Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
245/07.2GGLSB.L1-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 03/08/2012
Votação: MAIORIA COM VOTO DE QUALIDADE DO PRESIDENTE
Referência de Publicação: DR Nº 238, I SÉRIE, 10 DE DEZEMBRO DE 2012, P. 6931
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Sumário :

Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do nº 1 do art. 333º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do nº 3 do mesmo artigo.

Decisão Texto Integral:

               

                Acorda o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

            I. RELATÓRIO

                O Ministério Público interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do art. 437º do Código de Processo Penal (CPP)[1], do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4.5.2011, proferido no processo principal e certificado a fls. 17-23, por se encontrar em oposição sobre a mesma questão de direito com o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2007, proferido no proc. nº 3486/07 (cópia a fls. 30-35).

            Por acórdão de 16.11.2011 (fls. 37-45), foi decidido verificarem-se todos os pressupostos de admissibilidade do recurso, incluindo a oposição de julgados, ordenando-se o prosseguimento do recurso.

A questão decidenda foi assim caracterizada: notificado o arguido da data da audiência de julgamento por forma regular (via postal simples, com prova de depósito, para a morada indicada no termo de identidade e residência), faltando ele à audiência sem justificar a falta, e considerando o tribunal não ser a presença do arguido indispensável à descoberta da verdade material, poderá o tribunal iniciar o julgamento e condenar o arguido na sua ausência, sem previamente tomar as medidas necessárias para assegurar a comparência do mesmo arguido?

            Notificados o Ministério Público e o arguido AA, nos termos do art. 442º do CPP, apenas o primeiro apresentou alegações.

            São as seguintes as conclusões dessas alegações:

1. Enquanto sujeito do processo, o arguido é titular de vários direitos fundamentais: de audiência, elemento constitutivo do direito de defesa, de presença, de assistência de defensor e de impugnação das decisões, emanações do referido direito de defesa.

2. O estatuto do arguido integra direitos consagrados no artigo 61.º e a partir da sua constituição de arguido, prevista também no referido artigo, salvaguarda-se, desde logo, a efetividade dos respectivos direitos, concedendo-se assim a possibilidade real de o arguido poder codeterminar a decisão final.

3. Mas o estatuto do arguido é também integrador de deveres, igualmente previstos no referido artigo 61.º, de que se salientam os de colaboração, nomeadamente, com o Tribunal, devendo por isso comparecer sempre que lhe seja determinado.

4. A tomada de declarações ao arguido em audiência de julgamento, visa, por um lado, e no respeito da mais ampla contraditoriedade possível, permitir-lhe um pleno exercício do direito de defesa, e, por outro, contribuir para o esclarecimento da verdade material.

5. Os direitos fundamentais do arguido são merecedores de tutela constitucional, devendo o processo criminal, nos termos da norma do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, assegurar todas as garantias de defesa. Estabelece-se no seu n.º 6, aditado com a 4.ª revisão constitucional, ser a lei a definir «os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento».

6. Embora o Código de Processo Penal de 1929 determinasse, no corpo do artigo 418.º, a obrigatoriedade da presença do arguido em audiência de julgamento, contudo admitia, nos seus §§ 1.º, 2.º e 3.º, o julgamento à revelia.

7. O Código de Processo Penal de 1987 não manteve a forma de processo especial de ausentes, procurando-se, sempre que é obrigatória a presença do arguido em audiência de julgamento, desincentivar as faltas injustificadas do arguido, recorrendo à imposição de penas processuais, à sua detenção ou mesmo prisão preventiva, e ao instituto da contumácia.

8. No artigo 332.º, sob a epígrafe «Presença do arguido», afirmava-se a obrigatoriedade da sua presença em audiência, sem prejuízo do disposto no artigo 334.º, n.ºs 1 e 2, que, por seu lado, sob a epígrafe «Audiência na ausência do arguido», previa dois tipos de situações, a saber:

- no seu n.º 1, os casos em que coubesse processo sumaríssimo, mas em que o procedimento tivesse sido enviado para a forma comum, e o arguido faltasse injustificadamente à audiência de julgamento ou não tivesse sido possível notificá-lo do despacho que designara dia para a realização daquela;

- no seu n.º 2, as situações de impossibilidade de comparência do arguido, por motivo de idade, doença grave ou residência no estrangeiro, e aquele tivesse requerido ou consentido que a audiência tivesse lugar na sua ausência.

9. Fora, pois, daqueles dois tipos de hipóteses integradoras do regime previsto no artigo 334.º, a comparência de arguido na audiência de julgamento era obrigatória.

10. Para os casos de comparência obrigatória e em que o arguido não comparecesse, nem justificasse a falta no acto, impunha-se a criação de normas que respondessem com eficácia, pondo fim a uma situação, não querida pela lei, de ausência. É o que veio a ser feito com a regulamentação do artigo 333.º.

11. Nos termos deste artigo 333.º, após declaração de abertura, se o Presidente do Tribunal tivesse razões para crer que a comparência de arguido (que faltava a audiência de julgamento em que a sua presença era obrigatória), não ocorreria no prazo de cinco dias, cabia então também tomar «as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter o comparecimento», as quais, atenta a norma do n.º 2 do artigo 333.º, que estatuía ser correspondentemente aplicável o disposto no artigo 116.º, n.º s 1 e 2, implicavam para o arguido, cuja falta não viesse a ser justificada, a possibilidade de imposição de uma pena processual, condenação numa soma entre duas e dez UCs, e/ou a sua detenção, pelo tempo necessário à realização da audiência, ou mesmo até a sua prisão preventiva.

12. Assim, a tomada pelo Presidente do Tribunal de «medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter o comparecimento do arguido» pressupunha sempre uma falta injustificada do arguido a uma audiência de julgamento a cuja comparência estava obrigado.

13. Com a Lei n.º 59/98, 25 de Agosto, no que respeita à regra da obrigatoriedade da presença do arguido em audiência de julgamento ― que se reconheceu então não ser assegurada «nem pelo regime das faltas, nem pela declaração de contumácia», constituindo «um dos principais estrangulamentos na praxis dos tribunais, responsável pela frustração de uma justiça tempestiva» ― introduziram-se expressivas alterações, optando-se «pelo alargamento dos casos em que é possível a audiência na ausência do arguido (artigo 334.º, n.ºs 2 e 3) em conformidade com a nova redação do artigo 32.º, n.º 6, da Constituição, após a revisão de 1997».

14. Passou a admitir-se que a audiência tivesse lugar na ausência do arguido, sempre que tivesse prestado termo de identidade e de residência, ainda que se mostrasse justificada falta a anterior sessão do julgamento, alterando-se, em consonância, o artigo 196.º, que regulava o termo de identidade e de residência, cuja imposição passou a ser obrigatória quando da constituição de arguido, exigindo-se então que, quando da sujeição do arguido ao aludido termo de identidade, fosse informado de que o incumprimento de certos deveres processuais (em síntese, obrigação de comparência e obrigação de não alteração da residência constante do referido termo, sem sua comunicação ao Tribunal), legitimava a sua representação por defensor nos actos a que tivesse o direito ou o dever de estar presente, a notificação edital da data designada para a audiência, e a realização desta na sua ausência, tudo por forma a assim se assegurarem as garantias de defesa do arguido.

15. Considerando que, apesar das aludidas alterações, introduzidas pela referida Lei n.º 59/98, persistiam, ainda, causas de morosidade processual comprometedoras da eficácia do direito penal e que uma das principais causas dessa morosidade residia nos sucessivos adiamentos das audiências de julgamento, por falta de comparência do arguido, o Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15/12, veio criar uma nova modalidade de convocação ― notificação mediante via postal simples ―, e limitar os casos de adiamento da audiência em virtude da falta de comparência de arguido devidamente notificado, criando a possibilidade de a audiência se iniciar, apesar da ausência daquele.

16. Assim, após a entrada em vigor das referidas alterações, introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 320-C/2000, e que são mantidas na actual versão do Código de Processo Penal, decorrente da Lei n.º 48/2007, de 29/08, o regime da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento é, em síntese, o seguinte:

- a presença é obrigatória sempre que o tribunal considere absolutamente indispensável para a descoberta da verdade a presença do arguido desde o início da audiência, e este, devidamente notificado, não compareça, o que implicará o adiamento da audiência de julgamento;

- a presença é obrigatória sempre que o Tribunal não determinar que a audiência tenha lugar na ausência do arguido, nas hipóteses em que ao caso cabia processo sumaríssimo, previstas no artigo 334.º, n.º 1;

- a presença deixa de ser obrigatória sempre que o Tribunal determinar que a audiência tenha lugar na ausência do arguido, nas hipóteses em que ao caso cabia processo sumaríssimo, previstas no artigo 334.º, n.º 1;

- a presença deixa de ser obrigatória desde que o arguido, regularmente notificado, não esteja presente na hora designada para o início da audiência, sempre que o tribunal não considere absolutamente indispensável para a descoberta da verdade a sua presença desde o início da audiência;

- a presença deixa de ser obrigatória se o arguido se afastar da sala de audiência após o seu interrogatório, ou, por dolo ou negligência, se tiver colocado numa situação de incapacidade, e o Tribunal não considerar indispensável a sua presença, nas hipóteses previstas no artigo 332.º, n.ºs 5 e 6;

- a presença não é obrigatória, nas hipóteses previstas no n.º 2 do artigo 334.º.

17. A evolução legislativa referente à possibilidade de audiência julgamento na ausência do arguido revela claramente a intenção da lei em conciliar o indeclinável direito do arguido à sua defesa, com o também interesse público de uma justiça em tempo útil, não afectada por adiamentos ou interrupções injustificadas, que acarretem o protelamento da decisão, assim pondo em causa, seja a realização da justiça, seja a salvaguarda, em tempo útil, dos direitos e interesses da vítima, seja a desejável reafirmação dos valores tutelados pela norma que, eventualmente, porque presumido inocente, o arguido tenha negado.

