Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96/1999.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
CONVENÇÃO DE CHEQUE
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
CHEQUE
PAGAMENTO
DEVER DE DILIGÊNCIA
DEVER DE VIGILÂNCIA
DEVER ACESSÓRIO
FALSIFICAÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Data do Acordão: 05/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES/RESPONSABILIDADE CIVIL/ CONTRATOS
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS
Doutrina: - Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, págs. 54.
- Alberto Luís in Direito Bancário, Almedina, 1985, pág. 165, e O Problema da Responsabilidade Civil dos Bancos Por Prejuízos Que Causem a Direitos de Crédito, na ROA, Ano 59, pág. 908.
- Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11ª edição, pág. 1038, nota 3.
- António Caeiro e Nogueira Serens, Responsabilidade do Banco apresentante e do Banco sacado pelo pagamento de cheques com endosso falsificado, na Revista de Direito e Economia, nºs 1 e 2, 1983, pág. 57, 62, nota 7.
- Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed., pág. 660 e segs.; vol. II, 7ª ed., págs.97,103.
- Fernando Correia Gomes, in Responsabilidade Civil dos Bancos pelo pagamento de cheques falsos ou falsificados, pág. 12/13, 21 a 23;
- Ferrer Correia e António Caeiro, Recusa do pagamento de cheque pelo Banco sacado; responsabilidade do Banco face ao portador, na Revista de Direito e Economia, n.º 2, 1978, pág. 458.
- José Maria Pires, Direito Bancário, 2º Volume, pág. 334; O Cheque, Rei dos Livros, pág. 29/30, 32 a 34.
- Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, pág. 151e segs..
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 318/320.
- Paulo Olavo Cunha, in Cheque e Convenção de Cheque, 2009, págs. 441 e segs., 455 a 504 e 675.
- Pinto Monteiro, in Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, págs. 285/286.
- P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., págs. 507 a 510.
- Sofia de Sequeira Galvão, O Contrato de Cheque, ed. Lex, 1992, págs. 35 e segs., 58 e segs., 67/70.
- Vaz Serra, Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares e dos representantes legais ou dos substitutos, BMJ n.º 72, pág.270.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 165.º, 487.º, N.º2, 500.º, 563.º, 570.º, 571.º, 572.º, 798.º, 799.º, 800.º, Nº 1, 805.º, N.º3, 1185.º, 1205.º, 1206.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): -ARTIGOS 660.º, N.º2, 676.º, N.º1.
LEI UNIFORME SOBRE CHEQUES (LUCH): - ARTIGO 3.º.
REGULAMENTO DO SISTEMA DE COMPENSAÇÃO INTERBANCÁRIA – SICOI, ARTIGO 14º, Nº 1, AL. A), E ANEXO À INSTRUÇÃO Nº 3/2009, NO SÍTIO DA INTERNET DO BANCO DE PORTUGAL.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 16/05/1969, PROCESSO N.º 062608, SUMARIADO NO ITIJ, TAMBÉM NO BMJ 187º-145;
-DE 25/10/1979 E 22/05/1980, RESPECTIVAMENTE, NOS BMJ 280º-429 E 297º-368;
-DE 21/05/1996, CJ, 1996, TOMO II, PÁG. 82;
-DE 3/03/1998, NO BMJ 475º- 715, 9/11/00, CJ 2000-3-109;
-DE 11/01/2000 E 3/02/2000, NOS SUMÁRIOS 37º-17 E 38º-30, RESPECTIVAMENTE;
-DE 22/04/2004, PROCESSO N.º 04B1040, EM WWW.STJ.PT;
-DE 3/06/2004, PROCESSO N.º 04B1666, EM WWW.STJ.PT;
-DE 19/10/2004, PROCESSO N.º 04B2638, EM WWW.STJ.PT;
-DE 3/02/2005, PROCESSO N.º 04B4009, EM WWW.STJ.PT;
-DE 7/04/2005, PROCESSO N.º 05B175, EM WWW.STJ.PT;
-DE 25/10/2007, PROCESSO N.º 07B2543, EM WWW.STJ.PT;
-DE 7/03/2008, PROCESSO N.º 08B1850, EM WWW.STJ.PT;
-DE 31/03/2009, PROCESSO N.º 09A197, EM WWW.STJ.PT;
-DE 7/05/2009, PROCESSO N.º 195/2000.C2.S1, EM WWW.STJ.PT;
-DE 3/12/2009, PROCESSO N.º 588/09.0YFLSB, EM WWW.STJ.PT .
Sumário :

I - O depósito bancário pode caracterizar-se como o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma determinada quantidade de dinheiro a um banco, que adquire a respectiva propriedade e se obriga a restituí-lo no fim do prazo convencionado ou a pedido do depositante. O banco adquire a propriedade e a disponibilidade do dinheiro, e o depositante um direito de crédito sobre o banco.
II - A convenção de cheque é um contrato de prestação de serviços, mais concretamente um contrato de mandato sem representação, sinalagmático, que se caracteriza por o banco aceder a que o seu cliente, titular de um direito de crédito sobre a provisão, mobilize os fundos à sua disposição, por meio da emissão de cheques, vinculando-se o banco ao respectivo pagamento (art. 3.º da LUCH).
III - Da convenção de cheque deriva para os seus celebrantes uma multiplicidade de direitos e deveres, gerais e específicos, de conduta e de protecção.
IV - Para o cliente, sobressai a possibilidade de emitir cheques sobre os fundos de que dispõe, sabendo que o banco os pagará, recaindo paralelamente sobre si a obrigação de verificar regularmente o estado da sua conta e de guardar cuidadosamente os cheques, pondo-os a salvo de apropriações ilegítimas e a coberto de falsificações, e de dar imediatamente notícia de uma eventual perda; traduz-se tal obrigação no cumprimento de um dever de diligência, de uma prestação de facto, que, em princípio, deve ser pontualmente satisfeita pelo próprio devedor.
V - Para o banco, distingue-se como seu dever principal o dever de pagamento, e como deveres laterais o de rescindir o contrato de cheque em caso de utilização indevida, de observar a revogação do cheque, de esclarecer terceiros que reclamem informações sobre essa revogação, de verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados, de não pagar em dinheiro o cheque para levar em conta, de informar o cliente/sacador sobre o destino e tratamento do cheque, especialmente sobre a pessoa do apresentador.
VI - Se, por se entender estar-se perante um negócio de massas, na determinação do conteúdo deste dever, que recai sobre o banco, de fiscalização, de verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados para pagamento, as exigências não podem ser exageradas, todavia o cliente não pode ser prejudicado por um abrandamento do cumprimento das obrigações do banco.
VII - No caso de pagamento de cheque falsificado, o banco só se liberta da responsabilidade provando que não teve culpa e que o pagamento foi devido a comportamento culposo do depositante, sendo necessário que a culpa do depositante se sobreponha ou anule a responsabilidade do banco.




Decisão Texto Integral:

            Revista nº 96/1999.G1.S1[1]


    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

           

AA, residente no lugar da ..., intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra BB e mulher CC, residentes no mesmo lugar, “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, com sede na Av. João XXI, 63, Lisboa, e “Caixa Económica Montepio Geral”, com sede na Rua do Ouro, nº 219 a 241, Lisboa, pedindo a condenação:

a) Dos 1.ºs réus a pagarem à autora a quantia de 6.974.630$00, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde a data em que os réus estão na posse das parcelas dos valores que perfazem esta importância;

b) Dos 1.º réus a pagarem à autora os valores que vierem a apurar-se, em conformidade com o alegado nos art.ºs 43.º a 52.º da petição inicial, cuja liquidação se relega para execução de sentença, acrescida de juros vencidos e vincendos;

c) Das 2.ª e 3.ª rés a, solidariamente, pagarem à autora a quantia de 6.810.579$00, acrescida dos respectivos juros vencidos e vincendos, contados à taxa legal, desde a data em que tais importâncias foram pagas ao 1.º réu.

Alegou, em síntese, que exerce a actividade industrial de fabrico de componentes para calçado, tendo contratado com o 1º réu os respectivos serviços de contabilista, no exercício dos quais o 1.º réu recebia da autora as importâncias necessárias ao pagamento das correspondentes contribuições e impostos.

