Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6178/16.4T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROVA VINCULADA
VIOLAÇÃO DE LEI
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Apenso:



Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :
I- A 2.ª instância assume-se como um verdadeiro e próprio segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto, com autonomia volitiva e decisória nessa sede, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostraram acessíveis com observância do princípio do dispositivo.

II- Fundando-se o recurso de revista na averiguação das regras inerentes ao exercício dos poderes-deveres previstos no art. 662º, 1 e 2, do CPC quanto à reapreciação pela Relação da matéria de facto, sindicável nos termos do art. 674º, 1, b), do CPC, pode ser controlada a aplicação da lei adjectiva pela Relação em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada – não uso ou uso deficiente ou patológico dos poderes-deveres em segundo grau, controlando o respectivo modo de exercício em face do enquadramento e limites da lei para esse exercício –, que, no essencial e no que respeita ao n.º 1 do art. 662º, resultam da remissão do art. 663º, 2, para o art. 607º, 4 e 5, do CPC (o n.º 2 já é reforço dos poderes em segundo grau), com a restrição constante do art. 662º, 4, do CPC («Das decisões da Relação previstas no n.os 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.»).

III- Sempre que essa reapreciação é feita e se move no domínio da livre apreciação da prova, na qual a lei não prescreve juízos de prioridade de certos meios de prova sobre outros, sem se vislumbrar que se tenha desrespeitado a força plena de qualquer meio de prova, imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório, e cumprindo o dever de fundamentação especificada e motivação crítica que os n.os 4 e 5 do art. 607º do CPC e os princípios reitores do art. 662º, 1, do CPC impõem, essa actuação é insindicável em sede de revista, nos termos conjugados dos arts. 662º, 4, e 674º, 3, 1.ª parte, do CPC.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 6178/16.4T8VNG.P1.S1


Revista – Relação do Porto, ... Secção


Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


A) AA instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB, viúva, CC e cônjuge DD, EE e FF, pedindo a anulação do testamento lavrado em 13/06/2014 por GG, nele instituindo como herdeiros da sua quota disponível os netos e aqui co-réus EE e FF.


Os Réus apresentaram Contestação.


B) Foi realizada audiência prévia, com prolação de despacho saneador; fixou-se o valor da causa (€ 50.000,01) e julgou-se improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade da 3.ª Ré DD.


C) Correu incidente de habilitação de herdeiros em face do falecimento da Ré BB com decisão de procedência em favor de CC, EE e FF.


D) Realizada audiência final de discussão e julgamento, o Juiz ... do Juízo Central Cível de ... proferiu sentença, julgando improcedente a acção e absolvendo os Réus do pedido.


E) Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que conduziu a ser proferido acórdão que, (i) em sede de reapreciação da decisão da matéria de facto, alterou e modificou para provados os factos 9. a 36. (perante a impugnação dos factos não provados 9. a 16., 22., 35. e 36. e dos factos alegados nos artigos 22, 23, 24, 26, 27, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40 e 47 da petição inicial), e, quanto ao mérito, julgando procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e decretando a anulação do testamento.


F) Confrontados com esta inversão judicativa, os Réus CC, DD, EE e FF interpuseram recurso de revista para o STJ, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões:


“(…)


2 A presente revista encontra o seu fundamento no disposto no art. 674º nº 1, al. b) o qual prescreve que ”A revista pode ter por fundamento, a violação ou errada aplicação da lei de processo”, sendo que estão preenchidos os demais requisitos para a admissibilidade de tal recuso – artigos 671º, nº 3º, 629º, nº1, 672º, nº1 e 638º todos do Código de Processo Civil.


3 O STJ pode censurar o mau uso que o Tribunal da Relação tenha eventualmente feito dos seus poderes sobre a modificação da matéria de facto, bem como pode verificar se foi violada ou feita aplicação errada da lei de processo (alínea b) do nº1 do artigo 674º do Código de Processo Civil).


