Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
74/16.2JDLSB.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
REPETIÇÃO DA MOTIVAÇÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
FRIEZA DE ÂNIMO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Apenso:
Data do Acordão: 07/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – JULGAMENTO / SENTENÇA / NULIDADE DA SENTENÇA – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / TRAMITAÇÃO / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
Doutrina:
- Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, p. 611-678;
- Augusto Silva Dias, Direito Penal, Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005;
- Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008, 2.ª Edição, p. 60 e ss., 83 e 84;
- Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Ed. Coimbra Editora, Tomo I, p. 29 ; Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume I, 2.ª Edição, p. 83 e 84;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Edição revista, 2007, Volume I, p. 516;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I;
- M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal Parte Geral e Especial, Ed. Almedina, 2014, p. 513;
- Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª Edição, II Volume, p 27 e 28;
- Margarida Silva Pereira, Os Homicídios, p. 40;
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Ed. Almedina, 1990, p. 63 a 65 ; Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998;
- Vaz Serra, Direito Probatório Material, BMJ, n.º 112, p. 190;
Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2001, p. 232 a 357 e 291.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS374.º, N.º 2, 379.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E C), 410.º, N.º 2, 425.º, N.º 4, 428.º, 432.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 71.º, N.º 2, ALÍNEAS A), B) E C), 77.º, N.º 1, 131.º E 132.º, N.º 2, ALÍNEA J).
Referências Internacionais:
PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS: - ARTIGO 14.º, N.º 5.
CONVENÇÃO PARA A PROTECÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS: - ARTIGO 2.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 7/95, IN DR-I, DE 28-12-1995;
- DE 04-07-1996, IN CJSTJ., ANO IV, TOMO II, P. 222;
- DE 30-10-2003, IN CJSTJ, ANO XI, TOMO III, P. 208;
- DE 11-04-2012, PROCESSO N.º 3989/07.5TDLSB.L1.S1;
- DE 02-10-2014, PROCESSO N.º 89/12.3SGLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 03-06-2015, PROCESSO N.º 293/09.8PALGS.E3.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 25-06-2015, PROCESSO N.º 814/12.9JACBR.S1;
- DE 13-01-2016, PROCESSO N.º 174/11.5GDGDM.L1.S1;
- DE 18-02-2016, PROCESSO N.º 68/11.4JBLSB.L1-A.S1;
- DE 17-03-2016, PROCESSO N.º 177/12.2TDPRT.P1.S1;
- DE 20-10-2016, PROCESSO N.º 597/14.8PCAMD.L1.S1;
- DE 23-11-2016, PROCESSO N.º 736/03.4TOPRT.P2.S1, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 64/2006;
- ACÓRDÃO N.º 659/2011;
- ACÓRDÃO N.º 290/2014.
Sumário :
I - O conhecimento das questões relacionadas com a impugnação da decisão em matéria de facto é da competência do tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP), que sobre elas se pronuncia em última instância, estando os poderes do STJ limitado ao reexame da matéria de direito, no âmbito de recurso de decisões recorríveis do tribunal da Relação (artigos 432.º, n.º 1, al. b), e 434.º do CPP).
II - Como tem sido insistentemente repetido, os vícios da decisão previstos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP constituem vícios lógicos do discurso decisório em matéria de facto que se revelam no texto da decisão e se evidenciam a partir do próprio texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, os quais, na impossibilidade de serem resolvidos pelo tribunal de recurso, podem conduzir ao reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do dispostos no artigo 426.º do CPP; diferentemente, a violação das regras de fundamentação poderá gerar nulidade do acórdão, nomeadamente por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia (artigos 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. a) e c), e 425.º, n.º 4, do CPP).
III - Repetindo o recorrente a argumentação que apresentou perante o tribunal da Relação, reproduzindo ipsis verbis o recurso da decisão de 1.ª instância, sem qualquer elemento novo, entende-se, todavia, não ser de rejeitar o recurso por falta de motivação, considerando-se a motivação apresentada como sendo agora dirigida ao acórdão da Relação que confirmou a condenação no acórdão da 1.ª instância.
IV - Como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência, o crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, relativos ao facto e ao agente, indiciadores daquele tipo de culpa agravado, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente.
V - Estando provado que, perante a recusa da vítima em interromper a gravidez, o arguido, cerca de 10 dias antes, planeou matá-la e esconder o cadáver numa cova que então abriu num pinhal distante, que convenceu a vítima a deslocar-se à sua residência, onde a matou, e, com a finalidade de ocultar o cadáver e de dificultar a sua identificação, utilizando uma faca, ou facas, cortou e separou a cabeça do tronco da vítima, cortou os tecidos moles e separou do tronco os braços e as pernas, desarticulou os quatro membros, pelas zonas dos joelhos e dos cotovelos, e separou as mãos e os pés dos respectivos membros e depois embrulhou o tronco, as pernas e os braços num plástico e colocou a cabeça, as mãos e os pés no interior de uma mochila, que, de seguida foi trabalhar, deixando o cadáver na sua residência, e no final do dia seguinte, utilizando um veículo emprestado, transportou o tronco, as pernas e os braços da vítima e colocou-os no interior da cova que anteriormente tinha aberto e que, de seguida, já de noite, foi buscar a mochila que continha a cabeça, os pés e as mãos da vítima, tomou um barco e no meio do percurso abriu a mochila e despejou-a, lançando para o rio a cabeça, as mãos e os pés da vítima, mostra-se preenchido o exemplo-padrão constante da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal (frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregados e persistência na intenção de matar, reveladores de especial censurabilidade e perversidade).
VI - Tendo em conta as circunstâncias relativas ao muito elevado grau de ilicitude dos factos, ao modo de execução destes e à gravidade das suas consequências, bem como à muito elevada intensidade do dolo e aos sentimentos manifestados no crime e aos fins e motivos que o determinaram (al, a), b) e c) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal), que fundamentam um elevado grau de culpa e fortes necessidades de prevenção, e considerando a diminuta relevância dos factores considerados a favor do arguido, não se encontra qualquer fundamento que justifique a pretensão de diminuição da medida da pena aplicada, de 20 anos e 6 meses de prisão, pelo crime de homicídio qualificado, e da pena única de 21 anos e 6 meses de prisão pela prática deste crime em concurso com o crime de profanação de cadáver, em cuja determinação foram considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal).

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I.  Relatório

1. Por acórdão proferido pelo tribunal colectivo do Juízo Central Criminal de Sintra foi o arguido AA condenado na pena única de 21 anos e 6 meses de prisão, pela prática, em concurso, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea j), do Código Penal, a que foi aplicada a pena de 20 anos e 6 meses de prisão, e de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, a que foi aplicada a pena de 2 anos de prisão.

2.  Desse acórdão, bem como de decisões intercalares, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação do Lisboa, o qual, por acórdão de 1.2.2018, negou provimento aos recursos, confirmando o acórdão recorrido.

Para além de invocar nulidades processuais e do acórdão recorrido (com referência, nomeadamente, aos artigos 119.º, n.º 1, al. a), e 379.º, n.º 1, do CPP), vícios do acórdão recorrido (nomeadamente o previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP) e inconstitucionalidades (com referência, designadamente, aos artigos 18.º, 30.º e 32.º da Constituição), o arguido impugnava a decisão em matéria de facto, defendia que não poderia ter sido condenado por um crime de homicídio qualificado, pois que, alegava, os factos provados apenas constituem um crime de homicídio simples, da previsão do artigo 131.º do Código Penal, a que corresponde a pena de 8 a 16 anos de prisão, e que a pena deveria ser reduzida para medida próxima do limite mínimo legal previsto para este tipo de crime.

3.  Inconformado, vem agora o arguido recorrer dessa decisão do tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça.

Motiva o recurso concluindo nos seguintes termos (transcrição):

«1 – O Arguido AA foi condenado “Assim, e pelo exposto, o Tribunal acorda:

a)  Absolver o Arguido do crime de aborto, por que vem acusado;

b)  Condenar o Arguido AA, como Autor material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131 e 132 n.º 1 e n.º 2 alínea j) do Código Penal, na pena de 20 anos e 6 meses de prisão;

c)  Condenar o Arguido AA, como autor material de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254, n.º 1, al. b) do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão;

d) Em cúmulo jurídico destas penas, condenar o Arguido AA na pena única de 21 anos e 6 meses de prisão (artigo 77 n.º 1 e 2 do Código Penal);”

2 – Sobre a Nulidade da Acusação, o Tribunal, a quo, apenas apreciou a nulidade arguida pelo arguido, na decisão final de condenação. No Acórdão condenatório o Tribunal a quo que não se verifica a apontada nulidade, no entanto a acusação proferida pelo Ministério é nula, nos termos do artigo 283 n.º 3 al. c) do CPP, porquanto, qualifica o homicídio como qualificado, nos termos dos artigos 131, 132 n.º 2 alíneas b), c) e j) do Código Penal. Ora analisadas as normas, verifica-se que o elemento literal do artigo 132 n.º 2 do Código Penal, remete para o n.º 1 do artigo 132, e o Ministério Público não profere acusação nos termos do artigo 132 n.º 1 do Código Penal, logo não pode o Ministério Público acusar por um crime de homicídio qualificado, tal como o faz, até porque a moldura penal dos 12 aos 25 anos não consta em local algum no decurso da acusação.

3 - Analisando as normas: O artigo 131 do Código Penal dispõe “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.” O Artigo 132 n.º 2 do Código Penal dispõe “É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, (…) remetendo, o Ministério Público para as als. b), c), e j), do mesmo artigo, sem nunca referir o n.º 1 do artigo 132 do CP. Só que a norma do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, remete para o “número anterior” e não para o artigo anterior, assim verifica-se a nulidade assinalada, com os efeitos estatuídos no artigo 122 do Código de Processo Penal, não podendo o Arguido ser julgado por um crime de que não vem acusado, pois não é indicada a moldura penal, nem a norma incriminatória que seria o artigo 132 n.º 1 do Código Penal “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos”, pois o artigo 131 do Código Penal não permite o salto lógico para qualificar as gravitas das als. b), c) e j) do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, logo não se pode o Arguido defender.

4 - Nem o mesmo se pode defender das normas punitivas indicadas na acusação se vier a ser condenado, pelo crime de homicídio qualificado, porque se encontra impedido de produzir defesa, violando-se dessa forma o artigo 32 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, que aqui se invoca. Assim sendo o Arguido não pode ser julgado por um crime de homicídio qualificado, porque não vem acusado do mesmo, por falta de indicação da norma aplicável, o que se entende, pois na realidade, como se demonstrará o Arguido a ter cometido algum crime de homicídio, seria um outro que não o homicídio qualificado.

5 - O que não espanta, pois o Arguido, desde a data da sua detenção sempre colaborou com o Inquérito e esclareceu em diversos momentos os factos que praticou, recolhendo provas, indicando provas, reconstituindo os factos, o que não se pode é confundir e chamar um homicídio qualificado com um crime de profanação e ocultação de cadáver, porque, após a morte de BB, foi exuberante todo o desfecho, com o desmembramento do corpo, o corte e a ocultação, mas todos esses factos, decorreram após a morte acidental de BB. Mais, da forma como vêm descritos na Acusação e como decorreram os factos descritos pelo Arguido, só pode concluir-se por uma personalidade doentia do Arguido ou de um estado de alteração momentâneo de consciência, que teria ditado aquele desfecho, não querendo, o Arguido, de todo, produzir a morte de BB.

6 - Logo a Acusação porque nula, e incompleta, terá de ser rejeitada, nessa parte, e não se pode ordenar ao Ministério Público que a modifique, pois tal facto violaria o princípio da estrutura acusatória do processo e o da estabilidade do objecto do processo. Acresce que, a indicação das disposições legais aplicáveis afigura-se da maior importância, pois é em função delas que se delimitam os factos e se formula o pedido de condenação. Tendo em conta o supra elencado deve o arguido ser absolvido da prática do crime de homicídio qualificado, pelo que não vem acusado.

7 – Assim, nos termos do artigo 311º, nº 2, al. a) do CPP permite ao juiz, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, “rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”, definindo o nº 3 do mesmo preceito as situações em que a acusação pode ser considerada manifestamente insuficiente: c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;

8 - Como tal e ao contrário do que julgou a decisão recorrida deverá ser declarada a nulidade, devendo ser substituída por outra, expurgada da matéria de facto dada como nula, o que o Tribunal ad quem, poderá fazer atento os poderes que lhe são conferidos nos termos do artigo 428 e 431 do CPP, ou assim não se entendendo, mediante o reenvio para aquele Tribunal, procedendo-se para tal a novo julgamento com a consequente anulação do anteriormente realizado ou o regresso à fase de inquérito.

9 - O Arguido AA, tendo sido notificado, nos termos e para os efeitos de uma alteração não substancial dos factos, e à alteração da qualificação jurídica dos mesmos, nos termos e para os efeitos do artigo 358 n.º 1 e 3 do CPP, e apresentou defesa. Na sua Defesa arguiu Nulidades.

10 - Da Nulidade Insanável da comunicação - A intervenção do tribunal colectivo, quando a competência para o julgamento do objecto de um processo lhe é atribuída pela lei, tem início com a prática dos actos introdutórios da audiência – n.º 3 do artigo 329.º do Código de Processo Penal – e apenas termina com a leitura da sentença – artigo 372.º, n.º 3, do mesmo diploma – ou, caso tenha lugar, com a breve alocução subsequente à leitura da sentença condenatória – artigo 375.º, n.º 2, do Código. Entre esses dois momentos vigora, tal como acontece no processo civil – artigo 654.º do Código de Processo Civil –, mas aqui com maior extensão dado o diferente âmbito de intervenção do tribunal colectivo, que decide a matéria de facto e a de direito, o princípio da plenitude da assistência dos juízes.

11 - Mesmo quando o Código de Processo Penal se refere à prática de actos da competência do juiz presidente, ele pressupõe e exige que o tribunal colectivo esteja constituído e presente na audiência, sob pena de prática de uma nulidade insanável – alínea a) do artigo 119.º do Código de Processo Penal.

12 - Verifica-se pela consulta da acta, que as restantes magistradas judiciais, Sra. Dr.ª CC e Sra. Dr.ª DD, que compõem o respectivo colectivo não se encontravam presentes quando o Tribunal comunicou a alteração nos termos do artigo 358 n.º 1 e 3 do CPP. As comunicações previstas nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal não consubstanciam qualquer decisão, constituindo meras advertências para que o direito de defesa possa ser exercido e, consequentemente, o tribunal possa, caso venha a considerar esses factos como provados ou a alterar a qualificação jurídica nos termos anunciados, tomá-los em conta no acórdão que vier a proferir. Essas comunicações devem ocorrer até ao termo da produção de prova para que possam ser produzidos os meios de defesa que na sequência delas vierem a ser requeridos pelos arguidos, antes, portanto, de terem lugar as alegações orais relativas à questão da culpabilidade, previstas no artigo 360.º do Código de Processo Penal.

13 - O juiz presidente, que preparou a audiência e estudou previamente o processo, deve efectuar as comunicações previstas no n.º 1 do artigo 358.º do Código de Processo Penal logo que considerar que um determinado facto ou um conjunto de factos deve ser submetido à apreciação do tribunal colectivo por ser plausível que o mesmo possa ser considerado provado. O mesmo acontece com as comunicações previstas no n.º 3 do mesmo preceito legal.

14 - Pelo que argúi-se a presente nulidade nos termos do artigo 119 al. a) do CPP, que é de conhecimento oficioso e deve ser declarada em qualquer fase do procedimento, devendo tal comunicação ter lugar, com o Tribunal validamente constituído, devendo em consequência anular-se os actos praticados, desde a alteração dos factos e da qualificação jurídica, devendo o Colectivo na sua plenitude proceder à referida alteração.

15 - Da falta de requisitos formais (e substanciais) da alteração dos factos descritos na acusação.

16 - Tendo o requerimento 26 páginas, resulta meridianamente claro que em menos de meia hora, e atento que se discutiu amplamente a nova entrada em vigor da portaria 170/2017, tendo remetido a apreciação do requerimento em escassos minutos. Logo se denota que o Tribunal não ponderou devidamente todo o requerimento apresentado, e as decisões nos termos do artigo 97 n.º 5 do CPP, devem ser compreensíveis e, certamente, não é em escassos minutos que de decide um requerimento com o teor do que foi apresentado.

17 - Está em análise uma situação qualificada pelo tribunal de alteração não substancial dos factos, que foi comunicada ao recorrente em audiência de julgamento, antes de lida a sentença final, mas comunicada após as alegações, nos termos do artigo 360 do CPP, todavia a alteração dos factos ou da qualificação jurídica deve ter sempre lugar, quando o Tribunal toma conhecimento dos factos, e de preferência, antes das alegações finais. O que no caso concreto não sucedeu.

18 - Ora, a alteração dos factos, quer seja substancial quer seja não substancial, traduz-se sempre numa alteração do objecto inicial do processo definido ou delimitado pelo teor da acusação (pública ou particular). Com efeito, o nosso processo penal tem natureza/estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento subordinada ao princípio do contraditório – nº 5, do artigo 32º, da CRP. O que significa que o objecto do processo a discutir e a apreciar pelo tribunal, ou dito de outro modo, os factos em apreciação e o seu enquadramento jurídico, estão delimitados pelo teor da acusação.

19 - Quando o tribunal entende, pois, que existe uma alteração não substancial, de relevo, e entende ainda que a deve levar em conta na decisão a proferir, surge então a necessidade de dar cumprimento ao disposto no artigo 358º, nº 1 e n.º3 do CPP, que se traduz em comunicar esta alteração ao arguido. Como o Tribunal Constitucional já por diversas vezes teve oportunidade de salientar, os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado.

20 - Como é sabido, esta matéria encontra-se regulada nos artigos 303º, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal (CPP), que distinguem entre "alteração substancial" e "alteração não substancial" dos factos descritos na acusação ou pronúncia, fazendo, assim, apelo à definição constante do artigo 1.º, alínea f), do CPP, segundo a qual se considera alteração substancial dos factos "aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis."

21 - Esta exigência ou necessidade de comunicação surge por dois motivos: Desde logo porque, vigorando o apontado princípio do acusatório, qualquer alteração à acusação deve ser comunicada ao arguido, no sentido de esclarecê-lo que, para além dos factos que já constam da acusação, o tribunal apreciará ainda mais os que se traduzirem em tal alteração. Em segundo lugar porque vigora também o princípio do contraditório, segundo o qual assiste ao arguido o direito de contestar e impugnar não só os factos iniciais já conhecidos mas quaisquer outros que surjam e que o tribunal pretenda levar em consideração, de modo a que o arguido não seja condenado por factos dos quais não se defendeu, que não seja sujeito de uma decisão/surpresa. Pelo que se exige que, para além da comunicação, seja concedido ao arguido, se o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, o que no caso concreto, foi concedido pelo juiz presidente, sem que o colectivo estivesse reunido o prazo de 10 dias.

22 - Visitando agora ao teor do despacho de alteração não substancial dos factos, no seguimento do que se disse sobre a natureza acusatória do nosso processo penal, do direito do arguido ao exercício efectivo da sua defesa perante novos factos que o tribunal entenda apreciar na sentença, no pressuposto de que, se o tribunal entende proceder à dita alteração não substancial é porque tal alteração se reveste de interesse ou, no dizer da lei, de relevo, significa que a comunicação a que se refere o artigo 358º, deve obedecer a determinados requisitos, nomeadamente formais e substanciais, sob pena de, a não se entender assim, o princípio do contraditório não ser observado e respeitado na sua plenitude e o arguido acabar por ser surpreendido com uma decisão diferente do expectável.

23 - É deste modo que no ac. do STJ de 16.1.2003, proferido no proc. nº 02P4424 se afirma que “ a obrigação de advertência ou comunicação de alteração, substancial ou não, dos factos, imposta pelos artigos 358º e 359º, do CPP, implica que tal comunicação seja feita com todo o rigor, já que tal diligência se destina a permitir que o visado exerça, em plenitude, o seu direito de defesa, que não resultaria salvaguardado se o tribunal, afinal, pudesse ultrapassar, unilateralmente, os limites daquela alteração nos termos precisos em que lhe foi transmitida”

24 - Por um lado, o despacho limita-se a afirmar juízos meramente conclusivos e especulativos, não fundamentando em que prova alicerça tais conclusões. Em suma conclui por factos que mais não são do que meras conclusões ou meras presunções. Não se alcança o exacto sentido ou intenção decisória, sendo, no entanto, certo que a mesma não tem nem apoio legal nem apoio nos elementares princípios do processo penal vigente. É razão para perguntar: se não devem constar os factos em que se concretiza a alteração dos factos, bem como a prova em que assenta essa convicção. Resulta de algum documento? O Documento já existia? Resulta de um documento junto? Resulta de algum depoimento de uma testemunha? Resulta de algum esclarecimento de algum perito? Deriva de alguma prova pericial? Lido o despacho que procede à alteração dos factos e da qualificação jurídica, ficamos sem perceber a origem de tis factos, e de onde os mesmos possam resultar, tema que infra voltaremos.

25 - Pois uma alteração dos factos que contivesse e respeitasse as normas de direito, nomeadamente o princípio do contraditório deveria indicar que números da acusação se encontram modicados, quais os números que se consideram aditados, e sobretudo em que meios de prova o Tribunal alicerçou a sua conclusão, ora, revisitado o despacho apena refere o seguinte “Afigura-se ao Tribunal que no decurso da audiência verifica-se alteração de factos descritos na acusação, nos seguintes termos: (…) O Tribunal informa o Arguido que em termos de factualidade a ele respeitante, tendo em conta a que foi por ele articulada, afigura-se-lhe considerar designadamente a seguinte: (…) Para os termos do disposto no artigo 358 nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal o Tribunal procede à presente comunicação”.

26 - Com estas vacuidades o Tribunal não indica quais as concretas provas, os meios de prova que considerou para concluir como conclui, mais grave o Tribunal avança elementos especulativos, e imagina-se até comunica matéria respeitante à determinação da sanção, matéria que de resto não é convocada para efeitos de alteração dos factos, pois esse capítulo deveria estar preenchido com os depoimentos, a indicação das concretas provas e meios de prova que fundaram a convicção do Tribunal para chegar à conclusão e deveria indicar em concreto os pontos que sofreram alteração e os pontos da acusação que se mantêm e/ou os que se aditam e não uma mera comunicação de factos, sem respeito pelos mais básicos princípios de defesa, artigo 32 n.º 1 e 5 da CRP.

27 - Ora perante esta comunicação o Arguido não sabe se estes pontos acrescem à acusação, se substituem a acusação ou onde se contradizem não obtém desta alteração qualquer meio de prova ou prova para que possa defender-se. Contrariamente ao afirmado no despacho, tal omissão de factos com certeza que inquina de invalidade a decisão. O arguido, apenas se pode defender de factos de que tenha efectivo conhecimento, os da acusação e os que lhe forem comunicados, ou seja, os novos factos surgidos da discussão da causa, do despacho nem se quer resulta que estes factos tenham saído da discussão da causa. Digamos que o teor do despacho insiste na violação do mais elementar princípio que deve assistir ao arguido neste momento e fase processual, com vista à sua defesa: o exercício do contraditório. Ora, para que este princípio possa ser exercido, é vital que o arguido saiba os exactos factos que, naquele momento, lhe são imputados. O juiz não representa a acusação. Também não é mero árbitro. Está vinculado ao princípio da verdade material e deve desenvolver todas as diligências possíveis, em busca da mesma. Mas não pode significar, muito menos confundir-se, com a acusação. Está, sim, fiel, ao garante das liberdades e à igualdade de armas ou tratamento no contraponto entre a acusação e a defesa.

28 - Nem tão pouco se afirmar que tais indícios resultam de toda a prova documental e testemunhal que consta do processo, mesmo que o indicasse tal não seria aceitável segundo o rigor da fundamentação que deve estar subjacente a qualquer despacho judicial, pois o presente despacho não se encontra fundamentado, violando o artigo 97 n.º 5 do CPP, pois refere a norma, diga-se que não é figura de estilo, que “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.” Analisado despacho comunicado na audiência de julgamento resulta que faltam diversos elementos, como as indicações das passagens concretas dos meios de prova, que alicerçaram a convicção provisória do Tribunal.

29 - Com esta afirmação quer significar que a decisão do juiz, ao ser proferida, ao chegar aos seus receptores, deve ser percebida quanto ao iter e à lógica do julgador para chegar a essa mesma decisão. O visado, neste caso, o arguido, até poderá discordar do decidido, mas tem o direito de saber que o julgador chegou a tal decisão, segundo umas determinadas provas, valorações e conclusões que deve explicitar no processo. Aliás o próprio despacho que procede à alteração não substancial dos factos é contraditório entre si, como o é na acusação. Vide a título de exemplo o ponto 8 do despacho que altera os factos e comunicado apenas pelo Juiz Presidente “8 – Conversaram entre eles, o Arguido pediu novamente a BB que interrompesse a gravidez, dizendo-lhe também que tinha com ele comprimidos “Cytotec”, para ela tomar, para “ver se abortava”, ao que ela não acedeu, mantendo a intenção de prosseguir com a gravidez.” Este número está em clara contradição com os números 2, 3 e 4. Se o Arguido tivesse planeado matar a ofendida BB, não precisaria insistir para que esta abortasse. Mais grave, não faria sentido planear uma morte, quando poderia resolver o assunto com quatro comprimidos. Pelos vistos, o Arguido apenas pretendia administrar o Cytotec e não produzir a morte, se não porque é que se autonomizava tal número? Mais obtuso, ainda, são as expressões usadas no despacho referir “sem prejuízo”, “O Arguido planeou matá-la” “Também planeou esconder o cadáver?” Quando? Em que momento? Que actos materiais praticou? Quais as concretas provas que indicam tais passos?” Ora o direito pode interpretar-se, mas os factos ou têm correspondência com a realidade ou não têm correspondência com a realidade, os factos não se podem interpretar, muito menos adivinhar. “Propôs-se matar BB em 6 de Janeiro de 2016” Quais são os concretos meios de prova onde o Tribunal alicerça a sua conclusão?