A relação entre a autora e o 1º réu durou desde o 3.º trimestre de 1994 até 1998/12/31 mediante contraprestação mensal de 10.000$00. Durante este período de tempo, o 1.º réu solicitou regularmente à autora os montantes devidos à Segurança Social e aos SIVA, por si calculados, a fim de proceder à sua entrega no Centro Regional de Segurança Social e nos SIVA, respectivamente. Apesar de a autora lhe entregar tais montantes, o 1.º réu apropriava-se de parte dos mesmos, procedendo à entrega de apenas uma parte aos serviços públicos a que se destinavam.

Nesse período, a autora entregou ao 1.º réu, em cheques e dinheiro, para este entregar no Centro Regional de Segurança Social, a quantia de 2.125.603$00, mas ele apenas entregou o valor de 667.973$00, apropriando-se de 1.457.630$00. Do mesmo modo, entregou-lhe, em cheques, a quantia de 6.810.597$00, e deste valor, o 1.º réu apenas entregou aos SIVA o montante de 1.293.597$00, apropriando-se de 5.517.000$00.

Relativamente a estes cheques, o 1.º réu, na sua posse, apagava a designação “Direcção-Geral do Tesouro” aposta no lugar destinado ao beneficiário e aí colocava o seu próprio nome. Após esta operação, o 1.º réu dirigia-se ao balcão do “Montepio Geral”, agência de Felgueiras, e aí depositava na sua conta bancária os ditos cheques recebidos da autora Os Bancos, ora 2.º e 3.º réus, apesar da falsificação, procederam ao pagamento das referidas quantias directamente ao 1.º réu, não cuidando de apurarem das razões daquela falsificação, tanto mais que muitos dos cheques estavam cruzados.

Regularmente citados, todos os réus contestaram.

Os 1.ºs excepcionaram a ilegitimidade passiva da ré mulher, e impugnaram o alegado na petição, nomeadamente reconhecem estar em dívida à Segurança Social não a quantia indicada na petição mas a de 1.384.509$60, e, quanto ao IVA, não ter a autora sofrido qualquer prejuízo pois as verbas em dívida pertencem ao Estado que ainda as não reclamou.

A 2.ª ré, “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, impugnou a matéria da petição e invocou nunca ter tido acesso à maior parte dos cheques em questão, em virtude de os mesmos terem sido apresentados a pagamento nos balcões da 3.ª ré, não lhe tendo sido enviados para conferência de acordo com as regras vigentes para o sistema de compensação implementado pelo Banco de Portugal.

Assim, não lhe era possível detectar a alegada falsificação, mas também a forma sumaríssima de preenchimento dos cheques pela autora facilitou a tarefa do falsificador, e concluiu pedindo a improcedência da acção quanto a si.

- A 3.ª ré,“Caixa Económica Montepio Geral”, impugnou a matéria da petição inicial, alegando ter actuado sempre de boa-fé, desconhecendo os pactos existentes entre a sacadora e o endossado, o que foi combinado quanto ao preenchimento e destino dos cheques, bem como a falsificação dos cheques em causa.

A autora replicou, pugnando pela improcedência das excepções e referindo ter recebido dos SIVA os avisos para proceder, em relação aos 1.º, 2.º e 3.º trimestres de 1998, ao pagamento da quantia de 1.240.030$00, acrescida de juros referentes a esse mesmo período, no total de 75.928$00.

No despacho saneador julgou-se procedente a excepção de ilegitimidade suscitada pelos 1.ºs réus, e, consequentemente, foi absolvida a 1.ª ré mulher da instância. Procedeu-se à condensação dos autos, sem reclamações.

A autora requereu a intervenção principal da “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, desta vez na figura de credora titular de hipoteca sobre o prédio urbano pertencente aos 1.ºs réus objecto de providência cautelar de arresto promovida pela impetrante no apenso A, penhorado no processo executivo n.º 84/01, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras. Tal intervenção foi admitida (fls. 181 a 183 e 215/216).

A chamada agravou desta decisão, recurso admitido com subida diferida.

Posteriormente, por via do falecimento do 1.º réu marido, foram habilitados como seus herdeiros, para com eles prosseguir a acção, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, LL e MM.

Realizada a audiência de discussão e julgamento e decidida a matéria de facto, sem reclamação, a sentença que se seguiu julgou a acção parcialmente procedente, e, em consequência, decidiu:

A) Condenar solidariamente a herança aberta por óbito do 1.º R., BB, representada pelos seus herdeiros, a 2.ª R. “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” e a 3.ª R. “Caixa Económica Montepio Geral”, a pagarem à autora a quantia de 18.659,34 €, acrescida de juros de mora, às sucessivas taxas legais, contados desde a data da entrega de cada uma parcelas que compõem o referido montante, sobre o correspondente valor, até efectivo e integral pagamento;

B) Condenar solidariamente a referida herança, e a 2.ª R. “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, a pagarem à autora a quantia de 5.754,36 €, acrescida de juros de mora, às sucessivas taxas legais, contados desde a data da entrega de cada uma parcelas que compõem o referido montante, sobre o correspondente valor, até efectivo e integral pagamento;

C) Condenar a mesma herança a pagar à autora, a quantia de 10.375,61 €, acrescida de juros de mora, às sucessivas taxas legais, contados desde a data da entrega de cada uma parcelas que compõem o referido montante, sobre o correspondente valor, até efectivo e integral pagamento;

D) Absolver todos os réus, da restante parte do pedido.

Inconformadas, recorreram as rés CGD e CEMG. O Tribunal da Relação de Guimarães, por unanimidade, deliberou, no acórdão de 28/06/11, a improcedência dos recursos e manteve a decisão recorrida (fls. 813 a 842).

Mantendo-se irresignadas, recorrem para este Supremo Tribunal de Justiça.

Nas alegações que apresentam formulam as seguintes conclusões:

Caixa Geral de Depósitos, S.A

1) A responsabilidade contratual da recorrente baseia-se em culpa presumida, uma vez que embora alguns dos cheques indevidamente pagos ao falecido BB apresentassem rasuras, não consta, todavia, dos factos provados, a dimensão e visibilidade dessas mesmas rasuras, designadamente a sua possibilidade de detecção por um funcionário bancário, medianamente diligente, apto e experiente, sobretudo em relação aos cheques cuja cópia foi enviada à CGD pelo Montepio, porque, quanto aos demais - cheques de valor inferior a 200.000$00 - a CGD nem acesso teve aos mesmos

2) A viciação dos cheques ocorreu numa fase que antecedeu a entrega dos mesmos ao beneficiário, num momento em que os mesmos estavam ainda na esfera de disponibilidade da sacadora, responsável pela sua guarda, até que se concretizasse aquela entrega ao SIVA.

3) Incumbia à autora, enquanto cliente do banco e titular dos cheques, a guarda cuidadosa dos mesmos até à sua entrega ao destinatário e o seu preenchimento correcto.

4) Para além da obrigação de entrega dos cheques, no SIVA, a autora incumbiu o mesmo contabilista da guarda e conservação dos mesmos cheques, evitando a sua adulteração, obrigações que este manifestamente não cumpriu e sendo que foi na incumbência dessa tarefa (e não por ter furtado os cheques, por exemplo) que tais actos foram praticados.

5) Por isso, a autora responde, independentemente de culpa, por acto desse terceiro e como se estivesse em causa acto culposo dela mesma que, como tal, implica a exclusão da obrigação de indemnizar a cargo dos bancos RR

Sem prescindir:

6) Embora se apropriasse dos cheques em causa destinados a pagar IVA, o falecido BB substituía o pagamento das verbas neles contidas por outras de menor valor que entregou no SIVA, num total de 1.293.597$000 (6.452,43 €).

7) O valor global dos cheques ora em causa é de 4.894.508$00 (24.413,70 €), inferior ao valor total de 5.517.000$00 referido no facto provado 19 e que necessariamente englobará outros cheques ou outros meios de pagamento que aqui não estão em causa.