4 O Douto Acordão de que ora se recorre procedeu a uma alteração da matéria de facto (nos termos do supra transcrito) decidindo diferentemente do que havia sido feito pelo tribunal de primeira instância.


5 – Nos presentes autos foi produzido um vastíssimo leque de prova testemunhal, documental e pericial.


6 – Na sua acepção legal o testamento aparece definido como sendo o “acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os bens ou de parte deles” – art. 2179º do C.C., podendo “testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer” – art. 2188º do C.C., havendo a capacidade do testador de ser aferida pela data da celebração do testamento – art. 2191º do C.C.


7 A capacidade do testador é sempre determinada pelo estado em que o mesmo se encontrar no acto da realização do testamento e não no momento da abertura da sucessão da herança, sendo que, e em consequência, se o testamento for lavrado numa ocasião em que o testador de nenhumas perturbações mentais padecia não poderá ver a sua validade afectada pelo facto de o testador vir futuramente a sofrer de doença que afecte de modo absoluto a sua capacidade.


8 – De harmonia com o disposto no artigo 2190º do C.C., o testamento feito por incapaz é nulo, prescrevendo-se no artigo 2199º do mesmo diploma, que “é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício por qualquer causa, ainda que transitória”, sendo que, esta última disposição tinha como correspondente no Código de Seabra o artigo 1764, onde se prescrevia ser proibido testar ao que não estivesse em perfeito juízo.


9 – No domínio específico das disposições testamentárias, ao contrário do que sucede com as regras aplicáveis aos negócios jurídicos em geral, a anulabilidade de um testamento por verificação de uma incapacidade acidental, depende, tão somente, da comprovada falta de capacidade do testador, no momento em que o lavrou, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam, e não também da notoriedade desse estado psíquico – Cfr., entre outros, Oliveira Ascenção, Sucessões, 1967, pg. 72, e Ac. da Rel. de Coimbra, de 7/07/92, C.J., 1992, vol. IV, pg, 57, onde pode ler-se que “a anulabilidade do testamento prevista no artigo 2199, do C.C., encontra paralelo no artigo 257, do mesmo Código quanto às condições e requisitos da incapacidade natural em geral, mas diverge desse regime, por prescindir da notoriedade daquele estado ou do seu conhecimento pelo declaratário”.


10 Da decisão de 1ª Instância consta na fundamentação:


“A problemática em análise nos autos, como é sabido, diz respeito a uma patologia do foro clínico que, alegadamente, impedia o falecido GG de avaliar ou entender o sentido de Processo: de Processo Comum Página 10 de 14 uma declaração negocial que se corporiza no testamento que o autor vem impugnar no presente litígio.


Tratando-se de matéria do foro clínico, seria necessário, como é natural, que especialistas na matéria que está em causa se pronunciassem sobre a correspondente factualidade, descrevendo o que puderam constatar directamente, através da observação do falecido, e analisando, de forma crítica, os meios complementares de diagnóstico, tudo com vista a apurar se, efectivamente, a patologia em causa se verificava e em que termos a mesma afectava as capacidades cognitivas da pessoa em causa.”


“Relativamente a esta temática, devem-se desde já excluir-se os depoimentos das testemunhas HH, II, JJ, KK e LL, as quais, não tendo conhecimentos técnicos sobre a matéria que está em causa, depuseram sobre aspectos fácticos destinados a enquadrar a patologia que vinha invocada – como sejam as alegadas alterações comportamentais do falecido tratando-se, no entanto, de depoimentos que não mereceram credibilidade ao Tribunal, dadas as ligações familiares e/ou profissionais que os depoentes têm aos litigantes (testemunhas II, JJ e KK), o mau relacionamento com uma das partes envolvidas (testemunha HH que se encontra de relações cortadas com o Réu CC) e a falta de consistências das declarações prestadas, com evidente enfabulação e/ou desconhecimento da matéria que esta em causa.