30 - Refere ainda o despacho em 9 “Perante a manutenção da recusa de BB em interromper a gravidez, o Arguido, actuando na região da cabeça, pescoço (…) o Tribunal não acha pertinente apurar os concretos contornos da discussão? Ora alega o Arguido que discutiu com BB a propósito de a convencer a ingerir os comprimidos Cytotec, esta recusou, levantou-se e dirigiu-se à porta de saída. O Arguido colocou-se à sua frente e digladiaram-se braça a braço, tendo BB empurrado o Arguido para cima das motas, este ganhou equilíbrio e empurrou BB para evitar que esta saísse pela porta, todavia, BB e o Arguido encontravam-se junto à porta de saída, e existia um declive com mais de meio metro, de onde caiu BB e da queda ficou inanimada, tendo o Arguido verificado pelos seus sinais vitais, tendo-a reanimado, da forma como sabia, e conclui que estaria morta.

31 - Após este acidente e da queda de BB em que resultou a sua morte é aqui que se pode identificar o momento em que BB alegadamente morre.

32 -Diga-se em abono da verdade, que do ponto 16 da Acusação “Apercebendo-se do que fizera e com o intuito de ocultar o cadáver (…)” tal situação afigura-se semelhante ao ponto 8 do despacho que procede á alteração dos factos, de onde deriva que o Arguido não tinha qualquer intuito prévio de matar BB, mas antes que abortasse, crime que nem sequer colocou em execução.

33 - Neste concreto caso da comunicação da alteração não substancial dos factos, e da qualificação jurídica, ainda não se está perante uma valoração final da prova com vista a dar os factos que estão “na mente do julgador” como assentes ou não. Este apenas percepciona que, segundo determinados elementos de prova já produzidos, podem e devem ser dados como provados, para além dos factos que já integram a acusação, mais alguns factos com relevo para a sentença. São exactamente esses os factos que devem integrar a tal comunicação. Com certeza que são ainda e apenas factos indiciários, porque sujeitos ainda ao contraditório.

34 - A valoração do julgador não é ainda definitiva. Pode acontecer que com a produção de novos elementos de prova, tais indícios percam consistência ou apontem noutro sentido. A comunicação e o exercício do direito de defesa do arguido podem levar a esse efeito. Que pode ser conseguido ou simplesmente manter e reforçar os indícios já existentes. Ora, nos mesmos termos que, na sentença, o julgador deve indicar os meios de prova com o respectivo exame crítico em que se apoiou para dar os factos como provados ou não provados, assim esclarecendo e convencendo da bondade do decidido, para os sujeitos processuais ficarem a saber o raciocínio seguido pelo julgador na valoração da prova produzida – constituindo nulidade esta não explicitação ou fundamentação -, também a quando do cumprimento desta comunicação, tem o julgador o dever de indicar ao arguido, que os factos (novos) se mostram indiciados com base em determinados e concretos meios de prova. Só esta concretização permitirá ao arguido identificar o objecto da sua defesa, contraditando os meios de prova já produzidos e oferecendo quiçá outros que, em seu entender, possam abalar os indícios até então existentes. Mas, mais uma vez, temos que distinguir entre o exercício pleno e efectivo do arguido deste seu direito, do resultado final de toda a sua defesa, que tanto pode abalar os indícios como não os afectar, de todo.

35 - Sempre se devendo raciocinar e julgar no sentido de que, apesar de já produzida prova sobre a matéria, o raciocínio feito sobre os novos factos, é sempre um raciocínio provisório, só adquirindo a forma de definitivo, com a prolação da sentença. É neste espaço que medeia entre a comunicação e a sentença, que é dada a oportunidade ao arguido do exercício legítimo da sua defesa, de poder contrariar os indícios, a propensão do julgador para confirmar esses indícios, quer criando dúvida sobre a sua prática quer contrariando mesmo a sua efectiva ocorrência, ora não se indicando quais os meios de prova em que se funda o raciocínio inquina e torna impossível o exercício do contraditório.

36 - De todos estes considerandos resulta clara a necessidade de o julgador dar cumprimento ao artigo 358º, nº 1 e n.º 3 do CPP, não só com rigor mas também segundo uma leal transparência para com a defesa. A qualidade e a posição de arguido, independentemente da responsabilidade e consequências que lhe possam advir da prática dos factos, é, por natureza do funcionamento das regras processuais, uma parte mais débil, sujeita ao cumprimento de prazos no exercício dos seus direitos, podendo a todo o momento ser surpreendido com novos factos e mesmo prova de que terá que se defender.

37 - Pode dizer-se que a comunicação feita pelo tribunal ao arguido, da alteração não substancial dos factos, não observou o legalmente exigido quanto à sua fundamentação, que no caso se traduz na explicitação ou concretização dos factos e meios de prova indiciários, nos termos supra referidos, única forma e meio de salvaguardar ao arguido os direitos consignados no artigo 61º, nº 1, alínea c) e 358º, nº 1, ambos do CPP e 32º, nºs 1 e 5, da CRP, violador, pois, dos direitos de defesa e do princípio do contraditório, pretendendo o Arguido que o Tribunal declare a presente nulidade.

38 - O Arguido na sua contestação já tinha colocado como questão prévia a Nulidade da Acusação. A acusação proferida pelo Ministério é nula, nos termos do artigo 283 n.º 3 al. c) do CPP, porquanto, qualifica o homicídio como qualificado, nos termos dos artigos 131, 132 n.º 2 alíneas b), c) e j) do Código Penal. Ora analisadas as normas, verifica-se que o elemento literal do artigo 132 n.º 2 do Código Penal, remete para o n.º 1 do artigo 132, e o Ministério Público não profere acusação nos termos do artigo 132 n.º 1 do Código Penal, logo não pode o Ministério Público acusar por um crime de homicídio qualificado, tal como o faz. Analisando as normas: O artigo 131 do Código Penal dispõe “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos.” O Artigo 132 n.º 2 do Código Penal dispõe “É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, (…) remetendo, o Ministério Público para as als. b), c), e j), do mesmo artigo.

39 - Só que a norma do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, remete para o “número anterior” e não para o artigo anterior, assim verifica-se a nulidade assinalada, com os efeitos estatuídos no artigo 122 do Código de Processo Penal, não podendo o Arguido ser julgado por um crime de que não vem acusado, pois não é indicada a moldura penal, nem a norma incriminatória que seria o artigo 132 n.º 1 do Código Penal “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos”, pois o artigo 131 do Código Penal não permite o salto lógico para qualificar as gravitas das als. b), c) e j) do n.º 2 do artigo 132 do Código Penal, logo não se pode o Arguido defender.

40 - Nem o mesmo se pode defender das normas punitivas indicadas na acusação se vier a ser condenado, pelo crime de homicídio qualificado, porque se encontra impedido de produzir defesa, violando-se dessa forma o artigo 32 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. Assim sendo o Arguido não pode ser julgado por um crime de homicídio qualificado, porque não vem acusado do mesmo, por falta de indicação da norma aplicável, o que se entende, pois na realidade, como se demonstrará o Arguido a ter cometido algum crime de homicídio, seria um homicídio privilegiado, nos termos do artigo 133 do Código Penal, ou homicídio negligente, nos termos do artigo 137 do Código Penal.

41 - Logo a Acusação porque nula, e incompleta, terá de ser rejeitada, nessa parte, e não se pode ordenar ao Ministério Público que a modifique, pois tal facto violaria o princípio da estrutura acusatória do processo e o da estabilidade do objecto do processo, nem pode o Tribunal, sob a capa do artigo 358 n.º 3 do CPP, corrigir uma nulidade levantada na contestação e que já deveria ter sido apreciada pelo Tribunal. Ora, assim, parece [à falta de fundamentação por parte do Tribunal, ao Arguido só percepções é que pode retirar do Despacho] se justifica a alteração da qualificação jurídica dos factos, ou seja, para violar o princípio da estrutura acusatória do processo e o da estabilidade do objecto do processo.

42 - Tendo em conta o supra elencado deve o arguido ser absolvido da prática do crime de homicídio qualificado, pelo que não vem acusado, tendo levantado a nulidade não pode o Tribunal alterar a qualificação jurídica de algo que competia ao Ministério Público. Na fase de julgamento, a Lei nº 59/98, de 25.8 veio permitir que estes mesmos requisitos da acusação possam ser apreciados oficiosamente em fase jurisdicional, o que se requereu na Contestação. Assim, o artº 311º, nº 2, al. c) do CPP, permite ao juiz, quando o processo é remetido para julgamento sem ter havido instrução, “rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”, definindo o nº 3 do mesmo preceito as situações em que a acusação pode ser considerada manifestamente insuficiente: (…)

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

43 - Este nº 3 foi aditado pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, permitindo ao juiz a possibilidade de rejeição da acusação nos casos taxativamente ali previstos, que são, em síntese, os mesmos que caracterizam a nulidade da acusação. Ora não se encontrando na acusação a norma punitiva ou seja a especial censurabilidade ou perversidade, artigo 132 n.º 1 do CP, lida relida a acusação não conta em ponto algum a menção ao artigo 132 n.º 1 do CP, mas antes ao artigo 131 do CP, que poderá ser correcta, eventualmente, pois o artigo 132 n.º 2 apenas ilustra alguns casos do que se pode considerar homicídio qualificado, que têm de ser analisados, no caso concreto, mas para ser analisado é necessário e imperioso, que o Arguido viesse acusado no termos do artigo 132 n.º 1 do CP, assim, a alteração da qualificação jurídica, propugnada no Despacho, porque altera nos termos do artigo 1 al. f) do CPP uma alteração substancial dos factos, aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso [de homicídio na acusação passou a denominar homicídio qualificado] ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, deixou de ser o limite mínimo de 8 anos e máximo de 16 anos, para alterar os limites de 12 para 25 anos. Tal configura uma alteração substancial dos factos, nos termos do artigo 359 do CPP.

44 - Assim, nos termos do artigo 359 n.º 1 e n.º 2 do CPP esta alteração não pode ser tomada em conta pelo Tribunal para efeitos de condenação. Ora parece que esta alteração dos factos nos termos do artigo 358 n.º 1 e 3, indica que o Tribunal pretende corrigir a acusação, no entanto face ao que acima se deixou dito não pode o Juiz de julgamento socorrer o Procurador do Ministério Público, corrigindo os erros do primeiro, digamos que não compete ao Juiz de Instrução ou de Julgamento indicar a estrada a percorrer pelo Ministério Público. E esta alteração dos factos e da qualificação jurídica parecem ser a resposta a uma nulidade arguida e não decidida. Tal é inaceitável porque subverte a lógica do princípio do acusatório e do princípio do contraditório.

45 - Essas nulidades não são insanáveis, porque não englobadas nas nulidades previstas no art. 119º do CPP. Englobam-se as mesmas no disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379º do CPP, que dispõe que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Porém, mesmo não alegadas essas nulidades, sempre seriam oficiosamente cognoscíveis em recurso, visto que as nulidades de sentença enumeradas no art. 379.º, n.º 1, do CPP, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais, estabelecendo-se no n.º 2 do mesmo artigo que as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se com as necessárias adaptações o disposto no art. 414.º, n.º 4. Não pode haver decisão sem fundamentação como resulta do disposto nos arts. 205.º, n.º 1, da CRP, e 97.º, n.º 5, do CPP, sendo aliás nula uma decisão que não seja fundamentada, quer de facto quer de direito, como decorre do art. 379.º, n.º 1, al. b) do CPP.

46 - Assim, nos termos do artigo 379 n.º 1 al. b) do CPP, o facto de a Sentença não conter refletida a alteração dos factos comunicada nos termos do artigo 358 do CPP, nulos por falta do princípio da plenitude e assistência dos juízes, artigo 119 al. a) do CPP, o facto de ter condenado o Arguido, por um crime de que não vinha acusado, note-se que o arguido vinha acusado dos seguintes crimes:

“(…) art. 131 n,.º 1 e 132 n.º 2 al. b), c), e j) do CP (…)” Ora como vimos supra, não consta neste elenco o artigo 132 n.º 1 do CP, logo não existe moldura penal nesta acusação que vá dos 12 aos 25 anos, o Arguido não pode ser condenado a pena diversa da pedida. Por outro lado, diga-se que a alteração dos factos como ocorreu, ocorreu nos termos do artigo 358 n.º 1 e nº 3, mas pelo facto de o Arguido não vir acusado nos termos do artigo 132 n.º 1, tal implica que essa alteração dos factos seja entendida como uma alteração substancial dos factos, com o regime próprio, do artigo 359 do Código Processo Penal, todavia não foi assim que decidiu o Tribunal a quo, assim sendo, requer-se a V. Exas. que no uso dos poderes que se encontram investidos decidam de acordo com o direito.

47 – Artigo 410 n.º 2 e 3 do CPP. Nos termos do disposto no art.º 431 do CPP, sem prejuízo do disposto no artigo 410 do CPP, a decisão do Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base e se a prova tiver sido impugnada nos termos do art.º 412 n.º 3 do CPP. Entende o Recorrente que a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada quanto aos concretos pontos dos factos dados como provados, devem ser alterados os pontos, 6-10, 14, 15, 18, 23, 24, 32 e 33, e dos factos não provados os pontos 3-6.

48 – Indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e das provas que devem ser renovadas. Em cumprimento do disposto no artigo 412 n.º 3 al. b) e c) e n.º 4 do CPP passa-se a indicar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. A motivação da decisão de facto encontra-se descrita no Acórdão de páginas 10-17, apenas se refere essencialmente ao crime como sendo o crime p. e p. nos termos do artigo 131 e 132 n.º 1 e n.º 2 al j). O Tribunal ignora toda a restante factualidade, apenas se concentra, na factualidade que pode indicar que a conduta do arguido tenha sido reflectiva, ponderada, ou pensada com antecedência. Ignorando por completo toda a prova que demonstra o contrário. Com esta afirmação quer significar que a decisão do juiz, ao ser proferida, ao chegar aos seus receptores, deve ser percebida quanto ao iter e à lógica do julgador para chegar a essa mesma decisão. O visado, neste caso, o arguido, até poderá discordar do decidido, mas tem o direito de saber que o julgador chegou a tal decisão, segundo umas determinadas provas, valorações e conclusões que deve explicitar no processo. Aliás o próprio despacho que procede à alteração não substancial dos factos é contraditório entre si, como o é na acusação.

49 - Vide a título 13 dos factos provados, “Conversaram entre eles, o Arguido pediu novamente a BB que interrompesse a gravidez, dizendo-lhe também que tinha com ele comprimidos “Cytotec”, para ela tomar, para “ver se abortava”, ao que ela não acedeu, mantendo a intenção de prosseguir com a gravidez.” Deste número 13 dos factos provados, não é possível concluir, como se conclui em 14 dos factos provados, não foi pela recusa do aborto que o arguido actuou na região da cabeça, pescoço. Ora esta questão deve ser devidamente enquadrada, com as explicações do Arguido e ainda, de outros elementos de prova carreados para os autos.

50 - Assim o Arguido AA, prestou declarações que se encontram gravadas, no sistema habilus, dia 18 de Abril de 2017, pelo Arguido foi dito que desejava prestar declarações, o que fez, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 15 horas e 22 minutos e o seu termo pelas 17 horas e 03 minutos. Durante as suas declarações foi analisado o teor de fls. 570 a 592,447 a 467, 16 e 17. [transcrito em local próprio]. Daqui resulta que a morte de BB não foi planeado, mas antes aconteceu porque ocorreu um acidente. Havia um degrau elevado, que resulta descrito no relatório elaborado pela Polícia Judiciária, vide auto de reconstituição fls. 570-592 dos autos, onde se vê a dinâmica da luta. Estes pontos referem-se essencialmente que o arguido planeou matar BB, caso esta não abortasse e que teria planeado esconder o corpo. Tais números não correspondem a factos, mas antes a convicções, deveria repugnar a um Tribunal inscrever convicções como se de factos se tratassem. Por este motivos, pelos supra e infra aduzidos estes fatos terão de ser dados como não provados. Está em clara contradição com os números provados sob os números 2, 3, 4 e 5. Se o Arguido tivesse planeado matar a ofendida BB, não precisaria insistir para que esta abortasse. Mais grave, não faria sentido planear uma morte, quando poderia resolver o assunto com quatro comprimidos. Pelos vistos, o Arguido apenas pretendia administrar o Cytotec e não produzir a morte, se não porque é que se autonomizava tal número? Mais obtuso, ainda, são as expressões usadas no Acórdão referir “sem prejuízo”, “O Arguido planeou matá-la” “Também planeou esconder o cadáver?” Quando? Em que momento? Que actos materiais praticou? Quais as concretas provas que indicam tais passos?” Ora o direito pode interpretar-se, mas os factos ou têm correspondência com a realidade ou não têm correspondência com a realidade, os factos não se podem interpretar, muito menos adivinhar. “Propôs-se matar BB em 6 de Janeiro de 2016” Quais são os concretos meios de prova onde o Tribunal alicerça a sua conclusão?

51 - Refere ainda o Acórdão “Perante a manutenção da recusa de BB em interromper a gravidez, o Arguido, actuando na região da cabeça, pescoço (…) o Tribunal não acha pertinente apurar os concretos contornos da discussão? Ora alega o Arguido que discutiu com BB a propósito de a convencer a ingerir os comprimidos Cytotec, esta recusou, levantou-se e dirigiu-se à porta de saída. O Arguido colocou-se à sua frente e digladiaram-se braça a braço, tendo BB empurrado o Arguido para cima das motas, este ganhou equilíbrio e empurrou BB para evitar que esta saísse pela porta, todavia, BB e o Arguido encontravam-se junto à porta de saída, e existia um declive com mais de meio metro, de onde caiu BB e da queda ficou inanimada, tendo o Arguido verificado pelos seus sinais vitais, tendo-a reanimado, da forma como sabia, e conclui que estaria morta.

52 - Após este acidente e da queda de BB em que resultou a sua morte é aqui que se pode identificar o momento em que BB alegadamente morre. Diga-se em abono da verdade, que do ponto 16 da Acusação “Apercebendo-se do que fizera e com o intuito de ocultar o cadáver (…)” tal situação afigura-se semelhante ao ponto 8 do despacho que procede á alteração dos factos, de onde deriva que o Arguido não tinha qualquer intuito prévio de matar BB, mas antes que abortasse, crime que nem sequer colocou em execução. Ora não existem testemunhas directas do evento. Toda a investigação que se encontra realizada e feita foi conduzida sempre pelo Arguido. Pois vide fls. 315 dos autos, de um auto de busca e apreensão realizado em 20/04/2016 à sua residência “Iniciada a diligência e percorrida a residência, que correspondia a uma garagem, em concreto um espaço amplo, que o visado utilizava como habitação, nada foi encontrado com interesse para os autos.” Ou seja, até o Arguido prestar esclarecimentos, indicar onde estava o cadáver, o local onde ocorreu a morte de BB e as circunstâncias em que ocorreram, foram-nos dadas a conhecer em concreto pelo Arguido, para onde foi transportado, todo o iter cognoscitivo. A investigação apenas tinha o número do IMEI e um cartão associado a um IMEI que foi do Arguido. Todas as provas que o inquérito recolheu validaram o que o Arguido disse. As circunstâncias em que morreu BB, fruto de uma discussão, o modo, uma queda acidental, e o desespero do Arguido que foi confrontado com um resultado que não previu, não quis, e com que não soube lidar, daí a exuberância de cortar o cadáver para o ocultar. O local referido pelo Arguido condiz com o local onde há vestígios hemáticos. Note-se que a investigação não fez uma comparação do ADN de BB e do Arguido para saber se o sangue pertencia à vítima ou ao alegado agressor, ou se de um terceiro. Ora o Arguido no âmbito da colaboração prestada indicou ao Tribunal o que se passou a seguir, cortou o cadáver, separou a cabeça, mãos e pés, para não ser identificado, e o restante transportou para um local próximo da casa onde cresceu, não porque tivesse previamente escavado qualquer buraco, mas numa solução de recurso, e justificou tal porque naquela aflição apenas se recordou daquele local. Se tivesse ocorrido alguma premeditação, certamente o Arguido teria procurado um local longe da sua casa onde não pudesse um dia mais tarde ser identificado se não porque separaria a cabeça e os pés e as mãos? Também não se pode afirmar que seria para ocultar a causa da morte, pois para tanto bastaria “apenas” cortar a cabeça e não seria necessário cortar o resto do corpo.

53 - Do relatório elaborado pela PJ a fls. 246-281, verificando os vestígios 8 e 9, “Os vestígios 8 e 9 foram submetidas ao teste de pesquisa da peroxidase existente no sangue, pelo teste “Kastle-Mayer”, tendo o resultado sido positivo. (…) Seguidamente procedemos ainda à recolha do lugar frontal esquerdo da viatura, de uma amostra de tipo de solo de classificação desconhecida que aí se encontrava, e que referenciamos como vestígio 10.” Pergunta. O sangue foi comparado e analisado com o da ofendida ou com o ADN do Arguido? O vestígio de solo foi comparado com o solo existente na casa do Arguido e da sua rua ou do local onde se encontrava escavado o tal buraco? Ora essa comparação não foi feita e seria essencial. Mas a investigação não levou a cabo estes meios de prova. A fls. 288, na casa de BB não se “localizarem e referenciarem eventuais vestígios com interesse forense, não tendo sido localizado qualquer vestígio.” Aliás a fls. 450 refere-se no auto de inspecção à casa do Arguido, após este ter indicado à PJ o que teria sucedido, deslocaram-se à sua habitação constataram que “De salientar que o chão (…) se encontra revestido com uma carpete de cor vermelha, assim como se constatou a ausência de uma cama.” O que indicia que o Arguido já não dormia naquela casa, ora se tivesse premeditado a sua conduta, teria feito a sua vida normal, e nunca teria consultado um psicólogo, pontos 12 e 13 da determinação da sanção comunicada no Despacho, pois essa consulta foi um pedido de auxílio pois o Arguido, como se veio a demonstrar sofre de várias patologias do foro psiquiátrico e psicológico alguém que agisse com planeamento nunca procuraria ajuda psicológica para ultrapassar um problema que conscientemente criara, ora o Arguido não criou qualquer problema de forma consciente.

54 - Aliás, a investigação deveria ter recolhido a receita médica e o comprovativo da compra do medicamento Cytotec, o que não fez, mais uma vez, foi o Arguido que referiu à investigação este elemento. Assim sendo, andou mal o Tribunal, recorrido pois não deveria ter dado como provados os factos 6-7, devendo ao invés, considerar os mesmos como não provados. Como tal, se assim tivesse ocorrido seria certamente outra a decisão proferida que não aquela de que ora se recorre. Pelo que o acórdão ora recorrido padece do vício previsto no artigo 410 n.º 2 al. c) do CPP, o que o torna nulo, por violação do disposto no artigo 375 do mesmo Código, devendo por isso ser revogado e reenviado o processo para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426 do CPP, já que ao Tribunal ad quem não é possível decidir a causa.

55 - O mesmo raciocínio feito acima é válido para os pontos 8-10. Refere o ponto 8 o seguinte: “Para esse efeito, cerca do Natal de 2015, na localidade de ..., num pinhal, situado próximo de uma casa de sua mãe, em que habitara, durante alguns anos, até se ter mudado para a zona de Lisboa, o Arguido cavou uma cova, com formato sensivelmente quadrado, com a profundidade de 1.80 metros.” O Tribunal conclui pelos testemunhos de FF, EE e ainda da sua localização celular e pelo facto de o Arguido ter passado o Natal em ..., teria escavado um buraco. Ora questionadas as ditas testemunhas constatou-se que nenhuma delas, viu o Arguido proceder à abertura de nenhum buraco. A testemunha FF, que prestou depoimento em 9 de Maio de 2017, prestou juramento legal e o seu depoimento foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 30 minutos e o seu termo pelas10 horas e 42 minutos. Entre o minuto 5 e o minuto 8 disse o seguinte: [transcrito em local próprio]. Destes depoimentos resulta que nenhuma das testemunhas viu abrir o buraco, mas resulta outra coisa evidente é o que o terreno onde foi aberto o buraco era arenoso, fácil de escavar, o que segundo as regras da experiência comum nos diz que o buraco abria-se e pouco tempo sem necessidade de planeamento ou abertura prévia. Refere o Arguido a propósito do buraco: Vide as suas declarações prestadas a 18 de Abril de 2017, minuto 22 e seguintes, em sede de julgamento: [transcrito em local próprio].

56 - Refere o Acórdão, em 9, que o arguido propôs matar BB, tal é uma conclusão e não um facto a intenção de matar tem de resultar de factos que com toda a probabilidade o revelam, o que não é o caso, pois aqui estamos perante o domínio de uma suposição por parte do Tribunal. O mesmo se diga quanto ao ponto 10 dos factos dados como provados, quando refere “ a fim de não ser identificado”, referindo-se ao telefonema que o Arguido fizera para a vítima, do telemóvel que comprou para lhe ligar. Fácil é de perceber analisando a prova, que a curta relação entre os dois, era uma relação pautada por se falaram ou por se deixarem de falar, e era hábito BB por vezes não atender o telefonema ou vice-versa. Daí que em 6 de Janeiro de 2016, AA tenha adquirido um cartão que introduziu num aparelho que já possuía para ligar a BB para que ela fosse a casa não com o intuito de a matar, mas com o intuito de lhe dar os medicamente que já tinha consigo.