8) Assim só em incidente de liquidação de sentença em que se demonstre qual o montante - daquela verba global de1.293.597$000 (6.452,43 €) - que o BB entregou, no SIVA em "substituição" de cada um dos cheques de cujo montante se apropriou é que se poderá fixar o valor dos danos suportados pela autora.

9) Circunstância que, por arrastamento, implicará que não sejam devidos juros de mora (art 805, nº 3 do C Civil)

10) Decidindo de outro forma, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts 800, nº 1, 570, nºs 1 e 2, 571, 562 e 563 C Civil e 661, nº 2 do C P civil.

Caixa Económica Montepio Geral

I - Em 1994 e 1995 a A. foi avisada de que o 1º R. seu contabilista, tinha comportamentos irregulares desonestos.

II - A A. teve esse conhecimento através de um seu familiar.

III - A A. apesar de avisada não tomou, atempadamente, qualquer medida com vista ao controle da actividade do seu contabilista, que esteve na origem dos factos danosos de que tratam os presentes.

IV - A conduta permissiva da A. tem juridicamente peso em termos de repartição de culpas.

V - Existe culpa da A. lesada nos efeitos da conduta do seu contabilista infiel, ao escolher, ao confiar no mesmo sabendo que ele não usava de correcção.

VI - Por força do disposto nos artigos 570º, nº 1; 571º e 572º, todos do Código deve ser reduzido o valor a pagar pela recorrente.

VII - Na sentença recorrida foi feita uma errada interpretação e aplicação dos mencionados preceitos, que deviam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de que, por também haver culpa da A. lesada, deve ser reduzido o valor a pagar pela ora recorrente.

VIII - Deve ser revogada, parcialmente, a sentença recorrida, em consequência, reduzido o valor a pagar pela CEMG, dado haver culpa da A. lesada.

A recorrida contra-alegou argumentando que as alegações e conclusões das recorrentes em nada são inovadoras em relação às que apresentaram na apelação, sobre as quais já obtiveram o acórdão recorrido, e pugnando pela manutenção do decidido.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



O objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, salvo as questões de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil[2] – por diante CPC.

São as seguintes as questões suscitadas que importa apreciar e decidir:

a) Se existe culpa da autora ou ela responde, independentemente de culpa, por acto de terceiro;

b) Se deve ser excluída a obrigação de indemnizar a cargo dos bancos ou reduzido o seu valor a pagar;

c) Se só em incidente de liquidação de sentença é que se poderá fixar o valor dos danos suportados pela autora;

d) Se não são devidos juros de mora.



                                             II-FUNDAMENTAÇÃO

DE FACTO

A matéria de facto que vem provada é a seguinte:

1) O 1.º R. marido é o proprietário e gerente de um gabinete de contabilidade, sito no ...(MFA).

2) No exercício da sua actividade, o 1.º R. presta serviços de contabilidade fiscal e de Segurança Social a sociedades e a firmas em nome individual (MFA).

3) A A. exerce, em nome individual, a actividade industrial de componentes para calçado, num estabelecimento sediado no referido ... (BI).

4) O 1.º R. convence os seus clientes que, face aos elementos nas suas empresas, organiza, estuda e elabora a planificação dos circuitos contabilísticos para a obtenção dos elementos mais adequados ao cumprimento da legislação comercial e fiscal (BI).

5) …Procede à escrituração dos registos e livros de contabilidade, elabora informações contabilísticas a fornecer aos serviços públicos, preenchendo os correspondentes impressos, de conformidade com aquela escrituração, para os serviços do IVA, IRS e da Segurança Social, calcula os impostos ou contribuições devidos a estes referidos serviços (BI).

6) …Solicita aos seus clientes as importâncias calculadas para proceder ao pagamento das mesmas nos correspondentes serviços (BI).

7) A A., que nada sabia, nem sabe, de contabilidade, e sempre se convenceu que o R. era um bom contabilista e honesto, entregou-lhe a sua contabilidade (BI).

8) Desde o 3.º trimestre do ano de 1994 até 1998/12/31, o 1.º R. prestou serviços de contabilidade fiscal e de Segurança Social à A., mediante a contraprestação mensal de Esc. 10.000$00 (BI).

9) Durante este período de tempo, o R. solicitou mensalmente à A., em razão dos seus trabalhadores, os montantes devidos à Segurança Social, para efeitos de proceder à sua entrega no Centro Regional de Segurança Social (BI).

10) A A. sempre se convenceu que o R. procedia à entrega dos referidos montantes no Centro Regional de Segurança Social e por isso entregava-lhe os montantes por ele solicitados para esse fim (BI).

11) A A., durante todo o período referido em 9), entregou ao 1.º R., para este entregar no Centro Regional de Segurança Social, várias parcelas de valores, em cheques e em dinheiro, que perfazem a quantia global de Esc. 2.125.603$00, do qual o 1.º R. apenas entregou no referido Centro a quantia de Esc. 667.973$00, não entregando a quantia de Esc. 1.457.630$00, montante este que a A. deve e terá que pagar à Segurança Social, só se tendo inteirado desta situação em finais de 1998 (BI).

12) O 1.º R. solicitou à A. trimestralmente os montantes devidos ao IVA correspondentes ao 4.º trimestre de 1994 até ao 3.º trimestre de 1998, ambos inclusive (BI).

13) O 1.º R. preenchia os respectivos impressos e neles calculava o imposto devido ao Estado, relativamente ao IVA, após o que levava estes impressos à A. para que a mesma os assinasse e emitisse o cheque correspondente ao IVA calculado para cada trimestre (BI).

14) Para melhor tranquilidade da A. e de acordo com os avisos do SIVA, o 1.º R. solicitava-lhe que os cheques fossem emitidos em nome da Direcção-Geral do Tesouro (BI).

15) A A. assinava as declarações que lhe eram apresentadas pelo 1.º R. e, de conformidade com o valor do imposto calculado pelo 1.º R., emitia a favor da Direcção-Geral do Tesouro, no preciso valor indicado, os correspondentes cheques, que assinava, após o que os entregava ao 1.º R., para serem enviados ao SIVA (BI).

16) A A. entregou ao 1.º R. para o efeito cheques no montante global de Esc. 6.810.597$00, sacados sobre a “Caixa Geral de Depósitos”, agência de Felgueiras, entre os quais os enumerados na relação constante do documento n.º 15 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido (BI).

17) O 1.º R., uma vez na posse destes cheques, apagou a designação “Direcção-Geral do Tesouro” ou “D.G.T.” aposta nos cheques elencados na relação constante do documento n.º 15 sob os n.ºs 4, 5, 6, 7, 9, 10, 12, 13, 14, 15 e 16 e sobre a correspondente linha colocou o seu próprio nome, após o que procedeu ao depósito dos cheques aludidos em 7, 9, 10, 12, 13, 14, 15 e 16 do mesmo documento na sua conta bancária no balcão do “Montepio Geral” (BI).

18) Os banqueiros 2.º e 3.º RR. procederam ao pagamento da quantia de Esc. 3.740.862$00 directamente ao 1.º R. – referente aos cheques aludidos em 7, 9, 10, 12, 13, 14, 15 e 16 da relação constante do documento n.º 15 -, tendo a 2.ª R. e o “B.C.P.” pago directamente ainda ao 1.º R. a quantia de Esc. 1.153.646$00 – referente aos cheques aludidos em 4, 5 e 6 da relação constante do dito documento n.º 15 -, não apurando das razões da adulteração de tais cheques (BI).

19) O 1.º R., por conta das participações que fizera ao SIVA, sem o conhecimento da A., apenas pagou à Direcção-Geral do Tesouro a quantia global de Esc. 1.293.597$00, guardando para si a quantia de Esc. 5.517.000$00 (BI).

20) Os cheques recebidos da A. pelo 1.º R. marido foram apresentados a pagamento no balcão do “Montepio Geral”, agência de Felgueiras (MFA).

21) Até Dezembro de 1996, a 2.ª R. “C.G.D.” não teve acesso aos cheques de valor inferior a Esc. 200.000$00, e a partir desta data aos cheques de valor inferior a Esc. 500.000$00 e à sua forma de preenchimento (BI).