As declarações prestadas pelas partes, são, obviamente, irrelevantes, dado o seu interesse no desfecho da causa e o desconhecimento de matérias do foro clínico. No que concerne às restantes testemunhas que foram inquiridas nos autos, importa também excluir os depoimentos das testemunhas MM, NN, OO e PP, dado que as mesmas, apesar de exercerem a sua actividade profissional na área da medicina, não observaram o falecido nem tiveram qualquer intervenção no respectivo processo clínico, limitando-se a emitir parecer, em audiência final, sobre a matéria que está em causa.


No que diz respeito à testemunha QQ, tendo observado o testador em algumas consultas que ocorreram entre 2005 e 2014, não pôde confirmar que o mesmo sofra da patologia em questão, tal como sucede com a testemunha RR, médica que, tendo observado o falecido, não se pronunciou no sentido da existência da doença de Alzheimer”


11 – De harmonia como o disposto no art. 342º do C.C. aquele «que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado» (nº 1), sendo que a «prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita» (nº 2).


12 – Assim, a iniciativa da prova cabe, em princípio, à parte a quem aproveita o facto dela objecto – e não ao tribunal –, sob pena de não vir a obter uma decisão que lhe seja favorável, uma vez que o juiz julga secundum allegata et probata (art. 346º do C.C. e art. 414º do C.P.C.).


13 «Ora, para cumprir este ónus, reconhece-se o direito à prova, corolário do direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art. 20º da C.R.P., sendo que, incumbe ao tribunal remover qualquer obstáculo que as partes aleguem estar a condicionar o seu ónus probatório (art. 7º, nº 4 do C.P.C.), bem como realizar ou ordenar oficiosamente «todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quando aos factos de que é lícito conhecer» (art. 411º do C.P.C.).


14 Em ordem a cumprir este desiderato o Tribunal de primeira instância ordenou, oficiosamente, a realização de prova pericial realizar pelo INMLCF por


“A problemática em análise nos autos, como é sabido, diz respeito a uma patologia do foro clínico que, alegadamente, impedia o falecido GG de avaliar ou entender o sentido de uma declaração negocial que se corporiza no testamento que o autor vem impugnar no presente litígio.”


15 – Dispõe o art. 388º do C.C. «a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando seja necessário conhecimentos especiais que os julgadores não possuam».


16 – A prova pericial traduz-se, assim, «na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos específicos ou técnicos especiais (…); ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca de outros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas».


17 – Logo, a «nota típica, mais destacada, da prova pericial consiste em o perito não trazer ao tribunal apenas a perspectiva de factos, mas poder trazer também a apreciação ou valoração de factos, ou apenas esta».


18 – O perito é, assim, uma «pessoa qualificada», e exerce a sua actividade «sobre dados técnicos, sobre matéria de índole especial», por isso se afirmando que «o perito maneja uma experiência especializada», dando ao «juiz critérios de valoração ou apreciação dos factos, juízo de valor, derivados da sua cultura especial e da sua experiência técnica». A sua função é a de «mobilizar os seus conhecimentos especiais em ordem à apreciação dos factos observados».


19 – Contudo, o seu resultado está sujeito à livre apreciação do tribunal, tal como a força probatória do depoimento das testemunhas, de acordo com o disposto nos artigos 389º e 396º do Código Civil.


20 – A prova pericial e a prova testemunhal têm, assim, a mesma força probatória, pelo que a prestação de um dos meios de prova nunca poderá prejudicar ou precludir a prestação do outro. O facto de estar em causa uma matéria eminentemente técnica não implica, por si só, que não tenha qualquer utilidade a inquirição de testemunhas indicadas pela parte.


21 O objecto da prova pericial é a percepção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (art. 388º do Código Civil).


22 – À prova pericial há-de reconhecer-se assim um significado probatório diferente de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal. Mas se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz – já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser susceptível de uma crítica material e igualmente científica. Deste entendimento das coisas deriva uma conclusão expressiva: sempre que entenda afastar-se do juízo científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva.