57 - Assim sendo, andou mal o Tribunal recorrido pois não deveria ter dado como provado os factos 8, 9, 10, devendo ao invés, considerar os mesmos como não provados. Como tal, se assim tivesse ocorrido seria certamente outra a decisão proferida que não aquela de que ora se recorre. Pelo que o Acórdão ora recorrido padece do vício previsto no artigo 410 n.º 2 al. c) do CPP, o que o torna nulo, por violação do disposto no artigo 374 do mesmo Código, devendo por isso ser revogado e reenviado o processo para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426 do CPP, já que ao Tribunal ad quem não é possível decidir a causa.

58 - Nos pontos 14 e 15 do Acórdão, também deveriam ser dados como não provados, por falta de prova bastante. Existem algumas considerações a tecer sobre estes factos, que para além de não terem arrimo na prova produzida, sempre teremos de os considerar de forma isolada cada um deles e não em forma de amálgama, como vêm sugeridos. Assim, refere-se em 14 “actuando na região da cabeça”, como se pode afirmar isto sem que a cabeça tenha sido autopsiada e sem ela é impossível saber a causa da morte? “pescoço e/ou [admite-se e/ou numa sentença? Tal significa que o Tribunal não tem prova suficiente para poder fazer uma afirmação e/ou, concede-se que sucedesse numa acusação, mas não pode o Tribunal, condenar o Arguido com base e/ou, ou a acção é contínua, logo copulativa, ou é disruptiva, logo disjuntiva. Assim ou será uma coisa ou outra ou copulativa, mas para uma condenação terá de assentar na afirmativa com base em factos concretos e não factos dúbios, fagueiros. Refere-se, ainda, em 14 “por forma concreta não completamente apurada, causou-lhe lesões que determinaram a sua morte.” Se não estão apuradas as lesões como é que se pode afirmar e/ou que lhe “determinaram a sua morte” Como é a pergunta que se levanta legitimamente?  A falta de prova para a tese que o Tribunal quer fazer vingar é grande. São mais as dúvidas do que as certezas.

59 - Ora estamos perante a descrição de uma lesão singular originada por um impacto colateral involuntário provocado por uma acção auto-defensiva, pois Arguido e Ofendida, digladiavam-se junto à porta, para que este lhe pudesse administrar os medicamentos, logo BB recusou, e daí essa envolvência, e subsequente queda que lhe originou a morte, pois ao ser agredido, pois BB era corpulenta, não era franzina, o instinto biológico é sempre o de afastar a fonte de perigo, tal como BB havia feito empurrando o Arguido para cima das motos, no patamar superior da casa, de onde caiu, tal foi feito não por acção, mas antes por reacção subconsciente, logo fora do âmbito de qualquer juízo de racionalidade.

60 - Refira-se que a morte e um processo complexo e difícil diagnóstico, sendo neste caso impossível aferir especificamente o que o determinou a morte, logo é impossível dizer ou determinar qual o momento que tornou o processo gradual de morte irreversível, não é possível determinar a morte cerebral.

61 - Vide esclarecimento da Perita ..., em 9 de Maio de 2017, prestados em audiência de julgamento: As suas declarações foram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10 horas e 58 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 30 minutos [transcrito em local próprio]. Aqui não há sinais vitais, e estariam mortos os tecidos que estão cortados. Para além de que não há sinais de luta, como disse a perita, o que é compatível com discussão havida entre o Arguido e a Vítima, tendo esta caído e batido com a cabeça, pois não é possível saber o que originou a morte. O Relatório de autópsia a fls. 649-653, indica que não foram administrados venenos. Logo se Arguido quisesse matar a Vítima tinha de a imobilizar, ou disparar um tiro, mas não existe pólvora, armas ou vestígios de que assim fosse. É muito mais plausível a versão do Arguido, que a morte de deveu à queda junto à porta de casa e que a vítima caiu de uma altura superior a 50 cm, corresponde ao cadafalso que tem a entrada da garagem, e os cortes correspondem ao desmembramento efectuado pelo Arguido. Logo destes conjuntos de factos se infere que o Arguido não quis matar a vítima deliberadamente, muito menos que tenha premeditado a sua conduta, ou pelo menos temos de levantar a dúvida, sobre a forma como ocorreram os factos, e nesse caso deverá ser resolvido a favor do arguido, absolvendo-o o do crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos do artigo 131, 132 n.º 1 e 2 al. j) e condenar o Arguido por um crime de homicídio artigo 131 do CP. Continuando os esclarecimentos da Senhora Perita ..., que diz: [transcrito em local próprio]. Aliás a Perita ..., que prestou esclarecimento a 12 de Setembro de 2017, Prestou esclarecimentos, gravados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10:34:30 e o seu termo pelas 10:41:25 e próximo do fim disse o seguinte: [transcrito em local próprio]. Ora daqui podemos verificar que o Arguido produziu golpes no corpo quando este já estava morto, ou sem qualquer reacção, ligando à ausência de luta só se pode concluir por uma morte acidental, sendo mais plausível este cenário que o cenário da premeditação da sua conduta. Ou seja, perante estes factos o ponto 18 dos factos provados in fine, terá de ser alterado, dizendo que BB provavelmente estaria morta.

62 - Ora da queda e das consequências não previstas pelo Arguido, este entrou em estado de pânico e de medo, isto são factos. Na verdade, quando esteja em causa ajuizar da verificação de algum tipo de crime, o «medo» não é um conceito jurídico – como o são, por exemplo, o dolo ou a negligência – que careça de ser integrado por factos, mas antes constitui um facto, na verdadeira acepção do termo, um facto de natureza subjectiva, uma realidade fáctica do domínio psíquico, a qual pode, eventualmente, manifestar-se em condutas exteriores, mas que não tem necessariamente de se exteriorizar, para ser existir ou para poder ser apreendida pelo julgador. Mas no caso concreto esse medo exteriorizou-se, e como no descontrolo das emoções vividas pelo Arguido, em estado neurótico como se afirma na determinação da sanção nos números 17-20, que vieram a determinar o desmembramento da ofendida BB. No entanto, quer o perito psicológico, quer o perito psiquiatra nunca estabeleceram em concreto, ou melhor dizendo, quanto ao dia 6 de Janeiro nunca referem especificamente o estado do arguido nesse dia. Chegando a referir o perito psiquiatra que quanto mais tempo medeia entre o facto e a avaliação mais difícil é determinar o que ocorreu no dia 6, relidas as declarações de ambos apontam nesse sentido, nunca se querendo comprometer com o dia 6 de Janeiro de 2016, e sempre generalizando e do longo tempo decorrido e da recuperação de alguma consciência do Arguido, referem que estava consciente, mas na realidade há pelo menos dúvidas, se são estados de saúde alterados, que no contexto da prova produzida, nos dão a percepcionar que o Arguido nesse dia 6 de Janeiro de 2016 não se encontrava em bom estado mental, sobretudo após  a queda de BB, onde é notório pelo desfecho apoteótico com um desmembramento de um cadáver.

63 - A forma como se percepciona [pois só podemos ter perceções à falta manifesta de prova, porque não são indicados os concretos meios de onde se procedeu à alteração dos factos] comunicada no Despacho e que ficou no Acórdão, deixa latente os maiores equívocos, tudo que não se deseja numa decisão judicial. Assim como é que é possível “lesões” no plural, depois referir “essa acção do Arguido”, no singular, não será o número o grau de hesitação do Tribunal para não referir a contradição flagrante. Refere ainda o Acórdão “Quando o Arguido efectuou o respectivo corte”, referem-se lesões, no plural, aqui refere o singular, ora é mais uma vez uma questão de número, o que por parte do Arguido e à falta de indicação de provas para que se possa defender, será mais uma dúvida que não obtém resposta. Quando o Despacho em 18 dos factos provados refere “sem prejuízo de poder já estar inconsciente” é necessário proceder a uma especificação para que tal se possa admitir, pois apenas existe uma ligeira infiltração sanguínea, reveja-se o relatório fls. 685-689, e ainda assim colocada em dúvida. Donde resulta que todo o restante organismo se encontrava sem infiltração sanguínea. Assim, sendo andou mal o Tribunal recorrido pois não deveria ter dado como provados os factos 14, 15, e parcialmente o 18, devendo ao invés, considerar os mesmos como não provados. Como tal, se assim tivesse ocorrido seria certamente outra a decisão proferida que não aquela de ora se recorre. Pelo que o Acórdão ora recorrido padece do vício previsto no artigo 410 n.º 2 al. c) do CPP, o que o torna nulo, por violação do disposto no artigo 374 do mesmo Código, devendo por isso ser revogado e reenviado o processo para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426 do CPP, já que ao Tribunal Ad quem não é possível decidir a causa.

64 - Refere ainda o Acórdão em 19, “Prosseguindo esse objectivo de ocultação” a questão a levantar ao Tribunal é quando em que momento é que se iniciou o processo de ocultação? Ora esta questão não se encontra devidamente escalpelizada, muito menos explicado, porque não é referido concretamente os meios de prova. Nunca é demais relembrar que a acusação refere como causa da morte, vide artigo 13 da Acusação “De seguida, o arguido e BB discutiram e aquele desferiu um número indeterminado de pancadas na cabeça de BB, que lhe provocaram a morte.” Refere em 16 da Acusação “apercebendo-se do que fizera e com o intuito de ocultar o cadáver (…)” Será que são estes os pontos que se pretendem alterar? Qual a razão da alteração dos factos? Onde se alicerça a convicção do Tribunal? Ao Arguido face ao Despacho que lhe foi comunicado só mesmo perguntado, porque do Despacho e da Acusação nada resulta e são vários os elementos em contradição entre si. Naturalmente se alguém que se apercebe de algo é porque não contava com esse fator, tal é-nos referido pelas regras da experiência comum, tal como em 8 do Despacho o Arguido pede a BB que tome o medicamento, tal indicia pelo menos que o Arguido não planeou qualquer morte, o que planeou e delineou foi administrar quatro comprimidos de Cytotec, fora daí foi surpreendido pelos acontecimentos e tudo ocorreu de forma inesperada, acidental, descontrolada, sem consciência da ilicitude dos factos.

65 - Diferentemente da comunicação da alteração não substancial dos factos, em que ainda não se está perante uma valoração final da prova com vista a dar os factos que estão “na mente do julgador” como assentes ou não, no entanto no Acórdão esses factos estão já de forma definitiva. Este apenas percepciona que, segundo determinados elementos de prova já produzidos, podem e devem ser dados como provados, para além dos factos que já integram a acusação, mais alguns factos com relevo para a sentença. São exactamente esses os factos que devem integrar a tal comunicação. Com certeza que são ainda e apenas factos indiciários, porque sujeitos ainda ao contraditório. O contraditório foi apresentado e não foi minimamente valorado, para além de ser nulo todo o processo de alteração pela falta do princípio da plenitude de assistência dos juízes. Mais, da forma como vêm descritos na Acusação e como decorreram os factos descritos pelo Arguido, só pode concluir-se por uma personalidade doentia do Arguido ou de um estado de alteração momentâneo de consciência, que teria ditado aquele desfecho, não querendo, o Arguido, de todo, produzir a morte de BB, aliás como parece resultar da parte comunicada sobre a determinação da sanção, sob os números 12 a 21 e 34 e seguintes do Acórdão. Não pode falar em qualquer conduta premeditada porque ninguém viu o Arguido a escavar nenhum buraco, pois o Arguido segundo a sua localização celular foi a ... dia 21 de Dezembro de 2016 ao 12h03 e em Salvaterra de Magos nesse mesmo dia às 14h21, e às 15h36 também esteve em ..., para passado poucos minutos localizar-se no Centro Comercial Vasco da Gama. Os únicos dias que esteve em ... foram nos dias 24 e 27 de Dezembro de 2015 para passar o Natal em família, com mãe e o irmão, vide anexo A3, fls. 28. Pergunta que se impõe escavaria durante o dia o buraco? À vista de toda a gente, já que o local é próximo da estrada e da casa da mãe do Arguido? Escavaria o buraco com a família toda em casa? É necessário visualizar o Anexo A2, para ver que no dia 9 de Janeiro de 2016 o Arguido foi à zona de ..., vide anexo A2 fls. 12, onde se encontra pelas 20h. Haverá algum indício de premeditação? Parece claro e flagrante que escapa às regras da experiência comum, que tal possa objectivamente ocorrer e no mínimo o Tribunal terá, no mínimo, de admitir a hipótese de dúvida razoável e nesse caso decidir in dubio pro reo. Saliente-se, ainda do seu relatório fls 721 “Em suma, a sua organização intrapsíquica frágil, existindo um precário mas complexo conjunto de emoções disfuncionais que não consegue elaborar ou resolver o que faz com que evite e fuja das suas emoções e das suas necessidades, consequentemente, perante situações de stress previsto ou não possui poucos recursos para que consiga proteger-se ou lidar de forma adequada com a situação a não ser através de descompensação regressiva impulsiva.” O perito psiquiátrico referiu que o Arguido não tem qualquer tendência homicida, apresenta sim um ideário suicida. Vide Declarações do Perito Psiquiátrico Dr. ..., [transcritas em local próprio].

66 - Do relatório à casa do Arguido fls. 460 revelou-se existência de vestígio hemático, mas não foi analisado se coincide com o perfil genético da Ofendida, novamente valeu a explicação e contributo que deu à investigação, poupando meios e colaborando decisivamente, mostrando o seu vivo e genuíno arrependimento. Chama-se a atenção para a fls. 464, ou seja, a análise à viatura da mãe do Arguido, onde se descreve “De seguida procedeu-se à observação e localização de vestígios hemáticos em todo o interior da viatura, com recurso às técnicas de observação directa e luz rasante, com utilização da lâmpada de luz alternada GoldPanther forensicc light source kit (Fal2000) com luz branca e em seguida com comprimento de onda de 415 nm, tendo o resultado sido negativo.” Relativamente ao vestígio 3 observado na mesma folha dos autos, foi detectado sangue na bagageira, a investigação não fez o teste para verificar se se tratava de sangue da vítima, nas conclusões do relatório da PJ o vestígio 3 não é tratado nas conclusões, logo não se pode concluir nada desse vestígio, novamente a investigação sabe o que sucedeu porque o Arguido o referiu. O Arguido a fls. 471-473, recolheu vestígios de ADN a pergunta para que efeito, já que o seu ADN não foi comparado em momento algum. Porquê? Porque o que relatou o Arguido é coincidente com a realidade. Se o Arguido, por qualquer hipótese, quisesse oferece-se em sacrifício no lugar de outra pessoa como culpado, por faltas imputadas à investigação, seria condenado, deixando alguém impune. Caso para referir, que só dando crédito ao Arguido se construiu esta investigação e se permitiu dispensar provas elementares de comparação de perfis de ADN para identificar em concreto os envolvidos. Pelo que o Tribunal tem de dar como credível o depoimento do Arguido, condena-lo apenas pelo crime de homicídio simples, artigo 131 ou convolar o homicídio de que vem acusado em homicídio negligente e pelo crime de ocultação e profanação de cadáver, devendo ser absolvido dos demais.

67 - Ora o Arguido nunca mais conseguiu ficar bem, nunca mais conseguiu dormir na sua casa, e passou a dormir na casa da mãe, procurou ajuda psicológica, condutas de quem não premedita os crimes, basta ver com atenção que a casa a fls. 452 a 460 são fotos da casa no dia da detenção onde se verifica a ausência de cama e a própria casa não tem configuração de habitação, mas antes de arrumos. Para se ver o erro em que lavrou o douto Acórdão ao proferir o que se encontra em 23 e 24 dos factos provados, onde se refere que “após o trabalho” e entre as 18h00 e as 19h00 do dia 7 de Janeiro, o arguido estacionou o veículo da sua mãe junto à porta (…) e conduziu-o para a localidade de ... (…), ora consultado o apenso 2, onde se encontram todas as localizações celulares, verifica-se que nesse dia 7 de Janeiro de 2016. Esteve às 8h34 em Alfragide, às 8h59, bairro de caselas, 11h40 no aeroporto de Lisboa, às 11h58 Filipe Folque, às 13h11, esteve em arroios, mais tarde na praça do comércio às 13h13, depois esteve na outorela às 17h30, depois todas as localizações celulares são Barcarena sua área de residência. Apenas no dia 9 de Janeiro pelas 20h é que tem uma localização, vide mesmo apenso em Salvaterra de Magos, dia em que presumivelmente enterrou o corpo, ou seja, o Arguido não tinha nada planeado, demorou pelo menos desde o dia 6 de Janeiro de 2016 até ao dia 9 de Janeiro de 2016 para decidir o que fazer ao corpo. Assim sendo, andou mal o Tribunal recorrido pois não deveria ter dado como provados os factos 23 e 24, devendo ao invés, considerar os mesmos como não provados. Como tal, se assim tivesse ocorrido seria certamente outra a decisão proferida que não aquela de que ora se recorre. Pelo que, o acórdão ora recorrido padece do vício previsto no artigo 410 n.º 2 al. c) do CPP, o que o torna nulo, por violação do disposto no artigo 374 do mesmo Código, devendo por isso ser revogado e reenviado o processo para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426 do CPP, já que ao Tribunal Ad quem não é possível decidir a causa.

68 - Quanto aos números 32 e 33 é um corolário dos factos descritos como na sentença, no entanto, atentas as provas que inquinam ou podem alterar alguns factos também as conclusões vertidas em 32 e 33 carecem de ser alteradas, porque o Arguido não tinha a intenção de tirar a vida à vítima, tão só dar-lhe um comprimido para abortar, não tendo agido de forma livre nem querida, como de resto de deixou claro e expresso. Assim sendo, andou mal o Tribunal recorrido pois não deveria ter dado como provados os factos 22 e 23, devendo ao invés, considerar os mesmos como não provados. Como tal, se assim tivesse ocorrido seria certamente outra a decisão proferida que não aquela de que ora se recorre. Pelo que, o acórdão ora recorrido padece do vício previsto no artigo 410 n.º 2 al. c) do CPP, o que o torna nulo, por violação do disposto no artigo 374 do mesmo Código, devendo por isso ser revogado e reenviado o processo para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426 do CPP, já que ao Tribunal Ad quem não é possível decidir a causa.

69 - Face a todas as dúvidas que existem é legítimo ao Arguido levantar a questão no que respeita à qualificativa da al. j) do n.º 2 do artigo 132 do CP de que não premeditou a sua conduta ou de que pelo menos há dúvidas razoáveis e fundadas de que tenha premeditado a conduta ou que tenha agido com frieza de ânimo ou actuado com especial censurabilidade e perversidade. O «in dubio pro reo» é um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão-de-direito. Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo. Na Sentença, sob censura, o M.º Juiz, nem sequer colocou a hipótese de o Tribunal ter ficado na dúvida, optou, certamente por ser mais confortável, dar como provada acusação, quando se impunha de forma diversa ouvir a defesa, nos pontos essenciais, a defesa, foi consentânea, apresentou provas, e deveria ter merecido credibilidade por parte do Tribunal, além da prova proibida, da prova indevidamente valorada, e da ausência de prova, há que dizê-lo com toda a frontalidade, apenas existem meros indícios que não passam disso mesmo e de presunções e ilações que levaram a que o arguido respondesse pela alínea j) do artigo 132 n. 2 do CP. Ora esta investigação mal conduzida, sem recolher previamente provas concretas, foi apenas ficando pelo que disse o Arguido, o modo como decorreu, prendendo alguém sem ter factualidade assente, mínima é um raciocínio escabroso, que limita os seus direitos e os restringe, por desrespeito pelo artigo 18 n.º 2 da CRP. Violou assim o princípio da dignidade humana e nos termos do artigo 18 n.º 2 da CRP, “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”. Um Tribunal ousa condenar um arguido quando tanta prova poderia e deveria ter requerido. São muitas questões que ficam por responder sendo legítimo que a presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo seja confirmado pelo Tribunal ad quem. Mas caso assim não se entenda, pelo menos sempre tal nulidade terá de se afirmar. Pelo que, a decisão recorrida é por isso também nula, devendo ser substituída por outra, expurgada da matéria de facto dada como provada com base em tal prova nula, o que o Tribunal ad quem, poderá fazer atento os poderes que a este são conferidos nos termos dos arts. 428.º e 431.º do CPP, ou assim não se entendendo, mediante o reenvio para aquele Tribunal, procedendo-se para tal a novo julgamento com a consequente anulação do anteriormente realizado.

70 - Dos factos dados como não provados, ou seja, os factos 3-6, tais factos devem ser dados como provados, porque são a consequência lógica de não serem dados como provados os factos 6-10, 14, 15, 18, 23, 24, 32 e 33. A prova que acima indicamos que fundamenta a passagem destes factos a não provados é a mesma que deve ser usada para dar estes factos como provados, assim e por economia processual damos a prova supra elencada aqui por reproduzida. Assim sendo, andou mal o Tribunal recorrido pois deveria ter dado como provados os factos 3 a 6, devendo ao invés, considerar os mesmos como provados. Como tal, se assim tivesse ocorrido seria certamente outra a decisão proferida que não aquela de que ora se recorre. Pelo que, o acórdão ora recorrido padece do vício previsto no artigo 410 n.º 2 al. c) do CPP, o que o torna nulo, por violação do disposto no artigo 374 do mesmo Código, devendo por isso ser revogado e reenviado o processo para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426 do CPP, já que ao Tribunal Ad quem não é possível decidir a causa.

71 - Nos termos do artigo 412 n.º 2 do CPP, versando a impugnação matéria de direito deve especificar-se, como referem as al. a), b) e c), as normas jurídicas violadas, o sentido em que o Tribunal interpretou a norma e como a deveria ter interpretado, e qual a norma jurídica a aplicar.

72 - Por Violação do disposto nos artigos 40 n.º 1, e 2, n.º1, 71 n.º 1 e 2, 77 n,º 1 do CP. Efectivamente o Artigo 40 e o artigo 71 encontra-se violado por não ter sido feita correcta interpretação dos critérios, vejamos em que modo. Conjugando as duas normas podemos afirmar que a protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade, apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos. Como não se cansa de dizer a jurisprudência e a doutrina Prevenção e culpa são os critérios gerais a atender na fixação da medida concreta da pena, reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena. Acrescentando a jurisprudência que a medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto, ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada - [prevenção geral positiva ou de integração] - temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena. Ora, no caso concreto o dolo com que actuou o arguido não é intenso, dado que se tratou de um acidente, cujos reflexos e consequências não puderam ser avaliadas de forma correcta pelo Arguido e das necessidades e exigências de prevenção geral justifica-se a aplicação de uma pena pouco acima do limite médio, pois o Arguido encontra-se socialmente integrado, recebe visitas regulares no estabelecimento prisional de família e amigos, quer concluir os estudos, ou seja, tem um projecto de vida organizado e estruturado, mais compreendeu e interiorizou a medida da pena.

73 - Ora nos termos do artigo 71 do CP o que se pretende é que na determinação da medida da pena está subordinada ao princípio da proibição da dupla valoração. Nos termos do artigo 72 n.º 2 do CP, na determinação da medida concreta da pena o Tribunal atende a todas as circunstâncias que não, fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente as circunstâncias constantes das alíneas a) e f), consideramos que co-fundamentam a pena concreta aplicável, cfr. Doc artigo 71 n.º 3 do CP. Devendo ainda ser aplicada a qualificativa de atenuação especial, semelhante à prevista nos artigos 72 e 73 do Código Penal, e pois o Arguido AA, não obstante a gravidade dos factos que lhe são imputados, mas face à sua postura colaborante com o douto Tribunal, postura essa que manteve ao longo de todo o processo, é de esperar que condenado, possa beneficiar de uma atenuação especial da pena, prevista nos termos dos artigos 72 e 73 do Código Penal.

74 - Ora o Arguido cometeu dois crimes, no entanto não deixou de colaborar activamente na descoberta dos factos, quer na identificação do corpo, indicação do local, onde o corpo se encontraria, onde tinham sido depositados os restantes restos mortais. Indicou com todo o pormenor que lhe era possível e exigível, em que dia, ocorreu a morte de BB, em que circunstâncias é que ocorreu, o que fez ao carro, para onde levou o corpo, onde o enterrou, onde deitou as outras partes, tudo isto veio a possibilitar à família do Assistente saber o destino de BB, e puderam organizar um funeral, pois casos existem onde nem tal facto é possível por falta de colaboração dos Arguidos. Tal facto deverá ser relevado de forma substancial na pena a aplicar ao Arguido, aliada à morte acidental, e ao facto de o Arguido ter colaborado activamente na investigação e tudo fez o que estava ao seu alcance para colmatar o mal feito, merece de facto quer uma diminuição na culpa do agente, que é elevada, quer na necessidade de pena, que se revela, apesar das circunstância ser necessário, adequado e proporcional uma pena menor à aplicada. O Arguido arrependeu-se dos crimes praticados de forma sincera e não com reservas como parece crer a Sentença e ainda a sua actuação deveu-se ao facto de padecer de problemas de saúde oculares graves, que são congénitos e genéticos, que passam para as gerações seguintes, tendo agido sob influência de forte perturbação, e esses factos têm de ser especialmente atenuados.

75 - Em casos enquadráveis nesta situação de colaboração com a justiça, descoberta de provas, abandono da actividade criminosa, é expectável que o Arguido reúna condições para previsivelmente beneficiar do regime previsto no artigo citado supra, e que daí possa resultar uma diminuição da pena.

