Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98A197
Nº Convencional: JSTJ00035921
Relator: RIBEIRO COELHO
Descritores: ACÇÃO DE DESPEJO
DESPEJO IMEDIATO
MORA DO DEVEDOR
MORA DO CREDOR
DEPÓSITO DA RENDA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ199805120001971
Data do Acordão: 05/12/1998
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 3549/97
Data: 07/03/1997
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR PROC CIV. DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 193 ARTIGO 204 N1 ARTIGO 979.
RAU90 ARTIGO 58.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1979/07/07 IN BMJ N228 PAG302.
ACÓRDÃO STJ DE 1989/01/19 IN BMJ ANOXIV TI PAG112.
Sumário : I- A ineptidão do requerimento inicial, no incidente de despejo imediato, só pode ser arguida até à (ou na) contestação e, oficiosamente, só dela poderia conhecer-se até à decisão final do mesmo incidente na 1. instância.
II- Na pendência da acção de despejo, as rendas vencidas devem ser pagas ou depositadas, no caso de mora do devedor; é porém, no caso de mora do credor, admissível que o inquilino se defenda de um eventual pedido de despejo imediato mediante invocação e prova, não necessariamente documental, de tal mora.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em acção declarativa, seguindo a forma do processo ordinário e correndo termos desde 14 de Novembro de 1994 pelo 3. Juízo Cível da Comarca de Lisboa, pela qual A pediu contra B a resolução do arrendamento que recai sobre o 6. andar esquerdo do prédio da Avenida ... , em Lisboa, e a condenação do réu a despejá-lo e a pagar as rendas já vencidas, no montante de 1400000 escudos, e as vincendas até à restituição do locado, veio o autor requerer em 18 de Dezembro de 1995 que, por não ter o réu pago as rendas vencidas desde a propositura da acção, se ordenasse o despejo imediato, nos termos do artigo 58, n. 2, do RAU.
Houve oposição por parte do réu, após o que foi proferido despacho dando procedência ao incidente.
Agravou, sem êxito, o réu para a Relação de Lisboa, que manteve o decidido.
Agravando de novo, o réu pede a substituição do acórdão recorrido por outro que julgue improcedente o pedido de despejo imediato; ao alegar formulou as seguintes conclusões:
1- Não deve decretar-se o despejo imediato nos termos do n. 2 do artigo 58 do RAU por terem sido alegados factos que, a virem provar-se, constituíram o autor em mora.
Mora essa,
2- só cessaria após a entrega dos recibos das rendas ao réu.
3- Pelo que é lícito ao réu excepcionar o não cumprimento.
4- Não especifica o autor quais as rendas que se venceram na pendência da acção.
5- Já que, atento o causal devolutivo - falta de pagamento de rendas -, o autor só poderia socorrer-se de rendas que se venceram após o prazo da contestação. O que,
6- Torna o pedido inepto.
Defendeu-se, "ex adverso", a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
No acórdão recorrido considerou-se assente o seguinte circunstancialismo, todo ele preenchido por ocorrências do processado nestes autos:
a) Em 14 de Novembro de 1994 o aqui autor intentou acção de despejo na forma ordinária contra o aqui réu com fundamento na falta de pagamento das rendas vencidas desde 1 de Agosto de 1994 no valor unitário de 350000 escudos;
b) O réu foi citado em 23 de Junho de 1995;
c) Apresentou a sua contestação em 26 de Setembro de 1995 defendendo que ocorre uma situação de "mora accipiendi" porque, segundo alega, o autor não pôs à sua disposição os recibos das rendas anteriormente pagas,
d) Em 18 de Dezembro de 1995 o autor requereu o despejo imediato do locado ao abrigo do disposto no n. 2 do artigo 58 do RAU com fundamento na falta de pagamento das rendas até então vencidas, em número de treze, desde a data da propositura da acção;
e) O requerimento foi notificado ao réu por carta registada expedida em 18 de Março de 1996 mas este não pagou nem depositou as referidas rendas, tendo-se pronunciado sobre ele no sentido de que não há mora da sua parte e que, por isso, não há fundamento para ser decretado o despejo.