18. Cumprido que se mostre o dever de notificação do arguido para a audiência, com as cautelas e exigências decorrentes do actual regime da imposição do termo de identidade e de residência, o referido propósito de concordância prática dos interesses em causa implica que, salvaguardada que esteja a possibilidade de defesa do arguido, o adiamento só se justificará se os interesses na procura da verdade material se revelarem ao Tribunal como exigindo necessariamente, em qualquer momento do decurso da audiência, a presença do arguido.

19. Por isso, se no início da audiência o Tribunal considerar indispensável para a descoberta da verdade material, desde esse início, a presença de arguido, devidamente notificado, o Tribunal terá necessariamente de adiar a audiência.

20. Justificar-se-á, então, considerando-se a obrigatoriedade da presença do arguido na audiência e a essencialidade dessa presença para descoberta da verdade, que o Tribunal ― não ocorrendo a comunicação prevista no artigo 117.º, n.º 2, aplicável por força do regime previsto para a falta injustificada de comparência regulado no artigo 116.º, este mandado aplicar por força da norma do artigo 333.º, n.º 6 ― ordene as «medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a comparência do arguido».

21. Diversamente, caso o Tribunal não considere ser a presença do arguido absolutamente indispensável, desde o início da audiência, para a descoberta da verdade material, ou seja, sempre que o Tribunal entenda que a audiência «pode começar sem a presença do arguido», a audiência não é adiada, conforme expressamente prescreve o artigo 333.º, n.º 2, pois que, nessas circunstâncias, a presença do arguido passou a não ser obrigatória, conforme resulta do disposto no artigo 332.º, n.º 1, mercê do referido entendimento do Tribunal.

22. Uma vez que a obrigatoriedade da presença do arguido estava afastada pela norma do artigo 332.º, n.º 1, com referência ao artigo 333.º n.º s 1 e 2, nunca a omissão dessa tomada de medidas poderia transformar em obrigatória aquela presença, que deixara de o ser em virtude de não se considerar a presença do arguido, logo no início da audiência, absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material.

23. Afastada, por isso, estaria a integração da alínea c) do artigo 119.º, que prevê como nulidade insanável a ausência de arguido nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.

24. Salvo o muito respeito devido por entendimento diverso, afigura-se-nos que considerar como necessariamente obrigatória, sob pena de nulidade, a realização de diligências para fazer comparecer arguido devidamente notificado, comprometeria o já referido propósito da lei da mencionada concordância prática dos interesses em causa.

25. E, por outro lado, facilitaria o desrespeito, pelo arguido, do seu dever de comparência, correndo o risco bem conhecido e determinante das referidas alterações legais, de adiamentos injustificados, com os consabidos prejuízos para a realização da justiça e afronta do respeito pelos direitos e interesses dos outros destinatários da justiça, em que avultam os da vítima.

26. Impende sobre o arguido, como sobre qualquer outro sujeito ou participante processual, o dever de respeito pela Justiça e, consequentemente, com o Tribunal, que no caso concreto tem o dever de a aplicar, bem como com os restantes sujeitos ou participantes processuais, estando assim obrigado a uma conduta leal e colaborante em consonância com o respectivo estatuto de arguido e os correspondentes direitos e deveres.

27. Impor a realização de diligências em ordem à comparência do arguido, quando este foi devidamente notificado e o Tribunal não entendeu como absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença em audiência, seria dar um sinal, que não deixaria de ser entendido, pelo arguido e pela comunidade, como injustificada complacência, revelador da inadequação do sistema para a realização dos seus proclamados objectivos de, sem prejuízo da salvaguarda do direito de defesa do arguido, impedir adiamentos de audiência determinados por incumprimento, por parte do arguido, de deveres de colaboração que a lei estabelece e dos quais foi feito ciente, contrariando manifestamente o prescrito no artigo 333.º, n.º 2.

28. O entendimento que defendemos não é contrariado pela letra da lei, pois dela não decorre a existência de três momentos essenciais, de verificação obrigatoriamente sucessiva, a saber:

- verificação de falta, não justificada, de comparência de arguido;

- tomada de medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a comparência do arguido;

- decisão relativa ao adiamento da audiência.

mas apenas as que serão de tomar em virtude da verificação, feita nos termos do artigo 329.º, da não presença do arguido.

29. Os elementos histórico e teleológico sustentam o entendimento que defendemos, como resulta do que atrás se expôs sobre a evolução do regime e a claríssima intenção da lei de procurar, no respeito da salvaguarda do direito de defesa do arguido, evitar, tanto quanto possível, sucessivos e injustificados adiamentos das audiências de julgamento, uma das principais causas da morosidade processual, em prejuízo da realização da justiça.

30. Entendimento que resulta da leitura integrada dos referidos artigos 332.º e 333.º, considerados na sua racionalidade, e garante a concordância prática entre as exigências de celeridade e de eficácia e as garantias de defesa do arguido, não contrariando estas.

31. Nos casos previsto nos artigos 333.º a 335.º, deverá entender-se por direito de defesa, o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, o direito de requerer que seja ouvido em segunda data, o direito à notificação da sentença e o direito ao recurso, o direito de requerer e conseguir que a audiência tenha lugar na sua ausência, o direito a defensor», direitos estes que a legislação processual penal respeita nos citados artigos.

32. Concluímos assim que o artigo 333.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, deve ser interpretado no sentido de, notificado o arguido da data da audiência de julgamento por forma regular, faltando ele à audiência sem justificar a falta, e considerando o tribunal não ser a presença do arguido absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, poderá o tribunal continuar a audiência, nos termos n.º 2 do aludido artigo, e condenar o arguido na sua ausência, sem previamente tomar as medidas necessárias para assegurar a sua comparência.

É este o sentido em que a jurisprudência deve ser fixada.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            A) A oposição de julgados

            Tem-se entendido pacificamente que a decisão do coletivo sobre a oposição de julgados não vincula o Pleno.

            Importa, pois, ainda que sumariamente, analisar se existe oposição de julgados sobre a mesma questão de direito.

            A questão controversa é, como vimos, a seguinte: notificado o arguido da data da audiência de julgamento por forma regular (via postal simples, com prova de depósito, para a morada indicada no termo de identidade e residência), faltando ele à audiência sem justificar a falta, e considerando o tribunal não ser a presença do arguido indispensável à descoberta da verdade material, poderá o tribunal iniciar o julgamento e condenar o arguido na sua ausência, sem previamente tomar as medidas necessárias para assegurar a comparência do mesmo arguido?

            Trata-se, afinal, da interpretação do art. 333º, nº 1, do CPP.

            Àquela questão o acórdão recorrido respondeu de forma afirmativa, entendendo que o tribunal, caso não considere a presença do arguido indispensável à descoberta da verdade, deve iniciar o julgamento, sem necessidade de proceder a quaisquer diligências para obter a comparência do arguido faltoso regularmente notificado, sendo este representado para todos os efeitos por defensor.

            Por sua vez, o acórdão-fundamento decidiu que, naquela situação, o tribunal, se decidir dar início ao julgamento, deve tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a comparência do arguido, sob pena de nulidade da audiência de julgamento.

            Assim, os acórdãos em referência pronunciaram-se de forma totalmente oposta sobre a questão identificada.

            Existe, inquestionavelmente, oposição de julgados.

            Importa, pois, analisar as posições em confronto e tomar posição, em ordem a fixar jurisprudência sobre a questão decidenda.

            B) A posição do acórdão recorrido

           

            No acórdão recorrido fundamentou-se assim a posição tomada:

(…)

Feita esta resenha do enquadramento do regime da dispensa da presença do arguido na audiência, importa então saber se no caso dos autos o Tribunal a quo ao julgar e condenar o arguido sem ele estar presente na audiência de julgamento cometeu alguma irregularidade determinante da invalidade do julgamento.

Resulta dos autos, conforme supra se deixou referido, que a notificação da data designada para a audiência de julgamento foi enviada por via postal simples, com prova de depósito, para a morada indicada pelo arguido no TIR, pelo que o mesmo foi regularmente notificado da data do julgamento.

O arguido não compareceu na hora designada para o início da audiência, nem comunicou qualquer impossibilidade de comparecimento, nos termos exigidos no art. 117° do CPP.

O tribunal, considerando não ser absolutamente imprescindível a presença do arguido desde o início da audiência, determinou o seu início, assim como a gravação digital das declarações prestadas oralmente em sede de audiência, vindo a audiência a realizar-se sem a presença do arguido, sempre representado por defensor.

Neste quadro, vem o recorrente considerar a ocorrência de uma irregularidade que afecta a validade do julgamento, pelo facto de o tribunal a quo não ter realizado qualquer diligência para o fazer comparecer em audiência, pelo que não podia concluir que o arguido não pretendia estar presente no julgamento, nomeadamente na 2ª data designada, violando, assim, o seu direito de ser ouvido em audiência.

No fundo, o que o recorrente vem colocar é a questão de saber se o tribunal, no quadro previsto no art° 333° do CPP, pode julgar e condenar o arguido na ausência, considerando dispensável a sua presença para a descoberta da verdade, sem ter tomado “as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência”.

A resposta do nosso ponto de vista só pode ser afirmativa.

Contudo, sabemos que a jurisprudência não tem tratado esta questão de forma uniforme, considerando-se como ocorreu no Acórdão do STJ de 24.10.2007, publicado na CJ (STJ), 2007, tomo III, pág. 224, que “a realização da audiência de julgamento sem a presença do arguido, devidamente notificado, sem que o juiz tenha tomado as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência pelo menos para a segunda sessão dessa audiência, consubstancia nulidade insanável”. Com a omissão de tais diligências ter-se-iam violado os direitos de defesa do arguido. Idêntico entendimento expressou o Sr. PGA nas alegações orais proferidas em audiência.

Com todo o devido respeito não partilhamos tal entendimento.

Analisando as normas convocadas, tendo em vista o que foi o espírito das alterações introduzidas no regime processual somos a entender que o que está em causa no art° 333° do CPP é, em primeira linha, um juízo de ponderação quanto à necessidade da presença do arguido na audiência para a descoberta da verdade material.