23 – Daqui decorre que, “Entre a fundamentação da sentença e a decisão não pode haver contradição lógica, isto é, a fundamentação fáctico jurídica tem de ser coerente, não se poderá partir de uma premissa e concluir pelo seu contrário.


24 – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no n.º 3 do art. 674.º do CPC, isto é: “quando haja ofensa de uma disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova”.


25 – Como é consabido e resulta do supra exposto, a reapreciação da matéria de facto pela Relação, no âmbito da previsão dos artigos 662º, nº 1 e 640º, nº 1 do CPC, importa a reponderação dos elementos probatórios produzidos nos autos, averiguando se permitem afirmar, de forma racionalmente fundada (com base nas regras comuns da lógica, da experiência, do bom senso e, quando for o caso, dos ensinamentos da ciência), a veracidade da realidade alegada (ou o inverso, quando o facto tenha sido julgado provado pela primeira instância).


26 – Esta apreciação transcende a averiguação da sinceridade dos depoentes e testemunhas – a decisão da matéria de facto assenta numa convicção objectivável e motivável, a que se acede por via da razão, alicerçada em elementos de lógica e bom senso.


27 Apreciação que também se não confunde ou resume a certificar o declarado pelas partes ou testemunhas ou o teor de determinado elemento probatório – aprecia-se quer da valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios (da consistência, coerência e verosimilhança de cada um dos referidos elementos, tomado individualmente) e também a sua valia extrínseca (da conjugação e compatibilidade entre todos eles).


28 – Apreciação que assenta numa convicção objectivável e motivável, a que se acede por via da razão, alicerçada, quando a questão de facto controvertida o exigir, nos contributos do ramo do conhecimento científico em causa.


29 – A liberdade na apreciação da prova não equivale a uma apreciação arbitrária das provas produzidas, uma vez que o inerente dever de fundamentação do resultado alcançado impedirá a possibilidade de julgamentos despóticos.


30 – O Acordão recorrido valora a aludida prova testemunhal, nomeadamente o depoimento das testemunhas HH e II, que reputou de “óbvia importância” e que “de forma absolutamente credível e circunstanciada depuseram” (fls. 81 e 82 do Acordão),


31 O Acordão recorrido omite as razões pelas quais considerou credível esse meio de prova, não esbatendo as razões por que foram tais depoimentos considerados inconsistentes e sem credibilidade em sede de primeira instância.


32 – Esta análise de tais depoimentos é tão mais importante pois, nos termos do agora decidido, os mesmos constituíram o fundamento para alteração da matéria de facto, no sentido de considerar provada a factualidade constante dos Nº 11, Nº 12, Nº 13, Nº 14, Nº 15, Nº 16, Nº 17, Nº 18, Nº 19, Nº 20 e Nº 21.


33 O Tribunal da Relação passou a considerar tais depoimentos “credíveis e circunstanciados”, ora tal não passa do nível da mera justificação teórica para justificar um determinado resultado, sem que sejam reveladas e demonstradas as circunstâncias concretizadoras de tais conceitos e que conduziram à modificação da decisão da matéria de facto advinda da 1ª instância.


34 – Importa não esquecer que se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.


35 – Este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade apenas presentes em sede de Julgamento em primeira instância (neste sentido Ac. do TRP, Proc. Nº 467/18.8T8SJM.P1 de 22-05-2019, in www.dgsi.pt).


36 – São esses elementos que, analisados criticamente, atribuem ao juiz a legitimidade para declarar quais os factos que julga provados e não provados, devendo especificar, por razões de sindicabilidade e de transparência, os fundamentos que concretamente se tenham revelado decisivos para formar a sua convicção (nº 2 do art. 653º do CPC).