A análise dos autos, designadamente dos elementos constantes da certidão que instruiu o agravo em 1. instância, mostra ainda que:
f) na petição inicial o autor alegou, por remissão para o texto do documento onde o acordo está documentado, ter sido convencionado o pagamento da renda no primeiro dia do mês anterior àquele a que respeitar e em casa do senhorio ou no local que este indicar por escrito;
g) Alegou ainda na petição inicial que a forma de pagamento, convencionada, das rendas é por depósito na sua conta n. ..., do Banco Borges & Irmão, dependência da Av. Fontes Pereira de Melo, em Lisboa;
h) Ao ser elaborada a especificação, e na sequência de menção feita à celebração do arrendamento em 1 de Março de 1994, foi elaborada uma alínea, designada por D), onde se consignou que foi convencionado posteriormente que a forma de pagamento da renda é feita por depósito na conta n. ..., do Banco Borges & Irmão;
i) O réu não reclamou contra a elaboração desta alínea.
É incontroversa a ideia segundo a qual as conclusões das alegações são uma das formas pelas quais o recorrente faz a delimitação objectiva do recurso, o que decorre dos artigos 684, n. 3, e 690, n. 1, do CPC.
Assim, temos que distinguir nas conclusões deste agravo dois blocos, que apresentamos pela ordem que processualmente é mais lógica;
- as conclusões 4. a 6., de acordo com as quais haveria ineptidão do requerimento pelo qual o autor, ora gravado, pediu que se decretasse o despejo imediato;
- as conclusões 1. a 3., onde o agravante invoca a mora do credor das rendas por não entregar os recibos das já recebidas.
Vejamos a ora alegada ineptidão - salientando, para começar, que nem no requerimento pelo qual o agravante respondeu na 1. instância ao pedido de despejo imediato, nem nas alegações do seu agravo para a Relação, este argumento foi usado.
A ineptidão agora alegada, referindo-se ao requerimento inicial do incidente de despejo imediato, tem que receber o tratamento legal que é dado a idêntico vício de uma petição inicial.
Assim, e de acordo com os artigos 193 e 204, n. 1, do CPC, ela constitui uma nulidade que só pode ser arguida até à contestação ou na contestação.
Deveria, pois, o ora agravante tê-la arguido quando no dito incidente se defendeu.
Não o tendo feito - já que aí invocou apenas não ter o ora agravado feito a devida alegação do regime contratual do tempo e lugar do pagamento e haver mora "accipiendi" -, é extemporânea a arguição de tal nulidade.
E, embora se trate de nulidade de que o tribunal pode tomar oficiosamente conhecimento, a verdade é que tal só poderia ter tido lugar até à decisão final do incidente na 1. instância - artigos 202 e 206, n. 2, do mesmo Código.
Improcedem, portanto, estas conclusões 3. a 6.
Vejamos agora a questão da mora do credor.
O acórdão recorrido negou ao réu qualquer razão por seguir opiniões doutrinárias de acordo com as quais o arrendatário, em situações como a deste incidente de despejo imediato, não pode fazer mais do que provar que pagou ou depositou as rendas em causa, sendo irrelevante qualquer justificação atinente à não realização de qualquer destes actos.
Como se disse, o pedido do autor que deu lugar a este recurso fundou-se no disposto no artigo 58 do RAU, o qual tem como antecedente imediato o que preceituava o artigo 979 do CPC.
Para compreender o regime agora instituído é útil sopesar o que ambas as normas preceituam e o que a seu respeito se tem entendido.
No citado artigo 979, n. 1, quer na redacção de 1939, quer na de 1961, previa-se a possibilidade de o autor em acção de despejo requerer a imediata execução do despejo se o réu deixasse de pagar rendas vencidas na pendência da acção; e, de acordo com o seu n. 3, introduzido em 1961, tratando-se de prédio urbano, obstaria ainda a este resultado a prova, pelo réu, de que fora do prazo pagou ou depositou definitivamente, embora sem notificação ao senhorio, o triplo das rendas.
Em 1985, este n. 3 passou a aplicar-se a qualquer arrendamento não rural e, em consonância com o disposto no artigo 1041 do CC - diploma ao qual pertencerão as normas que viermos a referir adiante sem outra indicação -, redacção de 1977, o pagamento ou depósito nele previsto passou a ser o das rendas e da importância da indemnização devida.