22) Os cheques que chegaram à “C.G.D.”, vindos da compensação, não apresentavam qualquer rasura quanto aos elementos respeitantes aos valores, data e assinatura do emitente, embora alguns deles evidenciassem uma rasura (em outros elementos) (BI).

23) O 1.º R. BB era uma pessoa conhecida dos funcionários da agência da “C.G.D.”, respeitado e considerado (BI).

24) A A. já recebeu do SIVA os avisos para proceder ao pagamento, em relação ao 1.º, 2.º e 3.º trimestres do ano de 1998, da quantia de Esc. 1.240.030$00, tendo ainda de pagar relativamente a este mesmo período, de juros, a quantia de Esc. 75.298$00 (BI).

25) Teor do acórdão proferido no processo comum colectivo n.º 280/00.1TBFLG, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, junto por certidão a fls. 583 a 601, que aqui se dá por integralmente reproduzido (Doc.).



            DE DIREITO

A) Se existe culpa da autora ou ela responde, independentemente de culpa, por acto de terceiro

Em apreciação e interpretação da prova produzida a Relação decidiu, de forma soberana, pois como é jurisprudência corrente a determinação da culpa é matéria de facto[3], que a autora não contribuiu culposamente para a emissão e pagamento dos cheques em causa.

Porém, como as recorrentes suscitam tal avaliação de culpa por reporte à interpretação de algumas normas do Código Civil, arts. 800º, nº 1 e 571º, cabe dentro da esfera de competência deste Tribunal a respectiva sindicância.

Sendo assim, perante a matéria de facto apurada pelas instâncias, para melhor compreensão, delineemos os traços fundamentais do litígio que opõe as partes:

- A autora/recorrida exerce, em nome individual, a actividade industrial de fabrico de componentes para calçado, enquanto o 1º réu BB, entretanto falecido, era proprietário e gerente de um gabinete de contabilidade;

- Desde o 3º trimestre de 1994 até 31/12/1998, este réu prestou serviços de contabilidade fiscal e de Segurança Social à autora mediante o pagamento de uma contraprestação mensal de 10.000$00;

- No âmbito desses serviços, o réu encarregou-se de proceder à escrituração dos registos e livros de contabilidade da sociedade da autora, elaborar informações contabilísticas a fornecer aos serviços públicos, preencher os correspondentes impressos de conformidade com aquela escrituração para os serviços do IVA (SIVA), IRS e Segurança Social, calcular os impostos ou contribuições devidas aos referidos serviços, e recebia da autora as importâncias calculadas para proceder ao pagamento das mesmas nos correspondentes serviços;

- A autora, durante aquele referido período, entregou ao réu, para ele entregar no Centro Regional de Segurança Social, relativamente aos seus trabalhadores, vários cheques nos montantes devidos, assinava as declarações que lhe eram apresentadas pelo réu de conformidade com o valor do imposto por ele calculado, e emitiu a favor da Direcção-Geral do Tesouro, no preciso valor indicado, os correspondentes cheques, que assinava, após o que lhos entregava para serem enviados aos SIVA;

- O réu BB, uma vez na posse desses cheques, sacados sobre a CGD, apagou a designação do beneficiário “Direcção-Geral do Tesouro” ou “D.G.T.” e sobre a correspondente linha colocou o seu próprio nome, após o que procedeu ao depósito dos cheques na sua conta bancária no balcão do “Montepio Geral”, agência de Felgueiras, que lhes deu pagamento, e depois a Caixa Geral de Depósitos (CGD) por via do sistema de compensação interbancária;

- O réu entregava ao CRSS e aos SIVA valores inferiores aos que indicava à autora.

Entendidas as razões da emissão dos cheques, os seus portadores, e itinerário, temos que os cheques sacados pela autora sobre a recorrente CGD denunciam haver sido entre elas celebrado um contrato de depósito bancário e estabelecido um “contrato ou convenção de cheque” tacitamente concluido com a entrega do livro de cheques à autora.

O depósito bancário pode caracterizar-se como “o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma determinada quantidade de dinheiro a um banco, que adquire a respectiva propriedade e se obriga a restituí-lo no fim do prazo convencionado ou a pedido do depositante”. O banco adquire a propriedade e a disponibilidade do dinheiro, e o depositante um direito de crédito sobre o banco[4].

Trata-se de um depósito irregular a que são aplicáveis, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo (arts. 1185º, 1205º e 1206º do Código Civil).

Por seu turno, e com especial relevância para a questão que nos ocupa, a convenção de cheque é um contrato de prestação de serviços, mais concretamente um contrato de mandato sem representação[5], sinalagmático, que se caracteriza por o banco aceder a que o seu cliente, titular de um direito de crédito sobre a provisão[6], mobilize os fundos à sua disposição, por meio da emissão de cheques, vinculando-se o banco ao respectivo pagamento (cfr. art. 3º da Lei Uniforme Sobre Cheques – LUCH)[7].

Desta convenção de cheque deriva para os seus celebrantes uma multiplicidade de direitos e deveres gerais e específicos de conduta e de protecção, de entre os quais sobressaem, para o cliente, a possibilidade de emitir cheques sobre os fundos de que dispõe, sabendo que o banco os pagará, recaindo paralelamente sobre si a obrigação de verificar regularmente o estado da sua conta e de guardar cuidadosamente os cheques, pondo-os a salvo de apropriações ilegítimas e a coberto de falsificações, e de dar imediatamente notícia de uma eventual perda. Traduz-se tal obrigação no cumprimento de um dever de diligência, de uma prestação de facto, que, em princípio, deve ser pontualmente satisfeita pelo próprio devedor.

Para o banco, distingue-se como seu dever principal o dever de pagamento, e como deveres laterais o de rescindir o contrato de cheque em caso de utilização indevida, de observar a revogação do cheque, de esclarecer terceiros que reclamem informações sobre essa revogação, de verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados, de não pagar em dinheiro o cheque para levar em conta, de informar o cliente/sacador sobre o destino e tratamento do cheque, especialmente sobre a pessoa do apresentador[8].

No que concerne ao que aqui nos importa, e como se acaba de referir, sobre o banco recai o dever de verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados para pagamento, o que "pode ser decisivo na determinação do suporte do risco de falsificações e de apresentação por um não titular", bem como o de informar o cliente sobre o destino do cheque.

Se, por se entender estar-se perante um negócio de massas, na determinação do conteúdo deste dever de fiscalização as exigências não podem ser exageradas, todavia, como considera Sofia Galvão, a págs. 67/68 da obra que vimos citando, “em qualquer caso, o Cliente nunca pode ser prejudicado por um abrandamento do cumprimento das obrigações do Banco que seja, meramente, ditado por objectivos de redução de custos ou de celeridade de trânsito.

Assim, de um modo geral, o Banco cumpre o seu dever de fiscalização quando se convence, de um modo que corresponde às exigências do trânsito em massa, que o cheque, pela sua aparência global exterior, dá impressão de ser verdadeiro.

Expressão decisiva deste dever é um outro dever essencial. O de verificação da assinatura.

Este é verdadeiramente absoluto. O Banco só se liberta da responsabilidade se conseguir provar que, mesmo cumprindo escrupulosamente tal dever, não podia ter dado pela falsificação”.

Este princípio geral, contudo, não exclui que o cliente/sacador não deva ser responsabilizado, nomeadamente se não acautelou a vigilância dos cheques, se não adoptou um “cuidado razoável no saque dos cheques[9] e com um preenchimento pouco precautório dos mesmos deu origem à sua falsificação, ou se conhecia a falsificação e não informou o banco.

Trata-se de situações de que o cliente tem um particular domínio, e nessa medida deve ser responsabilizado.



Alinhados estes princípios, consideremos, então, as censuras apontadas ao acórdão recorrido.

Recorda-se que as instâncias concluíram por culpa das rés recorrentes no pagamento dos cheques mencionados, por violação do seu dever de fiscalização associado à convenção de cheque, de verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados. Responsabilidade que elas pretendem excluir ou esbater com a culpa da autora.