76 - Ora o Tribunal a quo faz uma dupla valoração, entre a aplicação do artigo 40 do CP e do artigo 71 do CP, olvidando, a atenuação especial que o Arguido merecia nos termos supra citados. O Arguido manifestou sempre o seu arrependimento, referiu sempre que ouvido, e nas diversas peças processuais que dirigiu ao Tribunal.

77 - O arrependimento é um ato interior, devendo essa demonstração ser visível de modo a convencer o tribunal que se no futuro vier a ser confrontado com uma situação idêntica, não voltará a delinquir, o que sempre exprimiu e mais do que uma vez. O que o Arguido proferiu no Tribunal ao nível do arrependimento tem de ser valorado pelo Tribunal, sem reservas no sentido de não voltar a cometer esse ou outros crimes, recorde-se que o arguido é primário e contra ele não correm outros processos. De juízo de prognose favorável o arguido terá de beneficiar do cumprimento das medidas de coacção que sempre cumpriu e sem incidentes nos estabelecimentos prisionais, quer o anexo à PJ, onde esteve alguns dias, quer no de Caxias, prisão a que está adstrito. Sempre cumpriu, o que mostra uma vontade e um propósito de acordo com o direito, do Acórdão e a condenação de per si funcionarem como censura ao cometimento de crimes, a ausência de qualquer condenação, e a boa conduta tida, pois o crime já ocorreu há mais de um ano e meio e nunca o Arguido delinquiu. Nunca o Arguido demonstrou insensibilidade, antes pelo contrário, sempre colaborou em todas as fases do processo, prestando declarações e esclarecimentos que se impunha, entregando documentos, que se vieram a revelar decisivos, para demonstrar factos não provados. Todos estes factores são suficientes para fazer o Tribunal repensar a pena aplicada.

78 - O Colectivo não fez correcta interpretação dos critérios estabelecidos nas disposições conjugadas dos art. 40 n.º 1 e 71 n.º 1 e 2, als a) a c), e) e f) do CP, e artigo 72 n.º 2 al. b) c) e d), normas violadas, devendo o Tribunal diminuir as exigências de prevenção geral e especial, principalmente esta última, atendendo ao seu relatório social, e à prova abonatória que arrolou e que mereceu acolhimento por parte do Tribunal. Ora, os motivos que determinaram a sua conduta, o arrependimento manifestado pelo Arguido, as suas circunstâncias pessoais, nomeadamente, a sua idade, ausência de antecedentes criminais, a sua longa vida de trabalho, o cumprimento das obrigações demonstram uma vontade férrea de viver de acordo com a lei e o direito. Facto reflectido no seu relatório social, dado como provado e pelas testemunhas por ele arroladas, que o corroboraram, facto que deverá merecer confiança por parte do Tribunal.

79 - Em casos de crimes desta natureza a ausência de antecedentes criminais não é irrelevante, uma vez que são altas as exigências de prevenção, não nos podemos esquecer do contexto particular e devemos encontrar outra solução dentro da matéria de facto provada, e eventualmente ordenar a repetição de provas que possam influir no mérito da causa e ter a certeza do que sucedeu. O ponto de partida das finalidades das penas com referência à tutela necessária dos bens jurídicos reclamada pelo caso concreto e com significado prospectivo, encontra-se nas exigências da prevenção geral positiva ou de integração, em que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal. Por outro lado, a pena também tem uma função de prevenção geral negativa ou de intimidação, como forma estadualmente acolhida de intimidação das outras pessoas pelo mal que com ela se faz sofrer ao delinquente e que, ao fim, as conduzirá a não cometerem factos criminais. Mas, em termos jurídico-constitucionais, é a ideia de prevenção geral positiva ou de integração que dá corpo ao princípio da necessidade de pena.

80 - As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores, neste caso concreto há um sentimento de menor exigência por parte da comunidade), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento, ressarcimento, boa conduta após os factos), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente, que é diminuta. As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano. Ora o M.º Juiz a quo ignorou qualquer circunstância que depusesse a favor do arguido, e as que valorou foram de forma limitada, nomeadamente quando refere “algum arrependimento”, quando o Arrependimento era total, violando grosseiramente a lei, apenas refere que não tem antecedentes criminais, sem referência em que medida os valora, tal como valora a contrario a prevenção especial. Ora o sentido da norma implicaria que a ausência de antecedentes criminais, boa inserção social e as diminutas razões de prevenção especial deveriam impor uma decisão que no concreto cada pena parcelar pudesse ser menor, e o mesmo deveria suceder quanto ao cúmulo jurídico.

81 - As circunstâncias e critérios do artigo 71.º devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. O Tribunal ao arrepio do direito e da conduta do agente, não valorou o seu arrependimento, a sua colaboração, o sentimento que está provado no seu relatório social, capaz de se autodeterminar e levar uma vida sem cometer crimes. Há diversa prova nos autos carreada por colaboração do Arguido AA, a que o Tribunal entendeu fazer tábua rasa.

82 - As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

83 - Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito, do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.

84 - O dolo é a consciência e vontade de praticar certo facto típico, ou de empreender certa actividade típica. O dolo, enquanto elemento subjectivo do tipo, consiste o conhecimento dos elementos objectivos desse tipo e na vontade de os praticar: a pessoa actua dolosamente quando conhece e quer os elementos objectivos de um tipo legal. O que é algo mitigado, pois o Arguido agiu porque tinha problemas de saúde, ocorreu um acidente, no meio da discussão, ou seja, sucedeu no caso concreto pois o Arguido não quis a morte de BB, mas face ao acidente ocorrido, foi inevitável, tendo perdido a cabeça, por isso o desmembramento. E também a intensidade do dolo é reflectida em termos da medida da pena, no âmbito do art. 72º CP. Aqui deve valorar a ausência de antecedentes criminais, a boa conduta do agente, o cumprimento das medidas de coacção, houve arrependimento sincero do agente, colaborado com a justiça sempre e já decorreram mais de um ano e meio, mantendo o agente boa conduta. Ponderados estes factores estamos perante um dolo mais diminuído. Por outro lado deve relevar a sua ausência de antecedentes criminais. Quanto à confissão refere o acórdão não houve confissão dos factos por parte do arguido, apenas no que não podia demarcar-se. Ora nada mais errado, o Arguido foi o cerne e foi ele que decisivamente colaborou activamente no processo, indicando as provas, os locais onde ocorreu a morte, as suas circunstâncias, para onde levou os restos mortais, etc. Ora o Arguido sempre manteve ao longo do processo a sua versão dos factos. O Arguido sabe que cometeu um ilícito, quer pagar pelo ilícito cometido e não se poupou a esforços, quer ao nível das declarações, quer no cumprimento de todas as obrigações que lhe foram impostas. Considera essa afirmação no acórdão não verdadeira e deveria merecer uma qualificação diferente por parte do Tribunal a quo. Ora o Arguido não lhe foi necessário exibir depoimentos anteriormente prestados, não se furtou a esclarecimentos ao Tribunal, sempre colaborou. Negou o crime de homicídio qualificado, porque nunca o praticou e não pode o arguido ser condenado por um crime que não praticou. O Arguido encontra-se bem inserido. Pelo que a pena aplicável é excessiva, viola o princípio da culpa, pois sendo a sua culpa média, a pena nunca poderá ser superior à sua culpa, sendo esta média a pena será média ou pouco acima dos limites mínimos.

85 - A moldura penal no presente caso do concurso no caso do arguido AA, foi de 21 anos a 6 meses de prisão. No que concerne à determinação da pena única, deve ter-se em consideração a existência de um critério especial na determinação concreta da pena do concurso, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso, o que não sucedeu in casu, violando assim o Tribunal, uma importante direito de defesa do Arguido, vide artigo 32 n. 1 da CRP. Todo este trabalho de análise global se justifica tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados pelo condenado é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, ou se emergirá antes e apenas de factores meramente ocasionais”. Obviamente que temos de convir que estas factos foram meramente ocasionais e não fazem parte da vida do Arguido a prática de crimes desta ou doutra natureza. Por outro lado, na fixação da pena conjunta, há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso. Cremos que nesta abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71.º do Código Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal - o que significa que este específico dever de fundamentação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, sendo que, in casu, a ordem de grandeza de lesão dos bens jurídicos tutelados e sua extensão não fica demonstrada pela simples enunciação, sem mais, do tipo legal violado, o que passa pela sindicância do efectivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta. Ponderados todos os elementos disponíveis, considerando a dimensão e a gravidade global do comportamento delituoso do arguido, estando em causa violação de bens jurídicos com diferente natureza, a evidente conexão entre as infracções, a forma intensa de dolo, ponderando o contexto em que tudo se passou, procedendo a uma avaliação da gravidade do ilícito global e a personalidade do arguido evidenciada pelas condutas analisadas, atendendo a que a prática dos factos não revela uma especial desconformidade aos valores tutelados pelo direito, procedendo-se a uma ponderação da gravidade do ilícito global, justifica-se uma intervenção correctiva, pelo que a pena fixada conjunta em 21 anos e 6 meses é excessiva, devendo ser diminuída, para um valor próximo do limite mínimo, uma pena bastante inferior seria proporcional à dimensão do ilícito global, ao invés a aplicada. Não há dúvidas de que o acórdão recorrido não cumpriu satisfatoriamente as exigências de fundamentação, mesmo as de «especial fundamentação», da pena conjunta que aplicou. O que teremos agora de avaliar é saber se os factos e respectivas circunstâncias justificam essa pena ou se, pelo contrário, impõem uma pena mais reduzida. Refira-se que no Relatório de AA, dispõe de meios e de trabalho, quando regressar à sociedade. Vide o relatório, versão corroborada pelas suas testemunhas que arrolou e que o Tribunal deu especial atenção. Por sua vez, a culpa, enquanto juízo de censura dirigido ao Arguido AA, pela sua conduta criminosa se revelar expressão de uma atitude interna juridicamente desaprovada e pela qual tem de responder perante as exigências do dever-se sócio-económico, também se situa num patamar moderado.

86 - Ora o Arguido não agiu com um dolo intenso ou grave, pois o homicídio ocorreu na sequência de uma discussão, só nessa medida a prevenção e a culpa terão de ser aferidas e nessa forma deve reduzir um pouco quer a prevenção geral, quer a culpa associada. Todo o bom enquadramento do Arguido, em conjugação com aquelas circunstâncias e comportamentos, augura uma boa esperança de ressocialização já que carece pouco dessa ressocialização. Da sua postura em julgamento, não se pode dissociar da postura, tida ao longo de todo o processo, que foi a de colaborar com a justiça, naquilo que pode, quer na identificação de um indivíduo com quem teve contacto, quer fornecendo os documentos que possuía, quer prestando declarações em todas as fases, sempre consentâneas, verdadeiras, nunca lhe tiveram de reproduzir declarações por contradições. Mostrou ao longo do processo um arrependimento sincero, que o Tribunal não valorou, injustamente. O Arguido é ainda jovem e o seu relatório social demonstra a capacidade de ressocialização. Não se verifica… uma tendência criminosa, mas sim uma pluriocasionalidade que não radica na sua personalidade.

87 - A moldura penal do concurso é, no caso, a de 21 anos a 6 meses de prisão, sendo fixada a pena única em 21 anos e seis meses, portanto excessiva. Assim, atentas as considerações anteriores, enfim, atendendo a que, apesar do elevado grau de ilicitude da conduta global, do efeito agravativo que tem de se atribuir à pluralidade dos factos praticados, das exigências de prevenção geral decorrentes, que na sua comunidade não são elevadas, que acção como a praticada pelo Arguido inequivocamente provocam, como efectivamente provocaram, deverá ser aceite uma atenuação das exigências de prevenção especial pelas razões aduzidas supra e, do mesmo passo, alguma redução do grau da culpa, o que, sem as comprometer, permite reduzir a pena conjunta claramente abaixo do limite óptimo reclamado pelas exigências de prevenção geral, e a culpa situada abaixo do ponto médio daquela moldura. Quer entenda o Venerando Tribunal manter a condenação, devendo refazer cada uma das penas parcelares, e em consequência o cúmulo jurídico.

88 - Por violação do principio in dubio pro reo, dão-se, aqui por reproduzidas, as questões atinentes e supra elencadas relativamente a este princípio, não se repetindo, por ser desnecessários, porque acima se motivaram com matéria fáctica e questões a que o Tribunal não respondeu pelo seu poder oficioso, de que se encontra investido. O «in dubio pro reo é um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão-de-direito que cabe. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova: mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que (…) devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma «questão-de-direito» para efeito do recurso de revista» – Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª ed. (1974), Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, págs. 217-218; cf., ainda, Cristina Líbano Monteiro, In Dubio Pro Reo, Coimbra, 1997, e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 437. O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito. Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, para o qual se remete o que supra referimos. Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo. Daqui se retira que a perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida.

89 - Escolha e determinação da medida da pena. O crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 131 n.º 1 e 132 n.º 1 e 2 al j) do CP, pelo qual o Arguido vem condenado e não vem acusado nestes termos, é punido, em abstracto, com pena de prisão de 12 (doze) anos a 25 (vinte e cinco) anos. Quanto a este crime foi aplicada a pena única de 20 anos e 6 meses, sendo do que vem sendo expendido que tal pena é excessiva. Por sua vez, ao crime de tráfico profanação de cadáver, p. e p. pelos arts. 254 n.º 1 al. b) do CP, corresponde uma moldura abstracta de pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias. Ora o Arguido confessou o crime, indicou que objectos usou para cortar o crime, indicou o que fez às partes do cadáver e o local onde o depositou, sendo um crime que admite a punição como pena de multa, o Tribunal optou pela punição em termos de pena de prisão, mas aplicou a pena máxima, aplicável a este crime, face à colaboração do Arguido, ao seu arrependimento, a pena aplicada a este crime, não teve em consideração as suas circunstâncias particulares daí entender o Arguido que foi aplicada uma pena parcelar excessiva que não respeita os princípios da necessidade de pena, proporcionalidade, adequação e necessidade. Depois, deve entender-se igualmente que os factos dados como provados manifestam a uma interiorização da conduta, pelo arguido, um desvalor da sua conduta e, consequentemente, uma culpa mais moderada, considerando a igual natureza dos crimes em questão, que um crime é consequência do outro, do que se infere que este, pese embora o tempo de prisão até então sofrido, não persistiu na actividade delituosa, até o seu relatório social lhe é favorável. Em consequência, mas apenas no que concerne ao crime supra referenciado, o arguido é merecedor de um juízo de culpa moderada, não é reincidente, antes pelo contrário é primário.

90 - Nos termos do art. 71°, n.º 1 do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na norma incriminadora, far-se-á em função da culpa e das exigências de prevenção, atendendo o Tribunal, nesta determinação, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente as enunciadas no n.º 2.

91 - Há, assim, que ter em conta, como já se deixou referido, as exigências de prevenção especial ligadas ao objectivo de reinserção social do arguido, e as exigências decorrentes do fim preventivo geral da pena (prevenção geral positiva ou de integração), ligadas à necessidade de contenção da criminalidade e à defesa das expectativas da sociedade, traduzidas na conservação ou reforço da norma jurídica violada pelo crime, como modelo de orientação do comportamento das pessoas na interacção comunitária, funcionando a culpa como limite máximo da pena concreta a aplicar, sendo que a comunidade como resulta do seu relatório social vê o seu regresso com bons olhos.

92 - Quanto à condição pessoal e económica do arguido ele encontra-se devidamente documentada, nos autos, quer por prova testemunhal abonatória, quer pelo próprio relatório social, onde o arguido assume os seus factos, interioriza-os, bem como as razões objectivas da condenação. Merecendo, neste particular, uma atenção para a prevenção especial, embora elevada, deve notar-se que na comunidade o seu regresso não é colocado em causa, nem constitui alarme, o que faz diminuir as exigências de prevenção geral. No que concerne às particulares exigências de prevenção especial, encontram-se cumpridas e são diminutas, uma vez que o Arguido se encontra inserido socialmente e beneficia de um apoio grande, por parte da comunidade, familiares e amigos.

93 - No que se refere à conduta anterior e posterior ao crime, o Arguido é primário, nunca esteve referenciado pelas autoridades em processos desta ou doutra natureza, tal resulta do seu relatório social. Não persistiu no crime, colaborou com as autoridades, disponibilizou voluntariamente todos os elementos que lhe foram solicitados, disponibilizou o seu telemóvel, auxiliou a investigação, apesar de se encontrar em reclusão, não regista qualquer infracção disciplinar, comportamental ou qualquer crime, cometido na prisão ou a partir da prisão, sendo de concluir que a sua personalidade não é ligada ao crime, e é pautado, como refere o seu relatório social, por valores que lhe foram incutidos ao longo da vida, quer pela família, quer pelo trabalho, o que sempre fez. Mantendo o propósito de estudar em reclusão e poder ser útil à sociedade. Vide que mesmo preso, o Arguido pretendeu doar sangue, recusada a sua dádiva por razões de saúde pública, explicada pelo Senhor Provedor de Justiça Adjunto, documento junto com a Contestação.

94 - Pelo que só se pode concluir, que mais uma vez andou mal o Tribunal recorrido, tendo o mesmo violado o disposto no artigo 71 n.º 2 al. c) d) e e) do CP, assim como o preceito constitucional ínsito no artigo 30 da CRP. Como tal, e não procedendo todas as anteriores nulidades e a impugnação da matéria de facto supra invocadas, deverá em último caso ser revogada a decisão recorrida, sendo substituída por douto Acórdão que condenando o Arguido AA, pelo crime de homicídio simples, p. e p. nos termos do artigo 131 do CP, o absolva do crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos dos artigos 131, 132 n.º 1 e 2 al. J) do CP.

95 - Devendo além do mais, a pena de prisão aplicada in casu ser reduzida para próximo do limite mínimo legal, atenta a idade do recorrente, a ausência de antecedentes criminais, o seu bom comportamento e enquadramento pessoal, social e profissional e o seu sincero arrependimento, atentas as necessidades de prevenção geral e especial, positivas. O que desde já se requer declarando-se procedente o presente Recurso.»

4. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413.º, n.º 1, do CPP, respondeu o Ministério Público no tribunal da Relação, dizendo (transcrição):

«1. Recorre o arguido do douto acórdão proferido nos autos à margem identificados que julgando improcedente o recurso pelo mesmo interposto da decisão proferido em primeira instância confirmou a sua condenação como autor material de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131° e 132° n.ºs 1 e 2 al. j) do Código Penal e de um crime de profanação de cadáver p. e p. pelo art. 254° n° 1 al. b) do Código Penal na pena única de 21 anos e 6 meses de prisão (20 anos e 6 meses pelo crime de homicídio e 2 anos pelo de profanação de cadáver).

2.Compulsando os autos, afigura-se manifesta a falta de razão do recorrente.

2.1. Com efeito,

2.1.1. O douto acórdão recorrido não padece de vício que importe a sua nulidade

2.1.2. As penas parcelares e a pena global resultante do cúmulo daquelas são justas, adequadas, proporcionais e necessárias para prosseguir os respectivos fins de ressocialização e prevenção e não ultrapassam os limites impostos pela concreta culpa do agente;

2.1.3. O douto acórdão recorrido, ao confirmar, na íntegra, a decisão tomada em primeira instância, não violou qualquer norma jurídica, nomeadamente os art´ s 70° e 71° do Código Penal.

3. Tal acórdão não merece, pois, censura, devendo ser mantido e confirmado nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso do arguido».

5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo o Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitido parecer no sentido da rejeição do recurso no que diz respeito às questões relativas à pena de 2 anos de prisão aplicada ao crime de profanação de cadáver e à alteração da matéria de facto, bem como às questões processuais definitivamente resolvidas no acórdão do tribunal da Relação, e no sentido da improcedência do recurso quanto à pena parcelar de 20 anos e 6 meses de prisão aplicada ao crime de homicídio qualificado e quanto à pena única de 21 anos e 6 meses de prisão, no seguintes termos, que se transcrevem:

«1 – AA foi condenado, pelo Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Criminal de Sintra, Juiz 3, nos seguintes termos:

“Condenar o Arguido AA, como autor material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea j), do Código Penal, na pena de 20 anos e 6 meses de prisão;

Condenar o Arguido AA, como autor material de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão;

Em cúmulo jurídico destas penas, condenar o Arguido AA na pena única de 21 anos e 6 meses de prisão (artigos 77º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal)”.

2 - Inconformado, recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 1/2/2018, não concedeu provimento aos recursos interlocutórios e ao acórdão revidendo.

3 – Irresignado, interpôs recurso para este Venerando Tribunal, em tempo e com legitimidade, admitido com o efeito e modo de subida devidos ( fls. 1731 e fls.1477).

O MºPº respondeu, com legitimidade e tempestivamente.

4 – Consabidamente, são as conclusões de recurso que delimitam o seu âmbito – art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P. e acórdão do S.T.J., de Fixação de Jurisprudência, n.º 7/95 de 19.10.1995, em D.R. 1ª série de 28/12/1995.

4.1 – Em longas e repetitivas conclusões, o arguido recoloca as mesmas questões submetidas à apreciação do Tribunal ora recorrido sem curar de contrariar a decisão por este tirada, reportando-se, assim, e de novo, ao acórdão proferido pela 1ª instância.

4.2 – Recupera o recorrente as questões da nulidade da acusação, que deve ser rejeitada (conclusões 2.ª a 7.ª); da nulidade insanável da comunicação da alteração não substancial dos factos e por deficiente composição do Tribunal de 1ª instância que, no acto, era representado apenas pelo Juiz Presidente, sem a presença dos Juízes Adjuntos (conclusões 9.ª a 14.ª); da falta de requisitos formais e substanciais da alteração dos factos descritos na acusação (conclusão 15.ª a 46.ª).

Nas conclusões 47.ª a 70.ª, pretende o recorrente a alteração da matéria de facto dada como provada e a dada como não provada.

Conclui, ainda, que o acórdão recorrido deveria ter-lhe aplicado uma pena especialmente atenuada, considerando que o arguido colaborou com o Tribunal na descoberta da verdade, na identificação do corpo, localização onde o mesmo se encontrava, hora, dia e circunstâncias em que ocorreu a morte da vítima. Não tem antecedentes criminais. O arguido arrependeu-se dos crimes praticados, a sua actuação deveu-se a problemas de saúde oculares graves, tendo agido sob a influência de forte perturbação. O Tribunal recorrido errou, porquanto procedeu a uma dupla valoração entre a aplicação do art.º 40º e 71.º do CP (conclusões 71.ª a 78.ª).

As penas parcelares e única de prisão aplicadas vão para além dos fins das penas, a prevenção geral e a prevenção especial, sendo que relativamente a esta, a ressocialização do arguido não se mostra necessária, porquanto não tem antecedentes criminais, tem bom comportamento prisional e boa inserção social. As penas de prisão aplicadas mostram-se excessivas, violam o princípio da proporcionalidade e o princípio in dubio pro reo (conclusões 79.ª a 93.ª).

As penas parcelares e única de prisão aplicadas devem ser reduzidas para o limite minino legal, atendendo à idade do recorrente, à ausência de antecedentes criminais, o seu bom comportamento e enquadramento pessoal, social e profissional, o seu arrependimento sincero e as necessidades de prevenção geral e especial (conclusões 94.ª).

5 – O MºPº, na sua resposta, pugna pela manutenção do julgado, que não merece censura.

6 – Questões Prévias:

6.1 – Na apreciação do recurso do arguido importa convocar o disposto nos art.ºs 432.º, n.º1, al. b), 400.º, n.º 1, al. f), e 434.º, todos do C.P.P.

Determina o art.º 432.º, n.º1, al. b), do C.P.P. que se recorre para o S.T.J. de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do art.º 400.º.

O art.º 400º, n.º1, al. f), diz que não é admissível recurso de acórdãos, em recurso, que confirmam decisão da 1ª instância e apliquem pena de prisão inferior a 8 anos.

É o caso da pena parcelar de 2 anos de prisão aplicada pelo crime de profanação de cadáver, pelo Tribunal de 1ª instância, confirmada nos seus precisos termos pelo Tribunal ora recorrido.

As questões atinentes a esta pena de prisão e matérias afins não são susceptíveis de recurso para este Venerando Tribunal, pelo que o presente recurso deve ser parcialmente rejeitado, nos termos e para os efeitos dos artigos 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. a), tendo em consideração o disposto no artigo 414.º, n.º 3, todos do C.P.P.

6.2. O art.º 434.º do C.P.P. determina que, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito.

O artigo 410.º, n.º 2, diz que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a competência do tribunal de recurso, à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável entre a fundamentação ou entre este e a decisão ou do erro notório na apreciação da prova.

O n.º 3, dispõe que o recurso pode ainda ter como fundamento, a inobservância de requisitos cominados sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

Ora, da leitura da decisão recorrida não resulta a ocorrência de quaisquer dos vícios supra elencados, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum, pelo que se tem por definitivamente fixada a matéria de facto, devendo este Venerando Tribunal proceder exclusivamente ao reexame da matéria de direito.

Assim sendo, deve rejeitar-se parcialmente o recurso interposto relativamente à matéria de facto levado às conclusões 45.º a 70.º.

6.3. Atento o disposto no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, que citámos, o recurso interposto para este Venerando Tribunal tem como exclusivo objecto o acórdão condenatório proferido em recurso pela relação, confirmatório da decisão da 1.ª instância, pelo que não abarca, por irrecorríveis, os segmentos do acórdão recorrido, atinentes a recursos interlocutórios, interpostos de despachos judiciais proferidos pelo tribunal de 1.ª instância.