Diversa é a redacção que foi posta em aplicação pelo artigo 58 do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15 de Outubro, actualmente regulador desta matéria na sequência da contemporânea revogação do citado artigo 979 pelo artigo 3, n. 1, alínea b), do mesmo DL.
De facto, o seu n. 1 preceitua que na pendência da acção de despejo as rendas devem ser pagas ou depositadas nos termos gerais; no n. 2 prevê a possibilidade de ser requerido o despejo imediato com base no não cumprimento desse dever; e o n. 3 faz caducar este direito quando o arrendatário, até ao prazo para a sua resposta, pague ou deposite, disso fazendo prova, as rendas em mora e a indemnização devida.
I- Tem sido orientação dominante aquela segundo a qual o campo de aplicação daqueles artigos 979 e 58 diverge consoante os fundamentos com os quais foi proposta a acção de despejo.
E isto porque haveria que fazer uma distinção fundamental, apoiada no artigo 1048, que estatui que o direito à resolução do arrendamento por falta de pagamento da renda caduca se o arrendatário pagar ou depositar, até à contestação da acção, as somas devidas e a indemnização devida.
Assim, de duas, uma:
- ou a acção se fundava, apenas ou também, em falta de pagamento de rendas, e todas as rendas vencidas até à contestação teriam que ser logo depositadas ou pagas nesse momento, juntamente com a indemnização respectiva, para que com isso se conseguisse a caducidade do direito de resolução do contrato, ficando o mecanismo do despejo imediato, regulado no artigo 979 citado, reservado para a falta de pagamento das rendas que lhe fossem posteriores;
- ou tinha apenas como fundamento factos recondutíveis aos outros que a lei prevê como determinantes da resolução pelo senhorio, e então já o pedido incidental de despejo imediato poderia referir-se a todas as rendas que na pendência da acção se vencessem e não fossem pagas.
Era a opinião que sobre o referido artigo 979 manifestava Pais de Sousa, Extinção do Arrendamento Urbano, 2. edição, pg. 353, e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. IV, pg. 226, e diversas decisões jurisprudenciais.
O mesmo continuou a ser entendido, já na vigência do RAU, por Pais de Sousa - cfr. Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 3. edição, pg. 153 -, e também por Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 3. edição, pg. 299.
Já Mário Frota, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, pg. 578, nota 6, afirmou, sem distinguir, que, para este efeito, seriam de considerar todas as rendas que se vencessem a seguir à entrada da petição inicial na secretaria - opinião que foi expressa ainda na vigência daquele artigo 979.
Tem-se, porém como mais correcta aquela posição; na verdade, se as rendas vencidas na pendência da acção e até à contestação podem ser ainda pagas no prazo deste articulado - e note-se que esse prazo pode ser consideravelmente dilatado havendo pluralidade de réus, atento o disposto no artigo 486, n. 2, do CPC -, não seria coerente dar-se ao senhorio a possibilidade de, em momento anterior, requerer o despejo imediato por falta do seu pagamento, podendo, como pode, este vir ainda a ser feito mais tarde com eficácia impeditiva da resolução.
Assim, desde logo devem criticar-se as decisões das instâncias nestes autos por, nos seus fundamentos, não terem restringido a base factual em que assentou o despejo imediato que ordenaram, aceitando como relevantes para tal todas as rendas que durante a lide terão deixado de ser pagas - observação que se faz apenas por uma questão de rigor teórico, visto os seus resultados práticos, no caso, serem aqui os mesmos.
II- Tanto aquele artigo 979 como o citado artigo 58 se referem à audição do réu, em evidente satisfação das exigências do princípio do contraditório.
Destinando-se esta audição a proporcionar ao réu ocasião para se defender, segue-se, naturalmente, a questão de saber o que pode com essa finalidade ser usado.
Aqui encontra-se uma grande sintonia de opiniões num sentido que é fortemente limitativo, o qual consiste no entendimento segundo o qual nada mais o réu pode utilmente fazer do que provar que as rendas em causa e a respectiva indemnização pelo atraso foram pagas ou depositadas.