Temos para nós que a realização de diligências para fazer comparecer o arguido tem como justificação a necessidade da sua presença para a descoberta da verdade material, e não para garantir ao arguido que exerça uma defesa pessoal.

Deste modo, o tribunal só deverá tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a comparência do arguido em audiência se concluir, de início ou no decurso da audiência, pela imprescindibilidade da sua presença para a descoberta verdade. Só neste caso a audiência pode ser adiada.

Caso contrário, tendo o tribunal concluído pela dispensabilidade da presença do arguido, como no caso dos autos, seria até contraditório que o tribunal levasse a efeito diligências de que não necessita para a descoberta da verdade material. A verdade é que, neste caso, a presença do arguido em julgamento não é obrigatória, pode ser dispensada dentro do condicionalismo do citado art. 333º, sendo o arguido representado para todos os efeitos por defensor e assegurados os demais direitos de defesa do arguido.

E é assim que, dispensada a presença do arguido, a lei confere-lhe a possibilidade de ser ouvido assim ele compareça como é seu dever. O arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência, e o seu defensor pode requerer que ele seja ouvido na segunda data designada (cfr. n° 3 do art. 333° citado). O que não pode, porque a lei, do nosso ponto de vista, o não consente, é faltar à audiência, para a qual se mostra regularmente notificado, não comunicar o motivo da sua falta, e a audiência ser adiada, fazendo recair no tribunal a tomada de diligências para obter a sua comparência, quando o tribunal concluiu por um juízo de dispensabilidade da sua presença. Por outro lado, o arguido, através do teor da notificação que lhe foi feita e do TIR prestado sabia que faltando seria julgado na sua ausência sendo representado para todos os efeitos por defensor e gravada a prova, donde sempre se poderia entender que o arguido optou por faltar. Neste caso, poder-se-á até entender que a tomada de diligências para fazer comparecer o arguido (maxime, a sua detenção nos termos consentidos pelo art° 116º, nº 2 do CPP, talvez a única medida útil e eficaz), constituiria um meio desproporcional, indo além do que importa para se obter o resultado devido – a descoberta da verdade material.

O recorrente invoca ainda a ocorrência de irregularidade pelo facto de o tribunal a quo ter continuado o julgamento com a leitura da sentença em data anterior à prevista como 2ª data designada para a audiência, preterindo assim a possibilidade de o arguido ser ouvido na segunda data designada.

Mas não tem razão.

Aquela segunda marcação, conforme decorre dos arts. 312°, n° 2, e 333º, nº 3, do CPP, só ocorreria em duas situações; i) em caso de adiamento; ii) ou para audição do arguido a requerimento do seu defensor. Como nem uma coisa nem outra ocorreu, nada impedia a marcação da continuação da audiência para uma data mais próxima apenas para a leitura da sentença. A verdade é que, se o defensor do arguido entendeu não dever requerer a sua audição na segunda data designada, não pode gora vir arguir a invalidade do ato por falta de audição.

Em conclusão, não vemos que no caso dos autos tenha ocorrido a alegada violação dos direitos de defesa do arguido, designadamente o direito de ser ouvido em audiência, não ocorrendo por isso qualquer irregularidade ou invalidade do julgamento.

(…)

            Assim, em suma, segundo o acórdão recorrido, a falta injustificada de arguido regularmente notificado para o julgamento só pode determinar o adiamento do mesmo se houver necessidade da presença do arguido para a descoberta da verdade material, mas já não garantir a defesa pessoal em audiência.

            Essa defesa é assegurada pelo defensor, obrigatoriamente presente, sabendo aliás o arguido, pela notificação constante do termo de identidade e residência, que, não comparecendo, será julgado na sua ausência, representado pelo defensor, e mantendo o direito a ser ouvido até ao encerramento da audiência e a recorrer da decisão final.

            A realização de diligências para fazer comparecer o arguido seria, assim, um meio desproporcional, obrigando o arguido a estar presente quando optou pela ausência e, por outro lado, seria contraditória com o juízo de desnecessidade da presença do arguido para a descoberta da verdade formulado pelo tribunal.

Inserindo-se nesta posição, vários acórdãos é possível recensear, cujos sumários se transcrevem de seguida.

Acórdão da Relação do Porto de 24.4.2002, proc. nº 0111589:

O artigo 333º nº 1 do Código de Processo Penal, não impõe a realização da audiência de julgamento sem a presença do arguido na primeira data agendada para o efeito, apenas estabelece como regra o início da audiência, ficando sempre o arguido com a possibilidade de prestar declarações, bastando que para o efeito o advogado constituído ou o defensor nomeado requeira que ele seja ouvido na segunda data designada ao abrigo do artigo 312º nº 2 daquele Código.

Finda a produção da prova e dada a palavra ao defensor nos termos e para os efeitos do artigo 333º, nº 3, do Código de Processo Penal, há que considerar ter havido renúncia do defensor do arguido à faculdade deste ser ouvido se nada tiver requerido.

A presença do arguido no julgamento não é um direito indisponível.

A norma do nº 1 do artigo 333° do Código de Processo Penal não é inconstitucional.

            Acórdão da Relação do Porto de 23.6.2004, proc. nº 0313286:

               

I – Tendo-se iniciado o julgamento sem a presença do arguido, nos termos do n° 2 ao artigo 333º do Código de Processo Penal, o arguido não pode ser compelido a comparecer à audiência, através de mandados de detenção.

II - Com efeito, iniciado o julgamento, por se ter considerado que a audiência podia começar sem a presença do arguido, já não é logicamente aplicável o disposto no nº 1 do artigo 333º, quanto às medidas necessárias tendentes a obter a sua presença em julgamento.

III – O disposto no nº 2 do artigo 333° pressupõe a falta do arguido à audiência; as medidas referidas no nº 1 destinam-se a evitar essa falta.

 

            Acórdão da Relação do Porto de 27.5.2009, proc. nº 0818071:

               

I – As medidas necessárias a obter a comparência na audiência do arguido que não compareceu, estando regularmente notificado, nos termos do nº 1 do art. 333º do Código de Processo Penal, só têm que ser accionadas quando a audiência não deva iniciar-se sem a presença daquele.

II – Nesse âmbito, o tribunal só tem de proferir despacho se considerar a presença do arguido absolutamente indispensável.

Acórdão da Relação de Lisboa de 14.9.2009, proc. nº 100744/07:

1. Seja porque o tribunal considere que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, seja porque a falta do arguido tem como causa os impedimentos enunciados nos n°s 2 a 4 do art. 117º (nos quais se inclui a doença), a consequência é sempre a mesma: a audiência não é adiada (n° 2 do art. 333°, do CPP).

2. Em ambas as situações o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido, pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do art. 312º, n° 2, do CPP, como resulta do nº 3 do art. 333°, do CPP. Vale isto por dizer que a lei equipara as duas situações para aqueles efeitos.

3. A ausência do arguido ou do seu defensor só constitui a nulidade (insanável) prevista na al. c), do art. 119° do CPP, pelo recorrente invocada, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência. Tal questão apenas poderia colocar-se se a Ilustre Defensora do arguido tivesse requerido a audição deste ou o tribunal a considerasse necessária para a descoberta da verdade.

Acórdão da Relação de Guimarães de 14.9.2009, proc. nº 407/07:

O facto de a lei referir que a audiência pode começar sem a presença do arguido não significa que o juiz dispensou a sua presença apenas no início do julgamento.

Se ele não comparece – e o Tribunal não considera a sua presença indispensável – não justifica a falta e não requer a sua própria audição em audiência para prova de factos do seu interesse, constitui uma repartição desequilibrada dos ónus do processo pretender-se que é ao Tribunal que compete promover a sua presença forçada para que leve aos ouvidos do mesmo Tribunal aquilo que ele nunca se interessou em dizer de sua livre vontade.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.1.2008, proc. nº 3272/07, 5ª Secção (CJ, ano XVI, tomo I, p. 215, sumário da assessoria do STJ):

I - Tendo o arguido prestado TIR e o despacho de acusação sido remetido para a morada por si indicada nesse TIR, por via postal simples, com prova de depósito, bem como sido notificado do despacho “de recebimento” da acusação e designação de data para audiência de julgamento e ainda do defensor nomeado, também por via postal simples com prova de depósito, foi o mesmo regularmente notificado dos atos cuja notificação pessoal a lei impõe.

II - No que se refere ao julgamento, é de considerar que esteve legitimamente representado na audiência pelo seu defensor oficioso, sendo do seu conhecimento, a partir da prestação do TIR, que tal eventualidade poderia ocorrer, caso não desse cumprimento às obrigações constantes do mesmo TIR, como acabou por acontecer (arts. 196.º, nº 3, al. d), e 333.º do CPP).

III - A notificação por via postal simples nos termos indicados não ofende o núcleo essencial do direito de defesa do arguido, pois as garantias de que o legislador fez rodear a possibilidade de o arguido ser notificado por essa via são de molde a considerar-se como tendo chegado à esfera de conhecimento do arguido a notificação dos actos fundamentais do processo, nomeadamente aqueles em que se exige a sua presença, maxime, o julgamento, e que, se ele deles não tomou conhecimento foi por culpa sua, estando ciente das suas consequências.

IV - O julgamento na ausência, nessas condições, estando o arguido representado por defensor oficioso e sendo respeitadas as demais exigências legais impostas pelos n.ºs 1, 2 e 3 do art. 333.º do CPP, garantindo-se, além disso, o direito ao recurso com a exigência de notificação pessoal do arguido (pela sua voluntária apresentação ou através da sua detenção), não viola o essencial dos direitos de defesa, de presença e de audição, como se ponderou nos Acórdãos do TC n.º 206/2006, de 22-03, Proc. n.º 676/2005, e n.º 465/2004, de 23-06, Proc. n.º 249/2004.

