Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
145/21.3GAALJ.G1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 03/13/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I. Entendeu, já, este Tribunal, em interpretação que perfilhamos, que a definição oficiosa de reparação, nos termos do art. 82.º-A do CPP, se inclui nas consequências de natureza penal, como efeito penal da condenação, distinguindo-se “das consequências de natureza civil que geram o dever de indemnizar pela prática de facto ilícito, nos termos das disposições aplicáveis do Código Civil e do artigo 129.º do Código Penal, dependente de pedido do lesado”.

II. A indemnização prevista no art. 82.º-A, do CPP, é arbitrada oficiosamente pelo Tribunal, apenas em caso de condenação, segundo o prudente critério do julgador, sem pedido, relacionando-se com os prejuízos sofridos (“uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos”), mas não, necessariamente, coincidente com o seu valor.

III. Não se trata de uma indemnização por perdas e danos, objeto de pedido, relativa, direta e exclusivamente, aos danos quantificados, mas de uma indemnização oficiosamente atribuída, a título de reparação pelos prejuízos sofridos.

IV. Representando um assumido desvio relativamente ao princípio da adesão, carece o atual regime especial, previsto no art. 82.º-A do CPP, de definição própria de critérios de fixação.

V. À sua natureza híbrida, simultaneamente de efeito penal da condenação e de aproximação reparatória aos prejuízos sofridos, corresponde um regime adjetivo próprio, desligado do processo civil, cujas normas apenas se aplicarão, por efeito da cláusula geral de subsidiariedade do art. 4.º do CPP (como será o caso, dos critérios de fixação da quantia).

VI. O art. 400.º, n.º 2 estabelece dois requisitos, de verificação cumulativa, de admissibilidade de recurso: que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

VII. Afigura-se-nos não ser permitida, pela letra da lei, uma interpretação da norma que atenda, apenas, a um dos critérios (no caso o 2.º), em razão da impossibilidade de se verificar o 1.º, dada a inexistência de pedido.

VIII. Os requisitos de admissibilidade de recurso, no caso de reparação arbitrada ao abrigo do disposto no art. 82.º-A, não estarão no plano do recurso da parte da sentença relativa à indenização civil, decidida em ação civil no processo penal; situar-se-ão, antes, no domínio das regras de admissibilidade do recurso penal a que se refere a al. f), do n.º 1, do art. 400.º do CPP.

IX. De todo o modo, mesmo que assim se não considerasse, a dupla conforme estende-se, no caso, à parte indemnizatória da sentença.

X. Com efeito, é evidente a existência da dupla conforme consagrada no n.º 3 do art.671.º, do C.P.C., que impede a admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 145/21.3GAALJ.G1.S1

Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA, arguido identificado nos autos, não se conformando com o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 28.11.2023, na parte que confirmou a sentença de primeira instância no tocante ao arbitramento oficioso da quantia de 25 000,00 € a título de reparação pelos prejuízos sofridos pela ofendida, veio interpor recurso, nos termos “das disposições concatenadas dos artigos 399.º, 400.º, n.º 2 e 3, 401.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 432.º, n.º 1, alínea b), do Código do Processo Penal (CPP)”.

Formulou as seguintes conclusões: (transcrição)

“I. O recorrente foi condenado pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, tendo sido igualmente condenado a pagar à ofendida BB a quantia de 25 000,00 €, à guisa de reparação pelos prejuízos sofridos – por força das disposições conjugadas dos artigos 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, e 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP).

II. A ofendida não formulou pedido de indemnização civil no processo, tendo-se limitado, na sequência de notificação adrede efetuada, a indicar o montante de 25 000,00 € como adequado ao ressarcimento de todos os prejuízos sofridos pela prática do crime imputado ao arguido.

III. O Ministério Público junto do tribunal de primeira instância entendeu que o valor indicado pela ofendida era exagerado, tendo formulado um pedido de arbitramento da quantia de 4 500,00 €, por reputar tal estipêndio como adequado ao caso.

IV. A lesada encontra-se regularmente representada por advogada, não resultando da análise dos autos qualquer dificuldade, obstáculo, peia ou entrave à formulação, por parte da lesada, de pedido de indemnização civil pelos prejuízos que sofreu com a prática do crime de violência doméstica por parte do arguido.

V. Se entendia que era tributária de uma indemnização fundada nos factos criminalmente relevantes assacados ao arguido, a ofendida, ao abrigo do princípio da adesão ínsito no artigo 71.º do CPP, deveria ter deduzido pedido de indemnização civil no processo penal – sendo certo que, com a notificação da acusação, a assistente/lesada foi expressamente notificada para, querendo, deduzir pedido de indemnização civil, nos termos precatados no artigo 77.º do CPP.

VI. Nas certeiras palavras de Paulo Pinto de Albuquerque , “Não há lugar a arbitramento oficioso quando a vítima não deduziu pedido de indemnização por negligência própria”, visto que o arbitramento oficioso de indemnização se prefigura como um meio subsidiário de reparação de perdas e danos causados pelo crime, não podendo ser usado nos casos em que a vítima, por descaso, por esquecimento, por incúria ou por negligência própria, não deduziu pedido de indemnização civil enxertado no processo penal (ou, verificados os respetivos pressupostos, em separado).

VII. Se a lesada não deduziu pedido de indemnização civil nos presentes autos, tendo sido expressamente notificada para esse precípuo efeito, tal conduta processual desidiosa sibi imputet!

VIII. Decorrentemente, o arbitramento oficioso da quantia de 25 000,00 € à ofendida deve ser dado sem efeito, revogando-se o sentenciamento sub censura nesta parte, com a concomitante absolvição do arguido/recorrente do pagamento à assistente do sobredito montante.

Sem prescindir,

IX. a quantia oficiosamente arbitrada à ofendida diz respeito exclusivamente a danos de natureza não patrimonial.

X. O mecanismo previsto no artigo 82.º-A do CPP não pode ser utilizado no domínio da reparação oficiosa de danos de natureza moral ou extrapatrimonial, respeitando apenas aos danos de ordem patrimonial que a prática do crime acarretou para a ofendida.

XI. Dessarte, impõe-se a revogação da parte da decisão recorrida, respeitante ao arbitramento oficioso de uma indemnização por danos não patrimoniais à ofendida, com a concomitante absolvição do recorrente do pagamento da quantia de 25 000,00 € à lesada.

XII. Finalmente, e no caso de soçobrar o pedido de revogação do segmento decisório atinente ao, entende o recorrente que o valor arbitrado é excessivo face aos contornos do caso em apreciação.

XIII. Em abono da posição do recorrente traz-se à colação a posição do Ministério Público em primeira instância, que requereu a reparação à ofendida pelo montante de 4 500,00 €.

XIV. Ademais, ao invés do que legalmente se impunha, o quantum indemnizatório arbitrado pelo tribunal de primeira instância (e confirmado pelo Tribunal da Relação de Guimarães) não teve em conta, na respetiva fixação, as condições socioeconómicas do arguido.

XV. Tal como não foi levada em conta, na fixação da indemnização com recurso a juízos de equidade, a situação económica da lesada, sendo certo que, neste domínio, não foram dados como provados quaisquer factos de onde se possa aquilatar qual a real situação económica da lesada. Ainda que estejamos no domínio da equidade, há critérios e arrimos legais que não podem deixar de ser atendidos, sob pena de se estar não já no âmbito da equidade, mas sim no da arbitrariedade!

XVI. Considerando as indemnizações que os tribunais superiores desta nesga de terra debruada de mar costumam atribuir, tanto em casos com contornos semelhantes aos dos autos, como no domínio da equidade e dos danos de natureza extrapatrimonial lato sensu, verifica-se que o concreto montante arbitrado à ofendida é claramente elevado e excessivo.

XVII. Importa, neste conspecto, salvaguardar a unidade do sistema jurídico e do sistema de atribuição de indemnizações estribado em juízos de equidade como um todo harmónico e coerente, com respeito pelas mais lídimas exigências dimanadas do princípio da igualdade, o que aponta para uma tendencial e desejável uniformização de parâmetros na fixação judicial das indemnizações, sem prejuízo da consideração das circunstâncias do caso concreto.

XVIII. Tudo visto, pugna-se pela fixação de uma reparação à ofendida coincidente com o valor proposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público de primeira instância: 4 500,00 €.

XIX. Ao decidir nos termos em que o fez (especificamente na parte em que confirmou a sentença de primeira instância no tocante ao arbitramento oficioso da quantia de 25 000,00 € a título de reparação pelos prejuízos sofridos pela ofendida), o Tribunal da Relação de Guimarães violou as normas contidas nos artigos 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (na redação que vigora coetaneamente), e 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP).

Nestes termos e nos mais de direito que ao caso se afeiçoarem, deve ser concedido provimento ao presente recurso, com as consequências daí advenientes, fazendo V. Excelências, como costumadamente, JUSTIÇA.”

2. Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, do qual se extraem os seguintes pontos: (transcrição)

“Tendo o recorrente sido condenado numa pena de prisão de 3 (três) anos e 8 (oito) meses, suspensa na sua execução por igual período, e nos demais termos da condenação acima assinalados – condenação que foi mantida integralmente pelo TRG – a decisão impugnada é irrecorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, não só em função do quantum e natureza da pena aplicada, como em função da dupla conformidade das decisões, conforme resulta dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e) e f), artigo 432.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.

Vale por dizer que, formal e substantivamente, tendo a decisão recorrida mantido a condenação em pena de prisão de 3 anos e 8 meses, suspensa na sua execução mediante regime de prova, trata–se para os devidos efeitos de pena que, efetivamente não é privativa de liberdade, além de ser inferior a 5 anos de prisão.

Por outro lado, estando–se perante uma dupla–conformidade de decisões e sendo a pena em causa inferior a 8 anos de prisão, a decisão do TRG não é recorrível, pelo que se impõe rejeitar, por inadmissível, o recurso interposto pelo arguido, nos termos conjugados dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), 414.º, n.º 2 e 434.º, todos do Código de Processo Penal.

Tal significa, pois, que a irrecorribilidade em razão da quantidade e natureza da pena coenvolve a insindicabilidade de todo o juízo decisório – absolvição ou condenação – efetuado, incluindo todas questões processuais relativas a essa decisão no tocante às penas principais e acessórias e efeitos das penas, pois de outro modo não se verificaria a irrecorribilidade.

Pode, porém, questionar–se se o arbitramento da quantia de 25.00,00€uros a pagar à ofendida, em que também foi condenado o recorrente, nos termos dos artigos 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal, Portaria nº 291/03 de 8/04 e artigo 805., n.º 3 do Código Civil e AFJ n.º 4/02, de 27 de junho é uma condenação em estrita matéria de natureza criminal ou se o é exclusiva ou partilhadamente de natureza cível, por indemnizatória.

A reparação financeira da vítima de violência doméstica é corolário do respetivo estatuto, segundo a Lei 112/209, e visa a reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em resultado do crime ou crimes de que foi vítima, como serve também para não acentuar a dependência económica que a condenação e o afastamento do agressor, por vezes (e muitas vezes assim é), representa para a liberdade da vítima e para a recuperação da sua paz e dignidade ; dependência que muitas vezes condiciona, a montante e a jusante, a prevenção e repressão deste flagelo pessoal e social.

A par com a excecionalidade do regime consagrado no artigo 82.º–A do Código de Processo Penal, também o artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009 estabelece um regime especial de reparação da vítima do crime de violência doméstica, que dispensa a verificação de especiais exigências de proteção, pois a lei assume–as como óbvias ou absolutas, decorrendo desse regime o dever de ser sempre atribuída uma indemnização à vítima, independentemente de pedido ou prescindindo do pedido (e salvo oposição expressa), já que o não arbitramento de reparação à vítima corresponde a uma omissão de pronúncia, que gera nulidade e é oficiosamente cognoscível. (…)

O regime especial a que o artigo 21.º, da Lei 112/2009, submete o arbitramento oficioso de montante financeiro como reparação às vítimas do crime de violência doméstica, aproxima a figura do campo dos efeitos ou consequências de natureza penal, com índole punitiva, e não meramente compensatória.

Porém, não há uma pronúncia categórica quanto à natureza do instituto, como parece poder admitir–se da avaliação feita no acórdão citado, que lhe atribui uma natureza hibrida ou de fronteira, ainda que mais inclinada para o âmbito penal, pelo que, heuristicamente, devemos avaliar a viabilidade do recurso numa ou noutra das hipóteses possíveis de ponderar e que têm consequências práticas.

Julgamos que, por uma ou outra via, a decisão não admite recurso.

Ou seja:

1. A ter–se o arbitramento de quantia à ofendida, nos termos dos artigos 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal, Portaria nº 291/03 de 8/04 e artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil e AFJ n.º 4/02, de 27 de junho, como uma decisão que orbita no âmbito da condenação em pena criminal, com índole punitiva, e que só por via desta e das finalidades da punição se justifica a complementaridade da punição com o arbitramento de quantia à vítima, então, o modo de situar assim a natureza da indemnização oficiosamente arbitrada importa a inadmissibilidade do recurso, nos termos já acima expostos.

2. Se, ao invés, se admitir que o arbitramento oficioso de quantia à vítima não dispensa a verificação em concreto dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e a observância de critérios de equidade segundo o artigo 496.º, n.º 3, do Código Civil, o que pode impulsionar o arbitramento para a órbita da responsabilidade civil por facto ilícito, ainda assim o recurso teria que cumprir os requisitos que o artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal impõe, i.e, só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, na parte relativa à indemnização civil, se o valor do pedido for superior à alçada do tribunal recorrido e se a decisão impugnada for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada, pelo que, perante o facto de o valor da quantia arbitrada ser inferior à alçada da Relação, que, na parte cível, teria de ser superior a 30.000,00€ (Lei 62/2013, de 26–8, artigo 44.º), então o recurso, também por essa via, é inadmissível, conforme artigo 400.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.”

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), visando, no caso, o reexame de matéria de facto e de direito.

Este Tribunal é, assim, chamado a apreciar e decidir sobre:

- O valor da reparação atribuída à ofendida.

Cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. Factos relevantes

1. O recorrente foi condenado, por sentença, de 12.07.2023, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, nos seguintes termos:

1) pela prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos art. 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão, suspensa por igual período, acompanhada por um regime de prova que contemple um Plano Individual de Reinserção Social com as seguintes regras de conduta:

a. Responder a convocatórias do técnico de reinserção social e receber visitas deste para efeitos do cumprimento do regime de prova;

b. Frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, nos termos a definir pela DGRSP;

c. Cumprir com a condenação no pagamento da indemnização arbitrada, isto é, entregar à ofendida a quantia de € 25.000,00, no prazo de 3 (três) anos e 8 (oito) meses após o trânsito em julgado da sentença;

d. Proibição de contactar com a sobredita ofendida, por qualquer meio escrito, falado, ou por interposta pessoa, devendo da mesma manter um afastamento não inferior a 1000 metros, pelo período da suspensão, cujo cumprimento deverá ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

2) na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida BB, com afastamento da residência ou do local de trabalho desta em perímetro nunca inferior a 1000 metros, pelo período de 3 (três) anos e 8 (oito) meses, pena acessória cujo cumprimento será fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

3) a pagar à ofendida BB a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de reparação pelos prejuízos sofridos, acrescidos de juros legais de 4,00 %, contados desde a data da presente sentença até integral pagamento – artigos 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal, Portaria nº 291/03 de 8/04 e artº 805º/3 CC e AFJ n.º 4/02, de 27 de junho.

2. O Acórdão recorrido decidiu “negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.”

3. No segmento da sentença relativo à reparação imposta pelos arts. 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal, afirma-se:

“No caso, os atos praticados pelo arguido causaram à ofendida um mal-estar significativo dentro da sua própria habitação, durante um período estimado de 45 anos, com prejuízo para a harmonia do lar. Significa isto que os factos perduraram por um período temporal correspondente a mais de metade da esperança média de vida, tendo sido vividos esses anos em angústia e sofrimento (dir-se-á, até, numa verdadeira miséria emocional e física), sem condições de segurança, estabilidade e conforto dentro do seu próprio lar.

Os factos foram praticados pelo arguido não em virtude de um qualquer transtorno pessoal ou por influência de substâncias, mas por pura maldade e desdém para com a ofendida em específico.

Tais factos implicaram para a ofendida a perda de autonomia financeira, de que se viu privada por causa do domínio que o arguido exerceu sobre ela, e que agora se repercute na sua situação financeira na velhice.

É por causa das ações do arguido que a assistente teme pela sua segurança ainda nos dias de hoje.

Acresce que os factos apenas cessaram porque a ofendida saiu de casa, mudando completamente da sua vida e fugindo da terra que sempre conheceu, tudo proporcionado pelo arguido, sem descurar os traumas que estes eventos obviamente causam (a esta e a qualquer vítima que deles fosse alvo, e que, no caso, imprimiram um sentimento de medo que ainda hoje perdura).

Recorde-se, neste ponto, que a gravidade dos factos foi de tal ordem que a ofendida passou pelo desespero de querer suicidar-se. O intento de se suicidar é, evidentemente, demonstrativo do nível de sofrimento emocional e psicológico sentidos pela ofendida durante todos estes anos, pois apenas uma pessoa em grande desespero vê no “fim da vida” a única solução para parar com esse sofrimento tão profundo.

Perante os danos causados – os quais são graves, atentas as consequências físicas e psicológicas com que a ofendida ficou -, atendendo ao grau de culpabilidade do demandado, que se revela muito elevado, considerando as circunstâncias em que os factos ocorreram e que se mostram plasmados na factualidade que se deu como provada, ao período de tempo em que os maus tratos físicos e psíquicos infligidos na demandante se prolongaram, às consequências que o seu ato provocou e atendendo às condições económicas do arguido, entende o tribunal que a indemnização a atribuir não deve ser insignificante, sob pena de se tirar todo o sentido ao sofrimento desta ofendida, e que marcou a maior parte da sua vida e condicionou o desenrolar da mesma (desenvolvendo-se contra a sua real vontade e autonomia).

Por tais motivos, o tribunal considera justo e adequado o valor indemnizatório de € 25.000,00 a título de reparação pelos prejuízos sofridos (o que corresponde a um valor equivalente e estimado de € 550,00 por cada ano de sofrimento passado pela ofendida).

Vide, a este respeito, as indemnizações que foram fixadas nos seguintes arestos, atentos os concretos factos, períodos de tempo que perduraram e consequências que implicaram para a vida das respetivas vítimas: Ac. do TRP, proc. n.º 289/21.1GAVLG.P1, de 09-11-2022; Ac. do TRE, proc. n.º 828/15.7T9STR.E1, de 20-12-2018; Ac. do STJ, proc. n.º 156/16.0PALSB.L1.S1, de 02-05-2018,

A tal quantia acrescerão os juros legais de 4,00 %, contados desde a data da presente sentença até integral pagamento (Portaria nº 291/03 de 8/04 e artº 805º/3 CC e AFJ n.º 4/02, de 27 de junho.

Termos em que deve ser condenado o arguido a pagar tal quantia à ofendida a título de reparação pelos prejuízos sofridos, que se arbitra nos termos das disposições conjugadas dos artigos 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, e 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal.”

4. Na parte correspondente do acórdão recorrido, sustenta-se, deste modo, a confirmação da indemnização arbitrada:

“No caso, os atos praticados pelo arguido causaram à ofendida um mal-estar significativo dentro da sua própria habitação, durante um período estimado de 45 anos, com prejuízo para a harmonia do lar. Significa isto que os factos perduraram por um período temporal correspondente a mais de metade da esperança média de vida, tendo sido vividos esses anos em angústia e sofrimento (dir-se-á, até, numa verdadeira miséria emocional e física), sem condições de segurança, estabilidade e conforto dentro do seu próprio lar.

Os factos foram praticados pelo arguido não em virtude de um qualquer transtorno pessoal ou por influência de substâncias, mas por pura maldade e desdém para com a ofendida em específico.

Tais factos implicaram para a ofendida a perda de autonomia financeira, de que se viu privada por causa do domínio que o arguido exerceu sobre ela, e que agora se repercute na sua situação financeira na velhice.

É por causa das ações do arguido que a assistente teme pela sua segurança ainda nos dias de hoje.

Acresce que os factos apenas cessaram porque a ofendida saiu de casa, mudando completamente da sua vida e fugindo da terra que sempre conheceu, tudo proporcionado pelo arguido, sem descurar os traumas que estes eventos obviamente causam (a esta e a qualquer vítima que deles fosse alvo, e que, no caso, imprimiram um sentimento de medo que ainda hoje perdura).

Recorde-se, neste ponto, que a gravidade dos factos foi de tal ordem que a ofendida passou pelo desespero de querer suicidar-se. O intento de se suicidar é, evidentemente, demonstrativo do nível de sofrimento emocional e psicológico sentidos pela ofendida durante todos estes anos, pois apenas uma pessoa em grande desespero vê no “fim da vida” a única solução para parar com esse sofrimento tão profundo.

Perante os danos causados – os quais são graves, atentas as consequências físicas e psicológicas com que a ofendida ficou -, atendendo ao grau de culpabilidade do demandado, que se revela muito elevado, considerando as circunstâncias em que os factos ocorreram e que se mostram plasmados na factualidade que se deu como provada, ao período de tempo em que os maus tratos físicos e psíquicos infligidos na demandante se prolongaram, às consequências que o seu ato provocou e atendendo às condições económicas do arguido, entende o tribunal que a indemnização a atribuir não deve ser insignificante, sob pena de se tirar todo o sentido ao sofrimento desta ofendida, e que marcou a maior parte da sua vida e condicionou o desenrolar da mesma (desenvolvendo-se contra a sua real vontade e autonomia).

Por tais motivos, o tribunal considera justo e adequado o valor indemnizatório de € 25.000,00 a título de reparação pelos prejuízos sofridos (o que corresponde a um valor equivalente e estimado de € 550,00 por cada ano de sofrimento passado pela ofendida).

Vide, a este respeito, as indemnizações que foram fixadas nos seguintes arestos, atentos os concretos factos, períodos de tempo que perduraram e consequências que implicaram para a vida das respetivas vítimas: Ac. do TRP, proc. n.º 289/21.1GAVLG.P1, de 09-11-2022; Ac. do TRE, proc. n.º 828/15.7T9STR.E1, de 20-12-2018; Ac. do STJ, proc. n.º 156/16.0PALSB.L1.S1, de 02-05-2018,

No caso em apreço, não sendo questionada a verificação, em concreto, dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual - aliás demonstrados por forma inequívoca – importa apenas sindicar do montante arbitrado pelo tribunal de primeira instância a título de danos não patrimoniais.

Os danos que resultaram provados revestem a natureza de danos não patrimoniais e consistem essencialmente nas consequências decorrentes da violação de direitos fundamentais da pessoa humana, mais precisamente o direito à integridade física e psicológica, à honra e a liberdade de determinação da ofendida, cfr. artigos 25º e 26º, nº 1da CRP e artigo 70º do C. Civil.

No que se refere a este tipo de danos, inexiste quanto a eles uma verdadeira indemnização. Há antes a atribuição de certa soma pecuniária julgada adequada a compensar as dores e os sofrimentos através do proporcionar de um dado número de alegrias ou satisfações que as minorem ou façam esquecer, cfr. A. Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. 1, pág. 481 e segs.

Nem todos os danos não patrimoniais são indemnizáveis, mas apenas aqueles que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito. Assim, conforme tem sido defendido uniformemente pela jurisprudência, os simples incómodos não são indemnizáveis.

Sucede que o arguido, em consequência das suas comprovadas condutas para com a ofendida, incorreu na prática de um crime de violência doméstica, pelo que obviamente não estão em causa simples incómodos, mas antes a “proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”12. Aliás, não será por mero acaso que o artigo 21º da Lei nº 112/2009, de 16.09 prevê a reparação oficiosa obrigatória dos danos causados13.Com diz Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed., pág. 245 “As únicas condições da reparação oficiosa da vítima são a prova de danos causados à vítima, a condenação do arguido pelo crime imputado e não oposição da vítima à reparação.”

Acresce dizer, como foi salientado pelo STJ no Ac. de 02.05.2018, processo 156/16.0PALSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt “A reparação” a que se refere o artigo 82.º-A do CPP situa-se, assim, numa zona de interceção de fronteiras do direito civil e do direito penal, visando efeitos de natureza penal – contribuindo para a realização dos fins das penas, em particular pelo seu efeito ressocializador, que obriga o autor a enfrentar as consequências do crime e a reconhecer os interesses da vítima (ROXIN, apud “A Suspensão Parcial da Pena de Prisão e a Reparação do Dano”, J. A. Vaz Carreto, Almedina, 2017, nota 251) – através da compensação da vítima pelos danos causados. Daí que, como de há muito se vem sublinhando na jurisprudência deste Tribunal (ainda que a propósito da suspensão da execução da pena de prisão), se deva considerar que a “reparação não constitui uma verdadeira indemnização, mas uma compensação destinada principalmente ao reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena e dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo nomeadamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafática das expectativas comunitárias”, o que justifica “que o montante arbitrado não tenha de corresponder ao que resultaria da fixação da indemnização segundo os critérios estabelecidos na lei para a responsabilidade civil e para a obrigação de indemnizar (artigos 483.º e segs. e 562.º e segs. do Código Civil” (acórdão de 11.6.1997, Coletânea de Jurisprudência, acórdãos do STJ, ano V, T. 2, pp. 226ss).”

Como se refere no Ac. RP de 28.10.2021, processo 411/19.0GAVNF.P1, disponível em www.dgsi.pt “..a responsabilidade civil em causa, de natureza compensatória (sem os critérios de reparação estabelecidos para o ressarcimento de danos patrimoniais), reveste-se de uma função punitiva”. Acerca da função punitiva dos danos não patrimoniais, vide, em especial na doutrina, Paula Meira Lourenço, A Função Punitiva da Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 2006.

No caso vertente, a integridade física e psicológica, a honra e a liberdade de determinação, bem assim o direito ao salário ( o arguido geria o salário da assistente como empregada doméstica e impediu-a de fazer descontos para a Segurança Social) da ofendida são direitos fundamentais que, por terem sido atingidos pelo arguido por forma reiterada, prolongada no tempo e grave, afetaram, de forma grave, a ofendida enquanto ser humano, razão porque o seu titular deve ser compensado, diga-se, por forma condigna.

“O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º...”, cfr. artigo 496º, nº 4 do C. Civil.

As circunstâncias referidas no artigo 494º do C.Civil para a fixação do montante da indemnização são: o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias entre as quais está a gravidade da lesão (Vide Vaz Serra, RLJ, 113º-96).

Segundo o recorrente, “em situações idênticas, os Tribunais não têm fixado valores tão elevados ou que, sequer, se aproximem do que aqui foi fixado (entre outros, Ac. STJ de 02/05/2018 – Proc. 156/16.0PALSB.L1.S1; Relator: Lopes da Mota LOPES DA MOTA; Ac. Rel. Porto de 28/10/2021; Proc 11/19.0GAVNF.P1; Relator: João Pedro Nunes Maldonado; Ac. Rel. Coimbra de 11/05/2016. Proc. 94/12.6GAACB.C2; Relator Luís Ramos)”.

A verdade, porém, é que as situações objeto dos arestos citados pelo recorrente não são idênticas ao caso aqui em apreciação.

Acresce que, e no essencial, subscrevemos as considerações efetuadas na sentença recorrida, no excerto acima transcrito, relativamente à quantificação da reparação que é devida à vítima, a aqui assistente, pelo que, por fastidioso, nos escusamos aqui de reproduzi-las.

Assim, tudo ponderado, designadamente a gravidade das ofensas e da culpa, bem assim os elementos disponíveis sobre as condições económicas do arguido e da assistente, sem esquecer os critérios seguidos pelos tribunais superiores nesta matéria, considerados ser adequado o montante de vinte e cinco mil euros, fixado na primeira instância, para compensar a assistente pelos danos não patrimoniais que lhe foram causados pelo arguido.”

2. De Direito

a. Dispõe a al. f) do n.º 1, do artigo 400.º do CPP que não é admissível recurso “De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

Por outro lado, determina a al. b), do n.º 1, do art. 432.º, do CPP, que se recorre para o Supremo Tribunal de Justiça “De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.

Não é, pois, recorrível uma decisão da Relação, em recurso, relativamente a todos os crimes cuja pena não seja superior 8 anos, desde que se verifique “dupla conforme”, como é o caso.

Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal, de 10.03.2021, no Proc. 330/19.8GBPVL.G1.S1, (Rel. Nuno Gonçalves) “Irrecorribilidade que é extensiva a todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a fixação da matéria de facto, nulidades, os vícios lógicos da decisão, o princípio in dubio pro reo, a qualificação jurídica dos factos, a escolha das penas e a respetiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais, referentes à aplicação do direito, conhecidas e confirmadas pelo acórdão da Relação, contanto a pena aplicada, parcelar ou conjunta, não seja superior a 8 anos de prisão”.

Trata-se de jurisprudência uniforme destes Supremo Tribunal1 que respeita a garantia do direito ao recurso do arguido, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República.

No presente caso, como vimos, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães confirmou, integramente, a decisão proferida na 1.ª instância, verificando-se dupla conforme quanto à pena e à reparação arbitrada.

b. Estabelecem os n.ºs 2 e 3 do art. 400.º do CPP:

“2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.”

Vejamos, então, se se verificam os requisitos de admissibilidade do presente recurso, interposto, apenas, da parte da sentença relativa à indemnização civil.

O art. 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16.09, que aprovou o Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, dispõe, no n.º 2, que “para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

Por sua vez, o art. 82.º-A, do CPP prevê que:

“1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”

c. Entendeu, já, este Tribunal, em interpretação que perfilhamos, que a definição oficiosa de reparação, nos termos do art. 82.º-A do CPP, se inclui nas consequências de natureza penal, como efeito penal da condenação, distinguindo-se “das consequências de natureza civil que geram o dever de indemnizar pela prática de facto ilícito, nos termos das disposições aplicáveis do Código Civil e do artigo 129.º do Código Penal, dependente de pedido do lesado”2.

“A caracterização e conteúdo desta “reparação”, de natureza pecuniária, sem se confundir com a indemnização civil, remete, porém, como antes se sublinhou, para conceitos que lhe são próprios, nomeadamente quanto ao “dano” ou “prejuízos”, mas já não quanto à “quantia” a fixar, a qual, como antes se afirmou (supra, 11) não tem que coincidir com o montante da indemnização.”

Natureza em tudo idêntica à que assumia a indemnização de perdas e danos emergentes de crime, antes do CP de 1982.3

O arbitramento oficioso da indemnização constituía, então, uma consequência jurídica do crime “que não se identificava com a indemnização civil, quer nos fins, quer nos fundamentos, nem tinha que coincidir com o seu montante, sendo aquele determinado de acordo com o prudente arbítrio do julgador”.

Como resulta claramente do disposto no art. 129º. do CP, a indemnização de perdas e danos, ainda que emergente de crime, não é um efeito penal da condenação (como sucedia no CP/1886 -art. 76., § 3.) para passar a ser regulada pela lei civil, “assumindo, pois, a natureza de uma obrigação civil em sentido técnico, nos termos do art. 397º., do Código Civil, com o seu regime específico”4.

Na verdade, o artigo 129º, do Código Penal dispõe expressamente: "A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.

É essa natureza de ação civil no processo penal que justifica que, ainda que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, possa ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil e que encontra critérios de admissibilidade idênticos aos definidos pelo CPC.

Como se diz em Acórdão deste Tribunal, de 07-12-20225 “Assim, atualmente, permite-se que, verificado o condicionalismo do n.º 2 do art. 400.º do CPP, se possa recorrer da parte da sentença relativa à indemnização civil quando não é admissível recurso penal à luz do n.º 1 do mesmo art. 400.º. Porém, uma vez que a ação cível se autonomiza dos destinos da causa penal e se pretende uma igualação com o regime de recursos da ação cível, é agora pacífico, por força do disposto no art. 4.º do CPP, que são aqui aplicáveis os casos de inadmissibilidade de recurso previstos no CPC.”

d. A indemnização prevista no art. 82.º-A, do CPP, é arbitrada oficiosamente pelo Tribunal, apenas em caso de condenação, segundo o prudente critério do julgador, sem pedido, relacionando-se com os prejuízos sofridos (“uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos”), mas não, necessariamente, coincidente com o seu valor.

Não se trata de uma indemnização por perdas e danos, objeto de pedido, relativa, direta e exclusivamente, aos danos quantificados, mas de uma indemnização oficiosamente atribuída, a título de reparação pelos prejuízos sofridos.

Nas palavras de Germano Marques da Silva6 “A quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, prevista no art. 82.º-A do CPP, é atribuída oficiosamente a vítimas particularmente carecidas de protecção e, porque não se confunde com a indemnização civil pelos danos, é fixada a critério do julgador.

O obrigado ao pagamento da quantia arbitrada a título de reparação é o responsável penal pelo crime e não o responsável civil, embora, em caso de posterior acção que venha a conhecer do pedido civil de indemnização essa quantia deva ser tida em conta, sendo o obrigado civil, se diverso do agente do crime, obrigado a compensar este pelo pagamento feito, desde que deduzido no valor da indemnização dos danos emergentes do crime”.

Ou, para António H. Gaspar7: “Embora de modo mais limitado, a norma retoma a solução de arbitramento oficioso de reparação à vítima em processo penal, que constava no anterior regime do processo penal – artigo 34.º do CPP/29 e artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro”

Representando um assumido desvio relativamente ao princípio da adesão, carece o atual regime especial, previsto no art. 82.º-A do CPP, de definição própria de critérios de fixação.

À sua natureza híbrida, simultaneamente de efeito penal da condenação e de aproximação reparatória aos prejuízos sofridos, corresponde um regime adjetivo próprio, desligado do processo civil, cujas normas apenas se aplicarão, por efeito da cláusula geral de subsidiariedade do art. 4.º do CPP (como será o caso, dos critérios de fixação da quantia).

O art. 400.º, n.º 2 estabelece dois requisitos, de verificação cumulativa, de admissibilidade de recurso: que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

Afigura-se-nos não ser permitida, pela letra da lei, uma interpretação da norma que atenda, apenas, a um dos critérios (no caso o 2.º), em razão da impossibilidade de se verificar o 1.º, dada a inexistência de pedido.

Os requisitos de admissibilidade de recurso, no caso de reparação arbitrada ao abrigo do disposto no art. 82.º-A, não estarão no plano do recurso da parte da sentença relativa à indenização civil, decidida em ação civil no processo penal; situar-se-ão, antes, no domínio das regras de admissibilidade do recurso penal a que se refere a al. f), do n.º 1, do art. 400.º do CPP.

e. De todo o modo, mesmo que assim se não considerasse, a dupla conforme estende-se, no caso, à parte indemnizatória da sentença.

Com efeito, é evidente a existência da dupla conforme consagrada no n.º 3 do art.671.º, do C.P.C., que impede a admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Efetivamente, o acórdão do Tribunal da Relação confirmou a decisão de 1.ª instância, sem voto de vencido e com fundamentação substancialmente idêntica, como resulta dos segmentos transcritos, quando reapreciou a questão do pedido de redução dos valores de indemnização cível que lhe havia sido colocada.

Em conformidade com o que vem de se expor, impõe-se, em qualquer dos casos, concluir pela inadmissibilidade do recurso na parte cível, por irrecorribilidade da decisão e consequente rejeição do seu conhecimento.

É, pois, de rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. f), 420º n.º 1 al. b) 417º n.º 6, todos do CPP e, também, do n.º 3 do art.671.º, do C.P.C.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em

- Rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. f), 420º n.º 1 al. b) 417º n.º 6, todos do CPP e, também, do n.º 3 do art.671.º, do C.P.C.

Condenar o recorrente em custas, fixando em 4 UC a taxa de justiça.

Lisboa, 13 de março de 2024

Teresa de Almeida (Relatora)

Ana Maria Barata de Brito (1.ª Adjunta)

Lopes da Mota (2.º Adjunto)

___________________




1. Entre outros, Acórdãos de 19.02.2014, no Proc. 9/12.1SOLSB.S2 (Rel. Oliveira Mendes), de 21.06.2017, no Proc. 585/15.7PALGS.E1.S1 (Rel. Manuel Augusto de Matos), de 19.06.2019, no Proc. 881/16.6JAPRT-A.P1.S1 (Rel. Pires da Graça), de 04.07.2019, no Proc. 461/17.9GABRR.L1.S1 (Rel. Mário Belo Morgado), de 02.06,2022, no Proc. 6/16.8ZCLSB.L1.S1 (Rel. Maria do Carmo Silva Dias) e de 06.10.2022, no proc. 79/21.1GBPTM.E1.S1, da ora relatora..

2. Ac. deste Tribunal e desta Secção, de 02.05.2018, no Proc. 156/16.0PALSB.L1.S1, Rel Lopes da Mota.

3. Ver AFJ n.º 1/2013, DR 1.ª série, de 7 de janeiro de 2013, Rel. Pires da Graça, que seguimos neste ponto.

4. AFJ n.º 1/2013, cit..

5. No Proc. n.º 406/21.1JAPDL.L1.S1, Rel. Orlando Gonçalves.

6. Direito Penal Português, Parte Geral – III – Teoria das penas e das medidas de segurança, Verbo, 1999, n.º 305, págs. 189/190.

7. In Código de Processo Penal comentado, António Henriques Gaspar et alii, Almedina, 4.ª edição revista, pág. 241.