Desde logo, no âmbito da primeira destas disposições, o defendeu Alberto dos Reis, RLJ, ano 78, pag. 52, assim como Pais de Sousa, Extinção, pg. 347.
Mas, em sentido algo divergente, atenuando a rigidez desta afirmação, decisões de tribunais superiores houve que aceitaram a ideia de que outras defesas indirectas poderiam ser opostas ao pedido de despejo imediato, como a compensação com crédito do inquilino sobre o senhorio - acórdão do STJ de 7 de Julho de 1979, BMJ n. 228, pg. 302 e segs. - e a ilegitimidade do autor na acção - acórdão da Relação de Lisboa de 19 de Janeiro de 1989, Col. Jur. 89-I-112, este último aplaudido por Pais de Sousa, Cardona Ferreira e Lemos Jorge, Arrendamento Urbano - Notas Práticas, pg. 200.
E, mais claramente, também Mário Frota, obra citada, pg. 578, nota 4, enumerou cinco vias de defesa por parte do inquilino, quatro delas consistindo na alegação e prova de pagamento ou de depósito, quer tempestivo, quer tardio, das rendas em causa e, neste último caso, também da indemnização, e consistindo a restante na alegação de "... que a mora é imputável ao locador, não sendo lícito que lhe(s) assaquem responsabilidades por facto que lhe(s) não é imputável."
Aqueloutra orientação mais exigente - a de que nada mais o réu pode utilmente fazer do que provar que as rendas em causa e a respectiva indemnização pelo atraso foram pagas ou depositadas - leva até longe o fundamento habitualmente indicado para o despejo imediato, traduzido em que "... é especialmente de recear a possibilidade de o arrendatário, logo que o senhorio entra em juízo ............ com a acção de despejo, deixar de pagar as rendas que de futuro se vençam (até como despeito contra a atitude do autor), mas sem de modo nenhum abandonar o imóvel que lhe não pertence". - Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4. edição, pg. 585.
E as opiniões doutrinárias que têm vindo a manifestar-se já em relação ao texto constante do artigo 58 do RAU não deixam transparecer mudança de opinião significativa.
Na obra citada em último lugar, a pg. 586, escreve-se: "A secura expressiva com que, no n. 2, em termos ainda mais lacónicos do que os usados no n. 2 do artigo 979 do Código de Processo Civil de 1961, se manda ordenar o despejo, revela bem que, além da obediência incondicional ao princípio do contraditório, à lei só interessa averiguar os dois pressupostos da sanção cominada na disposição: o arrendatário deixou ou não de pagar? As rendas por cumprir venceram-se ou não na pendência da acção?"
No mesmo sentido opinaram já Miguel Teixeira de Sousa, A Acção de Despejo, pg. 64, Pais de Sousa, Anotações, pg. 153, e Aragão Seia, obra citada, pg. 300.
Temos como correcto, porém, fazer uma restrição a esta orientação, que não atende a que o arrendatário, nos casos em que nada de ilícito e culposo cometeu, não deve ser penalizado.
E sê-lo-ia, em certos casos, se se seguisse rigidamente a ideia daqueles autores.
Vejamos porquê.
No regime geral das obrigações o devedor tem que efectuar a sua prestação nas circunstâncias de lugar e tempo a que está vinculado, designadamente na data que constitui o prazo para tal, como é a regra no arrendamento. Isso é imposto pelo dever de cumprir pontualmente - artigo 406.
Podendo suceder, porém, que o credor recuse indevidamente a prestação que lhe é oferecida ou que não pratique os actos necessários ao cumprimento da obrigação - não se apresentando, v. g., para a receber no domicílio do devedor se for este o local do cumprimento ou recusando passar quitação ou restituir o título da obrigação -, dá-se a entrada do credor em mora, por força dos artigos 813, 787, n. 2, e 788, n. 3.
Pode então o devedor ficar aguardando mudança de atitude por parte do seu credor; mas pode igualmente usar um meio que o artigo 841 lhe faculta para se exonerar, se o quiser fazer, da prestação: a respectiva consignação em depósito. Porém, nada sofre por o não fazer.
