Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3489
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
PROVA PERICIAL
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: SJ200611210034891
Data do Acordão: 11/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1) As instâncias apuram a matéria de facto com relevo para a decisão e só a Relação pode censurar o que foi apurado pela 1ª instância.

2) Ressalvando situações muito restritas, o STJ só conhece matéria de direito e só sindica o modo como a Relação fixou os factos materiais se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou se for patente o incumprimento das normas reguladoras de certos meios de prova.

3) O principio da livre apreciação da prova, vale para a prova pericial situando-se a sua atendibilidade no processo de formação do veredicto, cujo "iter" tem por pressuposto a intima persuasão do juiz, ou seja o efeito que produz no seu espírito e que condiciona a opção final.

4) Notificada do relatório pericial, a parte pode deduzir reclamação incidental (artigo 587º CPC) e, ainda, requerer a comparência dos peritos em audiência para esclarecimentos pertinentes (artigo 588º CPC).

5) É aplicável aos peritos em audiência o disposto no artigo 640 CPC, podendo ser contraditados quer por falta de idoneidade técnica quer por deficiente diligencia (v.g. omissão de actos essenciais) na perícia efectuada.

6) É intempestivo e impertinente o documento junto na fase de recurso destinado a abalar a credibilidade da prova pericial por esta não ser meio de prova inesperado, de acordo com o nº1 do artigo 706º do CPC.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"Empresa-A", com sede no Funchal, intentou acção, com processo ordinário, contra AA e mulher BB, residentes naquela cidade.

Pediu a sua condenação no pagamento de 36 713 936$00, sendo 20 619 585$00 a título de preço parcial da empreitada acordado e 16 094 351$00 correspondentes ao IVA, acrescidos de juros moratórios desde a citação.

Contestaram os Réus defendendo a improcedência e formulando pedido reconvencional de indemnização pelo incumprimento do contrato de empreitada, a liquidar em execução de sentença.

Na 1ª Instância os Réus foram absolvidos do pedido e a Autora condenada a indemnizar os prejuízos sofridos pelo incumprimento do contrato de empreitada em quantia a liquidar em execução de sentença.

A Relação de Lisboa confirmou a sentença apelada.

Pediu revista, a Autora, mas foram mandados seguir os termos do agravo.

Concluiu as suas alegações nestes termos:

- A prova apresentada em sede pericial está falseada, porque foi elaborada em pressupostos inexistentes, como seja a efectiva participação dos peritos nomeados na produção da mesma, devendo estes, se se socorrerem de terceiros para trabalhos especializados, tal fazer constar do seu relatório final.

- Nem do relatório de perícia, nem nas diversas prorrogações de prazo que os peritos foram solicitando, se faz menção ao facto do seu trabalho, ou de partes deles, estar a ser efectuado por terceiros, antes transparecendo a convicção de que são eles peritos que efectuam todos os trabalhos inerentes à peritagem.

- O relatório final dos peritos encontra-se inquinado por previsivelmente poder não corresponder à verdade material, antes havendo fortes probabilidades de corresponder a uma ficção, pois que não efectuada a perícia por eles ou algum deles.

- Uma prova pericial sem deslocação dos peritos para apreciação dos factos em discussão traduz-se necessariamente na inexistência de prova pericial, ou seja,

- A prova pericial deve ser considerada nula e de nenhum efeito, porque efectuada com base em falsos pressupostos.

- A assim se não considerar está-se a colocar em causa o meio de prova perícia pois que se passa a admitir que uma perícia pode ser validamente efectuada sem apreciação do objecto em discussão.

- Bem como que a admitir-se que actos inúteis, porque inexistentes, sejam validados e considerados meios de prova válido.

- A motivação das respostas á matéria de facto controvertida, ainda que se entenda, por mera cautela e sem conceder, tenha existido, está fundamentada em pressupostos errados, violando o principio da verdade material, e bem assim o disposto no nº 341º do Código Civil, já que a prova produzida não demonstrou a realidade dos factos mas a realidade da ficção de uma perícia não efectivamente efectuada, pois que a ela aderiu sem mais, também assim violando o disposto no artigo 158º nº2, do CPC.

- A instrução tem por objecto, como disposto no artigo 513º do CPC, "... os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devem considerar-se controvertida ou necessitados de prova.", sendo que a (não) perícia junta aos autos não permitiu, em face da confessada não participação de um dos peritos, que, por via dela, se examinassem os factos controvertidos ou necessitados de prova, assim se violando o disposto naquela disposição.