Assim, começando pela recorrente/ré CGD, sustenta a mesma que a autora deve responder, independentemente de culpa, por acto do réu BB, e como se estivesse em causa acto culposo dela autora, o que implica a exclusão da obrigação de indemnizar a cargo dos bancos réus.

Isto, porquanto a viciação dos cheques ocorreu numa fase que antecedeu a sua entrega ao beneficiário, num momento em que os mesmos estavam ainda na esfera de disponibilidade da sacadora/autora, responsável pela sua guarda, até que se concretizasse aquela entrega aos SIVA.

Para tanto, invoca que a autora incumbiu o 1º réu BB, seu contabilista, da guarda e conservação dos mesmos cheques, evitando a sua adulteração, obrigações que este manifestamente não cumpriu e sendo que foi na incumbência dessa tarefa que tais actos foram praticados. Se, para cumprir tal obrigação - guarda e protecção dos cheques e entrega dos mesmos ao beneficiário - a autora se socorreu de um colaborador desonesto que procedeu á falsificação, responderá pela actuação deste, ao invés de, lavando daí as mãos imputar a responsabilidade a terceiros.

Vejamos.

É um facto que este Supremo Tribunal, no caso de pagamento de cheque falsificado, vem decidindo que o banco só se liberta da responsabilidade provando que não teve culpa e que o pagamento foi devido a comportamento culposo do depositante, sendo necessário que a culpa do depositante se sobreponha ou anule a responsabilidade do banco[10], e é nesta linha de entendimento que a recorrente se acolhe.

No acórdão recorrido desatendeu-se tal invocação argumentando-se que: “não foi na execução do serviço cometido ao 1º réu, que este praticou qualquer acto que lesou terceiro ou a autora. O serviço que lhe foi cometido foi o de entregar os cheques aos respectivos beneficiários, neles indicados. Pelo facto dele não ter cumprido essa incumbência, responde a autora perante os beneficiários dos cheques, in casu, perante as Finanças e a Segurança Social, pagando a dívida, as eventuais coimas e juros de mora. Por qualquer acto por ele praticado na execução das tarefas cometidas, poderia a autora responder, mas não pelos actos dolosos que não foram praticados no exercício das funções cometidas.

A falsificação dos cheques e sua apropriação pelo 1º réu não cabem na tarefa de que a autora o encarregou, nem sequer lateralmente. Seria o mesmo que responsabilizar a autora por um assalto ao Banco, perpetrado pelo 1º réu quando, eventualmente, aí fosse tratar de assuntos do interesse desta.

(...) A “ocasião” foi gerada pela autora, mas é da inteira responsabilidade do 1º réu, que dolosamente falsificou os cheques (como poderia ter assaltado o Banco) e é também da responsabilidade do Banco que não curou de analisar os cheques, sendo certo que se o tivesse feito poderia ter-se apercebido das rasuras, letras emendadas e diferentes das outras (escrita descontínua) e alterações na textura do papel, aliás palpáveis e por nós constatadas em sede da reapreciação da matéria de facto. “.
É sabido que na sociedade hodierna, face à multiplicidade e complexidade de situações e exigências fiscais, os devedores se servem de auxiliares, empregados ou sociedades contratadas, confiando-lhes o cumprimento de algumas obrigações correntes, desencadeando o problema da responsabilidade pelos factos praticados por auxiliares, representantes ou subordinados.
Dando resposta a esse problema, prescreve o n.º 1 do art. 800.º do Código Civil que: “O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor”.

Sobre a razão de ser da norma são elucidativos os ensinamentos de Vaz Serra: “O devedor, que se aproveita de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento. Com tais auxiliares alargam-se as possibilidades do devedor, o qual, assim como tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentes à utilização deles[11].

Também, como esclarece Antunes Varela, “a responsabilidade lançada sobre o devedor abrange portanto os actos dos seus auxiliares (mandatários, procuradores, comissários, depositários, etc.), contanto que o sejam no cumprimento da obrigação. Trata-se de uma verdadeira responsabilidade objectiva, na medida em que para ela se não exige culpa do devedor (na escolha das pessoas, nas instruções para a sua colaboração ou na fiscalização da sua actividade)[12].

Nesta consonância, entende-se de forma praticamente unânime que a responsabilidade prevista no dito art. 800º, n.º 1, se refere apenas a actos praticados pelo auxiliar do devedor no cumprimento da obrigação deste para com o credor, com exclusão dos que lhe sejam estranhos, embora praticados por ocasião do cumprimento[13].

Na verdade, o espírito deste normativo é o de manter a responsabilidade do devedor para com o seu credor pelos actos praticados pelo seu auxiliar aquando e intimamente relacionados com o cumprimento da obrigação do mesmo devedor, em consequência sujeitos a orientação, fiscalização ou vigilância deste. Visa o legislador obviar a situações de incumprimento em que por não haver culpa do devedor ficasse o credor a sofrer as consequências da culpa do auxiliar daquele.

No caso vertente, esse binómio devedor-credor está retratado na relação entre a autora e o Estado (Centro Regional de Segurança Social e SIVA), o beneficiário dos cheques, e é a observância daquele nº 1 do art. 800º que explica que pelo incumprimento culposo do 1º réu BB a autora não tenha sido exonerada da sua responsabilidade e tenha de responder perante o beneficiário Estado, pagando a dívida, as eventuais coimas, e juros de mora.



É outro o enfoque jurídico da questão trazida pela recorrente, a dilucidar e resolver entre ela e a autora.

Não existindo na nossa lei interna relativa ao cheque um regime aplicável à falsificação do cheque[14], teremos de nos socorrer dos princípios que informam a regulamentação jurídica do cheque, pela ponderação dos deveres que tenham sido violados.

Estamos perante uma viciação de cheques, estamos no âmbito da convenção de cheque, o mesmo é dizer numa relação contratual de que são partes a autora e a recorrente CGD, pela qual esta acedeu a que a primeira mobilizasse fundos, por meio da emissão de cheques, em relação aos quais detém um direito e crédito, e da qual, como vimos, para ambas derivaram uma multiplicidade de deveres. De entre eles se destacam, para a autora, um especial dever de diligência, e o de informação à recorrente se conhecia a falsificação, e para esta, perante a cliente/sacadora, avulta como dever principal o dever de pagamento, a par de outros deveres colaterais.

Sendo a convenção de cheque um contrato, é no seu âmbito que se coloca o problema da responsabilidade do sacador/depositante pelo pagamento indevido de cheque pelo sacado, com óbvio recurso aos princípios gerais da responsabilidade civil contratual, segundo os quais a responsabilidade é de imputar ao contraente a que seja de atribuir culpa assente em juízo de censurabilidade, princípio base consagrado no art. 798º do Código Civil.

 Pelos danos causados pelo pagamento de cheques falsificados, responde aquele contraente a que seja de atribuir culpa na emissão e pagamento do cheque por violação dos deveres contratuais e legais que lhe incumbia observar.

Como acima já anotámos, citando Sofia Galvão, não pode recair sobre o cliente um eventual relaxamento na observância dos citados deveres por parte do banco, seja ele ditado por meros objectivos de redução de custos ou por razões de celeridade do tráfico comercial. Foi precisamente por violação dos seus deveres, ditos colaterais ou acessórios, de verificação da assinatura e de informação da cliente/sacadora para esclarecimento dos factos pois que os cheques se apresentavam claramente rasurados[15], que as instâncias responsabilizaram nos termos já descritos os bancos réus, solidariamente com a herança por óbito do réu BB, pelo prejuízo causado à autora.

Segundo Fernando Correia Gomes[16], o banco, sobre quem impende a presunção de culpa no âmbito da responsabilidade contratual, consignada no art. 799º, nº 1 do Código Civil, só se exime à responsabilidade total pelos prejuízos sofridos pelo cliente se:

- conseguir provar que agiu sem culpa, que agiu com a diligência que lhe era exigível;

- conseguir provar a culpa exclusiva do cliente;

- provando-se negligência sua (para além da presunção de culpa), se provar, igualmente, negligência do cliente.