                C) O acórdão-fundamento

            É esta a fundamentação do acórdão-fundamento:

(…)

2.2.1 Resulta dos autos que, designada data para realização da audiência de julgamento, foi o arguido notificado por via postal simples, com prova de depósito, para a morada indicada no temo de identidade e residência.

Aberta a audiência, verificou-se a ausência do arguido, face ao que o Ministério Público promoveu ‘se inicie a audiência de julgamento, na ausência do arguido’. Nessa sequência, foi proferido o seguinte despacho: “Uma vez que o arguido se encontra notificado e não compareceu, nem justificou a razão da sua ausência, nos termos do disposto no art. 116.º, n.º 2 e 117.º C.P.P. - considera-se a mesma injustificada e condena-se o arguido no pagamento da multa equivalente a 2 UC.”

Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas pelo Ministério Público e, ‘finda a produção de prova, pela Mmª Juíza Presidente foi concedida a palavra, sucessivamente, à Digna Magistrada do M.° Público e à ilustre Defensora Oficiosa presente, para em alegações orais exporem as conclusões de facto e de direito que hajam extraído da prova produzida’ e, ‘findas as alegações’, foi designada nova data, para cerca de um mês depois, para ‘leitura do acórdão’. 

Na data aprazada – e como faltavam o arguido e o defensor – foi nomeado novo defensor, para o ato, e publicitado o acórdão.

(…)

O artigo 332° n° 1 do mesmo diploma adjectivo, referindo-se à presença do arguido em audiência, começa por dizer que é obrigatória a presença do arguido na audiência. Mas depois acrescenta: “sem prejuízo do disposto nos artigos 333°, nºs 1 e 2, 334°, nºs 1 e 2.”

Examinando o artigo 333°, que se refere à falta do arguido notificado para a audiência, do seu nº 1 consta: “Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.”

Daqui resulta que na data designada para a realização da audiência de julgamento, se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o tribunal, ou adia a audiência, ou toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a comparência do arguido na audiência.

Todavia, a audiência só pode ser adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material.

Não sendo adiada a audiência, deve o presidente tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a comparência do arguido faltoso.

E, se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341º, sem prejuízo da alteração que seja necessário efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n° 6 do artigo 117° - v. nº 2 do artigo 333°.

Sendo, como se referiu, obrigatória a presença do arguido, em audiência, sem prejuízo do disposto no art. 333°, nºs 1 e 2 – v. art. 332°, n° 1 do CPP, o mesmo pode querer prestar declarações (embora a tal não seja obrigado e, sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo – art° 343°, n° 1 do CPP), mas se prestar declarações, pode querer confessar e, porventura, beneficiar do disposto no art° 344° do CPP, caso se verifiquem os respectivos pressupostos legais, e, mesmo se não confessar os factos imputados, se o arguido se dispuser a prestar declarações, cada um dos juízes (e dos jurados quando for caso de tribunal do júri), pode fazer-lhe perguntas sobre os factos que lhe sejam imputados e solicitar-lhe esclarecimentos sobre as declarações prestadas, bem como o Ministério Público, o advogado do assistente (se o houver) e o defensor podem solicitar ao presidente que formule ao arguido perguntas, conforme art° 345° n°s 1 e 2 do CPP

Note-se, por outro lado, que se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, nos termos do artigo 332º, nº 2 citado, o arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência, como estabelece o n° 3 deste art° 333°.

É certo que o mesmo nº 3 também acrescenta: “e se ocorrer na primeira data marcada (o encerramento da audiência), o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do artigo 312° nº 2. O art. 312º n° 2 do CPP prevê, além do mais, o caso de designação de data “para audição do arguido a requerimento do seu advogado ou defensor nomeado, ao abrigo do artigo 333°, nº 3.”

Donde poder argumentar-se se a inexistência de tal requerimento, para audição do arguido ausente, consubstanciará uma renúncia a arguição ou suprimento de eventual irregularidade havida pela não audição do arguido.

É certo também que o nº 5 do art. 333° dispõe que no caso previsto nos n°s 2 e 3, havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente, o que pressupõe julgamento do arguido na sua ausência.

Só que de tais normas não resulta exclusão da obrigatoriedade imposta ao tribunal, quando iniciar uma audiência sem a presença do arguido notificado para a sua data de realização, de tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência.

Somente no caso de estas medidas não surtirem efeito é que se compreende o disposto no nº 5 do artigo 333°.

E, quanto ao nº 3 do mesmo preceito, relativamente ao requerimento para audição do arguido em nova data, apenas significa que pode haver lugar a nova data para audição do arguido, se não comparecer na primeira data da audiência e esta se ultimasse.

(…)

As normas constantes dos nºs 1 e 2 do artigo 333° são de interesse e ordem pública, prendendo-se com o cerne das garantias do processo penal, e, por conseguinte, com a validade e eficácia do sistema legal processual penal.

Como todo o verdadeiro direito público, tem o direito processual penal na sua base o problema fulcral das relações entre o Estado e a pessoa individual e da posição desta na comunidade.

A via para um correto equacionamento de evolução do processo penal nos quadros do Estado de Direito material deve partir do reconhecimento e aceitação da tensão dialéctica inarredável entre a tutela dos interesses do arguido e a tutela dos interesses da sociedade representados pelo poder democrático do Estado.

Por isso, não exclui a sua audição, nem a tomada das medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência.

Daí que o n° 6 do mesmo artigo 333° explicite que é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 116°, n°s 1 e 2 e 254°.

Sendo a responsabilidade criminal meramente individual, e estando esta a ser apreciada no pretório, a comparência obrigatória do arguido, torna-se necessária ao exercício do contraditório.               

Note-se, por outro lado, que o encerramento da discussão da causa apenas ocorre depois das últimas declarações do arguido, pois que, como resulta do art° 361°, n°s 1 e 2, do CPP: “Findas as alegações, o presidente pergunta ao arguido se tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa, ouvindo-o em tudo o que declarar a bem dela. Em seguida, o presidente declara encerrada a discussão.”

Na verdade, o arguido é sujeito processual, de direitos e de deveres, e é na audiência, mediante o exercício pleno do contraditório, que o arguido se pode - e deve – defender, confrontado com as provas, já que a discussão da causa vai posteriormente implicar uma decisão, de harmonia com elas e com referência ao objecto do processo, decisão essa em que emite um juízo decisório sobre a conduta jurídicopenal imputada ao arguido, com reflexos notórios na sua vida pessoal e comunitária, pois que, sendo este absolvido, fica desvinculado da imputação havida, e restaurado à normalidade anterior ao juízo incriminatório, mas, se for condenado, fica sujeito às consequências jurídicas do crime.

(…)

Assim, dando o tribunal início à audiência, deveria ter tomado as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, uma vez que, como bem assinala a recorrente, “a realização da audiência nos sobreditos termos contende com o exercício pleno do direito de defesa da arguida e princípio da procura da verdade material que se impõe ao julgador”.

Por outro lado, há que considerar a relevância dos princípios da oralidade e imediação na audiência de julgamento.

Desde o momento em que – sobretudo por efeito do influxo das ideias de prevenção especial – se reconheceu a primacial importância da consideração da personalidade do arguido no processo penal não mais se podia duvidar da absoluta prevalência a conferir aos princípios da oralidade e da imediação.

Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais concretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.

E, só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso.

Dispõe o artigo 118° n° 1 do CPP que a violação ou inobservância das disposições da lei do Processo Penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.

Ora, o artigo 119° estabelece que constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: “c) A ausência do arguido (…) nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.”

É o caso sub judicio, objecto do recurso, pois que realizou-se o julgamento da arguida – do qual saiu condenada – na sua ausência, apesar de estar notificada da data da audiência e a esta ter faltado, sendo obrigatória a sua presença.

(…)

O entendimento do acórdão-fundamento é, pois, no sentido de que, perante a falta do arguido, ainda que notificado regularmente, o juiz, embora só devendo adiar a audiência no caso de a presença do arguido ser indispensável para a descoberta da verdade, terá sempre de tomar as providências necessárias para obter a comparência do arguido faltoso, pois só a sua presença em julgamento assegura o pleno exercício dos direitos de defesa, a descoberta da verdade material e os princípios da oralidade e da imediação.

No mesmo sentido, pode referenciar-se:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.5.2007, proc. nº 1018/07, 3ª Secção:

I - É nula a audiência de julgamento – e a subsequente decisão – realizada na ausência da arguida que para esse ato fora notificada e faltou, sem que fossem tomadas as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência.

II - Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, esta só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a presença do arguido desde o início da audiência –art. 333.º, n.º 1, do CPP.

III - Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido a audiência não é adiada, e o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a comparência do arguido notificado, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas als. b) e c) do art. 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessário efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do art. 117.º – cf. n.º 2 do art. 333.º.

IV - Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, nos termos do art. 333.º n.º 2 citado, o arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência, como estabelece o n.º 3 deste art. 333.º.

V - No âmbito do art. 333.º do CPP o julgamento na ausência do arguido notificado para a audiência só é possível se o arguido der o seu consentimento à realização da audiência na sua ausência.

VI - Inexistindo esse consentimento, é obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto no art. 333.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.

VII - O princípio do contraditório ao revelar-se como princípio e direito de audiência, assume-se como oportunidade de o participante processual influir o desenrolar do processo, através da sua audição pelo tribunal.

VIII - Conforme art. 61.º, n.º 1, do CPP, o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processado, e salvas as excepções da lei, dos direitos – entre outros – de:

a) Estar presente aos actos processuais que directamente lhe disseram respeito;

b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete (...).

IX - Nos termos do art. 119.º, n.º 1, do CPP, constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:

«c) A ausência do arguido (...), nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência.»

            D) A evolução legislativa

            O CPP de 1987 estabeleceu, como regra (quase) absoluta, a obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento. Esta opção radical fundou-se no entendimento de que era inconstitucional o julgamento à revelia, entendimento alicerçado na Resolução da Comissão Constitucional nº 62/78, que declarara inconstitucional, com força obrigatória geral, os parágrafos 1º, 2º e 3º do art. 418º do CPP de 1929, por violação dos nºs 1 a 5 do art. 32º da Constituição.

