando tais valores, fazendo suas tais quantias, não ignorando que, por força desses factos, colocava PT em sérias dificuldades económicas, desapossada das suas poupanças e incapaz de honrar compromissos anteriormente assumidos".

Se o prejuízo causado se traduziu em desapossar a pessoa prejudicada das suas poupanças e assim a tornar incapaz de honrar compromissos anteriormente assumidos, nenhuma dúvida resta de que aquela ficou, por tal, em difícil situação económica (cfr. neste sentido o Ac. do STJ de 27-6-1996, Acs do STJ pág. 202).

4.1.4. Quanto ao crime de burla qualificada, na forma tentada dos arts 217.º e 218.º, n.º 1, 22.º e 23.º do C. Penal (factos relativos a 2 cheques pertença da ofendida PT), pretende a recorrente que decorre do texto legal respectivo a não punibilidade da tentativa (conclusões 23.ª e 24.ª).

Já decidiu este Supremo Tribunal de Justiça que «(1) O crime de burla agravada, previsto e punível pelo art. 314.º al. c) do C Penal de 1982, não admite a figura da tentativa. (2) Para que o agente do crime não repara o valor do prejuízo, necessário se torna que este já se tenha verificado, e, consequentemente, que o crime já se haja consumado. (3) A admitir-se a configuração de um crime de burla agravada tentando, com referência ao art. 314.º al. c) do C Penal de 1982, estar-se-ia perante uma situação de desvantagem ou tratamento desigual - que o legislador não terá querido certamente - entre o autor de tentativa e o autor de crime consumado: este último desfrutaria da possibilidade de vir a reparar o prejuízo antes de instaurado o procedimento criminal, deixando o crime de ser qualificado ou agravado, enquanto o autor de tentativa jamais poderia usufruir de tal possibilidade, por lhe ser impossível reparar um prejuízo que, concretamente, não chegou a verificar-se» (Ac. 14.12.88, BMVJ 382-314).

Que «(1) A tentativa de crime de burla agravada, por o valor do prejuízo ser consideravelmente elevado, do art. 314.°, al. c) do C. Penal de 1982 é punida como tentativa de burla simples. (2) Isto por duas razões: em primeiro lugar, porque nesse caso não se verifica prejuízo e, em segundo lugar, porque a admitir-se tal punição, o autor da tentativa ficaria numa situação de desvantagem em relação ao autor do crime consumado, porque nunca teria a possibilidade de reparar esse prejuízo antes da instauração do procedimento criminal» (Ac. de 14-6-1995, Acs STJ ano III pág. 235); e que «o crime de burla agravada, p.p. pelo art. 314.º, al. c), do CP de 1982, não admite a figura da tentativa, porquanto a reparação referida naquela disposição incriminatória só pode ter lugar na hipótese do crime se ter consumado, ou seja, quando haja o efectivo prejuízo» (Ac. de 25-9-1997, BMVJ 469-225).

Mas posteriormente entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que «a posição sufragada no Ac. do STJ de 14-12-89 (BMVJ 384, pág. 314), segundo a qual "o crime de burla agravada previsto e punível pelo art. 314.º, al. c), do CP/82 não admite a figura da tentativa" - com a argumentação (ligada à descrição típica da referida norma) de que, a não ser assim, estar-se-ia perante tratamento desigual entre o autor da tentativa e o autor do crime consumado, pois que, enquanto este beneficiaria da possibilidade de vir a reparar o prejuízo antes de instaurado o procedimento criminal, deixando o crime de ser qualificado, o mesmo não aconteceria com o autor da tentativa que "jamais poderia usufruir de tal possibilidade, por lhe ser impossível reparar um prejuízo que, concretamente, não chegou a verificar-se" - já não colhe perante o Código Penal revisto em 1995, porquanto a não reparação deixou de ser elemento típico da qualificação [art. 218.º, n.º 2, al. a)] e passou a ser considerada, por força do n.º 3 do art. 218.º, em conexão com o art. 206.º do mesmo diploma, como pertinente ao instituto da atenuação especial da pena, deixando, deste modo, intocado o tipo legal do crime de burla qualificada» (Ac. de 24-1-2001, proc. n.º 230/00-3)

E, recentemente, afastando-se do entendimento, mesmo perante o texto de 1982, entendeu que «a reparação do prejuízo não equivale a restituição, como o reconhece o legislador do C. Penal de 1982 no art. 301.º: a restituição visa essencialmente o furto e a apropriação ilícita, e a reparação integral os restantes casos e mesmo o furto ou apropriação ilícita quando não for possível a restituição» (Ac. de 24-10-2002, proc. n.º 2124/02-5, do mesmo Relator).