José Maria Pires[17] é da mesma opinião na medida em que defende que “o banco depositário assume a responsabilidade pelos danos resultantes de um levantamento indevido derivado de documento falsificado, a não ser que o mesmo banco possa provar que o depositante agiu com dolo ou negligência”, caso em que a responsabilidade deve ser repartida entre depositante e o banco, segundo o grau de responsabilidade de cada um deles. Não deixa, contudo, de notar que a posição do banco se apresenta juridicamente menos protegida, na medida em que lhe compete o ónus de prova.

Também este Supremo Tribunal vem de forma persistente decidindo em idêntico sentido, como se dá nota nos acórdãos de 3/03/98, no BMJ 475º- 715, 9/11/00 na CJ 2000-3-109[18], e mais recentemente de 7/05/09, Proc. nº 195/2000.C2.S1 e 3/12/09, Proc. nº 588/09.0YFLSB, desta Secção, disponíveis no ITIJ.

Será igualmente no âmbito deste contrato, das previsões definitórias do pacto do cheque, que temos de indagar se a autora também violou algum dos seus deveres, de molde a contribuir para o pagamento indevido dos cheques. É no campo destes deveres em que o cliente aparentemente domina, ou tem possibilidades de dominar, o curso dos acontecimentos, e seu incumprimento, que se tem de apurar se deve ser responsabilizado[19].

E, relativamente a este ponto, o que ficou provado? Vem assente que:

- A autora nada sabia, nem sabe, de contabilidade, e sempre se convenceu que o réu era um bom contabilista e honesto, entregou-lhe a sua contabilidade;

- Desde o 3.º trimestre do ano de 1994 até 1998/12/31, o réu BB prestou serviços de contabilidade fiscal e de Segurança Social à autora, mediante a contraprestação mensal de 10.000$00;

- Durante este período de tempo, este réu solicitou mensalmente à autora, em razão dos seus trabalhadores, os montantes devidos à Segurança Social, para efeitos de proceder à sua entrega no Centro Regional de Segurança Social;

- A autora sempre se convenceu que o réu procedia à entrega dos referidos montantes no Centro Regional de Segurança Social e por isso entregava-lhe os montantes por ele solicitados para esse fim;

- O mesmo réu solicitou à autora trimestralmente os montantes devidos ao IVA correspondentes ao 4.º trimestre de 1994 até ao 3.º trimestre de 1998, ambos inclusive;

- O BB preenchia os respectivos impressos e neles calculava o imposto devido ao Estado, relativamente ao IVA, após o que levava estes impressos à autora para que a mesma os assinasse e emitisse o cheque correspondente ao IVA calculado para cada trimestre;

- Para melhor tranquilidade da autora e de acordo com os avisos dos SIVA, o réu solicitava-lhe que os cheques fossem emitidos em nome da Direcção-Geral do Tesouro;

- A autora assinava as declarações que lhe eram apresentadas pelo réu e, de conformidade com o valor do imposto por ele calculado, emitia a favor da Direcção-Geral do Tesouro, no preciso valor indicado, os correspondentes cheques, que assinava, após o que lhos entregava para serem enviados aos SIVA;

- O réu BB era conhecido dos funcionários da agência da CGD, respeitado e considerado (nºs 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15 e 23 dos factos provados).

Deste acervo factual não só não resulta que por alguma forma, como pretende a recorrente CGD, a autora tenha incumbido o 1º réu BB, seu contabilista, da guarda, conservação e protecção dos cheques, evitando a sua adulteração, como não se vê que a autora tenha incumprido algum dos seus deveres de diligência, ou de informação do banco no pressuposto de que conhecia a falsificação, que não era o caso.

Acontece que a iniciativa de falsificação desencadeada por aquele réu não ocorreu, ao contrário do que possa parecer, no cumprimento das suas obrigações para com a autora. A sua obrigação para com esta residia em entregá-los ou enviá-los aos seus beneficiários, Centro Regional de Segurança Social ou SIVA. Esta é que era a sua obrigação. Mas não, o réu, depois de os falsificar, foi depositá-los na sua conta.

Nada permite dizer e sustentar, sem mais, que a simples circunstância da sacadora entregar um cheque a terceiro, seu contabilista, no âmbito de uma relação contratual de prestação de serviços com ele estabelecida, e que tinha precisamente por uma das suas facetas essa entrega a fim de que ele procedesse ao pagamento de impostos, se qualifique como acto de incúria ou falta de zelo.

Importa acentuar, para mais rigorosa compreensão, que aquele réu contabilista não era um auxiliar dependente da autora, integrado na sua organização ou instrumento ao seu serviço juridicamente a ela subordinado, mas antes um auxiliar com autonomia perante ela, independente da empresa desta, apesar de com ela colaborar no cumprimento das obrigações fiscais. Autora e réu BB estabeleceram uma relação negocial tendo por objecto a prestação de serviços de contabilidade fiscal e de segurança social.

A autora tinha-o por um bom contabilista e pessoa honesta, o que correspondia à imagem de respeito e consideração que o mesmo granjeava na comunidade e, pelos vistos, também junto dos funcionários da recorrente (cfr. nº 23 dos factos provados).

Neste quadro valorativo da personalidade e competência técnica do réu BB, não tinha a autora como suspeitar e prevenir os actos ilícitos deste praticados após o preenchimento e entrega dos cheques, que, anote-se, nunca foram emitidos e entregues com espaços por preencher, nomeadamente sem identificação do beneficiário, circunstância que a verificar-se, essa sim, seria fortemente propiciadora da falsificação.

Não era exigível à autora/sacadora, se é que não estava praticamente excluída por força da natureza dos serviços especializados e da relação contratual estabelecida, que prolongasse o seu dever de guarda e vigilância dos cheques, após a sua entrega ao 1º réu, para lá dos limites da sua empresa, no espaço e tempo dos seus itinerários no gabinete de contabilidade do réu até à recepção pelos seus beneficiários.

A partir daí, é o próprio mecanismo do cheque que intervém e tranquiliza o sacador, que exige cuidado e rigor na movimentação do dinheiro depositado, com a confiança que lhe inspira a boa defesa do seu dinheiro por parte do banco cuja guarda lhe confiou, que não poderá ficar à mercê de qualquer falsificador, sobretudo, como sucede no caso em apreço, quando tal falsificação não deve escapar a um exame cuidadoso.

De facto, a celebração da convenção de cheque, cuja necessidade se explica pelos riscos que estão ligados à circulação do título e à execução da prestação, cujo cumprimento é muitas vezes exigido por um terceiro desconhecido do banco, e ao qual andam associados perigos de falsidade das assinaturas, perda do cheque, e as consequentes contestações por parte do portador e do detentor, tem também como fundamento a confiança recíproca das partes (banco e titular da provisão)[20].

Essa relação de confiança leva a que o cliente sinta que após emitir o cheque o banco depositário do seu dinheiro acautela os seus interesses, nomeadamente face a vicissitudes ilícitas que sobre ele possam vir a recair, sendo diligente nos pagamentos à custa da sua conta. No caso vertente, face à grosseria de algumas adulterações, de que se deu conta na nota 16, os bancos poderiam, inclusive, ter evitado sem dificuldade a produção do resultado danoso.

Como se sumariou no Acórdão deste Supremo de 25/10/07, Proc. nº 07B2543, disponível no ITIJ, “A confiança do cliente no Banco assenta, antes de mais, num conceito de competência técnica, que constitui um dos deveres gerais – de que emergem deveres de qualidade e de eficiência – a que se subordina a actividade do banqueiro, o qual deve adoptar, enquanto instituição, nas relações com os clientes, procedimentos de diligência, neutralidade, lealdade e discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhe estão confiados[21].

Também, como se sabe, em matéria de responsabilidade contratual, a culpa do devedor é apreciada nos termos gerais da responsabilidade civil (nº 2 do art. 799° do Código Civil), o que significa que vigora para a responsabilidade contratual o princípio básico de que a culpa é apreciada tendo como padrão a diligência típica de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (art. 487º, nº 2 do Código Civil), “de que o obrigado não só devia, como podia ter agido de outro modo[22].

Como diz Antunes Varela “Quer isto significar que o julgador não estará vinculado às práticas de desleixo, de desmazelo ou de incúria, que porventura se tenham generalizado no meio, se outra for a conduta exigível dos homens de boa formação e de são procedimento”[23].