            Aquele entendimento era, porventura, excessivo, já que nenhuma disposição constitucional impedia expressamente o julgamento à revelia, nem tal impedimento resulta inequivocamente do conceito de “processo equitativo”, tal como está consagrado no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no art. 14º do Pacto Internacional para os Direitos Civis e Políticos.[2]

            No entanto, o CPP de 1987 acolheu empenhadamente o princípio da obrigatoriedade da presença do arguido como condição de realização da audiência de julgamento (art. 332º, nº 1, na versão originária). As exceções eram apenas as previstas nos nºs 1 e 2 do art. 334º: a primeira, no caso de haver lugar ao processo sumaríssimo mas o procedimento ter sido reenviado para a forma comum, quando o arguido não pudesse ser notificado do despacho a designar dia para julgamento ou faltasse injustificadamente ao mesmo; a segunda, no caso de o arguido se encontrar impossibilitado de comparecer em audiência por idade, doença grave ou residência no estrangeiro, desde que ele requeresse ou consentisse no julgamento na sua ausência.

            Fora destes casos excecionais, e residuais, faltando o arguido, o tribunal devia interromper a audiência sempre que houvesse razões para crer que o comparecimento do arguido poderia verificar-se no prazo de 5 dias; não sendo assim, a audiência seria adiada, devendo o tribunal tomar as “medidas necessárias e legalmente admissíveis” para obter o comparecimento (art. 333º, nº 1) sendo aplicável o disposto no art. 116º, nºs 1 e 2 (art. 333º, nº 2), ou seja, o regime das faltas injustificadas, que permitia a detenção do faltoso pelo tempo indispensável para a realização da diligência, ou, tratando-se do arguido, a aplicação de prisão preventiva, se fosse admissível.

            Se não fosse possível notificar o arguido do despacho designando dia para a audiência, nem executar a detenção ou a prisão preventiva do mesmo arguido, este seria notificado por editais para se apresentar em juízo, sob pena de ser declarado contumaz.

            Ou seja, na sua versão originária, o CPP vigente, partindo do pressuposto da inconstitucionalidade do julgamento na ausência do arguido, consagrou a obrigatoriedade da sua presença em audiência, procurando efetivar essa presença, por um lado, impondo ao tribunal a realização de medidas adequadas e pertinentes para obter o seu comparecimento, incluindo a detenção ou a prisão preventiva; por outro, criando o instituto da contumácia, que considerou meio eficaz de dissuasão da ausência do arguido.

            Porém, os resultados não foram de forma alguma os esperados: nem as “medidas admissíveis” ao dispor do tribunal, nem o regime da contumácia se revelaram eficazes para “obrigar” os arguidos a comparecer ao julgamento, o que redundou em graves obstáculos à administração da justiça penal.

De forma clara reconheceria o legislador os impasses criados, na Exposição de Motivos da ulterior Proposta de Lei nº 157/VII:

Reconhecendo que um dos principais estrangulamentos na praxis dos nossos tribunais, responsável pela frustração de uma justiça tempestiva, é a actual regra da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento, a qual não tem vindo a ser assegurada nem pelo regime das faltas nem pela declaração de contumácia, optou-se pelo alargamento dos casos em que é possível a audiência na ausência do arguido (artigo 334°, nºs 2 e 3), opção que a Constituição acolhe agora expressamente no artigo 32°, n.° 6, ao estabelecer que «a lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento».

Sendo identificado o obstáculo como tendo sede na própria Constituição, foi aí que se iniciou o processo de “desbloqueamento” do impasse.[3]

            Com a revisão constitucional de 1997 (Lei Constitucional nº 1/97), o nº 6 do art. 32º da Constituição passou a dispor: “A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em atos processuais, incluindo a audiência de julgamento.” Esta alteração foi aliás aprovada por unanimidade.

            A Constituição passou, pois, a admitir o julgamento na ausência do arguido, desde que assegurados os direitos de defesa.

            Elaborou então o Governo a já citada Proposta de Lei nº 157/VII, contendo uma reforma ampla do processo penal, em que se destacava o fim da obrigatoriedade da presença do arguido em julgamento, medida assim justificada no preâmbulo:

            O alargamento dos casos em que é possível a audiência na ausência do arguido verifica-se, por um lado, porque se abandonou o caráter taxativo dos motivos que fundamentam o requerimento ou o consentimento para a audiência ocorrer sem a presença daquele (artigo 334°, n° 2), e, por outro, porque se admite agora que a audiência ocorra na ausência do arguido, sempre que este tenha prestado termo de identidade e residência e ainda que tenha justificado falta anterior à audiência [artigos 196°, n° 3, alínea c), 333°, n° 2, e 334°, n° 3].

Não se esquece, contudo, que a celeridade processual se quer compatível com as garantias de defesa, pelo que a audiência de julgamento na ausência do arguido só terá lugar se este tiver anteriormente prestado termo de identidade e residência, o que significa necessariamente que ao arguido foi dado conhecimento de que a inobservância de certos deveres processuais legitima a notificação edital da data designada para a audiência e a realização desta na sua ausência [artigo 196°, n° 3, alínea c)]. Mas, para que do termo de identidade e residência possa ser retirada de forma efetiva a consequência da realização da audiência sem a presença do arguido, esta medida de coação é agora obrigatoriamente aplicada quando ocorrer a constituição de arguido, valendo a pena salientar que passa a ser obrigatório interrogar como arguido pessoa determinada contra quem correr inquérito (artigo 272°, n° 1) e que se esclareceu que a constituição de arguido com a dedução da acusação ou com o requerimento para abertura da instrução deve obedecer às regras previstas no artigo 58° (cf. artigo 57°, n° 3).

Ainda em nome do direito de defesa deste sujeito processual é obrigatória a assistência de defensor (artigos 64° e 334°, n° 6), sendo-lhe concedido, caso seja condenado, o direito de interpor recurso da sentença ou de, em alternativa, requerer nova audiência de julgamento, quando ao crime corresponder pena de prisão superior a 5 anos (artigo 380°-A). Uma nova audiência que se caracteriza por as declarações prestadas na audiência realizada na ausência do arguido valerem como declarações para memória futura (cf. artigo 380°-A), assim se evitando os inconvenientes, por todos reconhecidos, de um novo julgamento em sentido próprio. Declarações estas que são obrigatoriamente documentadas (artigo 363°, n° 3), o que permite que sejam prestadas perante o tribunal singular, ainda que competente no caso seja o tribunal coletivo ou o tribunal de júri (artigo 334°, n° 5).

Neste quadro, a declaração de contumácia tem carácter meramente residual. Por um lado, abrange apenas aqueles que, não tendo prestado termo de identidade e residência, não foi possível notificar do despacho que designa dia para a audiência ou deter ou prender preventivamente para assegurar o comparecimento em audiência (artigo 335°), e, por outro, é declarada uma só vez relativamente a cada arguido, já que, quando este se apresenta ou é detido, é sujeito a termo de identidade e residência, ficando legitimada a partir daí a audiência na sua ausência (artigo 336°).

            A Lei nº 59/98, de 25-8, que resultou dessa Proposta de Lei, alterou diversos artigos do CPP relacionados com esta matéria, nomeadamente os arts. 196º, 332º, 333º e 334º.

Com a nova redacção do nº 1 do art. 332º, passou a ser possível o julgamento na ausência do arguido nos casos previstos no nº 2 do art. 333º e nos nºs 1, 2 e 3 do art. 334º.

            Deixando por ora de lado este último artigo, retenha-se o teor dos nºs 1 e 2 do art. 333º, nesta versão da Lei nº 59/98, de 25-8:

            1. Se o arguido não estiver presente na hora designada para o início da audiência e não for possível obter a sua comparência imediata, a audiência é adiada, cabendo ao presidente tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter o comparecimento.

            2. Se o arguido sujeito a termo de identidade e residência não estiver presente na nova data designada e não for possível obter a sua comparência imediata, a audiência é de novo adiada e o presidente notifica-o, nos termos do artigo 313º, nº 2, do novo dia designado para a audiência com a cominação de que, faltando novamente, esta terá lugar na sua ausência.

                Assim, com este diploma, o julgamento na ausência passou a ser possível, mas mediante o seguinte procedimento, complexo e demorado: na falta do arguido, o juiz devia tentar obter a comparência imediata do mesmo; não sendo possível a audiência era adiada, devendo o juiz tomar as “medidas necessárias” para fazê-lo comparecer na nova data designada; se faltasse novamente, e não sendo possível obter a sua comparência imediata, havia lugar a novo adiamento da audiência, sendo desta vez o arguido notificado da nova data com a cominação de que, faltando novamente, seria julgado na sua ausência.

            Em breve esta solução se mostrou insuficiente e mesmo ineficaz. O DL nº 320-C/2000, de 15-12, veio aprofundar e aperfeiçoar o regime do julgamento na ausência do arguido, de forma a agilizar o procedimento.

As razões do legislador são aliás enunciadas de forma clara no respetivo preâmbulo, que importa aqui reproduzir:

            Atendendo ao facto de uma das principais causas de morosidade processual residir nos sucessivos adiamentos das audiências de julgamento por falta de comparência do arguido, limitam-se os casos de adiamento da audiência em virtude dessa falta, nomeadamente quando aquele foi regularmente notificado.

Com efeito, a posição do arguido no processo penal é protegida pelo princípio da presunção de inocência, previsto no n° 2 do artigo 32° da Constituição, que surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo, o qual implica a absolvição do arguido no caso de o juiz não ter certeza sobre a prática dos factos que subjazem à acusação.

Se o arguido já beneficia deste regime processual especial, não pode permitir-se a sua total desresponsabilização em relação ao andamento do processo ou ao seu julgamento, razão que possibilita, por um lado, a introdução da modalidade de notificação por via postal simples, nos termos acima expostos, e, por outro, permite que o tribunal pondere a necessidade da presença do arguido na audiência, só a podendo adiar nos casos em que aquele tenha sido regularmente notificado da mesma e a sua presença desde o início da audiência se afigurar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material.