O que funcionava como circunstância que modela o tipo agravado no art. 314.º do C. Penal de 1982 era antes a circunstância de se tratar de prejuízo consideravelmente elevado. É da mais elevada ilicitude, que esse prejuízo evidencia, que nasce a agravação. O segmento final da al. c) «e não for reparado pelo agente, sem dano ilegítimo de terceiro, até ser instaurado o procedimento criminal» não tem por fim fundar a agravação, antes pelo contrário, visa afastar tal agravação quando, por virtude da reparação sem dano ilegítimo de terceiro, se tiver reduzido a ilicitude e logo a razão da gravação ditada pelo primeiro segmento da norma.

Portanto, nos casos em que a natureza das coisas não permitir a reparação do prejuízo causado, funciona a agravativa, sem que se possa ter por discriminados negativamente os agentes. É que não podendo ser reparado o prejuízo causado pelo agente, não é diminuído o grau de ilicitude por forma a justificar uma moldura penal mais branda.

De todo o modo, reparação do prejuízo não equivale a restituição (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, O Código Penal de 1982, 1.ª Edição, IV, pág. 189 e 74-5). O próprio legislador do C. Penal de 1982 trata conjuntamente a restituição e a reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, no lugar paralelo do art. 301.º a propósito da valor atenuativo da restituição do objecto do furto ou da apropriação ilícita.

E compreende-se que no caso de furto ou apropriação ilícita a reparação seja em primeira linha a restituição da coisa e, só sendo esta impossível, a reparação integral, pois que o objecto do crime foi exactamente a apropriação ilícita da coisa.

Já na burla de que trata o falado art. 314.º o crime traduz-se num causar de prejuízo patrimonial, cuja forma de ressarcimento é a reparação e não a restituição, por via de regra.

Nenhuma censura merece, pois, a qualificação jurídica efectuada.

4.1.5. Finalmente, impugna a recorrente a medida da pena, entendendo que lhe deve ser fixada, após cúmulo jurídico de todas as penas em concurso, em prisão nunca superior a 2 meses de prisão suspensa na sua execução cumulada com a pena de multa próxima da efectivamente aplicada.

Para tanto concluiu na sua motivação, como se viu:

«27. Caso assim não se entendesse sempre a arguida deveria ter sido condenada , quanto ao primeiro dos referido ilícitos, na prática de um crime de burla p. e p. no art. 217º, n.º 1 do CP., numa pena de multa, não superior a cento e trinta dias, à taxa diária de cinco euros; quanto ao segundo na prática de um crime de burla simples (por inexistência do elementos qualificativo), p. e p. e no mesmo dispositivo legal, numa pena de multa, não superior a duzentos dias de multa, à taxa diária de cinco euros; e finalmente quanto ao último dos ilícitos elencados na prática de um crime de burla na forma tentada, p. e p. nos art. 217º, com referência os nºs 22º e 23º, todos do CP., na pena de dois meses de prisão, suspensa na sua execução.

28. E efectuado o cúmulo jurídico de todas as penas em concurso deveria a arguida ter sido condenada em pena de prisão única nunca superior a dois meses se prisão suspensa na sua execução cumulada com a pena de multa próxima da efectivamente aplicada».

Da transcrição feita resulta que a recorrente não impugna as penas infligidas no quadro da qualificação jurídica efectuada pelo Tribunal a quo, limitando-se a sugerir as penas parcelares e única que reputa justas e adequadas no quadro da qualificação que pretendia ver adoptada.

Mas, sendo assim como é, não contêm a motivação, ou as conclusões, a impugnação dessa parte da decisão recorrida: «a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido» (n.º 1 do art. 412.º do CPP).

E se é certo que o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão (n.º 1 do art. 402.º), não é menos certo que é admissível a limitação do recurso a uma parte da decisão que possa ser separada da parte não recorrida, como é o caso da determinação da sanção e dentro desta a cada uma das penas ou medidas de segurança [n.ºs 1 e 2, als. c) e e) do art. 403.º do CPP].

A recorrente não impugna, pois, as penas (parcelares e única) efectivamente aplicadas, pelo que não cumpre apreciá-las; e, por outro lado, não tendo sido julgada procedente a impugnação da qualificação jurídica efectuada, não há que apreciar da justeza das sanções sugeridas pela recorrente para um quadro normativo que foi afastado.


V
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso da arguida.
Custas pela recorrente com a taxa de justiça de 4 Ucs.
Honorários legais à defensora nomeada

Lisboa, 12 de Dezembro de 2002
Simas Santos (Relator)
Abranches Martins
Oliveira Guimarães
Dinis Alves