- Já no que concerne à junção de documento novo pela então apelante e a sua susceptibilidade de ser levado em consideração, o douto acórdão recorrido contradiz-se, entendendo que pelo facto de o perito ter prestado
juramento, sendo irrelevante a alegação de que o não fez bem, pois que não procedeu a medições.

- Com tal argumentação violou-se o disposto no artigo 663º do CPC, aplicável por analogia, pois que a declaração do perito, inequivocamente um facto novo passível de ser tomado em consideração, o não foi.

- O CPC, na sua generalidade, não impede a confissão de factos ou a junção de documentos novos, ou conhecidos apenas no momento da respectiva junção, excepto em casos devidamente previstos no mesmo, como se infere, por analogia, do disposto na alínea c) do artigo 771º do CPC no que concerne aos fundamentos do recurso de revisão e à apresentação de documentos.

- Por maioria de razão, podendo aqueles documentos ser apresentados nos termos do disposto no nº2 do artigo 523º do CPC, deste modo violando o espírito do Código (consubstanciado, designadamente no artigo 771º, alínea c)) e expressamente o artigo 523º nº2 referido.

- No que à existência de obras a mais concerne e sua relevância, ou não, na alteração, para mais, do prazo da empreitada, face ao antes concluído, designadamente no que concerne à motivação das respostas à matéria de facto controvertida, não é possível ajuizar se o incremento do prazo de execução da empreitada se justifica ou não pelo volume de trabalhos a mais, uma vez que não estão estes determinados em toda a sua extensão, por consequência do alegado relativamente à mencionada motivação.

Pede, a final, a repetição da "produção da prova e, deste modo, todo o processado a partir desta.

Não foram produzidas contra alegações.

Dá-se por reproduzida a matéria de facto que as instâncias deram por assente.

Foram colhidos os vistos.

O âmbito do recurso é limitado pelas conclusões das alegações da recorrente (nº3 do artigo 684º do Código de Processo Civil à discordância da prova produzida em primeira instância, "maxime" a prova pericial; à motivação das respostas à matéria de facto; à não consideração do documento que juntou com a sua apelação e, finalmente, o não terem sido "determinados em toda a sua extensão", por deficiência da motivação das respostas, o volume dos trabalhos a mais.

Conhecendo,

1- Matéria de Facto.
2- Prova Pericial.
3- Documento.
4- Conclusões.

1- Matéria de facto.

A recorrente limita-se a por em causa a matéria de facto dada por assente com o argumento nuclear de que a prova produzida, designadamente a pericial, não permitir as conclusões alcançadas.
O Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que é, conhece, apenas e como regra, matéria de direito, por força dos artigos 26º da LOFTJ e 722º do CPC, com a excepção dos nºs 2 e 3 do artigo 729º deste diploma.
É, pois, muitíssimo limitada a intervenção na matéria de facto apenas podendo averiguar da observância das regras de direito probatório material - nº2 do citado artigo 722º - ou mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto - nº3 do artigo 729º.
São as instâncias que têm de apurar a factualidade relevante cabendo à Relação a última palavra.
É à Relação que compete censurar as respostas ao questionário ou anular a decisão proferida em primeira instância, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelos nºs 1 e 4 do artigo 712º da lei processual.
E mesmo aí, não se olvide que "a garantia deste duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca pode envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto." (apud preâmbulo do DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro).

A Relação não usou da faculdade do artigo 712º e este Supremo Tribunal não pode exercer censura sobre o não uso dos poderes de alteração ou anulação da decisão da matéria de facto da 1ª instância.
É por isso que a decisão que exerça tais poderes é irrecorrível, "ex vi" do nº6 do mesmo artigo.
Nesta fase, e não se verificando ofensa de disposição expressa da lei a exigir certa espécie de prova para a existência de um facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (ou seja, que a Relação tenha dado por assente um facto sem a produção do tipo de prova que a lei exige, como não dispensável para demonstrar a sua existência ou que tenha incumprido preceitos reguladores da força probatória de certo meio de prova) não há que emitir qualquer juízo de censura e, muito menos, lançar mão do nº3 do artigo 729º do Código de Processo Civil.
Vale, em consequência, a regra do nº 2 deste preceito, quedando intocada a factualidade provada pois um eventual erro na apreciação das provas, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova produzidos e de livre apreciação do julgador, não cabe no âmbito deste recurso.

2- Prova Pericial.