Para tanto, no despacho que designa a data da audiência, é igualmente designada data para a realização da audiência em caso de adiamento nos termos do artigo 333°, n° 1, ou para audição do arguido a requerimento do seu advogado ou defensor nomeado ao abrigo do artigo 333°, n° 3.

E se no processo existir advogado constituído, o tribunal deve diligenciar pela concertação da data para audiência, de modo a evitar o conflito com a marcação de audiência por acordo feita ao abrigo do artigo 155° do Código de Processo Civil.

Com efeito, se o tribunal considerar que a presença do arguido desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n°s 2 a 4 do artigo 117°, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341°, sem prejuízo da alteração que seja necessária efetuar no rol apresentado e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n° 6 do artigo 117°.

Nestes casos, o arguido mantém o direito a prestar declarações até ao encerramento da audiência e se esta ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor pode requerer que seja ouvido na segunda data designada pelo juiz nos termos do n° 2 do artigo 312°.

O DL nº 320-C/2000, de 15-12, procedeu à alteração, entre outros, dos arts. 196º, 312º, 332º, 333º e 334º, que são os relevantes para a resolução da questão em análise.

São os seguintes os respetivos textos.

Diz o art. 196º:

1. A autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sujeitam a termo de identidade e residência lavrado no processo todo aquele que for constituído arguido, ainda que já tenha sido identificado nos termos do artigo 250°.

2. Para o efeito de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 113º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.

3. Do termo deve constar que àquele foi dado conhecimento:

a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado;

b) Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado;

c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no nº 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento;

d) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333º. [sublinhado nosso]

4. A aplicação da medida referida neste artigo é sempre cumulável com qualquer outra das previstas no presente livro.

Estabelece o art. 312º:

(…)

2. No despacho a que se refere o número anterior [designação da data da audiência] é, desde logo, igualmente designada data para a realização da audiência em caso de adiamento nos termos do artigo 333º, nº 1, ou para audição do arguido a requerimento do seu advogado ou defensor nomeado ao abrigo do artigo 333º, nº 3.

(…)

E o art. 332º determina:

1. É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos artigos 333°, nºs 1 e 2, e 334°, nºs 1 e 2.

(…)

Estabelece, por sua vez, o art. 333º:

1. Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência. [sublinhado nosso]

2. Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos nºs 2 a 4 do artigo 117°, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341°, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no nº 6 do artigo 117°.

3. No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do artigo 312°, n° 2.

4. O disposto nos números anteriores não prejudica que a audiência tenha lugar na ausência do arguido com o seu consentimento, nos termos do artigo 334º, n° 2.

5. No caso previsto nos nºs 2 e 3, havendo lugar a audiência na ausência do arguido, a sentença é notificada ao arguido logo que seja detido ou se apresente voluntariamente. O prazo para a interposição de recurso pelo arguido conta-se a partir da notificação da sentença.

6. Na notificação prevista no número anterior o arguido é expressamente informado do direito a recorrer da sentença e do respetivo prazo. [aditado pela Lei nº 26/2010, de 30-8]

7. É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 116°, n°s 1 e 2, e 254° e nºs 4 e 5 do artigo seguinte.

 

Finalmente, diz o art. 334º:

1. Se ao caso couber processo sumaríssimo mas o procedimento tiver sido reenviado para a forma comum e se o arguido não puder ser notificado do despacho que designa dia para a audiência ou faltar a esta injustificadamente, o tribunal pode determinar que a audiência tenha lugar na ausência do arguido.

2. Sempre que o arguido se encontrar praticamente impossibilitado de comparecer à audiência, nomeadamente por idade, doença grave ou residência no estrangeiro, pode requerer ou consentir que a audiência tenha lugar na sua ausência.

Assim, a presença do arguido é, em princípio, obrigatória, mas com as restrições revistas nos arts. 333º, nºs 1 e 2, e 334º, nºs 1 e 2.

Analisando essas restrições, observa-se que lei determina a obrigatoriedade da presença do arguido sempre que for considerada absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, caso em que, na falta do arguido, a audiência é adiada (art. 333º, nº 1). A presença também será obrigatória nas hipóteses especiais dos nº 1 e 2 do art. 334º, quando o tribunal entender que o arguido deve estar presente (o que só se justificará igualmente por razões de descoberta da verdade).

Resta saber se, não tendo havido adiamento do julgamento, por não se considerar essencial a presença do arguido para a descoberta da verdade, e dando-se início ao julgamento com a audição das pessoas presentes, nos termos do nº 2 do art. 333º, ainda assim é obrigatório obter a presença do arguido até ao final da audiência.

É essa, afinal, a questão a decidir.

E) Discussão e posição a tomar

Conhecido o quadro legislativo atual, importa abordar a discussão das teses em confronto.

Como vimos, a intenção legislativa, a partir da revisão constitucional de 1997, com a nova redação do nº 6 do art. 32º da Constituição, foi declaradamente no sentido de eliminar o impasse provocado pela regra da obrigatoriedade absoluta da presença do arguido na audiência de julgamento, permitindo que a audiência seja realizada na sua ausência mediante a garantia dos seus direitos de defesa.[4]

Os trabalhos legislativos, atrás parcialmente transcritos, são particularmente elucidativos: trata-se de garantir o interesse público na administração da justiça com celeridade e eficiência, com a necessária salvaguarda dos interesses da defesa no caso de o arguido estar ausente do julgamento.

Nessa ponderação de interesses em certa medida contraditórios, a solução legal afigura-se ajustada e constitucionalmente insusceptível de censura. A presença do arguido perde o carácter de princípio absoluto, para se afirmar primacialmente como um direito do arguido a estar presente. Um direito disponível, que o arguido, enquanto sujeito processual autónomo e plenamente responsável, exercerá como entender. Não fica, porém, privado de defesa, no caso de optar por estar ausente, uma vez que será necessariamente assistido por defensor, escolhido ou nomeado.

A única exceção ao direito de opção do arguido é a de o tribunal considerar a sua presença absolutamente indispensável para a descoberta da verdade, caso em que a obrigação de presença lhe pode ser imposta, em nome do interesse público na administração da justiça.

Este quadro legislativo mostra-se perfeitamente adequado à boa administração da justiça, e inteiramente conforme com a Constituição.[5]

A nível de direito internacional convencional, recorde-se que o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos estabelece, no seu art. 14º, nº 3, d), o direito do arguido a estar presente no processo.

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), que é anterior, não prevê expressamente esse direito. Mas a jurisprudência firme do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) é no sentido de que constitui um dos elementos componentes do “processo equitativo”, consagrado o art. 6º da CEDH, a obrigação de o tribunal garantir ao arguido o direito de estar presente na audiência.

Contudo, o mesmo TEDH entende que o arguido tem igualmente o direito de renunciar àquela garantia. Mas, sublinhe-se, “a renúncia ao direito de estar presente na audiência deve estar estabelecido de maneira não equívoca e estar rodeado de um mínimo de garantias correspondentes à gravidade da renúncia”. Além de que não deve lesar nenhum interesse público relevante.[6]

É, pois, como direito disponível que o TEDH entende a presença do arguido em julgamento (a não ser que exista um interesse público relevante que imponha a presença, como será o caso da descoberta da verdade), embora exija a garantia dos direitos de defesa no caso de ausência do arguido.

Analisemos agora mais de perto a questão decidenda.

Se o arguido regularmente notificado para o julgamento (notificado por via postal simples, com a cominação de que, faltando ao julgamento, poderá ser julgado na sua ausência, se tal constar, como deve, do termo de identidade e residência, por força da al. d) do nº 3 do art. 196º) faltar na primeira data designada, a audiência não é adiada (contrariamente ao que sucedia no domínio da Lei nº 59/98, de 25-8), a não ser que o tribunal considere absolutamente indispensável a presença do arguido para a descoberta da verdade material. Ou seja, o adiamento pode ter esse fundamento, e não qualquer outro, como, por exemplo, a defesa do arguido. No caso de adiamento, o julgamento é realizado na segunda data designada (arts. 333º, nº 1, e 312º, nº 2).

Caso o juiz não considere essa presença indispensável, o julgamento inicia-se com a inquirição das pessoas presentes, sendo o arguido representado pelo seu defensor (nº 2 do art. 333º).

Mas o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, se entretanto comparecer. No caso de o encerramento ocorrer na primeira data marcada para o julgamento, o defensor pode requerer que ele seja ouvido na segunda data designada (arts. 333º, nº 3, e 312º, nº 2).

Resumindo: destes preceitos legais decorre que a falta do arguido, quando a sua presença não seja tida por essencial para a descoberta da verdade, não obsta ao início do julgamento, com a audição das pessoas presentes; e também que o arguido pode comparecer e prestar declarações até ao encerramento da audiência na primeira data designada, se entretanto comparecer; e ainda que pode ser ouvido na segunda data designada para o julgamento, mas desde que o seu defensor o requeira até ao encerramento da audiência na primeira data. Trata-se, pois, de um ónus do arguido, não do tribunal.

A dúvida está, pois, em saber se, entendendo o tribunal que a presença do arguido não é imposta pela averiguação da verdade material, ainda assim o tribunal tem o encargo de o fazer comparecer em julgamento, tomando assim “as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência” (art. 333º, nº 1).

Este é o cerne da oposição de julgados.

Mas fazer comparecer o arguido em nome de quê? Não, obviamente, da descoberta da verdade material, já que o tribunal concluiu precisamente que para tal não era necessária a presença do arguido…

Se não é em nome da verdade material, então só poderá ser em benefício da defesa do arguido, para garantir a defesa pessoal deste último. A ser assim, e parece que tertium non datur, então o tribunal está a impor ao arguido um tipo de defesa que ele não quis. Como sujeito processual autónomo e responsável, cabe ao arguido, e não ao tribunal, escolher a sua defesa. Seria eventualmente inconstitucional, por constituir uma intromissão inadmissível na sua autonomia, impor ao arguido uma determinada forma de defesa, a defesa presencial.

Na verdade, a lei não pode impor uma certa forma de defesa, mas apenas garantir os direitos de defesa do arguido, que ele exercerá como entender. Esses direitos estão plenamente consagrados na lei na situação em análise. Conforme já se referiu atrás, o arguido faltoso tem o direito (não o dever) de comparecer e ser ouvido até ao final da audiência na primeira data designada para o julgamento (caso a sua presença seja desnecessária para a descoberta da verdade). Tem ainda o direito de, a requerimento do seu defensor, ser ouvido na segunda data designada. Tem finalmente o direito a interpor recurso da decisão condenatória, quando notificado pessoalmente da mesma, após detenção ou apresentação voluntária, devendo ser expressamente informado do direito a recorrer e do respetivo prazo (art. 333º, nºs 5 e 6).

O arguido faltoso detém, pois, um conjunto de direitos que constitui o núcleo fundamental e irredutível dos direitos de defesa do arguido em processo penal: o direito à audição pessoal, se o pretender; o direito à assistência por defensor; o direito à notificação pessoal da sentença; e o direito de recurso da decisão condenatória. Assegurado esse núcleo, não tem sentido obrigar o arguido a comparecer em julgamento, em nome dos interesses da defesa, que só a ele próprio cabe definir!

Relembra-se que o arguido, quando notificado do termo de identidade e residência, fica a saber que a sua falta ao julgamento não impede a realização do mesmo na sua ausência, nos termos do art. 333º, conforme dispõe a citada al. d) do nº 3 do art. 196º, de forma que a falta injustificada do arguido não pode ser interpretada senão como renúncia consciente ao direito de presença em audiência.

Quer isso dizer que a presença do arguido não é obrigatória a partir do momento em que o tribunal a considerar não absolutamente indispensável para a descoberta da verdade, o único obstáculo, imposto pelo interesse público, que poderá ser oposto ao exercício do direito de renúncia por parte do arguido.

E, não sendo obrigatória, não tem o tribunal o dever, nem sequer o direito, de fazer comparecer o arguido.

Aliás, seria ilógico e contraditório perfilhar a posição contrária. Na verdade, sendo a pretensão do legislador agilizar o procedimento no caso de falta de comparência do arguido, tendo a própria Constituição sido revista (nova redação do nº 6 do art. 32º) precisamente para que fosse possível realizar julgamentos na ausência do arguido, seria absurdo adotar soluções legislativas que mantivessem os obstáculos detetados e que dificultassem a realização do julgamento de arguido faltoso, quando estejam asseguradas as garantias de defesa. Seria deitar fora pela janela o que se fez entrar pela porta! Seria esvaziar ou frustrar substancialmente a revisão constitucional e a reforma legislativa que se lhe seguiu!

Por outro lado, e insistindo, seria também completamente incompreensível impor ao arguido a presença em julgamento em seu “benefício”. O estatuto de sujeito processual que a lei atribui ao arguido, envolvendo liberdade e autonomia de decisão, não se compadece com “tutelas” paternalistas. Chegaríamos ao absurdo de permitir a detenção do arguido (uma das “medidas admissíveis”, nos termos do art. 254º, nº 1, b), do CPP) para que ele em audiência (“à força”!) se defendesse…

A adoção das “medidas necessárias e legalmente admissíveis” para obter a comparência do arguido só se justifica, pois, quando o tribunal adiar o julgamento, por considerar a presença do arguido indispensável, e destina-se a garantir a presença do mesmo na segunda data marcada para a audiência (art. 312º, nº 2). É esse o sentido da previsão contida no nº 1 do art. 333º. Portanto, só quando há adiamento do julgamento, pela razão indicada, é possível, mediante as referidas medidas, impor ao arguido a sua presença.

O decretamento dessas medidas só tem sentido quando o arguido está obrigado a comparecer, já não quando a sua presença não é obrigatória.

Por último, não colhe também argumentar-se com os princípios da oralidade e da imediação, com o seu valor na recolha e avaliação da prova. É que a questão de direito que analisamos parte precisamente do pressuposto de que o juiz decidiu que a presença do arguido não é necessária para a descoberta da verdade material. Não tem, pois, sentido invocar aqueles princípios, que são atinentes à produção da prova.

Se o tribunal considerar que as declarações do arguido, a produzir oralmente em audiência, são indispensáveis para a descoberta da verdade, então, e repetindo, deverá adiar o julgamento para a segunda data marcada, nos termos dos arts. 333º, nº 1, e 312º, nº 2.

Sendo assim, a única solução conforme com as necessidades de agilização e aceleração do processo penal, e consequentemente de administração célere e eficiente da justiça penal, é a que considera não obrigatória a presença do arguido (e consequentemente desnecessária a realização de quaisquer diligências para obter a sua comparência) quando o tribunal considerar que ela não é indispensável para a descoberta da verdade material.

Essa solução, como vimos, é também absolutamente conforme com os direitos de defesa, cujo núcleo fundamental está inteiramente assegurado quando o julgamento é realizado na ausência do arguido.

Resumindo e concluindo:

Os elementos histórico e teleológico da interpretação da lei apontam decisivamente no sentido da interpretação aqui acolhida.

Os trabalhos legislativos são, como se disse, absolutamente claros quanto à preocupação do legislador na remoção dos obstáculos à tramitação processual que a obrigatoriedade da presença do arguido provocava. Os relatórios das propostas legislativas e os preâmbulos dos diplomas legais são inequívocos quanto à intenção de procurar evitar o adiamento dos julgamentos com base na falta do arguido, apontado como uma das “principais causas da morosidade da justiça penal”, e também de responsabilizar o arguido pelo andamento do processo, sem prejuízo da garantia dos direitos de defesa.

O elemento teleológico também não deixa dúvidas. A própria Constituição foi intencionalmente alterada, em ordem a permitir, sob certas condições (ou seja, desde que assegurados os direitos de defesa), o julgamento na ausência do arguido. A evolução legislativa, desde a revisão constitucional de 1997, vai no sentido de ampliar as hipóteses de julgamento na ausência do arguido, no respeito dos seus direitos de defesa, obviamente, e de considerar a presença como um direito do arguido, enquanto sujeito processual livre e autónomo.

Por fim, o elemento literal não se opõe de forma alguma à interpretação adotada. Na verdade, embora a redação do nº 1 do art. 333º não seja completamente clara (e daí certamente a existência de jurisprudência contraditória), refletindo aliás a sucessão de redações a que o preceito foi submetido, certo é que pode entender-se sem constrangimentos que a expressão “o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua [do arguido] comparência” se reporta exclusivamente ao caso em que o juiz decide o adiamento do julgamento, por considerar necessária a presença do arguido e daí que tenha de diligenciar pela sua presença futura, ou seja, na segunda data designada para a audiência.

A interpretação adotada tem, pois, expressão no texto da lei (art. 9º, nº 2, do Código Civil), e é a que melhor se coaduna com os elementos histórico e teleológico (nº 1 do citado art. 9º), e constitui a solução “mais acertada” para a questão de direito suscitada (nº 3 do citado art. 9º), na medida em que melhor responde às necessidades sentidas pelo legislador com a sua aprovação: combate à morosidade induzida pela falta de comparência do arguido em julgamento, sem prejuízo da salvaguarda plena dos direitos de defesa.

Perfilha-se, pois, a posição subscrita no acórdão recorrido.

III. DECISÃO

Com base no exposto decide-se:

a) Fixar a seguinte jurisprudência:

Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do nº 1 do art. 333º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do nº 3 do mesmo artigo;

b) Confirmar o acórdão recorrido.

Sem custas.

Cumpra-se oportunamente o disposto no art. 444º, nº 1, do CPP.

Lisboa, 8 de março de 2012 - Eduardo Maia Figueira da Costa (Relator) – António Pires Henriques da Graça – Raul Eduardo do Vale Raposo Borges – Isabel Celeste Alves Pais Martins – Manuel Joaquim Braz – José António Carmona da Mota – António Pereira Madeira – José Vaz dos Santos Carvalho – António Silva Henriques Gaspar – António Artur Rodrigues da Costa – Armindo dos Santos Monteiro – Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor – José António Henriques dos Santos Cabral – António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes – José Adriano Machado Souto de Moura – Luís António Noronha Nascimento (Presidente)

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[1] Diploma a que pertencem todas as normas adiante referidas sem indicação de origem.
[2] José António Barreiros, “O julgamento do novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal, O novo Código de Processo Penal, Almedina, 1989, pp. 277-278.
[3] Ver Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, pp. 360-361, anotação ao art. 32º de Germano Marques da Silva; e J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., p. 523.
[4] Ver a discussão na comissão parlamentar na ata da sessão de 11.9.1996, Diário da Assembleia da República (Atas da Comissão Parlamentar de Revisão Constitucional), pp. 533-538.
[5] Assim concluiu o Tribunal Constitucional no acórdão nº 465/2004.
[6] Sentença Hermi c/ Itália, de 18.10.2006, contendo, como habitualmente, referência a toda a jurisprudência do Tribunal sobre a matéria. Ver especialmente os nºs 58, 59, e 73-76.

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  DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencido pelas seguintes razões:

1. Delimitando a questão, desde logo cumpre dizer que, englobada no âmbito da falta e julgamento na ausência do arguido notificado para a audiência - a que se refere em epíteto o artº 333º do CPP -, nada tem a ver com a situação em que «a audiência tenha lugar na ausência do arguido com o seu consentimento, nos termos do artigo 334º, nº 2.» previsto no nº 4 do artº 333º do CPP.

            2. Como refere o presente acórdão de fixação de jurisprudência, “Trata-se, afinal, da interpretação do art. 333º, nº 1, do CPP”

3. Mas a questão controversa objeto de fixação de jurisprudência, perante a oposição de julgados, e reexaminando a oposição, não me parece ser a de “notificado o arguido da data da audiência de julgamento por forma regular (via postal simples, com prova de depósito, para a morada indicada no termo de identidade e residência), faltando ele à audiência sem justificar a falta, e considerando o tribunal não ser a presença do arguido indispensável à descoberta da verdade material, poderá o tribunal iniciar o julgamento e condenar o arguido na sua ausência, sem previamente tomar as medidas necessárias para assegurar a comparência do mesmo arguido?”- sublinhado meu -  mas sim: “notificado o arguido da data da audiência de julgamento por forma regular (via postal simples, com prova de depósito, para a morada indicada no termo de identidade e residência), faltando ele à audiência sem justificar a falta, e considerando o tribunal não ser absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a presença do arguido desde o início da audiência, poderá o tribunal iniciar o julgamento e condenar o arguido na sua ausência, sem previamente tomar as medidas necessárias para assegurar a comparência do mesmo arguido?”  - V. artº 333º nº 1 e 2 do CPP.

            4. A descoberta da verdade material é fim primordial do processo penal. Ínsita ao objeto do processo, constitui finalidade da audiência de discussão e julgamento.

                        5. Seria contradictio in adjecto considerar-se a presença do arguido como não indispensável à descoberta da verdade material, na realização da audiência de julgamento, sem o seu consentimento, uma vez que é sobre o arguido, sujeito processual, que recai a decisão final do objeto do processo, e o arguido durante a audiência poderá ou não querer (e tem sempre esse direito) de contribuir para a descoberta da verdade material.

6. «Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência» - artº 333º nº 1, 1ª parte, do CPP

7. «a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência» -artº 333º nº1, 2ª parte. (negrito meu).

 Ou, como refere o preâmbulo do Dec-Lei nº 320-C/2000, de 15-12, «só a podendo adiar nos casos em que aquele tenha sido regularmente notificado da mesma e a sua presença desde o início da audiência se afigurar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material.»

8. Se o tribunal considerar que não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a presença do arguido desde o início da audiência, a audiência inicia-se, pois como diz o artº 333º nº2 do CPP: -«Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, (…) a audiência não é adiada (…).

9. Mas, se a audiência não é adiada e, por isso pode começar sem a presença do arguido, não significa que fique legitimada a sua ausência.

10. O artº 333º nº 2 do CPP, não diz -«Se o tribunal considerar que a audiência pode realizar-se sem a presença do arguido» mas sim: - «Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido» (negrito meu)

11. Do termo de identidade e residência deve constar que ao arguido foi dado conhecimento nos termos do artº 196º nº 3 do CPP:

«a) Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou se manter à sua disposição dela sempre que a lei o obrigar ou para tal for devidamente notificado.»

12. O incumprimento pelo arguido da obrigação de comparecer à audiência para que foi notificado, “legitima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência”, mas, «nos termos do artigo 333º», conforme al. d) do nº2 do artº 196º do CPP.

 13. A realização da audiência quando o tribunal considerar que não é caso de adiamento nos termos dos nºs 1 e 2 do artº 333º do CPP, obriga à comparência do arguido à audiência porque: - «É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos artigos 333º, nºs 1 e 2, e 334º, nºs 1 e 2»- artº 332º nº 1 do CPP.

14. Por isso, «Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência» conforme determinação com que se inicia o nº 1 do artº 333ºdo CPP.

15. Essa solução de comparência obrigatória do arguido à audiência, cuja evolução legislativa o presente acórdão de fixação descreve, foi por regra uniforme, dela se afastando apenas a Lei 59/98 de 25 de agosto, mas que veio a ser sepultada pelo Dec-Lei nº 320-C/2000, de 15-12, e que as leis posteriores nº 48/2007 de 28 de agosto e 26/2010 de 30 de agosto, nesse aspeto mantiveram.

16. Não é apenas a descoberta da verdade material (inerente ao objeto do processo, e  finalidade de qualquer audiência – artº 340º nº 1 do CPP), ou/e, a defesa pessoal do arguido, que justifica a obrigatoriedade de comparência deste à audiência, e, por isso, faltando, a tomada pelo tribunal das medidas necessárias para a sua comparência, quando a audiência se inicie.

A audiência é a ‘rainha das provas´ (v. artº 355º nº 1 do CPP) e nela se decide o objeto do processo, no uso cabal do contraditório, de que o arguido é o sujeito processual passivo, o destinatário intuitus personae da decisão e das consequências jurídicas da mesma.

            17. Como refere o acórdão fundamento:

«As normas constantes dos nºs 1 e 2 do artigo 333° são de interesse e ordem pública, prendendo-se com o cerne das garantias do processo penal, e, por conseguinte, com a validade e eficácia do sistema legal processual penal.

Como todo o verdadeiro direito público, tem o direito processual penal na sua base o problema fulcral das relações entre o Estado e a pessoa individual e da posição desta na comunidade.

A via para um correto equacionamento de evolução do processo penal nos quadros do Estado de Direito material deve partir do reconhecimento e aceitação da tensão dialética inarredável entre a tutela dos interesses do arguido e a tutela dos interesses da sociedade representados pelo poder democrático do Estado.

Por isso, não exclui a sua audição, nem a tomada das medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência.

Daí que o n° 6 do mesmo artigo 333° explicite que é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 116°, n°s 1 e 2 e 254°.

Sendo a responsabilidade criminal meramente individual, e estando esta a ser apreciada no pretório, a comparência obrigatória do arguido, torna-se necessária ao exercício do contraditório.      

Note-se, por outro lado, que o encerramento da discussão da causa apenas ocorre depois das últimas declarações do arguido, pois que, como resulta do art° 361°, n°s 1 e 2, do CPP: “Findas as alegações, o presidente pergunta ao arguido se tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa, ouvindo-o em tudo o que declarar a bem dela. Em seguida, o presidente declara encerrada a discussão.”

Na verdade, o arguido é sujeito processual, de direitos e de deveres, e é na audiência, mediante o exercício pleno do contraditório, que o arguido se pode - e deve – defender, confrontado com as provas, já que a discussão da causa vai posteriormente implicar uma decisão, de harmonia com elas e com referência ao objeto do processo, decisão essa em que emite um juízo decisório sobre a conduta jurídico-penal imputada ao arguido, com reflexos notórios na sua vida pessoal e comunitária, pois que, sendo este absolvido, fica desvinculado da imputação havida, e restaurado à normalidade anterior ao juízo incriminatório, mas, se for condenado, fica sujeito às consequências jurídicas do crime.

(…)

Assim, dando o tribunal início à audiência, deveria ter tomado as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, uma vez que, como bem assinala a recorrente, “a realização da audiência nos sobreditos termos contende com o exercício pleno do direito de defesa da arguida e princípio da procura da verdade material que se impõe ao julgador”.

Por outro lado, há que considerar a relevância dos princípios da oralidade e imediação na audiência de julgamento.

Desde o momento em que – sobretudo por efeito do influxo das ideias de prevenção especial – se reconheceu a primacial importância da consideração da personalidade do arguido no processo penal não mais se podia duvidar da absoluta prevalência a conferir aos princípios da oralidade e da imediação.

Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais concretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.

E, só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso.»

18. Assim se compreende que, iniciada a audiência, a comparência do arguido, que para ela foi devidamente notificado, e que na data aprazada não compareceu, não deixa de ser legalmente obrigatória, por necessária e, por isso «o presidente do tribunal toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência»

19. Assim se compreende também que, se a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei – artº 118º nº 1 do CPP -, constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, a ausência do arguido ou do seu defensor, nos caso em que a lei exigir a respetiva comparência.

20. Consequentemente, fixaria jurisprudência nos seguintes termos:

«Se o arguido não estiver presente na hora designada para o início da audiência de julgamento, para a qual foi notificado nos termos legais, e não tiver sido justificada a falta, o tribunal, se considerar que, não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência, iniciará o julgamento sem a presença do arguido, e sem prejuízo do disposto no nº 3 do artº 333º do CPP, devendo, porém, o presidente tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência.»

António Pires Henriques da Graça

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DECLARAÇÃO DE VOTO

A letra do texto – tão linear se mostra ([1]) -  não nos oferece qualquer dificuldade interpretativa. Por isso, temo-lo interpretado ao pé da letra, tanto mais que a sua «doutrina» nos parece razoável, conseguindo conjugar inteligentemente o andamento célere do procedimento com as vantagens que a defesa, garantindo-lhe uma intervenção pessoal, pode retirar da eventual presença do arguido ainda que apenas no decurso – mais ou menos adiantado - da audiência.

Pois que, de outro modo, poderiam ficar comprometidos as garantias constitucionais 1.ªO processo criminal assegura todas as garantias de defesa»] e 6.ª [A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento] do art. 32.º da Constituição, uniformizaríamos jurisprudência nos seguintes termos:

«Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando sem justificar a falta, o tribunal, se considerar (nos termos do nº 1 do art. 333º do CPP, que a sua presença desde o início da audiência não é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade), deverá dar início ao julgamento, sem prejuízo de o presidente dever tomar logo as medidas necessárias e legalmente admissíveis para viabilizar a sua comparência no decurso da audiência (atendendo a que o arguido, apesar de faltar ao seu início, mantém, ex vi art. 333.3, o direito de prestar declarações até ao seu encerramento), designadamente na data designada subsidiariamente se o defensor tiver requerido ou eventualmente vier a requerer, nos termos dos mesmos art.º e n.º, que ele seja ouvido nessa segunda data»


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(J. Carmona da Mota)

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(J. Santos Carvalho)


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[1] CPP, Artigo 333.º (Falta e julgamento na ausência do arguido notificado para a audiência). 1 - Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência. 2 - Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta de arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.os 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º (6 - Havendo impossibilidade de comparecimento, mas não de prestação de declarações ou de depoimento, esta realizar-se-á no dia, hora e local que a autoridade judiciária designar, ouvido o médico assistente, se necessário.) 3 - No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do n.º 2 do artigo 312.