De tudo isto decorre que se entenda que os actos do 1º réu BB não se mostram intimamente relacionados com o cumprimento da sua obrigação para com a autora e susceptíveis de direcção e de fiscalização por esta. O mesmo é dizer que não há culpa da autora/lesada, porque esta não tinha forma de prever os actos ilícitos do falecido 1º réu, nem de os prevenir, não negligenciou o preenchimento dos cheques, não facilitou a sua utilização abusiva, não violou o seu especial dever de diligência.

Podemos, portanto, concluir, utilizando um critério abstracto de apreciação da culpa, tomando por padrão a diligência típica do bom pai de família, que não se surpreende no acervo de factos alegados e provados qualquer comportamento censurável por parte da autora, ora recorrida, uma sua actuação culposa no cumprimento do seu dever de diligência.

O reconhecimento de que a conduta da autora não foi uma das causas do seu dano, consoante os princípios de causalidade aplicáveis ao agente (art. 563º do Código Civil), afasta a susceptibilidade de qualquer responsabilidade da autora por força do disposto nos arts. 800º, nº 1, 570º e 571º do Código Civil.

Nem esta situação tem paralelo com o exemplo citado pela recorrente da responsabilidade do banco pela actuação de um seu empregado, em que responderia perante qualquer conduta negligente ou mesmo dolosa de um qualquer seu colaborador que falsificasse os cheques e se apropriasse do seu valor.

Porque o art. 165º do Código Civil, referindo-se à responsabilidade civil da pessoa colectiva para com terceiros pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários, consagra a doutrina de que a pessoa colectiva é havida como comitente e estes como comissários para o efeito da aplicação do disposto no art. 500º, e nos termos do nº 2 deste normativo a responsabilidade do comitente existe se o facto danoso foi praticado pelo comissário no exercício da função que lhe foi confiada, não importando que intencionalmente ou contra as instruções do mesmo[24].



Passando à argumentação aduzida pela recorrente Caixa Económica Montepio Geral, (CEMG), invoca a mesma que em 1994 e 1995 a autora fora avisada de que o 1º réu BB tinha comportamentos irregulares desonestos, e apesar de avisada não tomou, atempadamente, qualquer medida com vista ao controle da actividade do seu contabilista, que esteve na origem dos factos danosos.

Por isso, remata, existe culpa da autora lesada nos efeitos da conduta do seu contabilista infiel, ao escolher, ao confiar no mesmo sabendo que ele não usava de correcção.

Acontece que nada se provou relativamente a esta matéria, tão somente porque ela nem sequer foi invocada pela recorrente, de quem o BB era cliente, ou por qualquer dos seus co-réus, pelo que, por esse conteúdo e via, não se pode concluir por qualquer incúria, falta de zelo, e prudência da lesada para o efeito pretendido.

Concluindo, não há culpa da lesada, seja directa, seja por via da acção de auxiliar.

Os bancos recorrentes não observaram, assim omitindo, alguns dos deveres derivados das suas próprias funções, os de fiscalização e de competência técnica.

A dimensão da empresa, ligada à celeridade imposta pelo grande movimento de operações diversas e ritmo do tráfico moderno, não podem excluir o controlo rigoroso dessas mesmas operações, e assim, a perda material do dinheiro em depósito não pode ser justificada pelos bancos por dificuldades de uma conferência cuidadosa.

Como refere Paulo Olavo Cunha, na sua Dissertação de Doutoramento que vimos citando, ao banco não pode ser, hoje, em pleno século XXI, exigível que actue apenas como um “bom pai de família”, esperando-se dele uma actuação altamente qualificada e especializada numa bitola mais elevada que a aplicável aos negócios jurídicos comuns, devendo demonstrar que utilizou todos os meios adequados à determinação de uma situação de falsificação.

Por isso, se abdica, intencionalmente ou por efeito do sistema de truncagem acordado pelo sistema de bancário a que os cheques até certo valor estão obrigatoriamente sujeitos[25], de exercitar os seus deveres de fiscalização e de competência técnica, particularmente de proceder à conferência da assinatura do sacador[26], deverá assumir os resultados dessa omissão. “Trata-se de risco a correr por conta do sacado, que é também compensado com a poupança de custos associados a esse controlo[27].

B) Se deve ser excluída a obrigação de indemnizar a cargo dos bancos ou reduzido o seu valor a pagar

No pressuposto do valimento da sua argumentação acima mencionada, conclui a recorrente CGD que a culpa da autora implica a exclusão da obrigação de indemnizar a cargo dos bancos réus.

Por sua vez, preconiza a recorrente CEMG que por força do disposto nos artigos 570º, nº 1, 571º e 572º do Código Civil seja reduzido o valor da indemnização que foi condenada a pagar.

Ora, a conclusão a que se acaba de chegar na alínea que antecede, tem por consequência óbvia que não só a autora não responde, independentemente de culpa, por acto do réu BB, como não ocorre qualquer outro fundamento legal, designadamente a coberto dos artigos 570º, 571º e 572º, do Código Civil, para redução do valor indemnizatório a pagar pelos bancos.

Como tal, nada determina a exclusão da obrigação de indemnizar a cargo dos bancos recorrentes ou a redução dos valores fixados.

 

C) Se só em incidente de liquidação de sentença é que se poderá fixar o valor dos danos suportados pela autora

Alega a CGD ter ficado provado que o 1° réu, por conta das participações que fizera aos SIVA, sem o conhecimento da autora, apenas pagou à Direcção-Geral do Tesouro a quantia global de 1.293.597$00, guardando para si a quantia de 5.517.000$00 (nº 19 supra).

Ou seja, embora se apropriasse dos cheques em causa destinados a pagar IVA, o falecido BB substituía o pagamento das verbas neles contidas por outras de menor valor que entregava nos SIVA

No total, entregou 1.293.597$000 (6.452,43 €) e sendo que o valor global dos cheques ora em causa é de 4.894.508$00 (24.413,70 €), inferior ao valor total de 5.517.000$00 referido no mesmo facto e que, como tal, necessariamente englobará outros cheques ou outros meios de pagamento que aqui não estão em causa.

Por esse mesmo motivo, continua, não é aceitável o fundamento invocado no acórdão recorrido e segundo o qual "as quantias que a apelante CGD foi condenada a pagar à autora são inferiores ao prejuízo por esta sofrido". Só que esse prejuízo global vai muito para além do valor global dos cheques falsificados pelos quais a CGD foi responsabilizada.

Relativamente aos factos ilícitos aqui em causa - e só a esses se deve reportar a decisão - o prejuízo suportado pela autora foi inferior ao valor dos cheques, precisamente porque o falecido BB sempre entregava, - quando se apropriava de cada um dos cheques - uma quantia aos SIVA (com o objectivo facilmente descortinável de evitar que, por falta total de pagamento, os SIVA contactassem a autora e a sua conduta (dele Adão) fosse desmacarada de imediato.

Assim, conclui, só em incidente de liquidação de sentença em que se demonstre qual o montante - daquela verba global de1.293.597$000 (6.452,43 €) - que o BB entregou, nos SIVA em "substituição" de cada um dos cheques de cujo montante se apropriou é que se poderá fixar o valor dos danos suportados pela autora.

Que dizer?

Esta questão tem de ser qualificada de nova, tendo presente o alcance conceitual dado pelo legislador à expressão "questão"[28], na medida em que a recorrente não a submeteu à apreciação da Relação de Guimarães, sendo certo que não se pode conhecer da mesma por não ser do conhecimento oficioso.

Na realidade, constata-se que, com aparente conexão com esta matéria, na apelação a recorrente alegou, subsidiariamente, que sempre haveria que deduzir ao valor dos danos a quantia de 1.293.597$00 (6.452,44) (facto nº 19) sob pena de enriquecimento ilegítimo da autora (cfr. fls. 768 e 12ª conclusão daquele recurso).

Obviamente que a Relação apreciou essa sua censura no enquadramento jurídico do instituto do enriquecimento sem causa, concluindo, não importa aqui se bem ou mal, pela sua improcedência.