Em matéria de arrendamento urbano algumas especialidades há que assinalar.
O artigo 22 do RAU, pressupondo como normal o pagamento da renda, prevê ainda o depósito como forma alternativa de extinção da respectiva obrigação.
Três são as hipóteses em que tal pode ter lugar.
Desde logo, quando ocorrerem os pressupostos da consignação em depósito.
Depois, quando ao inquilino for permitido fazer cessar a sua mora ou provocar a caducidade do direito de resolução nascido com a falta de pagamento de rendas, com o que se é remetido para a consideração dos artigos 1041 e 1048 do CC.
Finalmente, quando estiver pendente acção de despejo - sendo fácil ver nesta hipótese o propósito de permitir que se evitem entre o senhorio e o inquilino contactos que, dada a existência do litígio, facilmente se anteveriam como pessoalmente difíceis.
É a este regime que se refere o artigo 58, n. 1, do RAU quando diz que na pendência dessa acção as rendas vencidas devem ser pagas ou depositadas nos termos gerais.
Mas esta alternativa legal não significa a imposição de que uma coisa ou outra tenha necessariamente lugar.
Pode, licitamente, haver omissão de ambos; o pagamento carece da colaboração do credor; o depósito é facultativo.
Tal como o n. 2 daquele artigo 22 o faz, também o n. 3 deste artigo 58 só para a hipótese de mora refere a necessidade de pagamento ou depósito dessas rendas. Trata-se, obviamente, da mora do devedor, pois igual pagamento ou depósito terá que se verificar quanto à indemnização devida.
Não diz a lei - e seria absurdo que o dissesse, pois isso traduziria a injusta penalização que atrás deixámos anunciada - que o inquilino terá de ir depositar a renda, com indemnização, se o senhorio indevidamente se tiver recusado a recebê-la dentro do prazo, ou por qualquer outra forma se constituir em "mora creditoris".
Daí que seja necessário, por elementar imperativo lógico, aceitar que em tal caso o inquilino se defenda de um eventual pedido de despejo imediato com a simples invocação dessa mora e seja admitido a prová-la.
Só distorcendo a letra da lei e o sentido, que devemos presumir ser acertado, da mesma se poderia aceitar que o inquilino, não tendo pago por razões apenas imputáveis ao senhorio, estivesse obrigado a ir pagar ou depositar, com indemnização, as rendas em questão e pagar as custas do incidente e as despesas do levantamento.
Conclui-se. pois, que o citado artigo 58 consagra o entendimento já sufragado antes por Mário Frota e a que a jurisprudência, em casos pontuais, não pôde, como se mostrou, deixar de aderir.
A argumentação das instâncias, simplesmente fundada na orientação tradicional, não pode, deste modo, ser aceite.
Cabe fazer ainda uma última observação.
Poderia dizer-se que a orientação acabada de definir é platónica na medida em que o alargamento do leque das questões susceptíveis de serem levantadas pelo inquilino abrangeria apenas aquelas em relação às quais seria inadequada a necessidade de se usar exclusivamente prova documental.
Além de diversa jurisprudência, esta exclusividade tem sido afirmada por larga doutrina - cfr., na anterior a 1990, Alberto dos Reis, local citado, e Rodrigues Bastos, local citado, e, na posterior, Miguel Teixeira de Sousa, local citado, e Pais de Sousa, Cardona Ferreira e Lemos Jorge , obra citada, pg. 199.
Mas o actual artigo 58 do RAU, ao contrário do seu antecedente artigo 979 do CPC, não afirma expressamente a necessidade de prova documental.
Ao dizer apenas "... e disso faça prova ...", sem reproduzir a referência à prova documental que constava do n. 2 do citado artigo 979, não dá apoio bastante a uma ideia de exigência de prova dessa natureza.
Se assim é, e se a prova testemunhal é admissível em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada - artigo 392 -, e se, finalmente, o direito processual é um instrumento para a aplicação do direito substantivo, sendo a esta que se deve dar primazia, teremos que concluir pela necessidade de abandono daquela orientação restritiva quanto aos meios de prova a usar.
Assim o deixa intuir Meneses Cordeiro, local citado, quando a respeito desta orientação escreve: "Solução rígida e formal: .... O importante, para o Direito, reside no cumprimento das normas, podendo o arrendatário prová-lo por qualquer forma."
E di-lo expressamente Aragão Seia, obra citada, pg. 300.
Não se exige, pois, produção exclusiva de prova documental.
III- Vejamos, então, como se repercute na decisão o que vem de ser dito.
O réu defendeu-se, ao ser ouvido sobre o pedido de despejo imediato, com a alegação de que o autor não alegou devidamente, ao formular este pedido, a matéria respeitante ao tempo e lugar do pagamento, designadamente porque não demonstrou que indicou por escrito que o pagamento deveria ser feito na conta referida.
Não repetiu aqui, claramente, uma outra alegação que fizera na contestação da acção, designadamente a de que pediu, sem êxito, a passagem de recibos das rendas, embora a mesma deva ser entendida como a razão da sua invocação da mora do credor a que na sua defesa também.
A questão do lugar e tempo do pagamento das rendas não vem incluída nas alegações e conclusões deste recurso.
Não poderia, pois, levar a que se dê razão ao agravante.
Mas sempre se dirá, em todo o caso, que considerando o que o réu disse na contestação, foi elaborada na especificação uma alínea D), acima transcrita em h), não tendo, como se disse em i), o réu reclamado da sua inclusão como facto assente.
Por isso, tem-se como assente uma estipulação acessória posterior ao contrato, a qual, não tendo sido alegado haver revestido forma escrita, trataremos como verbal.
Vale para ela, pois, o que se preceitua no artigo 221, n. 2.
E, aplicando a solução nele contida, diremos que não vale para a subsequente estipulação convencional sobre o local do pagamento a razão que levou a que no artigo 7, n. 1, do RAU se exigisse a sujeição do contrato de arrendamento urbano a forma escrita.
Esta razão consistiu no peso das obrigações reciprocamente assumidas pelas partes, quer pelo pesado encargo patrimonial que envolvem, quer pela duração tendencialmente prolongada das mesmas, quer ainda pelo valor económico dos bens sobre que incide.
Escapa a este vector o ponto sobre que incidiu a cláusula posterior sobre o local de pagamento.
Esta cláusula foi, portanto, plenamente válida e está assente que foi estipulada.
Surge então, como conclusão evidente, a de que o réu, ora recorrente, não a cumpriu, constituindo-se em mora ao não pagar as rendas vencidas após o prazo da contestação - as vencidas em 1 de Outubro, 1 de Novembro e 1 de Dezembro de 1995.
Seria, ainda de perguntar uma coisa:
- Se, no entender do réu, era necessária indicação por escrito para pagar a renda em local diverso do inicialmente convencionado, por que razão a não foi pagar a casa do senhorio?...
Fica, pois, por decidir-se se é profícua para o ora agravante a invocação da mora do credor.
Como se assinalou já, o ora agravante nada acrescentou, ao defender-se no incidente, ao que sobre este ponto dissera na contestação.
Aí disse que lhe não foram entregues recibos das rendas pagas.
Tal facto, oportunamente quesitado na acção, não justifica o não oferecimento das rendas subsequentes.
Cada renda é uma prestação independente das restantes, anteriores ou posteriores; e em relação a cada uma delas deverá o devedor, nos termos contratuais, aprestar-se a cumpri-la.
Não o dispensa de tal a circunstância de, eventualmente, o senhorio se ter constituído em mora quanto a renda anteriores.
E também não há mora do senhorio quando este nega o recibo de renda que recebeu; de acordo com o artigo 787, n. 2, o devedor pode recusar a prestação enquanto a quitação não for dada; se, não obstante, a cumpriu, o problema da quitação só poderá pôr-se quanto a rendas posteriores.
E isso não foi alegado em devido tempo.
Improcedem, portanto, as conclusões 1. a 3.
Nega-se, pois, embora por razões diversas das do acórdão recorrido, provimento ao agravo.
Custas pelo agravante.

Lisboa, 12 de Maio de 1998
Ribeiro Coelho,
Garcia Marques,
Silva Paixão.