As conclusões 2.ª a 45.ª tratam, exatamente, de decisões interlocutórias proferidas pelo Tribunal de 1.ª instância, decididas, definitivamente, pelo Tribunal da Relação, que se pronunciou expressa e fundamentadamente sobre tais questões. Deve, também nesta parte, ser rejeitado o recurso do arguido, por inadmissível no que tange às conclusões 2.ª a 45ª.

7. Questões de mérito:

Assim que, sob decisão deste Venerando Tribunal subsistem, tão só, as matérias de direito relativas à pena de prisão parcelar de 20 anos e 6 meses, aplicada pelo crime de homicídio qualificado, e à pena única de 21 anos e 6 meses de prisão fixada em cúmulo jurídico desta pena parcelar e da de 2 anos em que foi o recorrente condenado pela prática de um crime de profanação de cadáver.

7.2. Da pena parcelar de prisão aplicada pelo crime de homicídio qualificado.

7.2.1. O arguido discorda do quantum pena de 20 anos e 6 meses aplicada pelo crime de homicídio qualificado, que entende excessiva, considerando as atenuantes provadas, que diminuem, em termos relevantes, a culpa.

Invocando, genericamente, jurisprudência sobre os critérios que presidem à definição da pena concreta a aplicar, resultantes da conjugação do disposto nos artigos 40.º e 71.º do C.P., o recorrente afirma ter o Acórdão recorrido efetuado uma incorreta interpretação dos comandos expressos naqueles normativos. Diz o recorrente que “conjugando as duas normas podemos afirmar que a proteção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, para mostrar e reforçar a confiança da comunidade da validade e na força da urgência das normas do Estado na tutela dos bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração e da prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade), apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade da tutela dos bens jurídicos (…).

Defende ainda que colaborou na descoberta da verdade e reafirma que a morte da vítima foi acidental, o seu arrependimento e que a sua ação se ficou a dever ao facto de padecer de problemas de saúde oculares graves. E, por isso, credor de uma pena especialmente atenuada.

7.2.2. Não é esta, porém, a matéria de facto fixada.

Recuperando da decisão recorrida a motivação de facto e respectiva fundamentação, conclui-se que a morte da vítima foi decidida com premeditação, cerca de um mês antes de o arguido a concretizar. Com frieza e insensível determinação, o arguido escolheu o local onde iria enterrar a sua ex-namorada, pessoalmente escavou a terra de modo a abrir uma cova para nela esconder o corpo da BB. Depois….

Atraiu a vítima, maliciosamente, a sua casa, matou-a, esquartejou-a, dividiu em partes o seu corpo, que juntou em dois conjuntos, um que foi enterrar naquela cova, outra que, acondicionada numa mochila, composta por cabeça, pés e mãos do cadáver, lançou ao rio numa viagem fluvial que fez entre Lisboa e a Margem Sul, voltou e foi trabalhar. Procurou uma psicóloga …para pedir ajuda pelo crime acabado de cometer? Não, apenas para se queixar que andava perturbado com o desaparecimento da sua namorada, a vítima Joana!

Só confessou em julgamento os segmentos desta história de horror que não podia negar, confrontado com as provas recolhidas, mas negou ter matado consciente e voluntariamente a vítima, por meio não apurado, não confessando, consequentemente, ter preparado com antecedência de cerca de um mês, a morte da vítima, a escolha e preparação prévia do local de ocultação de parte do cadáver e todo o circunstancialismo que envolveu o desaparecimento da outra parte do corpo, que mergulhou nas águas do Tejo.

Não se recolheram factos que permitam a atenuação especial da pena contemplada no art.º 71.º do C.P., resultando de todos os factos provados o elevadíssimo grau de ilicitude e a extrema intensidade de culpa do arguido.

Actuou com dolo directo e premeditação.

Não confessou integralmente os factos provados e não mostrou arrependimento.

A prevenção geral e a prevenção especial, como fins exclusivos das penas, tendo como balizamento a culpa do agente, estão adequada e necessariamente expressas na pena de 20 anos e 6 meses de prisão aplicadas pelo crime de homicídio qualificado praticado pelo arguido.

Não merece provimento nesta parte, o recurso do arguido.

7.2.3. Como também lhe falece razão no argumento que apresenta para alicerçar o pedido de diminuição da pena única de 21 anos e 6 meses de prisão aplicada.

Socorrendo-nos da fundamentação explanada na decisão recorrida, “(…) a matéria de facto reflete distanciamento em termos de ultrapassagem das contra motivações éticas entre uma determinação normal pelos valores e a do arguido, bem como reflete censurabilidade especial da motivação pela própria violação da norma.

A gravidade do ilícito global é extrema, a personalidade do arguido revelou-se indiferente ao valor da vida humana, distanciado dos afectos e avesso às normas ético-jurídicas que orientam e determinam a vida em sociedade.

A pena única fixada satisfaz, com proporcionalidade e adequação, as expectativas da comunidade na defesa do bem jurídico supremo, a vida humana, e a reafirmação do valor das normas violadas.

Não padece de excesso a pena de 21 anos e 6 meses de prisão, pelo  que na improcedência do recurso se fará justiça.

8. Pelo exposto, emite-se parecer no sentido de

- rejeição parcial do recurso, no que concerne às questões relativas à pena de 2 anos de prisão aplicada pelo crime de ocultação de cadáver, às matérias atinentes à alteração da matéria de facto fixada e às questões suscitadas e tratadas definitivamente  pelo tribunal recorrido, no segmento da decisão sobre os recursos interlocutórios interpostos.

- improcedência do recurso no que concerne ao quantum da pena parcelar de prisão de 20 anos e 6 meses aplicada pelo crime de homicídio qualificado e do quantum da pena única de 21 anos e 6 meses de prisão».

6. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, vem o arguido dizer que “não concorda com o parecer” do Ministério Público, “dando por reproduzidas as suas alegações de recurso, chamando a atenção (…) para a qualificação jurídica dos factos, e suas vicissitudes ocorridas, descritas nas alegações de recurso, e acrescentado que “face à sua colaboração com a Justiça, à reposição da verdade, nomeadamente, na descoberta do corpo, que foi possível recuperar graças à sua iniciativa, ao seu arrependimento manifestado nos autos, e que é evidente, concretizado em actos materiais, nomeadamente na descoberta do corpo, repare-se que já no local teria havido escavações mas sem sucesso, foi decisiva a colaboração do Arguido, e este manteve boa conduta, deverá a pena a que foi condenado, ser fixado pelo menos a meio da moldura penal abstratamente aplicável, ou noutra inferior à da condenação”.

7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso é julgado em conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

II. Fundamentação

8. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida e a nulidades não sanadas, a que se refere o artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995).

9. Das conclusões da motivação, que repetem as apresentadas perante o tribunal da Relação, extrai-se que o recorrente:

a) Nas conclusões 2 a 45, invoca questões relacionadas com alegados vícios e nulidade e da acusação (conc. 2 a 8 e 38 a 43) e com alegadas nulidades da decisão de alteração e da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação e respectiva fundamentação e comunicação (conc. 9 a 37, 44, 46) e da sentença proferida em 1.ª instância (conc. 45).

Na motivação, diz que o tribunal da Relação “não apreciou a questão da nulidade da acusação” ou, “tendo-o feito, o fez de forma imperfeita, não considerando todos os elementos apresentados” (p. 11 da motivação), e que o tribunal da Relação declarou “mal” as nulidades que arguiu relativas à alteração dos factos e respectiva comunicação (p. 17 da motivação).

b) Nas conclusões 47 a 70, impugna a decisão do acórdão de 1.ª instância em matéria de facto, indicando os pontos que considera incorrectamente julgados e as provas que, em seu entender, impunham decisão diversa, alegando a existência de erro de julgamento da matéria de facto, nomeadamente por violação do princípio in dubio pro reo (69).

Na motivação alega que o acórdão da 1.ª instância sofre de vícios da decisão e existem nulidades não sanadas, a que se refere o artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP (p. 46).

Quanto ao acórdão da Relação, agora recorrido, alega que este padece do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, “o que o torna nulo, por violação do disposto no artigo 374 do mesmo Código” (p. 65 da motivação), que “a Relação não considerou sequer os pontos concretos indicados pelo Arguido, nem sobre ele produziu qualquer juízo, pelo que lavrou na omissão de pronúncia, artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP” (p. 62 da motivação) e que “não pode o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa referir que o Arguido deixou o telemóvel em casa, quando tal não consta da matéria de facto, antes pelo contrário dia 9 de Janeiro existe uma localização do telemóvel em ...” (p. 72 da motivação).

c) Nas conclusões 71 a 95, impugna a decisão de 1.ª instância em matéria de direito, alegando terem sido violadas as normas dos artigos 40.º, n.ºs 1, e 2, 71.º, n.ºs 1 e 2, e 77.º, n.º 1, e 132.º, n.º 1, al. j), do Código Penal, que dizem respeito à qualificação jurídica dos factos e à determinação da medida das penas parcelares e da pena conjunta, que considera excessivas, defendendo que apenas poderia ter sido punido por um crime de homicídio simples, da previsão do artigo 131.º do Código Penal, em pena que reflectisse maior valor atenuativo às circunstâncias relevantes, quer para efeitos da punição por este crime, quer para efeitos de punição pelo crime de profanação de cadáver.

Para além disso, entende que a condenação desrespeitou várias disposições da Constituição – os artigos 18.º, n.º 2, a propósito das provas em que se fundamenta a qualificação do homicídio pela alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal (conclusão 69), 30.º, a propósito da alegada não observância do artigo 72.º, n.º 2, al. c), d) e e) do Código Penal, quanto à determinação da medida das penas (conclusão 94), e 32.º, a propósito da fundamentação do despacho relativo à alteração dos factos e da alegada violação do princípio in dubio pro reo (conclusões 26 e 69).

10. De acordo com o disposto no artigo 46.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário), «Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito». Nos termos do artigo 434.º do CPP, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.

Dispõe o artigo 400.º, n.º 1, al. c), do CPP que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que não conheçam, a final, do objecto do processo, isto é, dos factos descritos na acusação e submetidos a julgamento (factos alegados pela acusação), dos factos alegados pela defesa e dos que resultarem da prova produzida em audiência, bem como das soluções jurídicas pertinentes, tendo em vista a decisão sobre a questão da culpabilidade do arguido e sobre a determinação da sanção (artigos 339.º, n.º 4, 368.º e 369.º do CPP). O recurso de decisões da Relação que, em recurso, conheçam, a final, do objecto do processo está, todavia, limitado pela natureza e pela medida da pena de prisão aplicada: não é admissível se for aplicada pena não privativa da liberdade (al. e) do n.º 1 do artigo 400.º) e, sendo aplicada pena privativa da liberdade, dependerá dos limites e condições previstas nas alíneas e) e f) do mesmo preceito.

Nos termos do artigo 400.º, n.º 1, al. f), do CPP não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, isto é, se ocorrer uma situação de dupla conforme. De acordo com a alínea e) do mesmo preceito também não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos. Por sua vez, o artigo 432.º do CPP estabelece que se recorre para este tribunal de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas Relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º.

Os poderes de cognição do Supremo Tribunal estão, assim, delimitados negativamente pela medida das penas aplicadas ou confirmadas pelo tribunal da Relação. Da conjugação das citadas disposições resulta, como tem sido sublinhado pela jurisprudência deste Tribunal, que só é admissível recurso de acórdãos das Relações que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou penas superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos em caso de não confirmação da decisão da 1.ª instância. Esta regra é aplicável quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso de prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso (assim, os acórdãos de 13.1.2016. no Proc.174/11.5GDGDM.L1.S1, relator Cons. João Miguel, de 18-02-2016, no Proc. 68/11.4JBLSB.L1-A.S1, relator Cons. Armindo Monteiro, de 17-03-2016, no Proc. 177/12.2TDPRT.P1.S1, relatora Cons. Isabel Pais Martins, de 20-10-2016, no Proc. 597/14.8PCAMD.L1.S1, relator Cons. Francisco Caetano, de 23-11-2016, no Proc. 736/03.4TOPRT.P2.S1, relator Cons. Sousa Fonte, em www.dgsi.pt). No sentido da conformidade constitucional desta interpretação da norma da al. f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP pode ver-se o acórdão do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 186/2013, de 4.4.2013, DR, 2.ª Série, de 09.05.2013, que decidiu “não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do nº 1, do artigo 400º, do Código de Processo Penal, na interpretação de que, havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão”.

10.1. O descrito regime de recursos para o STJ efectiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição (cfr. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, 2007, Vol. I, p. 516), enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais. Em processo penal, esta garantia de «dupla instância» é expressamente exigida pelo artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – segundo o qual “qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei” – e pelo artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais – segundo o qual “qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal tem o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade ou a condenação. O exercício deste direito, bem como os fundamentos pelos quais ele pode ser exercido, são regulados pela lei”.

Como tem sido repetido pelo Tribunal Constitucional, em jurisprudência firme, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição “não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição”, isto é, de “um duplo grau de recurso”, “em relação a quaisquer decisões condenatórias” (cfr., por todos, os acórdãos 64/2006, 659/2011 e 290/2014).

10.2. Garantido o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e em matéria de direito, têm, assim, os sujeitos processuais à sua disposição duas vias possíveis de exercer o seu direito ao recurso. Querendo impugnar a decisão em matéria de facto – ou querendo arguir os vícios da decisão a que se refere o artigo 410.º do CPP (como se tem sublinhado na jurisprudência constante deste Supremo Tribunal – cfr., por todos, o acórdão de 2.10.2014, no Proc. 89/12.3SGLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt) – e em matéria de direito, devem estes utilizar a via de recurso para o tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP), qualquer que seja a pena aplicada. Porém, limitando (artigo 403.º do CPP) o recurso a matéria de direito, a lei impõe-lhes caminhos distintos, consoante a pena aplicada: se a pena não exceder 5 anos de prisão, o conhecimento do recurso é da competência do tribunal da Relação (artigo 427.º do CPP); se a pena for superior a 5 anos (incluindo a pena parcelar e a pena conjunta, em caso de concurso de crimes), tal competência pertence ao STJ (artigos 432.º e 434.º do CPP; cfr. também o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017).

Em caso de recurso para o tribunal da Relação, é ainda possível o recurso da decisão da Relação para o STJ, limitado a questões de direito (artigo 432.º e 434.º), nos termos anteriormente referidos.

10.3. O conhecimento do recurso pelo tribunal competente implica que, no âmbito da sua competência, o tribunal aprecie e decida, oficiosamente ou a pedido do recorrente, todas as questões de direito relacionadas com o objecto e âmbito do recurso, com vista à boa decisão deste, incluindo as nulidades da decisão recorrida, as quais, sendo admissível recurso, nele devem ser arguidas, nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 2, do CPP.

Nesta conformidade, como tem sido enfatizado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como vícios e nulidades (artigos 379.º, 410.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, do CPP) ou questões relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as relativas à apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de proibições de prova, que dizem respeito à decisão relativa à matéria de facto –, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos, bem como de questões de constitucionalidade que lhes possam dizer respeito (assim, os acórdãos de 11.4.2012, no Proc. 3989/07.5TDLSB.L1.S1, de 25.6.2015, no Proc. 814/12.9JACBR.S1, e de 3.6.2015, no Proc. 293/09.8PALGS.E3.S1, em www.dgsi.pt).

11. É, pois, na presença do regime legal sumariamente descrito, que seguidamente se passa a apreciar e decidir das questões enumeradas pelo recorrente nas conclusões da motivação do recurso.

A metodologia da decisão requer, por razões de precedência lógica (artigo 608.º do CPC ex vi artigo 4.º do CPP), que esta se inicie pela apreciação das questões suscitadas pelos sujeitos processuais, ou que o tribunal deva oficiosamente conhecer, susceptíveis de obstar ao conhecimento de mérito.

Questões prévias

12. Em seu parecer, suscita a Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste tribunal as seguintes questões:

a) Rejeição do recurso na parte que diz respeito à decisão que aplica a pena de 2 anos de prisão pelo crime de profanação de cadáver, confirmada, nos seus precisos termos, pelo tribunal da Relação, ora recorrido, e às questões atinentes a esta pena de prisão;

b) Rejeição do recurso relativamente à matéria de facto levado às conclusões 45.ª a 70.ª;

c) Rejeição do recurso quanto às questões que dizem respeito às decisões interlocutórias, a que se referem as conclusões 2.ª a 45.ª

13. Nas conclusões 2 a 8 o recorrente repete perante este Tribunal o teor das conclusões 2 a 8 do recurso que apresentou perante a Relação, as quais dizem respeito a alegada nulidade da acusação.

O tribunal da Relação conheceu desta questão nos termos que constam de pp. 214 a 218 do acórdão recorrido, concluindo pela sua não verificação.

Nas conclusões 9 a 46 o recorrente repete perante este Tribunal as conclusões 51 a 58 do recurso perante o Tribunal da Relação, que dizem respeito à decisão sobre alteração de factos, respectiva qualificação jurídica e a alegadas nulidades de fundamentação e de comunicação.

O tribunal da Relação conheceu desta questão nos termos que constam de pp. 194 a 213 do acórdão recorrido, julgando improcedente o recurso intercalar e rejeitando, nessa parte, o recurso interposto da decisão final.

Na motivação, o recorrente limita-se a exprimir a sua discordância da decisão do tribunal da Relação quanto a estas questões. Não vem arguida nem ocorre qualquer nulidade do acórdão da Relação, agora recorrido, nesta parte, de que se deva conhecer.

Trata-se, em ambos os casos, de decisões das quais, como anteriormente se explicitou, não é admissível recurso para este Tribunal.

Conheceu também o tribunal recorrido das alegadas questões de inconstitucionalidade (ponto 3.10 do acórdão recorrido, pp. 272-274), concluindo pela sua não verificação, em decisão que, como se disse, não admite recurso na parte inscrita no âmbito de questões cuja decisão também o não admite.

14. Nas conclusões 47 a 70 o recorrente repete as conclusões 89 a 113 do recurso perante o tribunal da Relação, impugnando a matéria de facto por alegado erro de julgamento e arguindo vícios e nulidades da decisão de 1.ª instância, pretendendo o reenvio do processo para novo julgamento e ver alterados os pontos 6 a 10, 14, 15, 18, 23, 24, 32 e 33 da matéria de facto dada como provada e os pontos 3 a 6 dos factos não provados.

Como anteriormente se deixou esclarecido, o conhecimento das questões relacionadas com a impugnação da decisão em matéria de facto é da competência do tribunal da Relação (artigo 428.º do CPP), que sobre elas se pronuncia em última instância, estando os poderes do Supremo Tribunal de Justiça limitado ao reexame da matéria de direito, no âmbito de recurso de decisões recorríveis do tribunal da Relação (artigos 432.º, n.º 1, al. b), e 434.º do CPP).

15. Nos termos do disposto no artigo 420.º, n.º 1, al. c), do CPP o recurso é rejeitado sempre que se verifique qualquer das causas que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º, entre as quais se incluem os casos em que a decisão for irrecorrível.

Assim sendo, em conhecimento das questões prévias suscitadas pelo recurso e indicadas pelo Ministério Público, impõe-se concluir pela rejeição do recurso na parte respeitante às questões relacionadas com a alegada nulidade e vícios da acusação (conclusões 2 a 8 e 38 a 43), com a alegada nulidade da alteração e da qualificação dos factos descritos na acusação e respectiva fundamentação e comunicação (conclusões 9 a 37, 44, 46), com a alegada nulidade da sentença proferida em 1.ª instância (45) e com o recurso da decisão em matéria de facto (conclusões 47 a 70) – supra 9, al. a) e b) e 13 e 14., aqui se incluindo as questões de alegada inconstitucionalidade que lhes dizem respeito.

Não sendo o competente, não pode este Tribunal conhecer destas questões.

16. Quanto ao acórdão da Relação, agora recorrido, diz o recorrente (supra 9, b., parte final), que este padece do vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, “o que o torna nulo, por violação do disposto no artigo 374 do mesmo Código” (p. 65 da motivação) e que “a Relação não considerou sequer os pontos concretos indicados pelo Arguido, nem sobre ele produziu qualquer juízo, pelo que lavrou na omissão de pronúncia, artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP” (p. 62 da motivação).

Esta afirmação traduz uma perspectiva de análise com evidente confusão de planos de categorização de vícios e nulidades processuais – planos situados ao nível do texto da decisão, por um lado, no que diz respeito aos vícios previstos no artigo 410.º do CPP, e da fundamentação, por outro, no que diz respeito aos requisitos da sentença, quanto aos seu objecto e fundamentação, processualmente distintos, na sua natureza e efeitos – e carece de fundamento. Como tem sido insistentemente repetido (por todos, o acórdão de 15.12.2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1, rel. Cons. Raul Borges, e exaustiva jurisprudência nele mencionada, em www.dgsi.pt), os vícios da decisão previstos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP constituem vícios lógicos do discurso decisório em matéria de facto que se revelam no texto da decisão e se evidenciam a partir do próprio texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, os quais, a existirem, na impossibilidade de serem resolvidos pelo tribunal de recurso, podem conduzir ao reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do dispostos no artigo 426.º do CPP. Diferentemente, a violação das regras de fundamentação (artigo 374.º do CPP), poderá gerar nulidade do acórdão, nomeadamente por falta de fundamentação ou por omissão de pronúncia (artigo 379.º, n.º 1, al. a) e c), e 425.º, n.º 4, do CPP).

16.1. A alegação da verificação de um vício de erro notório na apreciação da prova, da previsão do artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, vem indevidamente associada, sem fundamentação autónoma, por um lado, a pretenso erro de julgamento da matéria de facto, e, por outro, a alegada nulidade da sentença.

Como se tem sublinhado na jurisprudência constante deste Tribunal, este vício tem de constar ou resultar evidente do teor da própria decisão em matéria de facto, por si ou em conjugação com as regras da experiência, pois que diz respeito à matéria de facto; por isso, o seu conhecimento em recurso constitui matéria da competência do tribunal da Relação, sem prejuízo de este Supremo Tribunal dele conhecer oficiosamente para poder decidir da matéria de direito da sua competência (assim, por exemplo, os acórdãos de 27.4.2017, Proc. 452/15.4JAPDL.L1.S1, rel. Cons. Manuel A. Matos, de 2.2.2011, Proc. 308/08.7ECLSB.S1, rel. Cons. Maia Costa, e de 2.10.2014, Proc. 87/12.3SGLSB.L1.S1, rel. Cons. Isabel Pais Martins, em www.dgsi.pt).

Assim, não pode este vício (ou qualquer dos outros mencionados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP) servir de fundamento ao recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça, nem constituir nulidade que possa ou deva ser arguida em recurso (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).

Nesta conformidade, nos termos do disposto no artigo 420.º, n.º 1, al. c), do CPP, por irrecorribilidade da decisão impugnada no segmento em que o arguido persiste na impugnação da matéria de facto, há também que rejeitar, nesta parte, o recurso interposto.

16.2. Vendo a decisão recorrida, verifica-se que esta, diferentemente do que alega o recorrente, se pronunciou expressamente sobre os pontos indicados pelo recorrente, fazendo-o nos seguintes termos (pp. 226-247):

“3.8. No relativo à invocação de ocorrer erro na apreciação da prova, com incorrecta valoração/interpretação da prova efectuada em audiência (com “violação do principio in dubio pro reo”) - cfr. conclusões 90 a 114 (e 131), e independentemente de, no essencial, se impugnar, ou não, a valoração pelo tribunal “a quo” de prova que do ponto de vista do recorrente seria, apesar da explicitação que resulta da sentença revidenda, insusceptível de conduzir ao resultado a que chegaram os julgadores, e de que a censura quanto ao modo de formação da convicção do tribunal não pode assentar em forma simplista de valoração da prova, note-se o que, a tanto, responde, com adequação, o Ministério Público:

Pretende o recorrente que o Tribunal recorrido incorreu em erro na análise da prova e, em consequência, na matéria de facto que deu como provada, porquanto não deu como assentes factos provados e relevantes para a decisão que proferiu e deu por assentes factos que não foram devidamente provados.

Em tributo das exigências processuais de simplicidade, de economia e de facilidade analítica, examinaremos, de seguida, toda a matéria de facto que o recorrente invoca erradamente julgada, o que faremos por referência casuística aos artigos das conclusões do recurso.     

Conclusões do recurso: art.92.º

No art.92.º das conclusões do recurso, pretende o recorrente que o Tribunal a quo não deveria ter dado como assente a factualidade descrita sob o n.14.º.º, uma vez que não foi produzida prova bastante da sua ocorrência.

O n.14.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Perante a manutenção da recusa em interromper a gravidez, o Arguido, actuando na região da cabeça, pescoço e/ou até ao nível da coluna cervical de BB, por forma concreta não completamente apurada, causou-lhe lesões que determinaram a sua morte.

Para sustentar a prova do facto acima transcrito o Tribunal afirmou que, à luz das regras da experiência comum e de juízos de adequação social, a gravidez da vítima que o arguido queria interromper e que aquela negava, a prévia abertura da cova onde o corpo da vítima veio a ser descoberto, a aquisição de um cartão de telemóvel para ligar à ofendida no próprio dia do homicídio convidando-a para sua casa, onde a mesma veio a falecer, o desmembramento e ocultação de partes do corpo da ofendida, não podem deixar de conduzir à única conclusão possível: o arguido quis, planeou e executou a morte da ofendida BB (cfr. fls.1204).

Na verdade, a análise conjunta desses factos - a larga maioria confirmada pelo próprio arguido - não podem deixar de levar à conclusão que o arguido planeou o homicídio da infeliz BB; desde logo porque previamente abriu a cova onde a viria a enterrar a vítima (foi o arguido quem aí conduziu a Polícia Judiciária) e no mesmo dia do homicídio adquiriu um cartão de telemóvel que utilizou para chamar à vítima à sua residência, onde a matou. 

Em suma, o recorrente, antes de homicídio preparou o local para onde conduziu o corpo, tentou ocultar a proveniência da chamada telefónica que lhe fez a fim de a atrair ao local onde a matou e quis encobrir a sua conduta desmembrando a BB, colocando partes do corpo em dois sítios diferentes. Todo este comportamento do arguido revela preparação do homicídio - actos anteriores ao homicídio - e a tentativa de o ocultar - actos posteriores -, razão pela qual a conclusão não pode deixar de ser só uma: o arguido/recorrente quis e consumou a morte da BB.

Assim, não verificamos, neste artigo 13.º, qualquer facto que não corresponda à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

Conclusões do recurso: art. 97.º

No art.97.º das conclusões do recurso, pretende o recorrente que o Tribunal a quo não deveria ter dado como assente a factualidade descrita sob os ns.6 e 7.º, uma vez que não foi produzida prova bastante da sua ocorrência.

O n.6.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Perante essa atitude de BB, sem prejuízo de continuar a insistir com ela para que “abortasse”, o Arguido planeou matá-la.

O n.7 da factualidade dada com provada tem a seguinte redacção:

A fim de ocultar a acção que se propôs, o Arguido também planeou esconder o cadáver.

Para sustentar a prova dos factos acima transcritos o Tribunal recorrido estribou-se nas declarações do arguido/recorrente que afirmou ter adquirido os medicamentos (Cytotec) para dar a BB a fim da mesma abortar. Porém, a mesma permaneceu na sua posição de não abortar, o que o levou a adoptar um plano alternativo e previamente preparado de a matar.

A prova desta decisão do arguido de matar a BB decorre da análise já acima efectuada sobre o seu comportamento.

O comportamento do arguido antes do cometimento do homicídio consubstanciado na preparação da cova onde veio a colocar partes do cadáver da BB e na aquisição do cartão de telemóvel, conjugado com a aquisição dos medicamentos para a fazer abortar e telefonar-lhe para a mesma ir à sua residência, só é racional e lógico à luz dos padrões sociais de comportamento se concluirmos que, na verdade, o arguido tinha um plano que passava por duas possibilidades, uma sucedânea da outra. Primeiro o arguido iria tentar convencer a BB a tomar os medicamentos que adquirira a fim da mesma abortar; caso a mesma negasse - como fez - então matá-la-ia e, após lhe desmembrar o corpo, escondê-lo-ia na cova que previamente preparara.

Só esta conclusão permite abarcar a conduta do arguido e a intencionalidade operativa que lhe está subjacente.

Também neste segmento da matéria de facto nada encontramos que não decorra da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

Conclusões do recurso: art. 98.º

No art.98.º das conclusões do recurso, pretende o recorrente que o Tribunal a quo não deveria ter dado como assente a factualidade descrita sob os ns.8.º a 10.º, uma vez que não foi produzida prova bastante da sua ocorrência.

O n.8.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Para esse efeito, cerca do Natal de 2015, na localidade de ..., num pinhal, situado próximo de uma casa de sua mãe, em que habitara, durante alguns anos, até se ter mudado para a zona de Lisboa, o Arguido cavou uma cova, com formato sensivelmente quadrado, com a profundidade de cerca de 1,80 metros.

O n.9 da factualidade dada com provada tem a seguinte redacção:

Propôs-se matar BB no dia 6 de Janeiro de 2016, convencendo-a a deslocar-se à sua residência, para ai concretizar esse propósito.

O n.10.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

A fim de não se identificado em telefonema que para esse efeito iria fazer a BB, nesse dia 6 de Janeiro, após a jornada de trabalho, o Arguido adquiriu um cartão telefónico, “pré-pago”, com o SIM ....

Para sustentar a prova desta parte da factualidade, designadamente do n.8, o Tribunal assentou a sua convicção no depoimento da testemunha EE que esclareceu afirmando que residia perto do local e ali passava de dois em dois dias e viu o buraco aberto nas condições descritas neste n.8.

Mais tarde a mesma testemunha viu o buraco tapado, tendo à volta o rasto de galochas de um homem, o que a perturbou chegando a chamar a GNR ao local porque “sabia que alguma coisa não estava bem”.

A testemunha FF prestou depoimento no mesmo sentido e acrescentou que na altura do natal verificou a presença do arguido/recorrente e da sua mãe na casa pertença desta.

A mãe do arguido confirmou em Tribunal que, na altura do Natal, tinha ali passado 4/5 dias com o arguido e com o seu filho mais velho.

A este quadro acresce que o arguido confirmou ter colocado pedaços do corpo da BB no buraco e que sabia da existência de tal buraco porque o tinha visto.

Ou seja, o arguido conhecia o local onde a cova foi feita, esteve no local na altura em que a mesma foi aberta e foi o único a beneficiar da sua abertura, uma vez que a aí escondeu partes do corpo da BB.

Acresce que seria impossível o arguido deslocar-se para o local a fim de aí depositar partes do cadáver, excepto se tivesse a certeza que o mesmo permanecia aberto.

A prova do facto descrito sob o n.9, resulta em parte da afirmação do arguido que confirmou ter entrado em contacto com a BB para a convidar a ir a sua casa nesse dia 6 de Janeiro de 2016 e, em relação à decisão de a matar, a prova resulta da análise já acima realizada a respeito da prova dos factos descritos sob os ns.6 e 7.

No que concerne à prova do facto descrito sob o n.10 resulta de forma directa das declarações do arguido que assumiu ter adquirido o cartão de telemóvel nesse mesmo dia 6 de Janeiro de 2017 e que o fez para telefonar à BB.

Relativamente à intenção de não ser descoberto, é a única explicação plausível e razoável para o comportamento objectivo do arguido.

Para entrar em contacto com a BB, bastaria ao arguido ligar-lhe do seu telemóvel e se a mesma não quisesse atender poderia ligar de um telefone público ou pedir um telemóvel emprestado.

O argumento utilizado pelo arguido que a BB estava zangada consigo e não lhe atenderia o telemóvel não faz sentido porque se assim fosse jamais a BB teria assentido em deslocar-se à residência do arguido a convite deste e, logo que atendesse a chamada do reconhecendo-o, teria desligado.

Logo, a prova destes três artigos da factualidade assente também resulta da prova que foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

Conclusões do recurso: art. 101.º

No art.101.º das conclusões do recurso, pretende o recorrente que o Tribunal a quo não deveria ter dado como assente a factualidade descrita sob os ns.14.º e 15.º, uma vez que não foi produzida prova bastante da sua ocorrência.

O n.14.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Perante a manutenção da recusa em interromper a gravidez, o Arguido, actuando na região da cabeça, pescoço e/ou até ao nível da coluna cervical de BB, por forma concreta não completamente apurada, causou-lhe lesões que determinaram a sua morte.

O n.15.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

O Arguido sabia que ao provocar a morte de BB provocava também o fim da gestação e consequente fim da actividade biológica do feto.

Em relação à prova do facto descrito sob o n.14.º, remetemos para o que já acima exarámos em 5.1., uma vez que o facto é exactamente o mesmo.

Já relativamente ao facto descrito sob o n.15, a sua prova resulta das regras gerais da vida e da experiência comum em sociedade.

Com efeito, qualquer pessoa sabe que um feto com 21 a 24 semanas de vida não tem possibilidades de viver fora do seio materno e que a morte da mãe implicará de forma necessária a morte do filho.

O Tribunal a quo não poderia deixar de dar este facto como assente sob pena, aqui sim, de se verificar erro notório na apreciação da prova.

Conclusões do recurso: art. 105.º

No art.105.º das conclusões do recurso, pretende o recorrente que o Tribunal a quo não deveria ter dado como assente a factualidade descrita sob os ns.17.º a 20.º, uma vez que não foi produzida prova bastante da sua ocorrência.

O n.17.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

A fim de ocultar o cadáver e dificultar a sua identificação, no caso de vir a ser descoberto, utilizando uma faca ou facas, que tinha na sua residência, o Arguido cortou e separou a cabeça da BB do respectivo tronco, com secção total da zona da coluna cervical, ao nível C5.

O n.18.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Essa acção do Arguido, ao nível de C5, provocou infiltração sanguínea pelo menos na medula, o que constitui uma reacção vital ou seja quando o Arguido efectuou o respectivo corte no corpo de BB esta não estava morta, sem prejuízo de poder estar já inconsciente.

O n.19.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Prosseguindo esse objectivo de ocultação do cadáver, o Arguido cortou os tecidos moles e separou do tronco os braços e as pernas, bem assim desarticulou os quatro membros, pela zona dos joelhos e dos cotovelos e separou as mãos dos pés dos respectivos membros.

O n.20.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Cerca das 06H00, quando acabou de desmembrar o corpo, o Arguido embrulhou o tronco, as pernas e os braços num plástico e colocou a cabeça, as mãos e os pés no interior de uma mochila.

 A prova de todos estes factos revela-se, surpreendentemente, simples.

Na verdade, o arguido confessou os factos objectivos, i.e. a sua conduta de decepar e desmembrar o corpo da BB, bem como o que fez aos pedaços do corpo.

Os elementos de natureza clinica e técnicos resultam das periciais juntas aos autos e que foram analisados em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como dos depoimentos dos peritos médico-legais.

A única dívida que poderia subsistir era a de saber se a conduta do arguido foi motivada pela intenção de ocultar o cadáver e dificultar a sua identificação.

Porém, está é a única explicação plausível para explicar os factos. Se não fosse para ocultar - como fez - o cadáver e dificultar a sua identificação, qual a razão que levaria o arguido a decepar e desmembrar o corpo da BB? Nenhuma outra razão existe.

Assim, não podemos deixar de considerar que a factualidade descrita sob os ns.17.º a 20.º resulta da prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

Conclusões do recurso: art. 110.º

No art.110.º das conclusões do recurso, pretende o recorrente que o Tribunal a quo não deveria ter dado como assente a factualidade descrita sob os ns.23.º e 24.º, uma vez que não foi produzida prova bastante da sua ocorrência.

O n.23.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Após ter saído do trabalho, pediu à sua mãe o veículo automóvel desta, de marca Citroen, modelo Saxo, de matrícula ... a qual lho emprestou.

O n.24.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Entre as 18H00 e as 19h00 de 7 de Janeiro de 2016, o Arguido estacionou o veículo da sua mãe junto da porta da sua habitação, colocou o tronco, as pernas e os braços de BB no interior da bagageira do veículo e conduziu-o para a localidade de ..., até próximo do local em que escavara e deixara aberta a cova referida em 8.

De novo verificamos que a prova de todos estes factos se revela de uma desconcertante simplicidade.

Na verdade, o arguido/recorrente confirmou todos estes factos.

Porém, pretende o recorrente que as localizações celulares do seu telemóvel infirmam tal factualidade uma vez que, como decorre dos documentos do apenso 2, entre as 18H00 e as 19H00 do dia 7 de Janeiro o seu telemóvel estava na zona de ..., área da sua residência.

O recorrente parece confundir duas coisas: a sua localização e a localização do seu telemóvel. Ela só é coincidente se o recorrente se fizer acompanhar do telemóvel, caso contrário cada um estará em sítio diverso.

Se o arguido confirmou - como efectivamente fez - os factos e a localização celular do seu telemóvel se refere à zona de ..., tal só revela que o arguido não se fez acompanhar do telemóvel quando se deslocou a ..., a fim de ai enterrar o corpo da BB.

Esta factualidade dada como provada está, pois, de acordo com a prova efectivamente produzida em audiência de discussão e julgamento.

 Conclusões do recurso: art. 111.º

No art.111.º das conclusões do recurso, pretende o recorrente que o Tribunal a quo não deveria ter dado como assente a factualidade descrita sob os ns.32.º e 33.º, uma vez que não foi produzida prova bastante da sua ocorrência.

O n.32.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Ao proceder da forma descrita relativamente à pessoa de BB o Arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de lhe tirar a vida, bem sabendo que essa conduta era proibida e criminalmente punível.

O n.33.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Ao proceder da forma descrita relativamente ao corpo de BB , após a sua morte, o Arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de o esconder e de encobrir a sua anterior acção contra a pessoa daquela, bem sabendo que o fazia sem autorização de quem de direito, que desse modo infringia dever de respeito devido aos mortos e que essa conduta era proibida e criminalmente punível.

Verificamos que tal factualidade de reduz à tipicidade subjectiva dos crimes pelos quais o arguido/recorrente foi condenado: homicídio qualificado e ocultação de cadáver.

A prova dos factos subjectivos nunca resulta de prova directa, mesmo porque sendo ideias, intenções e desejos tal não se afigura possível. Os elementos subjectivos, quer digam respeito ao tipo, à ilicitude, à culpa ou à punibilidade, resultam sempre, no que concerne à sua prova, de ilações judiciais assentes sobre factos objectivos dados como provados.

Na verdade, a intenção (dolosa) do arguido retira-se com facilidade dos elementos objectivos apurados respeitantes aos actos praticados. O modo de actuação demonstra o carácter desejado da sua conduta, pois só quem quer praticar os ilícitos em questão age como o arguido agiu.

À luz das regras da experiência comum e segundo juízos sociais de adequação entre as condutas e os desejos que, finalisticamente, lhes estão subjacentes, quem mata, decepa e desmembra o corpo da sua vítima, separa pedaços do seu corpo e os oculta, tal como o arguido fez não pode deixar de quer essa conduta consubstanciada no homicídio e na ocultação.

É, deste modo, relativamente simples a prova do facto descrito neste segmento do acórdão.

Conclusões do recurso: art. 113.º

No art.113.º das conclusões do recurso, pretende o recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado como assente a factualidade descrita sob os ns.3.º a 5.º dos factos que deu como não provados, uma vez que foi produzida prova bastante da sua ocorrência.

O n.3.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Que, sem prejuízo da factualidade provada, as circunstâncias concretas da morte de BB se tivessem produzido devido a uma discussão havida entre ela e o Arguido no decurso da qual ela se desequilibrou e caiu, de uma altura superior a meio metro, junto à porta, no interior da residência do Arguido.

O n.4.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Que o Arguido tivesse tentado reanimar BB, designadamente que lhe tivesse feito diversas manobras de suporte de vida básica, como respiração boca a boca, ter-lhe “sentido” o pulso e o coração ou “passado” com água, para ver se ela respirava.

O n.5.º da factualidade assente tem a seguinte redacção:

Que a morte de BB tivesse advindo de “forma absolutamente involuntária”, de “queda acidental” ou que tivesse resultado de “um infeliz acidente”.

Todos estes factos se ressumem a dois núcleos essenciais, a saber: se o arguido/recorrente tentou salvar a vida da BB e se a sua morte não resultou de mero acidente.

A prova destes factos é não só absolutamente incompatível com os factos dados como provados pelo Tribunal a quo como estão em completa desarmonia com as regras da experiência comum e da adequação social.

Com efeito, o Tribunal recorrido deu como provado que a morte de BB se deveu a conduta dolosa do arguido/recorrente, razão pela qual não pode dar como provado facto contrário e incompatível.

Aliás, o recorrente impugna esses factos, mas, como acima tentamos demostrar, sem sucesso.

À luz das regras da experiência social e dos juízos de adequação que regem os comportamentos humanos em comunidade, perguntamos: é verosímil que alguém tente salvar uma pessoa da morte, fazendo tentativas de reanimação e, não o tendo conseguido, de seguida lhe decepe a cabeça e a desmembre? A resposta só pode ser negativa.

 Alguém que esteja a agir com a intenção de salvar outrem e não o consiga fazer entrará em contacto com o número nacional de socorro a fim de pedir auxílio, seguramente não decepa a pessoa, nem lhe corta os membros.

Assim, não poderia o Tribunal ter dado estes factos como provados, pelo que bem andou. 

Pelo cotejo critico e conjugado da prova e à luz das regras da experiência comum e da adequação social, nada vislumbramos nos factos dados como provados e não provados que importe a existência de um errado juízo na matéria de facto.

Pelo contrário, os factos dados assentes resultam de forma manifesta da prova pessoal e real - mormente documental -, pelo que bem andou o Tribunal recorrido”.

Como se observa, e para lá do que se alude no acórdão revidendo, “supra” transcrito, a decisão “in judice” mostra-se particularmente elucidativa quanto ao sucedido, fundamentando, com base na prova produzida, a matéria de facto, o que resulta da conjugação dos elementos expressos, compreendidos e interpretados, desde logo, na lógica interna da decisão.

Ou seja, em perspectiva própria de uma razoável compreensão das regras da vida e da experiência comum das coisas, o que se nota é que o tribunal “a quo” valorou devidamente os meios de prova.

De resto, o recurso que incida sobre a matéria de facto não tem por finalidade a reapreciação de toda a prova produzida perante a primeira instância, como se de um segundo julgamento se tratasse, sendo que o que “de jure constituto” resulta exigido pelos requisitos em causa é, tão-só, a detecção e correcção de erros de julgamento.

Assim, a invocação “in judice” teria, como se não observa, que incidir sobre determinados, mas completos, segmentos da matéria de facto, a apontar pelo recorrente com alusão não meramente parcelar dos suportes técnicos da gravação da prova que, a propósito, foi produzida em audiência de discussão e julgamento e, nessa medida e âmbito, fundamentar-se em concretas provas que pudessem impor decisão diversa daquela que se pretende ver modificada.

Independentemente de pelo recurso do acórdão proferido se dar, ou não - e para lá do já invocado nos recursos intercalares antes interpostos, agora repetido a pretexto das invocadas nulidades -, rigoroso cumprimento ao disposto pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, face à estruturação e conteúdo da motivação (e, por aí, inerente possibilidade de confirmação ou revisão do decidido), em rigor não referencia a este Tribunal superior, e além das provas que estiveram na base da decisão recorrida, provas, diversas, que, ainda que só no entender do recorrente, deveriam ter estado na base de decisão diferente, por aqui se não observando razões pelas quais se pudesse impor uma outra decisão de facto.

O recorrente, e em rigor, não especifica provas que imponham decisão diversa da recorrida, limitando-se, genericamente e sem sustento no produzido em audiência, a pugnar nos termos que se notam nas conclusões, e pra lá de que nunca este Tribunal superior poderia conhecer apenas o defendido pelo recorrente, parcial, deturpado e de acordo com os seus interesses, ignorando o que esteve na base da decisão recorrida, tanto mais que, como se observa, a fundamentação de toda a matéria de facto resulta da prova produzida, em perspectiva própria de uma razoável compreensão das regras da vida e da experiência comum das coisas.

Como emana do exposto, “supra” transcrito, o Tribunal “a quo” dispôs de prova que obrigou ao estabelecer de relação de confirmação sequencial das indicações antes adquiridas, afirmando a integridade do processo racional e lógico de formação da convicção sobre aquela, quer pela fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), quer pela natureza das provas produzidas e dos meios, modos e processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção das conclusões produzidas.

De resto, para além dos meios de prova directos, sempre importariam, quando e se disso fosse caso, os procedimentos lógicos para prova indirecta, de conhecimento ou de dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido, em deriva das regras de experiência.

De facto (cfr. v. g., Vaz Serra, “in” “Direito Probatório Material”, BMJ, n.º 112, página 190), “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência”.

Ora, o que se observa dos autos, e diversamente do pugnado pelo recorrente, é a compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação do acórdão revidendo sobre a matéria de facto provada.

É que na passagem dos factos conhecidos para a aquisição (ou para a prova) de factos desconhecidos (os que, pelo recurso, se pretendem ter como não provados ou provados) intervieram juízos de avaliação, com referência a procedimentos lógicos e intelectuais, que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que alguma factualidade, diga-se que meramente circunstancial, ainda que se tenha, não obstante o expressamente dito por todas e cada uma das pessoas ouvidas em julgamento, como directamente não provada, é a natural consequência ou resultante, com toda a probabilidade próxima da certeza, para além de toda a dúvida razoável, dos factos conhecidos relatados em julgamento.

A decisão do Tribunal de julgamento “a quo” é, deste modo, a possibilitada pela sua actividade cognitiva, notando-se que a motivação do acórdão é, nesse particular, bem elucidativa.

A prova, que, como se não contesta, foi produzida e examinada em audiência, não permitia, muito menos impunha, decisão em sentido diferente, não demonstrando o recorrente em que medida os tidos por credíveis meios de prova, considerados no global da prova e valorados, podem contrariar a convicção do tribunal, antes se limitando a “sugerir” na sua motivação interpretação diferente da que esteve na base do acórdão revidendo.

Lida a motivação de facto do acórdão recorrido, e observada a prova produzida, e invocada, “v.g.” pericial, documental e prestados testemunhos e declarações, há que concluir, em face da estruturação/conteúdo do acórdão revidendo, que não se manifesta, por ali, qualquer ofensa ou violação de princípio ou regra de direito probatório, estando a convicção do Tribunal “a quo” suficientemente alicerçada e exposta de forma transparente em ordem a convencer da justeza da respectiva decisão.

A “supra” referenciada evidência processual implica, assim, a impossibilidade de este Tribunal de recurso, sobre a matéria de facto “in judice”, poder modificar a decisão revidenda”.

Não é, pois, fundado afirmar-se que o acórdão recorrido não se pronunciou sobre as questões suscitadas em recurso, pelo que improcede a alegação da nulidade por omissão de pronúncia.

Do mérito do recurso

17. No presente recurso repete o recorrente a argumentação que apresentou perante o tribunal da Relação, reproduzindo ipsis verbis o recurso da decisão de 1.ª instância, sem qualquer elemento novo. Entende-se, porém, não ser de rejeitar o recurso por falta de motivação, considerando-se a motivação apresentada como sendo agora dirigida ao acórdão da Relação que confirmou a condenação no acórdão da 1.ª instância (seguindo-se, assim, a orientação jurisprudencial do acórdão de 29.4.2015, Proc. 791/12.6GAALQ.L2.S1, relator Cons. Raul Borges, e da demais jurisprudência nele citada, em www.dgsi.pt).

Assim, em conformidade com o anteriormente exposto, rejeitado o recurso quanto às demais questões, resta apreciar as questões de direito (artigo 434.º do CPP) relacionadas com a qualificação jurídica dos factos que constituem o tipo de crime de homicídio qualificado pelo qual o arguido vem condenado e com a determinação da pena aplicada a este crime e da pena conjunta, superiores a 8 anos de prisão (conclusões 71 a 95 da motivação – supra 9.c). Excluem-se, assim, as questões que possam dizer respeito ao crime de profanação de cadáver e à pena aplicada a esse crime, inferior a 5 anos, por irrecorribilidade da decisão nesta parte.

a) Quanto ao crime de homicídio e à qualificação jurídica dos factos

18. O tribunal da Relação manteve inalterados os seguintes factos provados no acórdão de 1.ª instância, que assim se mostram fixados:

“1. Entre meados de Julho e inícios de Setembro de 2015 o Arguido e BB mantiveram uma relação de namoro, no decurso da qual praticaram relações sexuais um com o outro.

 2. No mês de Outubro desse ano, BB disse ao Arguido que se encontrava grávida, em consequência das relações sexuais que tinham mantido entre eles.

3. Perante essa notícia o Arguido pediu a BB que interrompesse a gravidez, o que ela recusou.

4. Como pretendia que BB interrompesse a gravidez, o Arguido foi pensando no que poderia fazer para evitar o nascimento da criança, tendo efectuado uma pesquisa na internet e concluído que um medicamento designado por "Cytotec" quando ingerido por mulheres grávidas poderia causar aborto, medicamento que acabou por adquirir, em data concretamente não apurada, mas posterior a 19 de Novembro.

5. Nos contactos que foi tendo com BB o Arguido foi tentando convencê-la a interromper a gravidez, mas esta foi mantendo a recusa de assim proceder.

6. Perante essa atitude de BB, sem prejuízo de continuar a insistir com ela para que "abortasse", o Arguido planeou matá-la.

7. A fim de ocultar a acção a que se propôs, o Arguido também planeou esconder o cadáver.

8. Para esse efeito, cerca do Natal de 2015, na localidade de ..., num pinhal, situado próximo de uma casa de sua mãe, em que habitara, durante alguns anos, até se ter mudado para a zona de Lisboa, o Arguido cavou uma cova, com formato sensivelmente quadrado, com a profundidade de cerca de 1,80 metros.

9. Propôs-se matar BB em 6 de Janeiro de 2016, convencendo-a a deslocar-se à sua residência, para aí concretizar esse propósito.

10. A fim de não ser identificado em telefonema que para esse efeito iria fazer a BB, nesse dia 6 de Janeiro, após a jornada de trabalho, o Arguido adquiriu um cartão telefónico, "pré-pago", com o SIM ....

11. Nesse mesmo dia, 6 de Janeiro, pelas 19H24, o Arguido introduziu esse cartão telefónico num aparelho telefónico e telefonou a BB, para o número ..., voltou a telefonar-lhe pelas 19H25, BB telefonou ao Arguido pelas 19H46, trocaram mais alguns telefonemas entre ambos, o último dos quais pelas 21H38 desse dia, tendo combinado que BB se deslocaria à residência do Arguido, em ..., o que veio a suceder.

 12. BB chegou à residência do Arguido a hora não concretamente apurada desse dia, mas após as 21H38.

13. Conversaram entre eles, o Arguido pediu novamente a BB que interrompesse a gravidez, dizendo-lhe também que tinha com ele comprimidos "Cytotec", para ela tomar, para "ver se abortava", ao que ela não acedeu, mantendo a intenção de prosseguir com a gravidez.

14. Perante a manutenção da recusa de interromper a gravidez, o Arguido, actuando na região da cabeça, pescoço e/ou até ao nível da coluna cervical de BB, por forma concreta não completamente apurada, causou-lhe lesões que determinaram a sua morte.

15. O Arguido sabia que ao provocar a morte de BB provocava também o fim da gestação e consequente fim da actividade biológica do feto.

16. A essa data, BB encontrava-se grávida de um feto de cerca de 21 a 24 semanas de gestação, com o peso de 255,5 gramas, do sexo masculino.

17. A fim de ocultar o cadáver e dificultar a sua identificação, no caso de vir a ser descoberto, utilizando uma faca ou facas, que tinha na sua residência, o Arguido cortou e separou a cabeça de BB do respectivo tronco, com secção total da zona da coluna cervical, ao nível de C5.

18. Essa acção do Arguido, ao nível de C5, provocou infiltração sanguínea pelo menos na medula, o que constitui uma reacção vital ou seja que quando o Arguido efectuou o respectivo corte no corpo de BB esta não estava morta, sem prejuízo de poder já estar inconsciente.

19. Prosseguindo esse objectivo de ocultação do cadáver, o Arguido cortou os tecidos moles e separou do tronco os braços e as pernas, bem assim desarticulou os quatro membros, pelas zonas dos joelhos e dos cotovelos e separou as mãos e os pés dos respectivos membros.

20. Cerca das 06H00, quando acabou de desmembrar o corpo, o Arguido embrulhou o tronco, as pernas e os braços num plástico e colocou a cabeça, as mãos e os pés no interior de uma mochila.

21. BB tinha estacionado o seu veículo automóvel, com a matrícula ..., próximo da residência do Arguido, pelo que este, a fim de o veículo não vir a ser relacionado com aquele local e com ele próprio, conduziu-o para fora dali, até Rua..., onde o deixou estacionado, com a chave na ignição, local em que veio a ser encontrado, em 25 de Janeiro de 2016.

22. Na manhã de 7 de Janeiro o Arguido foi trabalhar, deixando o cadáver na sua residência.

23. Após ter saído do trabalho, pediu à sua mãe o veículo automóvel desta, de marca Citroen, modelo Saxo, de matrícula ..., a qual lho emprestou.

24. Entre as 18H00 e as 19H00 de 7 de Janeiro, o Arguido estacionou o veículo da sua mãe junto à porta da sua habitação, colocou o tronco, as pernas e os braços de BB no interior da bagageira do veículo e conduziu-o para a localidade de ..., até próximo do local em que escavara e deixara aberta a cova referida em 8.

25. Ali chegado, o Arguido colocou no interior da cova o tronco, as pernas e os braços de BB, tapou o respectivo buraco e afastou-se do local.

26. De seguida deslocou-se para a sua residência, onde foi buscar a mochila que continha a cabeça, os pés e as mãos de BB.

27. Na posse da mochila, deslocou-se, em motociclo, para a estação de Cais do Sodré, em Lisboa, onde apanhou um barco de transporte público em direcção a Cacilhas.

28. No meio do percurso, colocou-se junto à rampa de acesso da embarcação, abriu a mochila e despejou-a, lançando para o rio Tejo a cabeça, as mãos e os pés de BB, partes do corpo que não foram recuperadas.

29. Chegado a Cacilhas, apanhou um barco de regresso a Cais do Sodré, onde deitou a mochila para um caixote de lixo, pegou no motociclo e retornou à sua residência.

30. O Arguido nunca mais utilizou o cartão telefónico com o número ..., que adquirira em 6 de Janeiro, com o qual telefonara para BB e combinara o encontro em sua casa; porém, o equipamento telefónico em que introduziu o cartão e que usou para aqueles telefonemas era um equipamento que já tinha utilizado, que deixara de utilizar há cerca de um ano, mas cuja relação com ele veio a ser identificada através da titularidade de conta bancária usada para carregamento do cartão telefónico que então se encontrava em tal equipamento.

31. Confrontado pela Polícia Judiciária com os indícios decorrentes da identificação desse contacto telefónico, o Arguido indicou o local onde tinha enterrado os restos do corpo de BB, que foram recuperados em 20-4-2016.

 32. Ao proceder da forma descrita relativamente à pessoa de BB , o Arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de lhe tirar a vida, bem sabendo que essa conduta era proibida e criminalmente punível.

33. Ao proceder da forma descrita relativamente ao corpo de BB , após a sua morte, o Arguido agiu de forma deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de o esconder e de encobrir a sua anterior acção contra a pessoa daquela, bem sabendo que o fazia sem autorização de quem de direito, que desse modo infringia dever de respeito devido aos mortos e que essa sua conduta era proibida e criminalmente punível.

34. Até à idade de 9 anos o agregado familiar do Arguido foi composto por seus pais, dois irmãos uterinos e um irmão germano, sendo ele o elemento mais novo da fratria.

35. Habitaram na zona de Cacilhas, os seus pais eram professores, o pai de matemática e a mãe de biologia, apresentando o agregado uma situação estável do ponto de vista económico, mas disfuncional em termos relacionais, com supostos comportamentos agressivos perpetrados pelo pai para com os demais elementos do agregado, que culminaram com a separação dos pais, quando o Arguido tinha a idade de 9 anos.

36. Foi então viver com a mãe e o seu irmão mais novo para ..., onde permaneceu até 2011, ano em que veio residir para a zona de Lisboa.

37. O Arguido padece de glaucoma congénito bilateral, tendo sido sujeito a várias cirurgias, ao longo da infância e da adolescência, sendo seguido no "Hospital de Santa Maria", em consultas regulares, que oscilam entre os seis meses e um ano, tomando regularmente medicação.

38. Decorrente desta problemática, evidencia assimetria ocular bastante acentuada, situação que teve repercussões a nível da sua auto-estima, integração e aceitação em contexto escolar, potenciando situações de humilhação e agressões.

39. Os irmãos mais velhos do Arguido autonomizaram-se e este desde os seus 15 anos que, por opção própria, não mantém qualquer contacto com o pai, constituindo-se a mãe como a sua figura significativa de referência e de superprotecção.

 40. Aos 18 anos, após a conclusão do 12° ano de escolaridade, começou a trabalhar num estaleiro de obras, em ..., onde se manteve durante 6 meses.

41. Inscreveu-se num curso superior de línguas, literaturas e culturas, de que apenas frequentou disciplinas do primeiro semestre, tendo desistido em virtude de necessidade de trabalhar, para acudir às necessidades económicas do agregado familiar.

42. Não tem filhos.

43. Após ter vindo residir para a zona de Lisboa, trabalhou cerca de três anos para os CTT, em distribuição de correio, nos meses de Verão também ocasionalmente como motorista de "tuk-tuk" e posteriormente como estafeta, actividade que desempenhava ao tempo dos factos e quando foi detido, em Abril de 2016, e de que auferia a remuneração de cerca de 700,00 € mensais.

44. Frequentou um curso de fotografia e multimédia, com a duração de um ano, na Escola de Tecnologias, Inovação e Criação, tendo como objectivo transformar a garagem em que residia num atelier para, nos tempo livres, realizar trabalhos nesta área.

45. Após a prática dos descritos factos o Arguido procurou ajuda psicológica, recorrendo aos serviços da psicóloga clínica ..., com quem teve oito consultas, entre 25 de Janeiro e 6 de Abril desse ano, após o que "deixou de aparecer", na sequência da sua detenção, em 20 desse mês.

46. Apresentou-se junto daquela psicóloga com supostos problemas de ordem psicológica causados por preocupações pelo "desaparecimento de ex-namorada" e pelas "investigações" que decorriam acerca do desaparecimento, evidenciando alguma "anestesia afectiva", consubstanciada em dificuldade em manifestar sentimentos, positivos ou negativos.

47. Na prisão recebe visitas regulares de um amigo e da sua mãe.

48. Fez pedido para trabalhar e para estudar.

49. Mantém apoio psicológico regular.

50. A nível cognitivo o Arguido revela inteligência normal superior, sem sinais de deterioração mental ou mnésica.

51. Em termos psicológicos constata-se a existência de organização de personalidade patológica e de cariz fóbico e evitativo, pautada pela rigidez, depressividade e impulsividade, no âmbito de estrutura de personalidade neurótica e que funciona num registo psicopatológico.

52. A sua personalidade caracteriza-se pela existência de um núcleo narcísico deficitário, que pautou todo o seu desenvolvimento psicológico e que se foi estruturando de forma rígida e defensiva, com o objectivo de se proteger e salvaguardar de ter de se confrontar com os seus intensos sentimentos de inferioridade e de fragilidade emocional.

53. Os seus processos de socialização são frágeis, encontrando-se socialmente isolado e apresentando uma rede social de apoio muito reduzida (principalmente a figura materna), manifestando sentimentos de incompreensão, de inadequação e de inferioridade, sentindo-se inseguro e intranquilo em situações sociais, o que faz com que evite envolver-se emocionalmente, estabelecendo relações superficiais.

54. Apresenta um quadro depressivo, reactivo à reclusão e à gravidade da acusação e pena associada.

55. A compreensão dos actos que cometeu reside nas características da sua personalidade, caracterizada por introversão, egocentrismo, distanciamento para as relações interpessoais, empatia limitada, tolerância fraca à frustração, não existindo suficiente intensidade destes traços para ser colocado o diagnóstico de perturbação de personalidade, encontrando-se à data dos factos capaz de avaliar a ilicitude dos seus actos e de se determinar de acordo com essa avaliação.

56. Actualmente interiorizou a gravidade e a censurabilidade da sua conduta e sente-se arrependido desses actos que cometeu.

57. Não tem registo de condenações criminais.”

19. O arguido foi acusado da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, nº. 2, alíneas b), c) e j), do Código Penal.

O tribunal de 1.ª instância deu como não provadas as circunstâncias qualificativas previstas nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal – prática do facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau e prática do facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez –, dando apenas como provada a circunstância da alínea j) deste preceito – ter o agente actuado com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.

No recurso para o tribunal da Relação, o recorrente pretendia ver afastada esta circunstância qualificativa, defendendo que os factos provados preenchem o tipo de crime de homicídio simples da previsão do artigo 131.º do Código Penal e não o de homicídio qualificado nos termos do artigo 132.º.

Apreciando esta questão, o acórdão da Relação pronunciou-se nos seguintes termos:

“3.9. Em função do que se vem de decidir, não é, pois, caso de dever “ser revogada a decisão recorrida” no referente ao tipo legal de crime, a ser, nessa medida, “substituída por acórdão que, condenando o Arguido AA pelo crime de homicídio simples, p. e p.. nos termos do artigo 131.º do CP, o absolva do crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos dos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, al. j), do CP” (relembrando-se que pelo acórdão proferido se decidiu “absolver o Arguido do crime de aborto por que vem acusado” e “condenar o Arguido como autor material de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea j) do Código Penal”, e, ainda, “como autor material de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, al. b), do Código Penal”).

Mantendo-se os factos dados por provados, cada um dos crimes referenciados - “crime de homicídio qualificado” e “crime de profanação de cadáver” - é consequência típica, normal e previsível da conduta do recorrente, a quem são imputados na forma descrita, tudo isto segundo as regras da experiência comum e as circunstâncias particulares do caso.

Note-se, pois, o que, a propósito, e bem, se referencia no acórdão revidendo, em sede de enquadramento jurídico-penal:

“Atenta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.

Do crime de homicídio qualificado

O Arguido vem acusado da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 2, alíneas b), c) e j), do Código Penal.

Sendo certo que o Arguido matou outrem, tendo-se também por verificados os respectivos elementos típicos subjectivos, integra a respectiva conduta a autoria material de um crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal.

Cumpre analisar se a sua conduta se subsume ao tipo simples ou, conforme vem acusado, ao tipo qualificado de homicídio.

Considerando as alíneas em questão, a acusação assenta as qualificativas do crime de homicídio que imputa ao Arguido na prática do facto “contra … pessoa de outro … sexo com quem o agente … tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação …” [alínea b)], “contra pessoa particularmente indefesa, em razão de … gravidez” [alínea c)] e por o agente ter “agido com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas” [alínea j)].

Fundando-se as circunstâncias qualificativas do crime de homicídio previstas no artigo 132º do Código Penal na especial culpa do agente (no sentido de que o homicídio qualificado constitui um “tipo de culpa”, cfr. Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Ed. Almedina, 1990; Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Ed. Coimbra Editora, Tomo I, pág. 29, ou Ac. do S.T.J. de 4-7-1996, in C.J.S.T.J., ano IV, T. II, pág. 222), não são as mesmas taxativas ou de funcionamento automático, antes constituem “exemplos-padrão”, exigindo-se sempre que elas exprimam, no caso concreto, a especial censurabilidade ou perversidade do agente, manifestada na prática do facto em determinadas circunstâncias.

1.1. Da prática do facto “contra … pessoa de outro … sexo com quem o agente … tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação …”

Não se concluiu pela prova de factualidade integradora desta qualificativa do crime de homicídio. (...)

1.2. Da prática do facto “contra pessoa particularmente indefesa, em razão de … gravidez”

Também não se concluiu pela prova de factualidade integradora desta qualificativa do crime de homicídio. (...)

1.3. Da acção “com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou da persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”

Pelo menos desde cerca do Natal de 2015, quando abriu a cova e a deixou aberta para esconder o cadáver, o Arguido projectou matar BB, o que veio a concretizar em 6 de Janeiro, face à persistência desta em recusar interromper a gravidez, conforme já lhe vinha comunicando, posição que o Arguido contava que ela continuasse a manter, pelo que a convidou para se deslocar à sua habitação, para aí a matar e tratar de dar destino ao cadáver, conforme fez.

Sem prejuízo de se desconhecer qual foi o concreto objecto utilizado para matar ou para tornar inconsciente BB, se pancada ou pancadas na cabeça, com um objecto contundente, conforme a redacção do artigo 13.º da acusação sugere, ou se terá utilizado um objecto cortante e com ele a atingindo na parte superior do corpo, designadamente causando-lhe o referido corte/decepação ao nível de C4, a conduta do Arguido, além da prévia abertura da cova, fazendo deslocar a vítima para a sua residência, para aí a matar, desmembrar e fazer desaparecer o corpo, a fim de se eximir às respectivas consequências legais, denota intensa resolução criminosa, enorme desprezo ou indiferença pela vida de outrem, revelando tal desvalor em termos de personalidade que não pode deixar de se considerar frieza de ânimo, enquanto qualificativa do crime de homicídio, como conceito restrito de “premeditação”, que, tal como referem o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2003 (in C.J.S.T.J., ano XI, T. III, pág. 208) e M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, in Código Penal Parte Geral e Especial, Ed. Almedina, 2014, pág. 513, traduz-se na formação da vontade de matar outrem de modo frio, …, reflectido, cauteloso, calmo na preparação e execução e persistente na resolução, em que entende-se que se consubstanciou essa conduta do Arguido.

Conclui-se que se tem por preenchido o “exemplo-padrão” a que se refere esta alínea, enquanto circunstância da qualificativa do crime de homicídio, tal como o Arguido vem acusado.

1.3. Da especial censurabilidade ou perversidade

Conforme se disse, as circunstâncias qualificativas do crime de homicídio previstas no artigo 132º, do Código Penal, fundam-se na especial culpa do agente, não são taxativas ou de funcionamento automático, meramente constituindo “exemplos-padrão”, exigindo-se sempre que elas exprimam, no caso concreto, a especial censurabilidade ou perversidade do agente, manifestada na prática do facto em determinadas circunstâncias, do que decorre que não obsta à verificação dessa especial censurabilidade ou perversidade do agente na produção da morte de outrem o facto de não se ter por verificada qualquer das circunstâncias qualificativas enumeradas no artigo.

No caso em análise, entende-se que as circunstâncias da morte de BB que enformaram a conclusão a que se chegou acerca da frieza de ânimo e da persistência da intenção de matar por mais de vinte e quatro horas, designadamente a prévia abertura de cova para esconder o corpo da vítima, revelam especial censurabilidade e perversidade do agente, tendo-se por verificada a qualificativa do crime de homicídio que cometeu.

Com efeito, a produção da morte em tais circunstâncias é de tal modo grave que reflecte atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores, bem como é demonstrativa de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, que se reconduzem aos referidos conceitos de especial censurabilidade e de especial perversidade (acerca das noções de especial censurabilidade e de especial perversidade, v. Teresa Serra, ob. cit., págs. 63 e 64).

Conclui-se, assim, que o Arguido cometeu um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131º e 132º, nº 1 e nº 2, alínea j) do Código Penal. (...)

Nota-se, pois, e como se referenciou, quanto a cada um dos provados crimes (“de homicídio qualificado” e “de profanação de cadáver”), que os mesmos resultaram da conduta, consciente e voluntária, do arguido, idónea a provocar os resultados previstos na descrição dos factos (o que sempre se pode aferir por um juízo de prognose póstuma), não sendo de deferir a pretensão formulada (em deriva, eventualmente, do mais, antes invocado) de “se absolver o Arguido do crime de homicídio qualificado, p. e p. nos termos dos artigos 131, 132 n.º 1 e 2 al. J) do CP” e/ou de, substituindo-se, nesse particular, a decisão recorrida, condenar o recorrente pela prática de um “crime de homicídio simples, p. e p.. nos termos do artigo 131 do CP”.

A decisão recorrida, não obstante subsumir a qualificação do tipo legal de homicídio apenas a uma das três situações imputadas, a da acção “com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou da persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas” (e tanto basta), considerando ter-se por preenchido o “exemplo-padrão” a que se refere a alínea em causa, “enquanto circunstância da qualificativa do crime de homicídio, tal como o Arguido vem acusado”, aferiu, e bem, a provada conduta à dogmática dos “dois passos”, concluindo, com adequação, que no caso em análise se mostrava satisfeita a exigência legal de na prática do facto nas apuradas circunstâncias da morte de BB, com relevo para “a prévia abertura de cova para esconder o corpo da vítima”, se exprimir a manifestada “especial censurabilidade ou perversidade do agente”.

Mostra-se, pois, verificada a qualificativa do crime de homicídio que o arguido/recorrente cometeu e por que foi condenado”.

20. Como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência, o crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 131.º e 132.º do Código Penal constitui um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, relativos ao facto e ao agente, indiciadores daquele tipo de culpa agravado, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente (assim, entre outros, os acórdãos de 5.7.2017, Proc. 1074/16.8JAPRT.P1, rel. Cons. Rosa Tching, de 19.2.2014, Proc. 168/11. 0GCCUB.S1, rel. Cons. Santos Cabral, e de 18.10.2007, Proc. 07P2586, rel. Cons. Santos Carvalho, em www.dgsi.pt, bem como a jurisprudência e doutrina neles citadas, incluindo Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, comentário ao artigo 132.º do Código Penal, Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1998, Augusto Silva Dias, Direito Penal - Parte Especial: Crimes Contra a Vida e a Integridade Física, AAFDL, 2005, Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008). Exige-se, pois, que o agente tenha agido com culpa agravada, ou seja, que as concretas circunstâncias da sua conduta permitam justificar um especial juízo de censura, pela particular gravidade do facto revelada nessas circunstâncias, as quais, na ausência de motivo susceptível de, em concreto, diminuir ou neutralizar a sua valoração, a verificarem-se, se deve considerar preencherem o critério de especial censurabilidade ou perversidade para efeitos de realização do tipo qualificado do crime de homicídio.

20.1. A propósito dos conceitos normativos de “especial censurabilidade e perversidade”, escreveu-se no acórdão de 18.10.2007 (Proc. 07P2586, cit.), citando Teresa Serra (loc. cit., p. 63-65):

«Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores... Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala BINDER. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente... Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».

E sobre o tipo de culpa agravado do artigo 132.º considerou-se no acórdão de 19.2.2014 (Proc. 168/11.0GCCUB.S1, cit.):

«Refere Silva Dias (loc. cit.) que a verificação do exemplo padrão do n.º 2 do art. 132.º não implica, apenas indicia, a presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade. Tal indício, e não mais do que isso, tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias de facto e da atitude do agente nele expressas. (...)

O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível.

Nas palavras de Margarida Silva Pereira ["Os Homicídios" pág. 40] a caracterização do art. 132° do CP passa pela intersecção de três eixos fundamentais, a saber: a exclusão da aplicação automática; a aferição da qualificação por um critério de culpa no sentido de que se utilize os parâmetros consagrados e tipificados para aquilatar se no caso concreto existe de igual forma uma culpa especial e a permissão do recurso à analogia pois que ao juiz cabe sempre a possibilidade de construir em concreto os pressupostos da afirmação de uma especial censurabilidade, ou perversidade, os quais, embora não subsumíveis aos exemplos padrão, constituem, ainda assim, a demonstração de uma especial intensidade da culpa. Todavia, importa salientar que a valoração da culpa operada pelo art. 132.º do CP não aparece desligada de uma ilicitude qualitativamente mais intensa. (...)

A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação, sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que, na descrição típica da conduta, contém elementos da culpa que integra factores relativos à actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobre a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. (...)

O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente. Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar á especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas. Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado à qualificação».

20.2. Sobre o exemplo-padrão da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º disse-se no acórdão de 5.7.2017 (Proc. 1074/16.8JAPRT.P1, cit.):

«Contempla este exemplo-padrão, sob o denominador comum da premeditação, a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. Trata-se de circunstâncias agravativas relacionadas com o processo de formação da resolução criminosa.

Segundo Fernando Silva (Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 60 e segs.), «A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo». «Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflecte sobre o acto, e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha».

A premeditação, reveladora, indiciariamente, de especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime, surge, assim, materializada em três situações:

A frieza de ânimo, que, na expressão do Acórdão de 06.01.2010 (proc. 38/08.2JAAVR.C1.S1- 3ª Secção - Relator Cons. Oliveira Mendes), se traduz «na actuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a sua deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima, ou seja, quando o agente, tendo oportunidade de reflectir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua actuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto» (neste mesmo sentido, cfr. Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 83 e 84 e entre muitos outros, os Acórdãos do STJ, de 17.04.2013 ( proc. nº 237/11.7JASTB.L1.S1-3ª Secção- Relator Raul Borges);  de 13.11.2013 ( proc. Nº 2032/11.4JAPRT.P1.S1-3ª Secção- Relator Cons. Maia Costa);  de 19.02.2014 ( proc nº 168/11.0GCCUB.S1-3ª Secção- Relator Cons. Santos Cabral) e de 12.03.2015 ( proc. nº 405/13.7JABRG.G1.S1-5ª Secção- Relator Cons. Manuel Caetano).

A reflexão sobre os meios empregues, segundo Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos (Código Penal Anotado”, 3ª ed., II vol., págs 27 e 28), consiste na escolha ponderada pelo agente dos meios de atuação que, por força do efeito letal que possuem, facilitem a execução do crime projectado ou proporcionem mais probabilidades de êxito. Traduz-se, deste modo, na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de acção para o executar, significando, no dizer do Acórdão do STJ, de 14.05.2009 (proc. 389/06.8GAACN.C1.S1- 3ª Secção - Relator Cons. Armindo Monteiro), «um amadurecimento temporal sobre o modo de o praticar, a congeminação serena e perdurante no campo da consciência da ideação de matar e dos meios a usar».

A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (premeditação propriamente dita), traduzida na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de ação para o executar e na persistência no propósito de matar por mais de 24 horas, tempo considerado suficiente para o agente poder vencer emoções, ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequências do ato (Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. I, 2ª ed., págs. 83 e 84 e Fernando Silva, in, “Direito Penal Especial, Crimes contra as Pessoas”, Quid Juris, 2008, 2ª edição, págs. 83 e 84)».

21. Concluíram as instâncias que as circunstâncias em que o recorrente tirou a vida à vítima preenchem o exemplo-padrão constante da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, isto é, que o recorrente agiu com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados e com persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.

Esta conclusão não merece qualquer censura.

Com efeito, resulta dos factos provados que: perante a recusa da vítima em interromper a gravidez, o arguido planeou matá-la, pelo menos por ocasião do Natal de 2015 (factos 6 e 8); a fim de ocultar a acção a que se propôs, o arguido também planeou esconder o cadáver (facto 7); para esse efeito, cerca do Natal de 2015, na localidade de ..., num pinhal, o arguido cavou uma cova, com formato sensivelmente quadrado, com a profundidade de cerca de 1,80 metros (facto 8); propôs-se matar BB em 6 de Janeiro de 2016, convencendo-a a deslocar-se à sua residência, em ... para aí concretizar esse propósito (facto 9); a fim de não ser identificado em telefonema que para esse efeito iria fazer a BB, nesse dia 6 de Janeiro, após a jornada de trabalho, o arguido adquiriu um cartão telefónico, "pré-pago", com o SIM ... (facto 10); após alguns telefonemas, ficou combinado entre ambos que a vítima BB se deslocaria à residência do arguido (facto 11); a vítima deslocou-se à residência do arguido onde chegou após as 21:38 horas e este tentou de novo convencê-la a interromper a gravidez, o que ela recusou (factos 11, 12 e 13); perante essa recusa, o arguido causou-lhe ferimentos na cabeça e no pescoço, que lhe determinaram a morte que havia planeado (factos 6 e 14); BB encontrava-se grávida de um feto de cerca de 21 a 24 semanas de gestação, com o peso de 255,5 gramas, do sexo masculino (facto 16); a fim de ocultar o cadáver, como havia planeado (facto 7), e de dificultar a sua identificação, utilizando uma faca, ou facas, cortou e separou a cabeça do tronco da vítima, com secção total da coluna cervical, quando esta ainda se encontrava com vida (factos 17 e 18); prosseguindo o formado objectivo de ocultar o cadáver, cortou os tecidos moles e separou do tronco os braços e as pernas, desarticulou os quatro membros, pelas zonas dos joelhos e dos cotovelos e separou as mãos e os pés dos respectivos membros (facto 19); desmembrou o corpo durante a noite, até cerca das 6:00 horas da manhã do dia seguinte, e depois embrulhou o tronco, as pernas e os braços num plástico e colocou a cabeça, as mãos e os pés no interior de uma mochila (facto 20); de seguida foi trabalhar, deixando o cadáver na sua residência (facto 22); no final do dia seguinte, 7 de Janeiro, ao fim do dia, utilizando um veículo emprestado pela sua mãe, transportou o tronco, as pernas e os braços de BB para a localidade de ..., e colocou-os no interior da cova que tinha aberto por altura do Natal de 2015, para esconder o cadáver, como havia planeado (factos 7 e 8), tapando o respectivo buraco (factos 24 e 25); de seguida, já de noite, foi buscar a mochila que continha a cabeça, os pés e as mãos de BB, deslocou-se para a estação do Cais do Sodré, em Lisboa, tomou um barco em direcção a Cacilhas e no meio do percurso abriu a mochila e despejou-a, lançando para o rio Tejo a cabeça, as mãos e os pés de BB, partes do corpo que não foram recuperadas (factos 26, 27 e 28).

Esta sequência de factos, ocorridos entre o Natal de 2015 e o dia 7 de Janeiro de 2016, em execução do anterior projecto criminoso de tirar a vida à vítima e de ocultar o cadáver, atraindo-a à sua residência, onde a matou, decepou e esquartejou e separou as partes do corpo, para não permitir a sua identificação, constitui um conjunto de actos inter-ligados particularmente chocantes e repugnantes, da perspectiva de uma pessoa normalmente “fiel ao direito”, revelando sangue frio, insensibilidade, indiferença, crueldade, profundo desrespeito pela dignidade e pela vida humana, com preparação premeditada do crime e do modo de o executar, com mais de uma semana de antecedência, período durante o qual manteve firme a determinação de matar.

Tendo em conta o anteriormente exposto (supra, 20), mostra-se, pois, que a morte da vítima foi produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade e perversidade da conduta do arguido, nomeadamente que este agiu com frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregados e com persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (premeditação), assim se preenchendo a previsão da alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.

Improcede, por conseguinte, a pretensão do recorrente quanto à qualificação jurídica dos factos.

b) Quanto à pena aplicada ao crime de homicídio qualificado e à pena conjunta

22. De acordo com o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, do Código Penal e 375.º, n.º 1, do CPP, que concretizam o dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.º da Constituição, na sentença são expressamente referidos e especificados os fundamentos da medida da pena.

A determinação da medida das penas vem fundamentada nos seguintes termos:

“3.10. Quanto à medida da pena, o recorrente formula a pretensão de se “refazer cada uma das penas parcelares, e em consequência o cúmulo jurídico”, com “a pena de prisão aplicada in casu a ser reduzida para próximo do limite mínimo legal” - cfr. conclusões 130 e 138.

Dispõe-se no Código Penal, no seu artigo 40.º, n.ºs 1 e 2, que “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Acrescenta-se, por outro lado, no artigo 71.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

Em deriva dos citados artigos, a medida concreta da pena tem como parâmetros: a) a culpa, cuja função é a de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; b) a prevenção geral (de integração), à qual cabe a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; c) a prevenção especial, à qual caberá a função de encontrar o “quantum” exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente.

Função primordial da pena é a protecção de bens jurídicos, ou seja, a mesma traduz-se na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos, sem prejuízo da prevenção especial positiva e sempre com o limite imposto pelo princípio da culpa: “nulla poena sine culpa”.

É que a culpa, não sendo o fundamento último da pena, define em concreto o seu limite máximo, absolutamente intransponível por mais que se façam sentir sejam as exigências de carácter preventivo.

Deste modo, a prevenção especial positiva, subordinada que está à finalidade principal de protecção dos bens jurídicos, já não tem a virtualidade para determinar o limite mínimo, o qual se reconduz ao mínimo de pena que ainda realiza em concreto, e com eficácia, aquela protecção.

Por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, pelo que, dentro da moldura legal, a moldura da pena aplicável ao caso concreto (moldura de prevenção) há-de definir-se, com limitação do espaço possível de resposta às necessidades de reintegração social, entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa consente.

Em concretização legal dos apontados parâmetros, enumera, a título exemplificativo, o n.º 2 do citado artigo 71.º do Código Penal um conjunto de circunstâncias a ser tomadas em consideração, na medida em que, não fazendo parte do tipo de crime, possam depor a favor ou contra o agente em causa.

Ora, foi à luz de tais princípios que foi encontrada a pena adequada ao caso concreto, como se observa no escrito em sede do acórdão revidendo:

Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do Arguido importa agora determinar a natureza e a medida da sanção a aplicar (artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal).

O crime de homicídio qualificado é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos - artigo 132º, nº 1 do Código Penal.

O crime de profanação de cadáver é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias – artigo 254º, nº 1 do Código Penal.

Na determinação da pena em concreto e atenta a diversa natureza das penas aplicáveis ao crime de profanação de cadáver importa atender ao disposto no artigo 70º do Código Penal no que respeita ao critério de escolha da pena, sendo que em qualquer dos casos cumpre sempre atender ao que dispõe o artigo 71º do diploma quanto à determinação da medida da pena.

Esta, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente, tendo em conta as exigências de prevenção, nos termos do artigo 71º, nº 1 do Código Penal e bem assim o disposto no artigo 40º, nº 2 do mesmo diploma, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, conforme também dispõe o nº 2 do referido artigo 71º.

Atenta gravidade da conduta global do Arguido, relativamente à pena a aplicar ao crime de profanação de cadáver por ele cometido cumpre optar por pena de prisão, na medida em que pena não detentiva não realizaria de forma adequada nem suficiente as finalidades da punição.

Como circunstâncias a ponderar negativamente, no que concerne ao crime de homicídio qualificado, sem prejuízo do modo da respectiva execução integrar o próprio tipo (qualificado) e o princípio da proibição da dupla valoração da culpa, cumpre atender a esse modo de execução do facto, com exclusão dos aspectos essenciais que determinaram a qualificativa, como os cuidados que se rodeou para não ser identificado e mesmo para que o acto não fosse conhecido, o considerável tempo que mediou entre a abertura da cova para enterrar as partes do corpo e a concretização da morte da vítima, a aquisição de um cartão telefónico para nesse dia contactar a vítima e convencê-la a deslocar-se à sua residência, à causa primária que levou o Arguido a assim proceder, o “mero” facto de a vítima não pretender interromper a gravidez e os sentimentos que manifesta quem assim procede, desse contexto decorrendo que actuou com dolo directo, muito intenso, bem como o grau de ilicitude do facto se tem por muito elevado,

No que concerne ao crime de profanação de cadáver milita igualmente contra o Arguido o dolo directo e muito intenso, tendo-se o grau de ilicitude do facto pelo seu nível máximo, atenta a variedade das mutilações que realizou no cadáver, o destino que deu às diversas partes em que o dividiu e a não recuperação da cabeça, mãos e pés, tudo não obstante este crime se configurar como um crime “menor”, face à enorme gravidade do crime de homicídio qualificado que cometeu.

Como circunstâncias favoráveis ao Arguido cumpre considerar a ausência de condenações criminais, a sua situação pessoal, com hábitos de trabalho e profissionalmente integrado, a doença congénita ocular de que padece e os traumas de ordem psicológica que lhe tem acarretado, a assunção parcial dos factos, com relevância pelo menos para a descoberta de partes do corpo da vítima, e à sua postura actual relativamente a esses factos, cuja gravidade e censurabilidade da sua conduta aparentemente interiorizou e sente-se arrependido, sem prejuízo de não ter assumido que tivesse querido matar BB. Com efeito, nas últimas declarações que prestou em audiência o Arguido não alterou a sua versão inicial dos factos, quanto às circunstâncias da morte, não se tendo referido a essa matéria, embora a sua postura deixasse transparecer que não lhe suscitava dúvidas qual seria a conclusão do Tribunal acerca da concludência da prova, a cuja produção assistiu, quanto às circunstâncias da morte, afigurando-se que quando se referiu ao que fizera e à censura que isso agora lhe merecia estava a significar a globalidade dos factos que eram objecto do processo.

Considerando tais circunstâncias, assim como as necessidades de prevenção geral e especial, nomeadamente aquelas, que são elevadas no crime de homicídio (qualificado ou não) e não despiciendas no crime de ocultação de cadáver, tendo por referência que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa e que a mesma visa a reintegração social do agente, entende-se que relativamente aos crimes cometidos cumpre aplicar ao Arguido pena de prisão, em medida situada sensivelmente pelos dois terços da respectiva moldura abstracta máxima no caso do crime de homicídio qualificado e ao nível do limite abstracto máximo no crime de profanação de cadáver, pelos 20 anos e 6 meses no primeiro crime e pelos 2 anos no segundo, pena deste último crime cuja execução se tem por necessária à prevenção do cometimento de futuros crimes, face à gravidade que consubstancia a globalidade da sua conduta e bem assim à pena única que lhe cumpre aplicar.

2.4.3. Do cúmulo jurídico das penas

Nos termos do que dispõem os artigos 30.º, n.º 1 e 77.º, n.º 1, do Código Penal os crimes praticados pelo Arguido estão entre si numa relação de concurso, importando proceder ao cúmulo das respectivas penas, conforme estabelece o n.º 2 do último artigo.

A efectuação do cúmulo implica a consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, tendo a pena única aplicável como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo exceder 25 anos, e como limite mínimo a mais elevada das penas parcelares.

A pena única resultante das penas parcelares tem assim como limite mínimo 20 anos e 6 meses de prisão e como limite máximo 22 anos e 6 meses de prisão.

Considerando em conjunto os factos e a personalidade do agente, revelada nos tipos de crimes praticados e nos sentimentos por ele manifestados no seu cometimento, nos termos supra expostos, operando o cúmulo jurídico de tais penas, tem-se por adequado aplicar ao Arguido a pena única de 21 anos e 6 meses de prisão.

O recorrente era quanto às aludidas condutas portador da necessária inteligência e liberdade para se conduzir, possuindo, o conjunto de qualidades pessoais que são necessárias para ser passível de um juízo de censura por não ter agido de outra maneira, não podendo, sequer, em termos da sua atitude anterior, ver-lhe ser considerada uma particular estrutura psicobiológica a não ser em termos de ser censurado e punido por não ter orientado a modelação do seu modo de ser de maneira a poder motivar-se como os indivíduos do tipo médio.

Responde, por isso, no segmento, com adequação, o Ministério Público:

Entende o recorrente que a pena de prisão em que foi condenado deveria ser quantitativamente menor (...)

Os critérios legais para tal operação encontram-se cristalizados nos arts. 71.º, n.ºs. 1 e 2, e 40.º, n.º 2, ambos do Código Penal, os quais determinam que a mesma é efectuada em função da culpa do agente (limite máximo), das exigências de prevenção geral (limite mínimo) e especial (critério determinante dentro da moldura encontrada pela culpa e pela prevenção geral).

Regressando ao caso vertente, pela análise da sentença ora recorrida, verifica-se que o recorrente foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, p.p. nos arts.131.º e 132.º ns.1 e 2 al. j) do Código Penal na pena de 20 anos e 6 meses de prisão e como autor material de um crime de profanação de cadáver, p.p. no art.254.º n.1 al f) do mesmo Código, na pena de 2 anos de prisão e, em cúmulo, na pena única de 21 anos e 6 meses de prisão. A moldura penal do crime de homicídio qualificado é de 12 a 25 anos de prisão e a moldura do crime de ocultação é até 2 anos de prisão.

Consideramos elevadíssima a culpa do arguido que, na consumação dos factos, venceu normas jurídicas e fortes barreiras éticas, matando a mulher com quem manteve um relação afectiva e que estava grávida do seu filho que também faleceu, tendo para com a mesma especial dever de respeito e consideração, desmembrou-a a atirou ao rio a sua cabeça, pés e mãos, assim impedindo a família de fazer o luto pelo ente querido que faleceu. A conduta do arguido revela uma perfeita história de horror, não podendo ser esquecido que, quando desmembrou a BB, esta ainda estava viva, se bem que poderia estar inconsciente.

É elevado o grau de ilicitude da conduta do arguido que cometeu um crime (ocultação de cadáver) para disfarçar o seu crime principal (homicídio), previamente preparou o espaço para guarda e ocultação do cadáver da BB em cova que abriu, o que demonstra a permanência na vontade de matar durante largo período de tempo.

A frieza de ânimo do arguido e a sua indiferença ética para com os actos bárbaros que cometera são revelados por ter ido trabalhar no dia seguinte ao assassinato que perpetrara; no fim do dia de trabalho pediu emprestado à sua mãe um veículo automóvel e foi então enterrar, em ..., parte do corpo da BB e a cabeça, as mãos e os pés da mesma atirou-os ao rio Tejo, nunca tendo sido recuperados.

O arguido revela inteligência normal superior, sem sinais de deterioração mental ou amnésica. Em termos psicológicos o arguido apresenta uma organização patológica da personalidade, de cariz fóbico e evitativo, estrutura de personalidade neurótica que funciona num registo psicopatológico. A sua personalidade caracteriza-se pelo narcisismo.

O arguido não confessou a totalidade dos factos, mas apenas e só aqueles que percebeu serem evidentes e, na sua estratégia de defesa, não poderia esconder ao Tribunal.

O conjunto de todos estes factos - dados por assentes pelo Tribunal a quo - bem como as circunstâncias anteriores e posteriores ao cometimento dos crimes e a elevada intensidade do dolo, fazem-nos concordar com as penas parcelares e única que foram aplicadas ao recorrente. 

Perante tudo o exposto merece-nos inteira adesão e concordância a decisão dos Mmºs. Juízes de 1.ª instância ao fixar a medida da pena única concreta do recorrente em 21 anos e 6 meses de prisão.

Como se observa, a matéria de facto reflecte distanciamento em termos de ultrapassagem das contra-motivações éticas entre uma determinação normal pelos valores e a do arguido, bem como reflecte censurabilidade especial da motivação pela própria violação da norma.

O limite superior da pena corresponde ao máximo grau de culpa e o limite mínimo à referência abaixo da qual se frustram as expectativas da comunidade, devendo tal pena situar-se ao nível que melhor corresponda aos componentes aludidos e, como se referiu, a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o recorrente.

Não existem circunstâncias anteriores ou posteriores aos crimes, ou contemporâneas deles, para lá do considerado pela decisão revidenda, que diminuam, muito menos por forma acentuada, a ilicitude dos factos, a culpa do agente ou a necessidade da pena, em ordem, desde logo, a qualquer atenuação especial da pena ou à ponderação de uma pena concreta próxima do limite mínimo, como pretensão jurisdicional solicitada.

Em face do apontado enquadramento jurídico, considerando os referenciados elementos e a conjugação dos factos com as exigências de prevenção geral e especial, as penas parcelares impostas mostram-se adequadas.

O mesmo importa dizer quanto à medida da pena única, pois que nela foram considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do recorrente, com aferição à gravidade dos actos perpetrados - desvalor de acção/desvalor de resultado - e à medida concreta das penas que, no contexto, vêm sendo aplicadas pelos Tribunais Superiores.

É que a pena aplicável ao concurso de crimes - cfr. Código Penal, artigos 77.º, nºs 1 e 2, e 78.º - tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Dentro daqueles limites, e na avaliação da personalidade - unitária - do recorrente relevou, na fixação da pena única, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos era reconduzível a uma tendência (ou mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou “tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, só no primeiro caso sendo cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta” - cfr. Figueiredo Dias, “in” Direito Processual Penal, § 521.

De resto, sempre se deve partir da consideração/avaliação global da complexidade específica do caso, em avaliação objectiva e com projecção de igualdade.

A construção da ilicitude resulta da imagem global do facto no que respeita, naturalmente, à intervenção do arguido na conduta em causa, e aos limites da sua intervenção no contexto que a matéria de facto revela.

Essa intervenção configura, nas circunstâncias referidas, “quadro do facto” em que se não pode considerar como “diminuída” a projecção de ilicitude.

No âmbito dos crimes em apreço, socialmente sentidos como de afectação de valores fundamentais, com fortes implicações em bens jurídicos estruturantes, cuja desconsideração perturba a própria coesão comunitária, a amplitude das consequências faz surgir uma particular saliência das finalidades de prevenção geral /prevenção de integração para recomposição dos valores afectados e para a afirmação comunitária da validade das normas que protegem tais valores.

Os factos descritos são distintos, não devem ser juridicamente unificados, e não podem ser avaliados/ponderados como se de uma unidade de trato sucessivo se tratasse, pelo que não há que usar de um maior grau de compressão das penas parcelares, devendo concluir-se que a pena única imposta ao recorrente se mostra, sem ultrapassar a medida da culpa, justa e adequada às exigências de prevenção geral e especial”.

23. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Estabelece o artigo 71.º do Código Penal:

“1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.

Encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. A restrição (ou privação temporária) do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, assim, tal como a sua previsão legal, ao genericamente designado princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que, como é sabido, se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há-de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).

24. A projecção destes princípios no modelo de determinação da pena justifica-se pela necessidade de protecção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada, em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigos 40.º e 71.º do Código Penal). A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de actuar de acordo com o direito, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2). Na determinação da medida da pena, nos termos do artigo 71.º, de enumeração não taxativa, devem ser levados em consideração as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto (personalidade onde o facto radica e o fundamenta), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, incluídas no denominado “tipo complexivo total” (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2001, p. 234) e não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele.

Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os factores reveladores da censurabilidade manifestada no facto – nomeadamente, nos termos do n.º 2, os factores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objectivo e subjectivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os factores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os factores atinentes ao agente, que têm a ver com a sua personalidade – factores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na protecção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto (alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves), o comportamento anterior e posterior ao crime (alínea e), com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto (alínea f)). O comportamento do agente (circunstâncias das alíneas e) e f)) adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do artigo 71.º do Código Penal, segue-se, em particular, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357).

25. Nos termos do disposto no 77.º, n.º 1, do Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, na qual são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

No sistema do Código Penal (artigo 77.º, n.º 2), a pena única corresponde a uma pena conjunta resultante da transformação das penas correspondentes aos crimes em concurso segundo um princípio de absorção ou de exasperação. A determinação da pena conjunta obtém-se mediante um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha da pena e construindo-se, assim, a moldura penal do concurso cujo limite máximo é dado pela soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, com os limites do n.º 2 do artigo 77.º (25 anos para a pena de prisão e 900 dias para a pena de multa), sendo o limite mínimo o correspondente à mais elevada das penas concretamente aplicadas. Assim definida a moldura do concurso, deve o tribunal determinar a pena conjunta, seguindo os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) e o critério especial fixado na segunda parte do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, segundo o qual na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

Como tem sublinhado a jurisprudência constante deste Tribunal, “com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente”. “Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso – Ac. deste Supremo e desta Secção de 06-02-2008, Proc. n.º 4454/07” (acórdão de 14.07.2016, Proc. 4403/00.2TDLSB.S1 – 3.ª Secção). Citando Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2001, p. 291): «Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta».

26. Em justificação da sua pretensão de ver reduzida a pena, invoca o arguido, em síntese: que o dolo com que actuou “não é intenso ou grave” (conc. 72, 85), mas “diminuído” (conc. 84) e que a sua culpa é “média” (conc. 84); que se tratou de um “acidente” (conc. 72), de “factos meramente ocasionais” (conc. 85), “cujos reflexos e consequências não pôde avaliar de forma correcta” (conc. 72); que “negou o crime de homicídio qualificado, porque não o praticou” (conc. 84); que a sua actuação “deveu-se ao facto de padecer de problemas de saúde oculares graves, que são congénitos e genéticos, que passam para as gerações seguintes, tendo agido sob influência de forte perturbação” (conc. 74); que “nunca demonstrou insensibilidade” (conc. 77); que está arrependido (conc. 74, 77, 80, 81, 86); que colaborou na investigação e com a justiça em todas as fases do processo, “indicando as provas, os locais onde ocorreu a morte, as suas circunstâncias, para onde levou os restos mortais” (conc. 77, 84, 86, 93); que confessou os factos (conc. 84); que se encontra socialmente integrado, recebe visitas regulares no estabelecimento prisional de família e amigos, quer concluir os estudos, ou seja, tem um projecto de vida organizado e estruturado, compreendeu e interiorizou a medida da pena (conc. 72, 80); que não tem antecedentes criminais (conc. 77, 80, 84, 93), tem boa “conduta anterior” e “longa vida de trabalho” (conc. 78, 84); que a sua personalidade “não é ligada ao crime” (conc. 93); e que “não se verifica uma tendência criminosa, mas uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade” (conc. 86). Entende também ser merecedor de uma atenuação especial da pena (art. 72.º e 73.º do Código Penal – conc. 73).

27. Confrontando o conteúdo destas alegações com o que consta da matéria de facto provada, mostra-se claramente que estas, na sua generalidade e na parte mais relevante, não têm apoio nos factos descritos, em particular no que diz respeito à intensidade do dolo e à tese do “acidente” e à sua motivação. Pelo contrário, resultou provado que o arguido actuou com dolo directo, muito intenso, mostrando-se o grau de ilicitude do facto muito elevado.

A favor do arguido foram ponderadas as circunstâncias relativas à ausência de condenações criminais anteriores, à sua situação pessoal (incluindo possuir hábitos de trabalho e estar profissionalmente integrado, padecer de doença congénita ocular e de traumas de ordem psicológica que esta lhe tem acarretado), à assunção parcial dos factos, com relevância pelo menos para a descoberta de partes do corpo da vítima, à sua postura actual relativamente a esses factos, cuja gravidade e censurabilidade aparentemente interiorizou, e ao facto de se sentir arrependido, sem prejuízo de não ter assumido que tivesse querido matar a vítima.

Na determinação da pena única foi tida em conta a ligação entre os factos que constituem os tipos de crime e não foi considerado, como factor de agravação, que a personalidade revelada nos factos praticados manifestasse uma tendência para o crime.

As circunstâncias mencionadas afastam liminarmente a possibilidade de ponderação da pretendida atenuação especial da pena, nos termos dos artigos 72.º do Código Penal, o qual exige estas sejam susceptíveis de diminuir, por forma acentuada, a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, o que, como resulta evidente, não sucede.

27.1. Determinando-se a pena do crime de homicídio qualificado a partir da moldura definida pelo limite mínimo de 12 anos e máximo de 25 anos de prisão, correspondente ao tipo legal de crime da previsão do artigo 132.º do Código Penal, foi esta fixada em 20 anos e 6 meses de prisão.

Tendo em conta as circunstâncias relativas ao muito elevado grau de ilicitude dos factos, ao modo de execução destes e à gravidade das suas consequências, bem como à muito elevada intensidade do dolo e aos sentimentos manifestados no crime, e aos fins e motivos que o determinaram (al, a), b) e c) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal), que fundamentam um elevado grau de culpa e fortes necessidades de prevenção, e considerando a diminuta relevância dos factores considerados a favor do arguido, tudo conforme anteriormente referido, não se encontra qualquer fundamento que permita constituir base de divergência relativamente à medida da pena aplicada, a qual se mostra adequada e proporcional à gravidade do crime cometido.

Improcede, pois, a alegada violação das alíneas c), d) e e) do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal, bem como do artigo 30.º da Constituição, a qual, aliás, como se nota no acórdão recorrido, não se mostra fundamentada relativamente a qualquer dimensão normativa deste preceito.

27.2. O mesmo sucede relativamente à pena única conjunta, em resultado da aplicação das penas de 20 anos e 6 meses, pelo crime de homicídio qualificado, e de 2 anos de prisão pelo crime de profanação de cadáver.

Sendo a moldura do cúmulo definida pelos limites mínimo e máximo de 20 anos e 6 meses e de 22 anos e 6 meses, respectivamente, a fixação da pena em 21 anos e 6 meses traduz uma adequada consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente, em correcta aplicação dos critérios gerais de determinação da pena, nos termos do artigo 71.º, e do critério especial de determinação da pena única conjunta estabelecido no artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal.

28. Nesta conformidade, deve o recurso ser igualmente julgado improcedente nesta parte, mantendo-se as penas aplicadas, as quais se consideram adequadas e proporcionais à gravidade dos factos praticados pelo recorrente.

Quanto a custas

29. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso.  

A taxa de justiça, que é sempre individual, é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Nestes termos, em consideração da complexidade do recurso, considera-se adequada a condenação do recorrente em 7 UC.

III. Decisão

30. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Rejeitar os recursos interpostos pelo arguido AA quanto a todas as questões suscitadas, excepto no que diz respeito à qualificação jurídica dos factos relativos ao crime de homicídio qualificado e à determinação da pena correspondente a este crime e à pena única conjunta correspondente aos crimes em concurso;

b) Julgar improcedente a arguição da nulidade do acórdão do tribunal da Relação por alegada omissão de pronúncia quanto aos concretos pontos indicados no recurso do acórdão proferido em 1.ª instância;

c) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA na parte respeitante às questões relacionadas com a qualificação jurídica dos factos provados que dizem respeito ao crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea j), do Código Penal, bem como quanto às questões relacionadas com a determinação da pena de 20 anos e 6 meses de prisão, correspondente a este crime, e com a determinação da pena única conjunta, de 21 anos e 6 meses de prisão, aplicada aos crimes de homicídio qualificado e de profanação de cadáver, em concurso;

E, consequentemente, 

d) Manter a decisão recorrida.

e) Condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 7 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 12 de Julho de 2018.


Lopes da Mota (relator) *
Vinício Ribeiro