Agora, na revista, face a esse insucesso a recorrente muda de via, vai mais longe, já não se queda por reclamar a dedução de 1.293.597$00 ao valor dos danos totais sofridos pela autora, e coloca a questão na necessidade de se proceder a liquidação da sentença para apurar qual o montante desta verba foi entregue aos SIVA em substituição de cada um dos cheques de que se apropriou.

Ora, estamos claramente perante uma questão nova, e do art. 676º, nº 1, do CPC, se vê que os recursos se destinam ao reexame das questões submetidas ao julgamento do tribunal recorrido.

É pacífico, entre a jurisprudência e a doutrina, que os recursos não se destinam a alcançar decisões novas, a menos que se imponha o conhecimento oficioso, pois que visam a modificação das decisões recorridas[29].

Estando-se perante questão nova, dela não se pode conhecer, uma vez que, como decorre claro do que vem de expor-se, tal importaria preterição de jurisdição, e não se trata de questão de conhecimento oficioso.

Mas, diga-se, a preocupação e objectivo expressos pela recorrente não se colocam, porquanto o montante em que a recorrente foi condenada não exige a liquidação reclamada uma vez que corresponde rigorosamente, e tão só, aos cheques por si indevidamente pagos constantes do facto nº 18º, equivale ao valor indevidamente entregue ao 1º réu no total de 4.894.508$00 (24.413,70€).

O montante dos prejuízos sofridos pela autora é de valor total superior, 5.517.000$00 referido no facto nº 19, mas do atribuído nas instâncias a autora não controverteu. Por isso, na esfera do seu interesse nada mais há que apurar ou liquidar.

D) Se não são devidos juros de mora

Como decorrência da pretensão enunciada na alínea que antecede a mesma recorrente CGD preconiza que, então, não seriam devidos juros de mora (art. 805º, nº 3 do Código Civil).

A apreciação deste pedido está naturalmente prejudicada face à solução dada à anterior questão (cfr. art. 660º, nº 2 do CPC).


           

III-DECISÃO


Nestes termos, perante todo o exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas dos recursos pelas recorrentes.

                                                           Lisboa, 8 de Maio de 2012

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[1]  Relator: Gregório Silva Jesus — Adjuntos: Conselheiros Martins de Sousa e Gabriel Catarino.

[2] No regime anterior ao introduzido pelo Dec. Lei nº 303/07, de 24/08, atenta a data de instauração da acção em 2/03/99 (cfr. arts. 11º e 12º do referido diploma).
[3] Cfr. os Acs. do STJ de 11/01/00 e 3/02/00, nos Sumários 37º-17 e 38º-30, e de 22/04/04, Proc. nº 04B1040, e 3/06/04, Proc. nº 04B1666, no ITIJ.
[4] Cfr. Alberto Luís in Direito Bancário, Almedina, 1985, pág. 165, e O Problema da Responsabilidade Civil dos Bancos Por Prejuízos Que Causem a Direitos de Crédito, na ROA, Ano 59, pág. 908.
[5] Cfr. neste sentido Fernando Correia Gomes, in Responsabilidade Civil dos Bancos pelo pagamento de cheques falsos ou falsificados, pág. 21 a 23; José Maria Pires, in O Cheque, Rei dos Livros, pág. 32 a 34; e Sofia de Sequeira Galvão, in “O Contrato de Cheque”, ed. Lex, 1992, pág. 58 e segs..
[6] Subjacente ao contrato de cheque está uma relação prévia entre o banco e o cliente, a denominada relação de provisão, que pressupõe que o primeiro tenha fundos à disposição do segundo, fundos esses que podem resultar de diversos tipos de contratos (depósitos, aberturas de crédito, empréstimos), registados em conta bancária (cfr. Fernando Correia Gomes, in loc. cit., págs. 12/13; José Maria Pires, in loc. cit., págs. 29/30; António Caeiro e Nogueira Serens, Responsabilidade do Banco apresentante e do Banco sacado pelo pagamento de cheques com endosso falsificado, na Revista de Direito e Economia, nºs 1 e 2, 1983, pág. 57; e Ac. deste STJ de 7/03/08, Proc. nº 08B1850, acessível no ITIJ). 
[7] Cfr. Paulo Olavo Cunha, in Cheque e Convenção de Cheque, 2009, págs. 441 e segs.; Sofia de Sequeira Galvão, loc. cit., pág. 35 e segs..
[8] Para maior desenvolvimento e detalhe, leia-se Paulo Olavo Cunha, ob. cit., págs. 455 a 504.
[9] Paulo Olavo Cunha, ob. cit., pág. 465.
[10] Cfr., entre outros, os Acs. de 21/05/96, Col. Jur., 1996, Tomo II, pág. 82, 7/03/08 já citado, 7/05/09, Proc. nº 195/2000.C2.S1, desta Secção, 31/03/09, Proc. nº 09A197, e de 3/12/09, Proc. nº 588/09.0YFLSB, desta Secção, e demais jurisprudência nele citada, disponíveis no ITIJ.
[11] Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares e dos representantes legais ou dos substitutos, no BMJ n.º 72, pág. 270.
[12] In Das Obrigações em geral, vol. II, 7ª ed., pág. 103.
[13] Cfr, entre outros, Almeida Costa,Direito das Obrigações”, 11ª edição, pág. 1038, nota 3.
[14] Dá-se notícia no Acórdão deste Supremo de 16/05/69, Proc. nº 062608, sumariado no ITIJ, também no BMJ 187º-145, que essa omissão ocorre em virtude da Conferência de Genebra haver deliberado confiar a solução desse problema à ordem jurídica interna de cada país.
[15] As rasuras nos cheques de fls. 427, 428, 429 e 431 são tão grosseiras e gritantes que surpreende como uma instituição bancária lhes dá pagamento sem duvidar da validade da ordem deles constante e do seu real beneficiário, sem prévia informação ou esclarecimento junto da sacadora. Então nos de fls. 428 e 429 até alterações na coloração do papel, seguramente em resultado de agente mecânico necessário para apagar os dizeres anteriores, ressaltam com evidência a qualquer detentor dos mesmos. A Relação estendeu este juízo também a outros cheques.
[16] In obra citada, pág. 39.
[17] In Direito Bancário, 2º Volume, pág. 334.
[18] Cf. os arestos citados no texto deste acórdão.
[19] De acordo com a denominada teoria das esferas, tendente à responsabilização do sacador que com uma conduta diferente poderia ter evitado a produção do resultado, respondendo às necessidades da banca assoberbada com o crescimento do uso do título, a proletarização do uso do cheque na expressão de António Caeiro e Nogueira Serens (Sofia de Sequeira Galvão, loc. cit., págs. 69/70 e António Caeiro e Nogueira Serens, loc. cit., pág. 62, nota 7).
[20] Cfr. Ferrer Correia e António Caeiro, Recusa do pagamento de cheque pelo Banco sacado; responsabilidade do Banco face ao portador, na Revista de Direito e Economia, n.º 2, 1978, pág. 458.
[21] No mesmo sentido se pronunciou o já citado Acórdão do STJ de 31/03/09.
[22] Antunes Varela, ob. cit., vol. II, pág. 97.
[23] In ob. cit., vol. I, 9ª ed., pág. 596, nota 3.
[24] Para maiores desenvolvimentos leiam-se Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, pág. 151e segs.; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 318/320; Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed., pág. 660 e segs.; P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., págs. 507 a 510.
[25] Cfr. Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária – SICOI, art. 14º, nº 1, al. a), e Anexo à  Instrução nº 3/2009, no sítio da internet do Banco de Portugal.
[26] Dever esse imposto mesmo por princípios de ordem pública (cfr. Acs. deste STJ de 25/10/79 e 22/05/80, respectivamente, nos BMJ 280º-429 e 297º-368, e Pinto Monteiro, in Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, págs. 285/286).
[27] In, págs. 482, 483 e 675.
[28] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, págs. 54.
[29] Cfr. Acs. do STJ de 19/10/04, Proc. 04B2638, 3/02/05, Proc. 04B4009, e 7/04/05, Proc. 05B175, todos disponíveis no ITIJ.