Certo que a recorrente tenta esse objectivo por um percurso ínvio procurando pôr em causa a produção da prova pericial e seus resultados.
Quanto a estes vale o princípio da livre apreciação da prova constante quer da lei processual (artigo 653º nº2) quer do Código Civil (artigos 389º - prova pericial - e 391º - prova por inspecção).
Já o Acórdão do STJ de 8 de Janeiro de 1952 - BMJ 29-233 - decidiu que "por maior que seja a categoria profissional e a competência técnica dos autores de atestados e pareceres, estão sempre sujeitas à apreciação dos tribunais as ilações ou consequências, ainda as de natureza cientifica ou profissional, que os signatários de tais atestados ou pareceres atribuam os factos em que se baseiam". (cf., ainda, o Prof. Vaz Serra, "Provas", BMJ 112-290).
O Cons. Rodrigues Bastos escreveu: "As respostas dos peritos não vinculam o tribunal, que deve decidir a matéria de facto fundada na sua própria convicção.
Era a doutrina que já vinha do artigo 578º do CPC.
Esta regra é absoluta: aplica-se tanto à percepção como à apreciação dos factos, não havendo que distinguir, portanto, entre a verificação dos factos materiais feita pelos peritos e as conclusões que, com base nela, sejam levados a formular." (in "Das Relações Jurídicas", V, 219)

Daí que o acolhimento da perícia como motivação da convicção dos julgadores não seja, sem mais, sindicável por se inserir, não só, no elenco de provas legalmente admissíveis, como a sua atendibilidade se situe no processo de formação do veredicto, cujo "iter" tem por pressuposto a intima persuasão do juiz, ou seja o efeito que produz no seu espírito e que condiciona a opção final.
Ademais, se a parte quando notificada do relatório pericial tem fundadas dúvidas sobre o seu conteúdo e ulteriores conclusões deve lançar mão da reclamação incidental a que se refere o artigo 587º do Código de Processo Civil logrando, por essa via, todos os esclarecimentos e (ou) aditamentos.
Ainda, e mais tarde - aquando da audiência - pode obter a comparência dos peritos e, aí, pedir os esclarecimentos pertinentes (artigo 588º).
E. "last but not least", exigindo-se aos peritos rigor e verdade - tanto que até prestam declarações sob juramento - podem ser contraditados, nos mesmos termos das testemunhas quando possa ser abalada a sua razão de ciência (artigo 640º) quer por falta de idoneidade técnica quer por deficiente diligencia na perícia efectuada.
Como a recorrente não lançou mão destes meios processuais em tempo oportuno, não pode agora questionar a prova pericial.

3- Documento.

Os recorrentes juntaram, com a alegação da apelação, um documento destinado a provar que os peritos não procederam às medições exigíveis naquela prova por arbitramento.
Independentemente a sua intempestividade e impertinência face ao que acima se disse a propósito do momento de questionar a perícia, a junção do documento na fase de recurso só é possível "quando a decisão se baseou em meio de prova não esperado ou em preceito jurídico cuja aplicação as partes não pudessem razoavelmente prever" (cf. o Acórdão do STJ de de 2006 (Pº 844/06 - 1ª) do mesmo Relator).
É que, esta junção de documentos tem carácter excepcional (Prof. Antunes Varela, RLJ 115-81) e só deve ser admitida naquelas situações estritas.
Improcedem, também, nesta parte, as conclusões da recorrente, tal como a última que se prende directamente com a exposta discordância da valoração da prova e a que a parte final do Acórdão recorrido bem respondeu, e para a qual se remete no, eventualmente, omisso.

4- Conclusões.

Pode concluir-se que:

a) As instâncias apuram a matéria de facto com relevo para a decisão e só a Relação pode censurar o que foi apurado pela 1ª instância.
b) Ressalvando situações muito restritas, o STJ só conhece matéria de direito e só sindica o modo como a Relação fixou os factos materiais se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou se for patente o incumprimento das normas reguladoras de certos meios de prova.
c) O principio da livre apreciação da prova, vale para a prova pericial situando-se a sua atendibilidade no processo de formação do veredicto, cujo "iter" tem por pressuposto a intima persuasão do juiz, ou seja o efeito que produz no seu espírito e que condiciona a opção final.
d) Notificada do relatório pericial, a parte pode deduzir reclamação incidental (artigo 587º CPC) e, ainda, requerer a comparência dos peritos em audiência para esclarecimentos pertinentes (artigo 588º CPC).
e) É aplicável aos peritos em audiência o disposto no artigo 640 CPC, podendo ser contraditados quer por falta de idoneidade técnica quer por deficiente diligencia (v.g. omissão de actos essenciais) na perícia efectuada.
f) É intempestivo e impertinente o documento junto na fase de recurso destinado a abalar a credibilidade da prova pericial por esta não ser meio de prova inesperado, de acordo com o nº1 do artigo 706º do CPC.

Pelo exposto acordam negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 21 de Novembro de 2006
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho