Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2334/06.1TBALM.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: TESTAMENTO
LEGADO
ENCARGO DA HERANÇA
CONDIÇÃO SUSPENSIVA
CONDIÇÃO POTESTATIVA
INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :


I - A cláusula testamentária pela qual M incumbiu quem quer que ficasse como herdeiro efectivo de dar à autora a quantia de 3 000 000$00 se esta se encontrasse ao seu serviço à data da sua morte, constitui um legado, a favor da autora, sujeito a uma condição suspensiva potestativa não arbitrária a parte creditoris, pois é manifesto que os actos materiais exigidos a esta para a verificação do evento condicionante não se resumem a um puro querer e assumem forte gravidade e relevância, sendo caracterizados por um grau de dificuldade e sacrifício que poderia fazer oscilar a vontade da autora, de cujos serviços a testadora continuava a sentir necessidade.
II - É esta a interpretação da vontade da testadora, que tem de ser observada por inexistir qualquer motivo de nulidade (arts. 2179.º e segs. do CC) e a que se chega com base nos critérios consagrados no art. 2187.º do mesmo diploma, segundo o qual, “na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do documento” (n.º 1) e “é admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa” (n.º 2).
III - A determinação da intenção do testador vem sendo pacificamente considerada pela jurisprudência como matéria de facto. Por isso, não pode a decisão das instâncias sobre tal matéria ser sindicada pelo STJ (arts. 729.º, n.º 2, e 722.º, n.º 2, do CPC), salvo se os demais factos provados com base na prova complementar legalmente admitida mostrarem que o sentido interpretativo a que chegaram as instâncias não é o mais ajustado com a vontade do testador e, por o testamento ser um acto jurídico formal (arts. 2204.º e segs. do CC), se esta vontade não tiver no texto respectivo um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.
IV - Dos demais factos provados não resulta, de forma alguma, que o sentido interpretativo a que as instâncias chegaram não seja o mais ajustado à vontade da testadora, antes se podendo concluir pelo acerto da interpretação sobre a vontade da testadora, no sentido de que esta pretendia fixar tal cláusula concedendo à autora determinada quantia se esta se decidisse por se manter ao seu serviço até à data do óbito dela testadora e concretizasse tal intenção, ou só não a concretizasse por força de factores estranhos, interpretação que tem correspondência no texto do testamento.
V - Encontra-se provado que a ré, que ficaria prejudicada pela verificação da condição por, sendo ela a herdeira da testadora, ter de dar cumprimento ao legado à autora, impediu a verificação da condição, convertendo em definitivo, contra vontade da testadora, que a ré não demonstrou encontrar-se incapaz de tomar as suas próprias decisões, o internamento desta num lar – internamento este de que tomou a iniciativa e que devia ser meramente temporário, destinado a durar apenas durante o mês de férias da autora –, dispensando os serviços desta e ordenando-lhe que abandonasse a casa da testadora, em que a autora vivia desde os catorze anos de idade, e comunicando-lhe que deveria contactar com a advogada dela ré a fim de assinar um documento e acertar as contas, apesar de a testadora não a ter despedido nem sequer ter conhecimento de que a ré a dispensara, proibindo-a de esclarecer tais factos à testadora e nem sequer lhe comunicando as mudanças de lar em que esta se encontrava internada apesar de saber do apreço da testadora pela autora.
VI - Considerando a dispensa, pela ré, dos serviços da autora logo que esta regressou de férias, quando a testadora tinha possibilidade de ter plena percepção do que acontecia, a falta de comunicação à autora das mudanças de lar, apesar das visitas que esta fazia à testadora, e a proibição à autora de contar à testadora os factos respeitantes à dispensa de serviços pela ré decretada e à conversão do internamento em definitivo, quando a vontade da testadora, que a ré assim desrespeitou, era a de regressar a sua casa, cumpre concluir que o impedimento da verificação da condição foi feito de má fé.
VII - Dispondo o art. 275.º, n.º 2, do CC que “se a verificação da condição for impedida, contra as regras da boa fé, por aquele a quem prejudica, tem-se por verificada (...)”, tem de se dar como verificada a dita condição, subsistindo em consequência a obrigação da ré de dar cumprimento ao legado feito pela testadora à autora, obrigação esta resultante também do disposto no art. 2068.º do CC.
Decisão Texto Integral: *
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA instaurou em 07/04/2006 acção contra BB, pedindo que se reconhecesse o direito dela autora ao cumprimento de um encargo testamentário, e se condenasse a ré a reconhecer esse seu direito e a cumprir tal encargo, entregando-lhe a quantia de 14.963,94 euros, livre de impostos, bem como a pagar-lhe, a título de indemnização, os respectivos juros legais de mora contados desde a data de falecimento da testadora até integral cumprimento da obrigação (liquidando os já vencidos em 2.501,24 euros), e a quantia de 5.000,00 euros a título de danos morais.

Alega a autora, para o efeito e em síntese, ter sido admitida em Outubro de 1946, com catorze anos de idade, como empregada interna de CC, cunhada da ré, ao serviço da qual se manteve até Setembro de 1999, sempre a servindo de forma dedicada, e sendo tratada como se fizesse parte da família;

mais invocou que, em 1999, não podendo CC ficar sozinha durante o seu próprio período anual de férias, de um mês, aceitou aquela ser temporariamente internada pela aqui ré num Lar, vindo depois a aqui autora a ser surpreendida quando, no seu regresso, a ré lhe comunicou que aquele internamento se tornara definitivo, não sendo mais necessários os seus serviços;

intimou-a, por isso, a ré, a retirar de casa de CC todos os seus bens, bem como a procurar a advogada que então lhe indicou, para fazer as suas contas;

invocou ainda a autora não se ter despedido, tendo sido dispensada pela ré, ignorando ainda CC esse facto, permanecendo convicta de que regressaria a casa, e de que ela própria ali se mantinha, ao seu serviço, cuidando das suas coisas, jamais lhe tendo contado a verdade, nas visitas regulares que lhe foi fazendo até à sua morte (ocorrida em 14 de Agosto de 2002), uma vez que a Ré lho tinha proibido;

contudo, tendo CC feito testamento, no 20° Cartório Notarial de Lisboa, instituindo como seus únicos e universais herdeiros o irmão e a mulher deste, aqui ré (ou as duas filhas do casal, caso nenhum dos dois lhe sobrevivesse), e onerado os seus herdeiros com o encargo de lhe darem a quantia de Esc. 3.000.000$00, livre de impostos, se ainda se encontrasse ao seu serviço, não foi o mesmo cumprido pela ré, já viúva, sendo certo que apenas a ela seria imputável a circunstância de já não se encontrar a servir CC, à data do seu decesso;

segundo a autora, esta pretendia com tal legado recompensá-la pela lealdade, dedicação e amizade que sempre demonstrara para com ela, e ampará-la na velhice, evitando-lhe necessidades por que viesse a passar, já que não teria outro rendimento que não fosse a sua reduzida reforma;

por fim, alegou a autora que a ré interrompeu de forma abrupta as relações entre ela própria e CC, privando-a do emprego e da casa que sempre conhecera desde os catorze anos, e impedindo-a de o contar àquela, causando-lhe dessa forma tristeza e dor, bem como tristeza e angústia por ver o sofrimento de CC (ao se ver afastada dela própria e da sua casa), vivendo hoje com grandes dificuldades, incluindo privações de alimentação e de vestuário.

Regularmente citada, a ré apresentou contestação pedindo que se julgasse procedente a excepção de não verificação da condição suspensiva de que dependia o legado testamentário, sendo por isso a acção julgada improcedente, e se julgasse de idêntica forma a mesma, por não provada, sendo ela própria absolvida de todos os pedidos formulados pela autora.

Alegou para o efeito, também em síntese, ter o legado em causa ficado sujeito à condição suspensiva de a aqui autora se encontrar ao serviço da testadora à data da sua morte, ocorrida em 14 de Agosto de 2002, sendo que aquela cessara toda a sua actividade ao serviço de CC em 20 de Setembro de 1999 por força de um acordo de cessação de contrato de trabalho celebrado entre ambas;

mais invocou que a testadora nunca teve qualquer das intenções que lhe foram imputadas pela autora, estando a sua vontade claramente plasmada no texto do testamento em causa, insusceptível de outras interpretações;

a ré impugnou ainda muitos dos demais factos articulados pela autora, afirmando nomeadamente que desde 1998 CC não podia ficar sozinha em casa, nem mesmo apenas com a autora, como aliás a mesma referia (por não ter condições físicas, nem conhecimentos técnicos para lhe prestar os cuidados de saúde de que a testadora necessitava), tendo cabido ao seu marido a decisão de internar a irmã;

mais invocou a ré ter a rescisão do contrato de trabalho de serviço doméstico sido assinada livremente quer por CC, quer pela autora (que recebeu então o valor que lhe era legalmente devido), tendo a assinatura desta última sido reconhecida presencialmente no 22° Cartório Notarial de Lisboa, em 20 de Setembro de 1999, sem prejuízo da caducidade de tal contrato à data em que CC entrara no Lar, nos termos do art.º 28°, al. b), do Dec. - Lei n.° 235/92, de 24 de Outubro;

relativamente aos juros de mora impetrados pela autora, a ré defendeu que, não lhe reconhecendo qualquer direito ao legado em causa, não existiria mora no seu cumprimento, só se tornando aquele exigível mediante decisão judicial que o reconhecesse, pelos que os ditos juros só seriam devidos desde o trânsito em julgado da eventual decisão que o determinasse;

por fim, a ré alegou que, não estando em causa a prática de qualquer facto ilícito, não existiria o direito a indemnização por danos morais, sendo que nas obrigações pecuniárias, - única aqui em causa -, a indemnização corresponderia aos juros a contar do dia da constituição em mora, nos termos do art.º 806° do C.C. (pelo que, para além destes, não haveria lugar a qualquer indemnização suplementar).

A autora replicou, rebatendo a matéria de excepção deduzida pela ré, e reiterando o pedido inicial de condenação desta.

Alegou para o efeito, sempre em síntese, não se encontrar ao serviço da testadora, CC, à data da sua morte, não por vontade dela, nem por vontade sua, mas sim por vontade da aqui ré;

entende a autora que, tendo a ré impedido a verificação daquela condição suspensiva potestativa, deveriam operar-se os seus efeitos, mantendo-se válido e eficaz o legado em causa.

Realizou-se audiência preliminar, no decurso da qual foi a autora notificada, com base no disposto no art.º 508º, n.º 1, al. c), do Cód. Proc. Civil, para esclarecer em que condições havia sido celebrado o dito acordo de cessação de contrato de trabalho, tendo ela vindo referir que não tivera qualquer intervenção na redacção do documento de que esse intitulado acordo consta, que não leu quando lhe foi apresentado para o assinar e de que nem sequer lhe fora entregue qualquer cópia para prévia análise, não tendo por outro lado assistido à sua assinatura pela testadora nem recordando se a assinatura desta se encontraria no documento quando ela autora o assinou.

Não se tendo obtido conciliação, foi proferido despacho saneador que decidiu não haver excepções dilatórias nem nulidades secundárias, ao que se seguiu a enumeração da matéria de facto desde logo dada por assente e a elaboração da base instrutória, que não foram alvo de reclamações.

Oportunamente teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo sido dada resposta sobre a matéria de facto sujeita a instrução, conforme despacho de fls. 220 a 235.

Foi depois proferida sentença, datada de 15/12/07 (fls. 239 a 277) tendo sido decidido o seguinte:

«Julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, decido:

Reconhecer o direito da autora, AA, ao cumprimento do legado de Esc. 3.000.000$00 (três milhões de escudos), isto é, de 14.963,94 euros (catorze mil, novecentos e sessenta e três euros, e noventa e quatro cêntimos), livres de impostos, instituído a seu favor por CC, no testamento público que outorgou em 09 de Fevereiro de 1993, no 20° Cartório Notarial de Lisboa;

Condenar a ré, BB, a reconhecer o direito da autora referido na alínea anterior, cumprindo o dito legado, entregando para o efeito àquela a quantia de € 14.963,94 (catorze mil, novecentos e sessenta e três euros, e noventa e quatro cêntimos), livre de impostos;

Condenar a ré a pagar à autora a quantia correspondente aos juros de mora, vencidos e vincendos, calculados sobre a quantia de 14.963,94 euros (catorze mil, novecentos e sessenta e três euros, e noventa e quatro cêntimos), à taxa supletiva legal de 4% ao ano, contados desde 05 de Abril de 2004 até efectivo e integral pagamento;

Condenar a ré a pagar à autora a quantia de 3.500,00 euros (três mil, quinhentos euros, e zero cêntimos), a título de indemnização por danos não patrimoniais;

Absolver a Ré do demais peticionado contra si pela Autora.»

A Ré interpôs recurso, sem êxito, uma vez que a Relação negou provimento à apelação e confirmou a sentença ali recorrida, com base nos seguintes factos que considerou assentes:

1º - AA, aqui autora, esteve ao serviço de CC, como empregada doméstica interna, até Setembro de 1999.

2º - Durante 53 anos, a autora não teve vida própria, tendo dedicado toda a sua energia, tempo, empenho, atenção e cuidados a CC, e à casa desta, sita na Av. .................. andar esquerdo, freguesia de S. Sebastião, concelho de Lisboa.

3º - A autora era dedicada para com CC, depositava empenho nas tarefas que efectuava, e nunca constituiu a sua própria família, nem adquiriu casa própria, nem constituiu lar próprio.

4º - CC sempre tratou a autora com respeito e amizade, consentâneos com o facto de a ter recebido em sua casa com cerca de catorze anos de idade.

5º - A autora sempre se sentiu como se quase fizesse parte da família de CC, dada a proximidade que se foi criando entre ambas, por ter ido para sua casa trabalhar com catorze anos de idade, como empregada interna, nunca tendo conhecido outra casa, ou outros patrões.

6º - A autora, mais do que uma serviçal, foi a companhia de todos os dias, uma amiga sempre presente, uma vez que a CC permaneceu sem filhos até ao seu decesso.

7º - Em data que a autora não consegue precisar, CC confidenciou-lhe que iria providenciar pelo seu futuro, para quando ela própria já cá não estivesse.

8º - CC dispôs, em 09 de Fevereiro de 1993, do seu património, para depois da morte, através de testamento lavrado no 20° Cartório Notarial de Lisboa, de fls. 18 a 19 do livro de notas para testamentos públicos e escrituras de revogação de testamentos número 65T, conforme documento que é fls. 40 a 42 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, e onde nomeadamente se lê:

«Que não tem descendentes nem ascendentes vivos e por isso institui únicos herdeiros o seu irmão Eng. HH e mulher BB e se nenhum deles lhe sobreviver institui únicos herdeiros as suas sobrinhas, filhas daquele seu irmão e cunhada,DD e EE

Qualquer dos instituídos herdeiros fica com o encargo de dar a quantia de três milhões de escudos, livres de impostos, à sua empregada doméstica AA, se ela ainda estiver ao seu serviço à data do seu falecimento.

Mais declarou a testadora que revoga quaisquer disposições testamentárias anteriores.

Assim o disse e outorgou, (..,)».

9º - Ao condicionar a entrega dos três milhões de escudos, livres de impostos, à permanência da autora ao seu serviço, CC pretendeu salvaguardar uma situação de ruptura entre ambas, ou até de abandono por parte da autora.

10º - CC, ao determinar a entrega de três milhões de escudos, livres de impostos, à autora, queria recompensá-la por ter estado ao seu lado durante quase toda a vida, e dar-lhe algum apoio económico na velhice.

11º - CC quis retribuir a lealdade, dedicação e amizade que a autora sempre demonstrou para com ela.

12º - CC quis amparar a autora na sua velhice, consciente que a mesma, de origem humilde, após a sua morte não teria outro rendimento que não uma reduzida reforma.

13º - CC pretendeu evitar eventuais necessidades por que a autora viesse a passar.

14º - Nos últimos anos da sua vida, CC, dada a sua idade avançada, e inerente dificuldade de movimentos, dependia da ajuda e auxílio permanente da autora.

15º - A situação referida no facto anterior agravou-se durante o ano de 1999, de tal forma que CC já não podia ficar sozinha.

16º - A partir de determinada altura, dada a sua avançada idade, CC não podia ficar sozinha, existindo ocasiões — v. g., quedas — em que nem sequer o podia fazer acompanhada apenas pela autora.

17º - A autora, por muito boa vontade que tivesse, já se vinha queixando que não tinha capacidade, forças físicas ou, nalgumas áreas, competência, para continuar a cuidar sozinha de CC.

18º - A autora declarava que não podia continuar a tomar conta sozinha de CC.

19º - A autora, que não era nova, queixava-se à ré de que, sozinha, já não tinha forças físicas para tratar de CC, que era muito peso, que não a conseguia levantar sozinha em caso de queda.

20º - A autora não tinha qualquer preparação de enfermagem ou de geriatria, nunca tendo sido preparada para prestar cuidados desta natureza, tendo porém CC irrepreensivelmente tratada e cuidada até Agosto de 1999.

21º - CC, em Setembro de 1999, tinha necessidade de cuidados médicos regulares, sendo visitada por um médico amigo da família pelo menos semanalmente.

22º - Em Agosto de 1999, e para fazer face à ausência de um mês da autora durante o respectivo período de férias, CC foi internada num Lar sito na zona de São Sebastião da Pedreira, internamento que foi promovido pela ré e pelo então seu marido, irmão daquela.

23º - Tratava-se de uma situação temporária, apenas para preencher a ausência da autora durante o seu período de férias, visto a ré não se encontrar disponível para cuidar dela.

24º - CC não queria deixar a sua casa, e só o fez por saber que não podia aí permanecer sem o auxílio da autora, e tinha consciência que seria difícil encontrar alguém que a substituísse.

25º - CC não queria deixar a sua casa, tendo aceite ser internada num lar em Agosto de 1999 apenas por estar convicta de que esse internamento duraria tão só as férias mensais da autora, por esta não ter conseguido encontrar quem a substituísse nesse período.

26º - Inicialmente CC foi colocada num lar, em S. Sebastião da Pedreira, mas imediatamente foi verificado que este lar não tinha ambiente e não oferecia quaisquer condições para ali se manter.

27º - Após a permanência no Lar de São Sebastião da Pedreira, CC foi internada num Lar na zona do Restelo, ficando este próximo da casa do seu irmão.

28º - Posteriormente, o Lar do Restelo encerrou e, por isso, CC foi transferida para um Lar em Cascais, explorado pela mesma entidade proprietária daquele outro.

29º - Desde 04 de Agosto de 1999 até 14 de Agosto de 2002, CC esteve num lar sito em S. Sebastião, tendo sido depois transferida para um lar sito no Restelo, e depois ainda para um outro, sito em Cascais.

30º - Nesse mesmo Lar, em Cascais, foi posteriormente internado o marido da ré.

31º - Quando a autora regressou de férias, retornou a casa de CC, tendo-lhe a ré transmitido que esta já não precisava dos seus cuidados, e que iria permanecer no lar onde se encontrava.

32º - A ré informou ainda a autora que deveria dirigir-se à sua advogada, para fazer as contas.

33º - A autora tinha conhecimento da relutância de CC em deixar a sua casa.

34º - Após o regresso de férias da autora, a ré disse-lhe que CC já não mandava, e que agora era ela quem estava encarregue de tudo.

35º - A ré transmitiu à autora que teria de deixar a casa de CC.

36º - Desde os catorze anos de idade e até Agosto de 1999, a autora sempre tinha vivido na casa de CC, e não tinha qualquer casa própria, adquirida ou arrendada.

37º - A autora saiu da casa de CC para casa de sua irmã FF, no Laranjeiro, em Almada.

38º - No decurso do mês de Setembro de 1999, a autora recebeu instruções da ré para, em dia que já não recorda mas aceita como tendo sido o dia 20 de Setembro de 1999, ir ao escritório de GG à data advogada daquela, sito na Avenida .................... Esq., em Lisboa, para acertar “as contas”.

39º - Mercê do referido no facto anterior, a autora deslocou-se no dia

20 de Setembro de 1999 ao escritório da Dra. GG.

40º - Na ocasião referida no facto anterior, a Dra. GG informou a autora que estava dispensada de trabalhar para CC, e que teria a receber determinada quantia.

41º - Na ocasião referida no facto anterior, a Dra. GG informou a autora da necessidade de assinar, e reconhecer em Cartório, a respectiva assinatura num documento.

42º - A Autora foi, no mesmo dia, ao Cartório, acompanhada pela Dra. GG, para assinar o documento reproduzido no facto seguinte, que crê ter sido por esta redigido.

43º - A aqui autora apôs a sua assinatura em frente da menção impressa «A SEGUNDA CONTRATANTE», no original do documento cuja cópia é fls. 61 dos autos, epigrafado «ACORDO DE CESSAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO», em que surge identificada como «A PRIMEIRA CONTRATANTE» CC, datado de 20 de Setembro de 1999, documento que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde nomeadamente se lê: «(...) É estabelecido e reciprocamente aceite o presente acordo de cessação do contrato de trabalho nos termos das cláusulas seguintes:

1ª - As contratantes acordam pôr termo com efeitos a partir da presente data ao contrato de trabalho de serviço doméstico prestado pela 2ª à 1ª contratante na residência desta sita na Av. ...................., Esq., em Lisboa.

2ª - Pelo presente acordo é estabelecida a compensação pecuniária global pela cessação do contrato de serviço doméstico na quantia de Esc. 676.820S00 (seiscentos e setenta e seis mil, oitocentos e vinte escudos) a pagar pela primeira à segunda contratante, através do cheque n.° 00000000, sacado sobre o Barclays BanK.

3ª - Esta quantia liquida todos os créditos vencidos e vincendos com a referida cessação, que foi celebrada ao abrigo do disposto nos artigos 7º do Dec. – Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, e 27º do D.L. n.º 235/92, de 24 de Outubro.

Lisboa, 20 de Setembro de 1999

A PRIMEIRA CONTRATANTE:

A SEGUNDA CONTRATANTE: (...)»

44º - No documento reproduzido no facto anterior encontra-se, em frente da menção impressa «A PRIMEIRA CONTRATANTE», uma assinatura manuscrita, lendo-se CC.

45º - A autora não assistiu a CC assinar qualquer documento.

46º - A autora não teve qualquer intervenção na redacção do documento reproduzido no facto enunciado sob o número 43.

47º - A autora tem uma quase inexistente escolaridade, não lhe sendo inteligível qualquer texto com terminologia técnica, nomeadamente jurídica.

48º - À autora não foi fornecida qualquer cópia do documento reproduzido no facto enunciado sob o número 43, para análise, antes de proceder à respectiva assinatura, e não ficou com qualquer cópia após a assinatura.

49º - A assinatura manuscrita aposta pela aqui autora no documento reproduzido no facto enunciado sob o número 43 foi reconhecida notarialmente como pertencendo-lhe, uma vez que foi exarada pela própria no 22° Cartório Notarial de Lisboa no dia 20 de Setembro de 1999.

50º - A autora foi informada do local e do dia onde iria receber a quantia a que tinha direito, por já não trabalhar para CC.

51º - A autora limitou-se a seguir as instruções, nunca tendo questionado nada, sendo que, por ela, continuava disposta a estar ao serviço de CC.

52º - Mercê do documento reproduzido no facto enunciado sob o número 43, a autora recebeu o valor que legalmente lhe era devido, como compensação pecuniária global.

53º - A autora recebeu o cheque, no valor constante do documento reproduzido no facto enunciado sob o número 43, das mãos da ré, no lar do Restelo onde se encontrava CC.

54º - O cheque referido no facto anterior foi assinado e preenchido pela ré.

55º - O cheque foi entregue à autora, mas não na presença de CC.

56º - Nesse dia, CC e a autora não assinaram qualquer documento.

57º - CC não despediu a Autora, nem tão pouco teve conhecimento de a ré a ter dispensado.

58º - Se dependesse da vontade da autora e de CC, aquela teria estado ao serviço desta à data da sua morte.

59º - CC, ao longo do seus sucessivos internamentos em Lares, perguntou várias vezes à autora se esta tinha regressado de férias e se já estava em sua casa - dela, CC.

60º - Mercê do referido no facto anterior, a autora respondia afirmativamente, tendo a noção que mentia.

61º - CC, quando se despedia da autora, nos lares em que estava internada, e até morrer, dizia-lhe que aguardava que ela a viesse buscar para regressar a casa, e pedia-lhe que cuidasse da mesma para quando ela regressasse.

62º - CC esteve sempre convicta que a sua permanência no lar se tratava de uma situação temporária, e que a qualquer momento voltaria para a sua casa.

63º - No terceiro lar onde foi internada, sito em Cascais, CC sofria já de algum desequilíbrio psicológico, faltando-lhe a percepção do que se estava a passar.

64º - A autora visitou regularmente CC, em qualquer um dos lares onde ela esteve.

65º - A ré proibiu a autora de dizer a CC que tinha sido dispensada, por ela ré, e que já não estava na casa de Lisboa, dizendo-lhe que isso nada ia adiantar a CC, que ela só iria ficar mais triste, o que agravaria o seu estado de saúde.

66º - Em todas as visitas, CC perguntava à Autora como é que estava a sua “casinha”, se ela estava a tomar bem conta de tudo, e se era agora que a vinha buscar de volta para casa.

67º - Obedecendo às instruções da ré, a autora nunca contou a verdade a CC.

68º - Uma das empregadas do lar de Cascais disse à autora que CC perguntava constantemente por ela, e que de noite a chamava.

69º - CC sempre pensou que a autora continuava a morar na sua casa, e a zelar pela mesma, falando sempre como se a autora continuasse ao seu serviço.

70º - CC faleceu no dia 14 de Agosto de 2002, no estado de solteira (conforme assento de óbito que é fls. 38 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

71º - A mandatária da autora enviou à ré, que a recebeu em 04 de Abril de 2004, o original da carta cuja cópia é fls. 43 dos autos, datada de 29 de Março de 2004, que aqui se dá por integralmente reproduzida, e onde nomeadamente se lê:

a(...)

Assunto: Testamento Público outorgado por CC em 09/02/1993.

Exma. Senhora:

Represento os interesse da Sra. Dª AA, pessoa que esteve ao serviço da s/ falecida cunhada Sra. D.ª CC, por mais de cinquenta anos.

A D.ª AA teve agora conhecimento que foi beneficiada no testamento acima identificado e que é V. Exa., neste momento, de acordo com a classe dos sucessíveis da falecida, a pessoa encarregue de cumprir a deixa testamentária.

Neste pressuposto, agradeço que me informe se pretende cumprir voluntariamente a vontade da falecida D.ª CC e a forma como o pretende fazer.

(...)»

72º - A ré sabia do apreço de CC pela autora, e, depois de ter dispensado esta, não lhe comunicava as mudanças de lar daquela.

73º - Quando CC foi transferida de lar, a ré não comunicou tal facto à autora, a qual só tomou conhecimento da transferência quando se dirigiu ao antigo lar para lhe fazer uma visita.

74º - A interrupção da relação diária entre a autora e CC, nas circunstâncias em que ocorreu em Setembro de 1999, causou tristeza e dor à autora.

75º - A autora sentiu grande tristeza ao ver, e saber, que CC estava no Lar contra a sua vontade, quando podia ter continuado em casa, auxiliada por si e por terceiros.

76º - A autora bem sabia que CC sentia tristeza e angústia por estar afastada dela e da sua casa.

77º - A autora vive apenas com uma reforma mensal, no montante de 238,43 euros, e, como tal, teve dificuldade em encontrar uma casa para arrendar dentro das suas possibilidades.

78º - A autora vive com dificuldades económicas.

79º - A autora nasceu no dia 02 de Maio de 1932 (conforme registo de nascimento que é fls. 187 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida).

80º - HH casou com BB no dia 27 de Outubro de 1938, vindo esse casamento a ser dissolvido por óbito do cônjuge marido, ocorrido em 26 de Setembro de 2001 (conforme certidão de registo de casamento que é fls. 158 e 159 dos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzida).

É do acórdão que assim decidiu que vem interposta a presente revista, pela ré, que, em alegações, formulou as seguintes conclusões:

1ª – As presentes conclusões estão fundamentadas em tudo o que atrás se alega e só se compreendem em toda a sua extensão e alcance após a análise dos argumentos e fundamentos atrás expostos.

2ª - As alegações referem-se quase sempre à sentença recorrida, uma vez que o Acórdão da Relação fez sua a fundamentação da sentença, pelo que se deve considerar que as referências à sentença englobam a sentença e o Acórdão recorrido.

3ª - A decisão na presente acção tem de se basear exclusivamente nos factos dados como provados pelo Tribunal, uns considerados assentes na audiência preparatória e os restantes após a audiência de discussão e julgamento e respostas à base instrutória, factos que estão transcritos no início destas alegações.

4ª - A presente acção é julgada segundo o direito estrito, rejeitando-se completamente a apreciação da causa e o julgamento segundo a equidade.

5ª - O julgador está subordinado à aplicação das normas gerais e abstractas, não podendo deixar de aplicar a lei sob o pretexto de que a lei parece imoral ou injusta.

6ª - Não pode a decisão judicial invocar razões não jurídicas para se julgar procedente a acção.

7ª - Na presente acção, não pode ser aplicada a equidade, como se depreende de muitas expressões utilizadas ao longo da sentença recorrida, nem tão pouco são válidos argumentos éticos, mas antes aplicar-se a norma geral e abstracta que é a lei.

8ª - A equidade pretende ser a medida correctiva da justiça, considerando-se esta a resultante da aplicação do direito estrito.

9ª - A certeza do direito e a consequente segurança jurídica são os valores que se pretendem alcançar com a acção judicial e não se compadecem com considerações casuísticas e soluções particulares.

10ª - Esta certeza e segurança têm de assentar nos interesses sociais em jogo que só a norma geral e abstracta sabe definir e proteger.

11ª - As decisões tomadas sob a influência de circunstâncias estranhas à disciplina da lei conduzem ao arbítrio sob a forma enganadora da equidade.

12ª - A decisão assenta exclusivamente na matéria de facto dada como provada, não podendo o julgador socorrer-se de factos, considerações ou situações que não constam expressamente dessa matéria de facto, rejeitando-se as referências à fundamentação das respostas à base instrutória e a factos que, embora alegados, não estão incluídos na mesma matéria.

13ª - A resposta “não provado” não significa que se considere provado o facto contrário, mas apenas que essa matéria não pode ser considerada para nenhum efeito.

14ª - As considerações feitas pela sentença à actuação e personalidade da ré, ora recorrente, em contraste com a exaltação da A., podem ser válidas no direito criminal com vista à determinação da responsabilidade e na medida concreta da pena, mas não no direito civil, em que há que analisar os factos à luz estrita das normas legais aplicáveis.

15ª - A sentença e consequentemente o Acórdão recorridos parecem identificar o direito com moral, inclinando-se para o impulso moral em prejuízo da aplicação do direito.

16ª - Por mais censurável que tenha sido a atitude da recorrente, não pode haver responsabilidade civil desta, se não houver um preceito legal que a sancione; e como no caso não há, não é possível atribuir à recorrente responsabilidade civil sem estar fundamentada em preceito legal aplicável ao caso.

17ª - Conforme o testamento de CC, esta onerou a instituição da ré, como sua herdeira, “com o encargo de dar a quantia de três milhões de escudos, livres de impostos, à sua empregada doméstica AA, se ela ainda estiver ao seu serviço à data do seu falecimento”.

18ª - De acordo com o art.º 371º do Código Civil, como se trata de documento autêntico, faz prova plena dos factos que refere, acrescentando o art.º 372° do Código Civil que a força probatória do documento autêntico só pode ser ilibada (elidida, por certo) com base na sua falsidade; como a A. não arguiu a falsidade do testamento, está definitivamente fixado o texto do mesmo.

19ª - Foi posto termo ao contrato de trabalho de serviço doméstico entre a A. e a testadora, por documento particular de 20 de Setembro de 1999, sendo a assinatura da A. reconhecida notarialmente e presencialmente.

20ª - Como documento particular com reconhecimento notarial da assinatura presencial, nos termos do art.º 376° do Código Civil, faz prova plena das declarações atribuídas à A.

21ª - Não foi arguida a falsidade deste documento nem este documento foi impugnado quando foi notificado à A. com a contestação da Ré, ora recorrente.

22ª - Nesse Acordo, foi estabelecida a compensação pecuniária global de 676.820$00 que a A. recebeu.

23ª - A assinatura do acordo pela A. e o recebimento por esta da compensação pôs termo definitivamente ao contrato de trabalho entre a A. e a testadora na data de 10-09-1999.

24ª - Dado o disposto no n.° 2 do art.º 376°, os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses da A., sendo a declaração incindível.

25ª - Como tal, a essência do facto - termo do contrato de trabalho de serviço doméstico - em face da força probatória plena do documento que traduz o Acordo, não pode ser posto em causa nem invalidado pelas circunstâncias em que o documento foi emitido, como pretende a sentença recorrida.

26ª - A A. compreendeu perfeitamente o significado, alcance e conteúdo do Acordo, que pôs termo ao contrato de trabalho, e, por isso, recebeu a quantia estipulada, como compensação pecuniária global, não tendo em qualquer momento impugnado o acordo, nomeadamente após a sua assinatura ou aquando da notificação da contestação da apelante que juntou aos autos o citado acordo.

27ª - A A., ora recorrida, aceitou plenamente que tinha deixado de ser empregada doméstica da testadora, não obstante o tribunal (n.º 51 da relação dos factos na sentença) considerar provado que “por ela continuava disposta a estar ao serviço de CC”.

28ª - A disponibilidade da A. referida na conclusão anterior não tem qualquer relevância jurídica na presente acção, não implicando qualquer direito ou dever jurídico seja para quem for, não passando, por isso, de uma intenção resultante de uma norma de cortesia ou de conduta social, mas juridicamente irrelevante.

29ª - Em consequência da aplicação à presente acção do direito estrito e da força probatória plena do Acordo de cessação do contrato de trabalho, os factos relacionados na sentença sob os nºs. 38, 39, 40, 41, 42, 45, 46, 47, 53 e 54 não podem ser utilizados na decisão em oposição à validade do Acordo de Cessação do Contrato de Trabalho.

30ª - O princípio da eventualidade ou da preclusão retira qualquer relevância jurídica àqueles factos, uma vez que o Acordo não foi impugnado no tempo e no lugar próprio.

31ª - Não pode também a decisão remeter para a advogada que interveio na celebração do Acordo, a responsabilidade por este e pelas suas consequências.

32ª - A intervenção de um Advogado em qualquer acto -nomeadamente na presente acção - é sempre em nome e representação do seu mandante, e nunca em nome próprio.

33ª - Só o mandante pode exigir responsabilidade ao seu Advogado e não a parte contrária ou o Tribunal por qualquer acto praticado em nome e representação do mesmo mandante.

34ª - A deixa testamentária de CC que favorece a A., ora recorrida, tem inserta a condição de esta (A.) ainda estar ao seu (da testadora) serviço à data do seu falecimento.

35ª - Nesta condição, a testadora não faz qualquer restrição relativamente à sua aplicação, nem estabelece condicionantes ao seu cumprimento.

36ª – O contrato de trabalho cessou de facto e de direito em 10-09-1999, com plena consciência da A., constituindo esta cessação um facto objectivo que não pode ceder a quaisquer factos e às considerações feitas na sentença recorrida que pretendem fundamentar o contrário.

37ª - Só pela equidade se pode argumentar neste sentido contrário, mas a equidade não pode ser aplicada na decisão da presente acção.

38ª - Os factos relacionados sob os nºs. 14 a 21 (numeração da sentença) mostram que as considerações da sentença sobre a cessação do contrato de trabalho não podem ser tomadas em conta, uma vez que a decisão tem de ser tomada na sede do direito estrito.

39ª - Destes factos, concluiu-se, aliás, que a A., por muita boa vontade que tivesse, já se vinha queixando que não tinha capacidade, forças físicas ou competência para continuar a cuidar sozinha de CC, queixando-se do peso desta e da impossibilidade de a levantar sozinha em caso de queda.

40ª - Há uma contradição entre a indispensabilidade da A. ao serviço de CC e ao mesmo tempo declarar-se a incapacidade da A. em tomar conta sozinha da testadora.

41ª - A mesma contradição se verifica entre a necessidade absoluta de alguém para cuidar e tratar de CC e a indispensabilidade da A. neste acompanhamento.

42ª - Não pode atribuir-se relevância jurídica aos factos referentes a CC (factos nºs. 57, 58, 59, 61, 62) pois esta nos últimos anos, além das dificuldades de movimentos e deslocações, “sofria já de algum desequilíbrio psicológico, faltando-lhe a percepção do que se estava a passar” (facto n.º …).

43ª - Esta falta de percepção é normal em pessoas com mais de 90 anos (caso da testadora) em que se recordam dos factos passados há muitos anos, mas não se apercebem dos factos presentes, recentes ou de há poucos anos.

44ª - A sentença dá aos factos referidos na conclusão 40ª uma interpretação que não tem fundamento perante o que se alega nas conclusões 40ª e 41ª.

45ª - Na interpretação da deixa testamentária há que ter em conta o disposto no art.º 2182° do Código Civil, que estatui que se deverá observar o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento, mas a vontade do testador terá de ter neste contexto um mínimo de correspondência.

46ª - A cláusula testamentária é límpida ao afirmar que o encargo só se manterá se a A. estiver ao serviço da testadora, no momento da morte desta.

47ª - Como defendem os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado - art.º 2187°) “é no testamento, e não nas conversas ou comentários com os familiares ou amigos acerca dele, que o testador tenta exprimir a sua vontade”, devendo ter-se em conta todo o contexto do testamento.

48ª - Os mesmos Autores defendem ainda que, em caso de dúvida, a lei deliberadamente prescreve a nulidade da cláusula em contrapartida da vantagem que esta nulidade garante à certeza e segurança das relações jurídicas e bem assim que a sucessão legítima se sobrepõe às disposições testamentárias, no caso de dúvidas na interpretação destas.

49ª - A sentença recorrida, confirmada pelo Acórdão recorrido, faz a interpretação a partir das declarações da A. - beneficiária da deixa testamentária - e das declarações dos seus familiares e amigos.

50ª - No texto do testamento e no seu contexto global não se vislumbra qualquer indicação de que a testadora quisesse beneficiar a A. se ela não estivesse ao seu serviço no momento do seu óbito, qualquer que fosse a razão da cessação do serviço.

51ª - A recorrente abona-se na defesa da sua posição com as doutrinas defendidas pelos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, por estes serem, por um lado, os mais eminentes civilistas do século XX, a par dos Profs. Guilherme Moreira e Manuel de Andrade, e, por outro, porque foram os responsáveis pela redacção final do actual Código Civil, pelo que o seu parecer constitui quase a interpretação oficial das normas deste Código.

52ª - Dos factos considerados como provados não pode concluir-se que a recorrente tenha actuado com abuso do direito.

53ª - A argumentação e fundamentação da decisão acaba por recorrer à aplicação do princípio da equidade que é inaceitável na presente acção que terá de ser julgada segundo o direito estrito.

54ª - Os factos invocados pela sentença como base do abuso do direito não podem servir para fundamentar a invocação deste abuso.

55ª - Na argumentação da sentença que o Acórdão recorrido confirmou há nitidamente uma contradição entre a razão que assiste à A. em negar à R. o direito de interpretar a cláusula testamentária como esta fez (o que pressupõe a inexistência desse direito) e a invocação de abuso do direito, que pressupõe a existência do direito.

56ª - Ao contrário do que a sentença defende, a presente acção não tem como objectivo determinar o estado de saúde de CC que justificasse a sua colocação no lar.

57ª - A gestão da vida privada da testadora não pertencia à A., ora recorrida, como parece defender a sentença, mas, na impossibilidade da testadora poder tomar decisões dada a sua idade e o seu debilitado estado de saúde, à sua família, constituída pelo irmão, cunhada, a ora Ré, e sobrinhas.

58ª - Eram estas as pessoas que podiam, em substituição da testadora, escolher a forma que melhor se coadunasse com o estado de saúde da testadora e sua capacidade para tomar as decisões sobre a sua própria vida.

59ª - Não podendo invocar-se o abuso do direito, a decisão terá de se reconduzir à aplicação das normas legais tendo por base os documentos com força probatória plena que são o Testamento de CC e o Acordo de Cessação de Trabalho de Serviço Doméstico, nos precisos termos em que se acham redigidos.

60ª - Qualquer que seja a decisão sobre o fundo da questão, não há lugar ao pagamento de juros de mora, que só são devidos quando a dívida é certa, líquida e exigível.

61ª - No caso dos autos, a dívida não é certa, nem exigível, pelo que só após o trânsito em julgado da decisão do Supremo Tribunal de Justiça a proferir, no caso da Ré ser condenada, é que se torna certa e exigível.

62ª - Não há lugar na presente acção, no caso de a Ré ser condenada, à atribuição de uma indemnização ou compensação por danos não patrimoniais.

63ª - No caso de obrigações pecuniárias, que é o caso dos autos, segundo o art.º 806° do Código Civil, a única indemnização a que o credor tem direito, em caso de mora, corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora, à taxa legal.

64ª - Conforme estabelece este art.º 806° e segundo a doutrina defendida pelos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, esta posição justifica-se pelas dificuldades de prova e pretende evitar o recurso sistemático aos Tribunais, em que o direito se tornaria incerto e incerta seria a jurisprudência, tão variados são os critérios de avaliação do prejuízo do credor.

65ª - Mais uma vez, o princípio da certeza e segurança do direito garante a estabilidade das decisões dos Tribunais.

66ª - A invocação pela sentença recorrida do art.º 496° do Código Civil não está conforme a aplicação do direito estrito, visto este preceito ser exclusivo dos casos da responsabilidade por factos ilícitos (Subsecção 1 da Secção V — Responsabilidade Civil) ou pelo risco.

67ª - Como defende o Prof. Antunes Varela, o Código Civil aceitou a tese de reparabilidade dos danos não patrimoniais mas só no domínio da responsabilidade extra-contratual, e mesmo neste caso limitando-se àqueles danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

68ª - Conforme a mesma doutrina, “os simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização por danos não patrimoniais”, como acontece com os alegados pela A.: a gravidade do dano mede-se por um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos (de

uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada).

69ª - O entendimento defendido pela sentença e também pelo Acórdão recorrido conduziria a situações absurdas em que qualquer tristeza ou angústia provocada pelo incumprimento de qualquer contrato daria lugar à atribuição de uma indemnização por danos não patrimoniais, o que levaria mais uma vez à situação de incerteza e insegurança do direito.

70ª - A esta luz e à dos factos julgados provados terá de concluir-se pela falta de fundamento da indemnização arbitrada pela sentença e confirmada pelo Acórdão recorrido.

71ª - Por outro lado, ter-se-ia que considerar que o titular da indemnização seria a testadora e não a A., ora recorrida.

72ª - Como salienta o Prof. Antunes Varela, a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais não aparece consagrada na área comunitária da obrigação de indemnização mas expressamente regulado na zona privativa da responsabilidade extracontratual, com a intenção manifesta e inequívoca de a restringir a esta área da responsabilidade civil.

73ª - Como explicita o mesmo insigne Autor, dada a vastíssima área do comércio jurídico coberta pelos contratos e a extraordinária frequência das violações contratuais, aumentariam extraordinariamente as pretensões de indemnização por danos não patrimoniais.

74ª - Além disso, a solução de atribuir indemnização por estes danos constituiria uma poderosa tentação para os contraentes no sentido de exagerarem todos os incómodos, preocupações que a falta de cumprimento ou a mora no cumprimento lhes teria causado, como se vê dos argumentos usados pela A. e recorrida e reconhecidos pela sentença recorrida.

75ª - Por fim, seria real e sério o perigo de comercialização de valores morais, estimulando os contraentes a tirarem partido de todas as faltas que, de perto ou de longe, tivessem ligação com a sua personalidade.

76ª - Os perigos e inconvenientes apontados pelo Prof. Antunes Varela são bem visíveis na argumentação e fundamentação da sentença e do Acórdão recorrido para a condenação da Ré numa indemnização por danos não patrimoniais.

77ª - A condenação da recorrente numa indemnização por danos não patrimoniais a atribuir à A. coloca a situação num dilema:

Ou a recorrida é quem tinha a competência para decidir sobre o internamento da testadora e respectivas condições, mas não há qualquer disposição legal que considere essa admissibilidade;

Ou os danos morais são provenientes de não ter sido pago o legado pela recorrente, mas também não há qualquer disposição legal que os admita;

Quer num caso, quer noutro, a situação a que se chega é de absurdo.

78ª - Tendo julgado procedente a acção, a sentença e o Acórdão recorridos violaram o disposto nos art.°s 9º, 371º, 375º, 376º, 496º, 805°, 806º e 2187º, todos do Código Civil.

79ª - Assim, deve ser dado provimento ao presente recurso de Revista e, em consequência, revogada a sentença e o Acórdão recorridos, e a Ré, ora recorrente, absolvida de todos os pedidos formulados pela A., ora recorrida, em que a Ré e recorrente foi condenada.

Não houve contra alegações.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir, obviamente com base nos factos assentes acima transcritos, - que este Supremo, como é sabido, não pode alterar, pois não se verifica qualquer das hipóteses excepcionais previstas no art.º 722º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil (art.º 729º, n.º 2, do mesmo diploma) -, e à luz do direito aplicável, tudo conforme a recorrente faz questão de vincar nas 16 primeiras conclusões da s suas alegações.

Em causa está, desde logo, o sentido a dar à parte final da expressão “qualquer dos instituídos herdeiros fica com o encargo de dar a quantia de três milhões de escudos, livres de impostos, à sua empregada doméstica AA, se ela ainda estiver ao seu serviço à data do seu falecimento”, constante do testamento feito por CC.

Sabido que testamento é, nos termos do art.º 2179º, n.º 1, do Cód. Civil, o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles, acresce que, como se vê do disposto no art.º 2030º do mesmo diploma, o testador pode nomear para lhe sucederem na titularidade do seu património herdeiros – que são os que sucedem na totalidade ou numa quota do património do falecido, como é o caso da ré – e legatários - que são os que sucedem em bens ou valores determinados, como é o caso da autora. Podendo por outro lado sujeitar tanto a instituição de herdeiro como a nomeação de legatário a condição suspensiva ou resolutiva, com as limitações dos artigos seguintes (art.º 2229º do mesmo Código).

Cabe, assim, determinar o que se entende para este efeito por condição, que vem definida no art.º 270º, também do Cód. Civil, como a subordinação a um acontecimento futuro e incerto, pelas partes, da produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução; no primeiro caso, diz-se suspensiva, e no segundo resolutiva, sendo esta a sua principal classificação. Assim, os efeitos que um negócio jurídico tende a produzir são pelas partes colocados na dependência de um acontecimento futuro e incerto, de maneira que ou só verificado tal acontecimento é que o negócio produzirá os seus efeitos (condição suspensiva) ou então só nessa eventualidade é que o negócio deixará de os produzir, ficando destruídos retroactivamente os que tiverem sido entretanto produzidos (condição resolutiva). Trata-se, pois, de uma cláusula acessória do negócio jurídico, se bem que também se costume designar por condição o próprio evento condicionante (Manuel de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, 1960, Vol. II, pg. 356).

Para além desta classificação outras há, interessando para a hipótese dos autos a que distingue entre condições casuais, potestativas e mistas, sendo o critério desta classificação o da natureza do evento condicionante, considerado sob o ponto de vista do seu nexo com a vontade dos sujeitos da relação condicional. Assim, condição casual será aquela em que o evento condicionante é estranho à vontade das partes, traduzindo-se num acontecimento natural ou num acto humano mas de terceiro; condição potestativa será aquela em que o evento condicionante é um acto de uma das partes; e condição mista será aquela em que o evento condicionante depende em parte da vontade de um dos sujeitos da relação condicional e em parte de um acontecimento natural ou de um acto de terceiro.

Por outro lado, quanto às condições potestativas, podem estas ser “a parte debitoris” ou “a parte creditoris”, conforme o acontecimento condicionante seja um acto do devedor ou do credor condicional, e potestativa não arbitrária ou potestativa arbitrária, sendo esta a que consiste num “puro querer” (“se quiseres”) ou num qualquer facto material insignificante que não põe em jogo quaisquer interesses sérios que se contraponham aos interesses que constituem objecto do próprio negócio jurídico podendo fazer hesitar a parte em questão (“dou-te mil escudos se mexeres um dedo”, ou “se eu mexer um dedo”) – exemplos apontados por Manuel de Andrade, na obra citada, pg. 368. Já a não arbitrária é aquela que não consiste, nem aberta nem simuladamente, num puro querer ou num equivalente disso, mas num acto de certa gravidade ou transcendência, que já põe em jogo interesses sérios, susceptíveis de contrabalançarem aqueles outros que estão em jogo no próprio negócio, e portanto de fazer oscilar a resolução da parte a quem compete praticá-lo ou omiti-lo.

Esta última, condição potestativa não arbitrária, também designada por meramente ou propriamente potestativa, é útil e admissível, face aos interesses que visa satisfazer; já a arbitrária, também conhecida por puramente potestativa, que consubstancia um puro querer, é inútil (se “a parte creditoris”), pois sempre estaria na vontade do credor o exigir ou não a prestação prometida, ou inadmissível (se “a parte debitoris”), pois do negócio com essa condição não resulta qualquer verdadeira obrigação para o devedor, que a nada fica vinculado, de forma que, se decidir não cumprir, não lhe poderá ser imposta qualquer sanção nem o cumprimento lhe poderá ser exigido, o que, por inexistir então um interesse do credor digno de protecção legal, pode tornar mesmo tal negócio nulo face ao disposto nos artigos, conjugados, 398º, n.º 2, e 294º, do Cód. Civil, salvo tratando-se de contratos bilaterais por nestes sempre ficar vinculado o contratante não abrangido pela condição. De tal modo que, como nos dá notícia Durval Ferreira, in “Negócio Jurídico Condicional”, pg. 168, o Código Civil francês, no seu art.º 1174º, estipula expressamente que é nula toda a obrigação contratada sob condição puramente potestativa (mero querer) da parte do devedor, e o Código Civil italiano, no seu art.º 1355º, estipula que é nula a alienação de um direito ou a assunção de uma obrigação subordinada a uma condição suspensiva que a faça depender da mera vontade, respectivamente, do alienante ou do devedor.

Ora, a cláusula testamentária pela qual CC incumbiu quem quer que ficasse como herdeiro efectivo de dar à aqui autora a quantia de 3.000.000$00 se esta se encontrasse ao seu serviço à data da sua morte constitui um legado, a favor da autora, sujeito a uma condição suspensiva potestativa não arbitrária “a parte creditoris”, pois é manifesto que os actos materiais exigidos a esta para a verificação do evento condicionante não se resumem a um puro querer e assumem forte gravidade e relevância, sendo caracterizados por um grau de dificuldade e sacrifício que poderia fazer oscilar a vontade da autora, de cujos serviços a testadora continuava a sentir necessidade. É esta a interpretação da vontade da testadora, que tem de ser observada por inexistir qualquer motivo de nulidade (art.ºs 2179º, citado, e segs.) e a que se chega com base nos critérios consagrados no art.º 2187º do Cód. Civil, segundo o qual, “na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do documento” (n.º 1) e “é admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa” (n.º 2).

Acresce que, de há muito (ver, entre outros, o Ac. deste Supremo Tribunal de 21/06/79, in BMJ 288-426), a determinação da intenção do testador vem sendo pacificamente considerada pela jurisprudência como matéria de facto. Por isso, não pode a decisão das instâncias sobre tal matéria ser sindicada por este Supremo (art.ºs 729º, n.º 2, e 722º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil), salvo se os demais factos provados com base na prova complementar legalmente admitida, - pois o formalismo testamentário não é incompatível com o recurso a elementos externos ao testamento (Oliveira Ascensão, “Direito Civil – Sucessões”, pg. 288) -, mostrarem que o sentido interpretativo a que chegaram as instâncias não é o mais ajustado com a vontade do testador, e, por o testamento ser um acto jurídico formal (art.ºs 2204º e segs. do Cód. Civil), se esta vontade não tiver no texto respectivo um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.

Ora, dos demais factos provados não resulta, de forma alguma, que o sentido interpretativo a que as instâncias chegaram não seja o mais ajustado à vontade da testadora. Basta atentar nos factos assentes sob os nºs. 7º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 58º, 59º, 61º, 62º, 66º e 69º, conjugados pelo menos com os dos nºs. 14º, 15º e 16º, para se concluir pelo acerto daquela interpretação sobre a vontade da testadora, ou seja, no sentido de que esta pretendia fixar tal cláusula concedendo à autora determinada quantia se esta se decidisse por se manter ao seu serviço até à data do óbito dela testadora e concretizasse tal intenção, ou só não a concretizasse por força de factores estranhos.

E essa interpretação tem no texto do testamento correspondência, uma vez que dos termos da transcrita expressão resulta, até claramente, a consagração, pela testadora, desse tipo de condição, cujo sentido nada obstava a que fosse determinado por via de elementos complementares de prova.

Para obstar ao reconhecimento da sua obrigação de pagamento dos 3.000.000$00, invoca a ré que a autora, na data do óbito da testadora, já não se encontrava ao serviço desta, por terem acordado uma com a outra (autora e testadora) a cessação do contrato de trabalho de serviço doméstico que entre ambas vigorava. E juntou, para o comprovar, o documento particular referido no n.º 43º dos factos assentes, ao qual atribui eficácia probatória plena nos termos do art.º 376º do Cód. Civil.

Como tem sido entendido à luz desse dispositivo, porém, a eficácia probatória plena de documento particular, que depende do reconhecimento da sua autoria, expresso ou por falta de impugnação da respectiva letra e assinatura, ou só da assinatura, ou do seu reconhecimento presencial nos termos das leis notariais, só se verifica quanto aos factos incluídos nas declarações atribuídas ao seu autor, na medida em que forem contrárias aos interesses do declarante, podendo então ser invocado pelo declaratário contra o declarante como prova plena; já em relação a terceiros, tal declaração não tem eficácia probatória plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente.

Ora, no que toca à assinatura da autora, está reconhecida presencialmente; mas a da testadora não o está e não se mostra por ela reconhecida, como é óbvio, dado ter falecido antes da propositura da presente acção, sendo que o reconhecimento, como se vê do disposto no art.º 374º, n.º 1, do mesmo Código, deve ser feito pelo próprio declarante. Acresce que a qualidade de declarante é pessoal, não se transmitindo a herdeiros apesar dos direitos de que estes, pela abertura da herança, se tornem titulares. Para além disso, a autora não deixou de impugnar pelo menos implicitamente a assinatura da testadora, ao dizer que nunca assistiu a que a D. CC assinasse qualquer documento e que não recordava se, quando o documento lhe foi presente para assinar, já tinha aposta a assinatura da testadora, embora tenha a convicção de que não, o que constitui nítida manifestação de dúvida sobre a autoria da dita assinatura.

Por isso é que, sem qualquer reclamação, foi incluído na base instrutória o facto referido no seu ponto 56º (“o documento reproduzido na alínea D) da matéria de facto assente foi assinado livremente por CC e pela autora”), tendo tal ponto dessa base obtido como resposta a de se encontrar provado apenas o que consta das respostas aos artigos seguintes. Ou seja, nos factos assentes sob os nºs. 39º, 40º, 41º, 42º e 46º, dos quais não consta que a testadora tenha aposto no documento em causa a sua assinatura. E tal aposição também não consta dos factos assentes enumerados antes da elaboração da base instrutória, que só referem ter nele sido aposta a assinatura da autora, acrescentando apenas que, ao lado da expressão impressa “a primeira contratante”, que vem identificada como sendo CC, está aposta uma assinatura manuscrita, “lendo-se CC” (44º), mas sem indicarem que tenha sido a própria testadora a escrevê-la.

Quer isto dizer que, perante aquela resposta restritiva ao ponto 56º, não foi dado por assente que tenha sido a testadora a apor a sua assinatura no dito documento de que consta o denominado acordo de cessação de contrato de trabalho.

Assim, esse documento só comprova terem sido prestadas as declarações nele incluídas, e que, além da assinatura da autora, contém uma assinatura em que se lê “CC”. Tal documento, porém, alude a um acordo de vontades entre duas pessoas, por isso mesmo se denominando “acordo”, que constitui um autêntico contrato pelo qual as partes nele intervenientes visariam pôr termo ao contrato anterior. Ora, não demonstrado, face à resposta restritiva ao ponto 56º da base instrutória e à inexistência de factos assentes que o refiram, que tenha sido a testadora a assiná-lo, não se pode entender que tal acordo de vontades extintivo do contrato de trabalho de prestação de serviço doméstico tenha existido, pois a declaração da testadora constituía elemento essencial desse acordo.

Por outro lado, esse pela ré invocado acordo constitui matéria de excepção peremptória (art.º 493º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil), uma vez que dele poderia resultar ficar impedida a produção do efeito jurídico dos factos invocados pela autora, na medida em que seria porventura bastante para levar à conclusão de que esta, por sua própria vontade, deixara de prestar serviço à testadora antes do respectivo falecimento.

Como tal, e ainda face ao disposto no art.º 374º, referido, n.º 2, era a ré que tinha o ónus da prova desse acordo extintivo (art.º 342º, n.º 2, do Cód. Civil), de forma que, não o conseguindo provar, como aconteceu, tem de ver a dúvida daí resultante ser decidida contra si (art.º 516º do Cód. Proc. Civil), ou seja, no sentido de inexistir esse acordo e de, portanto, o contrato de trabalho continuar subsistente sem que a testadora, que era quem o podia fazer por ser ela a parte nesse contrato e não se mostrar que tenha passado procuração fosse a quem fosse para o efeito, o tenha extinguido.

Não pode, em consequência, considerar-se extinto o contrato de trabalho, pois não se verifica qualquer das hipóteses previstas nos art.ºs 27º e 28º do Dec. – Lei n.º 235/92, de 24/10: não se pode considerar existente, como se disse, acordo das partes no sentido da extinção, não houve rescisão com invocação de justa causa pela autora nem pela empregadora, não houve rescisão unilateral com pré-aviso da autora, e não houve caducidade, que no caso só poderia ter tido lugar no circunstancialismo da al. b) do mencionado art.º 28º, uma vez que o internamento da testadora no lar, não se destinando a ser definitivo e podendo terminar se a testadora o decidisse, não tornava em absoluto impossível a subsistência da relação de trabalho, que aliás poderia ter-se mantido na vertente de tratamento e cuidados com a própria casa.

Assim, não extinto o contrato, que a testadora, como se vê dos factos assentes, considerava ainda existir, e que a autora continuava na disposição de manter (factos nºs. 57º, 58º, 61º, 66º e 69º), não se pode senão concluir que a falta de prestação de serviços pela autora à testadora à data da morte desta foi determinada apenas pela conduta da própria ré, dados os factos provados sob nºs. 23º, 24º, 25º, 31º, 32º, 34º, 35º, 65º, 72º e 73º.

Nem sequer se pode sustentar a existência da contradição apontada pela recorrente nas suas conclusões 39º, 40º e 41º: com efeito, do facto de a autora ser incapaz de, sozinha, tratar da D. CC não se pode concluir que não o pudesse fazer se devidamente acompanhada por outra empregada ou auxiliar, tanto mais que dos factos provados não consta que a testadora dependesse exclusivamente da autora.

Acresce que, para além de o denominado acordo de cessação não corresponder à vontade das partes do contrato de trabalho, como claramente resulta de vários dos factos provados, com destaque para os indicados sob nºs. 57º e 58º, mesmo que fosse de atender a tal acordo como demonstrativo da cessação daquele contrato, daí não derivaria que não pudesse ser renovada, como seria, a prestação de serviços pela autora à D. CC, desde que esta, como pretendia, regressasse a casa: é o que resulta, entre outros, dos factos provados sob os nºs. 59º, 61º, 62º, 66º, 68º e 69º, a que há que dar relevância ao contrário do que pretende a recorrente, uma vez que não se mostra que o desequilíbrio psicológico de que a testadora ficou a sofrer se tenha manifestado antes de ser internada no terceiro lar (n.º 63º).

Ora, como dispõe o art.º 275º, n.º 2, do Cód. Civil, “se a verificação da condição for impedida, contra as regras da boa fé, por aquele a quem prejudica, tem-se por verificada; …”.

E dos factos provados resulta que a ré, que ficaria prejudicada pela verificação da condição por, sendo ela a herdeira da testadora, ter de dar cumprimento ao legado à autora, impediu tal verificação, convertendo em definitivo, contra vontade da testadora, que a ré nem sequer mostrou encontrar-se incapaz de tomar as suas próprias decisões, o internamento desta num lar, - internamento este de que tomou a iniciativa e que devia ser meramente temporário, destinado a durar apenas durante o mês de férias da autora -, dispensando os serviços desta e ordenando-lhe que abandonasse a casa da testadora, em que a autora vivia desde os catorze anos de idade, e comunicando-lhe que deveria contactar com a advogada dela ré a fim de assinar um documento e acertar as contas, apesar de a D. CC não a ter despedido nem sequer ter conhecimento de que a ré a dispensara, proibindo-a de esclarecer tais factos à testadora e nem sequer lhe comunicando as mudanças de lar em que esta se encontrava internada apesar de saber do apreço da D. CC pela autora (factos assentes sob os nºs. 22º a 25º, 31º, 32º, 34º, 35º, 36º, 38º a 43º, 48º a 55º, 57º, 58º, 62º, 65º, 72º e 73º).

Além disso, esse impedimento foi feito de má fé. Isto porque se comporta contra as regras da boa fé quem não actue observando normas de lealdade que se impõem e são seguidas entre o comum das pessoas, não podendo ser retirada outra conclusão da dispensa, pela ré, dos serviços da autora logo que esta regressou de férias, ainda em Setembro de 1999, quando a testadora tinha possibilidade de ter plena percepção do que acontecia, da falta de comunicação à autora das mudanças de lar apesar das visitas que esta fazia à D. CC, e da proibição a esta de contar à D. CC os factos respeitantes à dispensa de serviços da autora por ela ré decretada e à conversão do internamento em definitivo quando a vontade da D. CC, que a ré assim desrespeitou, era a de regressar a sua casa. Daí que tenha de se dar como verificada a dita condição, subsistindo em consequência a obrigação da ré de dar cumprimento ao legado feito pela D. CC à autora, obrigação esta resultante também do disposto no art.º 2068º do Cód. Civil.

Não podendo, em consequência, reconhecer-se à ré qualquer direito de recusar o pagamento da quantia deixada pela testadora à autora, prejudicado fica o conhecimento da questão respeitante ao abuso desse inexistente direito (art.º 660º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil).

A questão seguinte consiste em determinar se são ou não devidos juros de mora pela ré à autora, que a recorrente entende não serem devidos por a dívida não ser certa nem exigível: no seu entender, só após trânsito da decisão deste Supremo Tribunal que porventura a condene é que a dívida se torna certa e exigível.

É manifesto que não é assim. A certeza da existência da dívida não resulta da decisão do Tribunal, mas da verificação dos factos que originam tal dívida e de que as partes têm conhecimento, deles podendo em consequência retirar as devidas consequências jurídicas. A decisão do Tribunal, transitada, não origina a certeza das partes da existência da dívida, mas apenas a certeza do próprio Tribunal e a consequente declaração judicial da sua anterior existência, e de que o devedor fica sujeito à respectiva execução, por via de cumprimento coercivo se não cumprir voluntariamente.

Por outro lado, como é sabido, a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor, segundo dispõe o art.º 2031º do Cód. Civil. E, “na falta de declaração do testador sobre a entrega do legado, esta deve ser feita no lugar em que a coisa legada se encontrava ao tempo da morte do testador e no prazo de um ano a contar dessa data, salvo se por facto não imputável ao onerado se tornar impossível o cumprimento dentro desse prazo; se, porém, o legado consistir em dinheiro ou em coisa genérica que não exista na herança, a entrega deve ser feita no lugar onde se abrir a sucessão, dentro do mesmo prazo” (art.º 2270º).

Daqui resulta que, aberta a sucessão em 14 de Agosto de 2002 por óbito da testadora, tinha a ré o prazo de um ano a partir de então para cumprir o legado, que consequentemente já lhe era exigível; mas, tendo sido interpelada extrajudicialmente para o efeito pela autora apenas por carta de 29/03/04, por ela recebida em 04/04/04, só então ficou constituída em mora e, consequentemente, obrigada ao pagamento dos respectivos juros legais a partir de então (art.ºs 804º, 805º, n.º 1, 806º, nºs. 1 e 2, e 2271º, do Cód. Civil, este último referindo expressamente na sua parte final que se o legado consistir em dinheiro os frutos – ou seja, os juros – art.º 212º do mesmo diploma - só são devidos a partir da mora de quem deva satisfazê-lo).

Assim, também quanto a esta questão não se pode reconhecer razão à recorrente.

Resta a questão da ressarcibilidade de danos não patrimoniais, que a recorrente sustenta não poder ser decidida no sentido propugnado pelas instâncias porque, em síntese, tais danos só podem ser alvo de indemnização no âmbito da responsabilidade extracontratual.

Também aqui não assiste razão à recorrente.

Desde logo, ao invés do que entenderam as instâncias, não estamos numa hipótese de responsabilidade contratual, mas extracontratual.

Com efeito, quando a ré expulsou a autora de casa da testadora, o testamento ainda não era eficaz, visto a testadora se encontrar ainda viva, pelo que dele não derivavam para a ré quaisquer direitos sucessórios resultantes do negócio jurídico unilateral em que o mesmo se traduzia, para além do que não era herdeira legitimária, nem sequer legítima, daquela (art.ºs 2157º e 2133º do Cód. Civil.

Por outro lado, a ré nem sequer era parte do contrato de trabalho celebrado entre autora e testadora, que esta nitidamente pretendia manter e estava convencida de se manter. Pelo que, ao expulsar a autora de casa da testadora, e ao impossibilitar o normal convívio entre elas por via do internamento da testadora em lares que manteve contra vontade desta, a ponto de dificultar à autora as simples visitas ocultando-lhe os lares em que a testadora ia sendo sucessivamente internada, não estava a deixar de cumprir qualquer obrigação contratual ou meramente negocial que sobre ela recaísse, a violar qualquer direito de crédito de que fosse devedora. Estava, isso sim, a violar voluntária e ilicitamente – por resultarem do seu contrato com a testadora - direitos da autora a conservar-se em casa da testadora enquanto por esta, ou por ambas, não fosse posto termo ao contrato de trabalho, e a exercer para ela a sua profissão nomeadamente tratando da casa, mantendo com ela, quando possível por ser posto termo ao internamento, o convívio que ambas vinham tendo desde havia cerca de 53 anos. E, como é sabido, a ilicitude pressupõe que o facto imputado ao agente constitua violação, ou de direitos subjectivos, - como na hipótese dos autos ocorre, face ao acima referido -, ou de norma legal destinada a proteger interesses alheios (art.º 483º, n.º 1, do Cód. Civil).

Dessa conduta da ré resultaram para a autora danos de carácter não patrimonial, essencialmente traduzidos na tristeza e dor que sofreu com a interrupção da relação diária entre ela e a testadora nas circunstâncias em que ocorreu, na grande tristeza que sentiu ao ver a testadora internada no lar contra sua vontade, e nas dificuldades por que passou em consequência da sua expulsão da casa da testadora, devido à sua frágil condição económica, quando, a manter-se ao serviço da casa da testadora e a habitar nesta, não as teria.

Daí que se verifiquem todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual previstos no mencionado art.º 483º, n.º 1, pelo que sobre a ré recai a obrigação de os indemnizar, considerando-se adequado, face ao longo período da vida da autora dedicado quase por completo ao serviço e auxílio da testadora nas condições que os factos provados reflectem, o montante a este respeito fixado nas instâncias, tanto mais que não se vê como se possa dizer que os danos de carácter não patrimonial sofridos pela autora em resultado da actuação da ré não sejam suficientemente graves para merecerem a tutela do direito (art.º 496º, nºs. 1 e 3, primeira parte, do Cód. Civil).

Acresce que, mesmo que de responsabilidade contratual se tratasse, hoje é geralmente aceite a ressarcibilidade dos danos de natureza não patrimonial nesse âmbito, como já era, aliás, a doutrina dominante (entre outros, Vaz Serra – RLJ, 108º-122; Galvão Telles, Obrigações, 6ª ed., pg. 383; Almeida Costa, Obrigações, 6ª ed., pg. 465 e ss.; Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, pg. 31), por se entender que aquele art.º 496º reflecte um princípio geral válido para todas as formas de responsabilidade.

Improcede assim a pretensão da recorrente também quanto a esta questão.

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 29 de Abril de 2010


Silva Salazar (Relator)
Nuno Cameira
Sousa Leite