37 – O Tribunal da Relação para operar uma modificação sobre a matéria de facto advinda da primeira instância, deverá de modo claro, linear e consistente, explicitar as razões da sua discordância com a decisão recorrida, de molde a que se entenda, por um lado, por que razões se considera que, com fundamento nos meios probatórios produzidos e de que o tribunal de primeira instância também se serviu e valorou deveriam ser extraídas conclusões diversas das retiradas na decisão recorrida, justificando, desse modo, as pretendidas alterações dos factos impugnados no sentido de se considerarem provados ou não provados, respectivamente e, por outro, esclarecer por que razões errou o tribunal de primeira instância na interpretação que fez desses meios de prova.


38 – Ora, isto considerado, como decorre do exposto, na motivação da matéria facto o tribunal de primeira instância formou a sua convicção com fundamento nos elementos de prova, que identificou, e fez a valoração de tudo ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, dando relevância a uns elementos de prova em detrimento de outros que, fundadamente, entendeu não possuírem consistente credibilidade que permitissem alicerçar uma motivação positiva sobre a materialidade impugnada, como supra se transcreveu quanto à fundamentação da douta sentença proferida em primeira instância.


39 – Do acordão recorrido não discorre, de modo claro, linear e consistente, a explicitação das razões porque tais depoimentos foram considerados credíveis e circunstanciados de modo claro e linear, explicitadas as razões da sua discordância com a decisão de primeira instância, de molde a que se entenda, por um lado, por que razões entende que, com fundamento nos mesmos meios probatórios que aduz em sustentação da impugnação e de que o tribunal também se serviu, devem ser extraídas conclusões diversas das retiradas na decisão de primeira instância, considerando-se demonstrados factos que aí o não foram, e, por outro, esclarecer por que razões errou o tribunal de primeira instância na interpretação que fez desses mesmos meios de prova.


40 – Existe assim falta de fundamentação para modificar a decisão que quanto a tais depoimentos advinha da 1ª instância e, por conseguinte, impõem-se a anulação do acórdão com base na violação de regras de direito processual.


41 Por outro lado, a prova documental não é concludente para, por si só, demonstrar o estado de incapacidade do testador.


42 – Resta a prova pericial cuja realização foi ordenada pelo tribunal de primeira instância e que, relativamente ao estado mental do testador, conclui dizendo não ter elementos para concluir por essa incapacidade.


43 Considerado tudo o que antecede, dúvidas não existem de que à prova pericial há-de reconhecer-se um significado probatório diferente de outros meios de prova, maxime da prova testemunhal, sendo igualmente certo que os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz – já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser susceptível de uma crítica material e igualmente científica, e não por qualquer testemunha sem qualquer conhecimento da matéria.


44 Sendo que consta do mencionado relatório pericial, além do trazido à colação pelo Tribunal da Relação, ainda o seguinte (esclarecimentos prestados em 17/03/2017):


“Deste modo embora haja evidência no sentido da existência de defeito cognitivo, a existência deste per se, não permite afirmar que o doente tenha perda de capacidade de tomar decisões de forma livre e esclarecida, facto que depende do grau de declinio e dos domínios afetados. Na verdade o defeito cognitivo pode afetar, em situações particulares, apenas domínios estritos da cognição que não a capacidade de julgamento e, deste modo, não impedir uma decisão livre e informada. Não existindo uma avaliação formal ou não tendo esta sido disponibilizada nem havendo uma aferência padronizada da garduação do declínio e da sua evolução, não é possível inferir sobre esta capacidade” (sublinhado e negrito nossos)


45 Destarte, na inexistência de outra prova concludente no sentido da incapacidade (testemunhal ou documental), o Acordão recorrido considerou como provada factualidade que a prova pericial produzida considerou não ter elementos para considerar como demonstrada.


46 O Acordão recorrido é completamente omisso quanto às razões que levaram à prevalência da prova testemunhal sobre o relatório pericial, sendo certo que neste último é emitido um parecer que versa sobre matéria que envolve conhecimentos científicos, não acessíveis ao julgador e que, como supra se referiu: se os dados de facto pressupostos estão sujeitos à livre apreciação do juiz – já o juízo científico que encerra o parecer pericial, só deve ser suscetível de uma crítica material e igualmente científica.


47 – Sempre que entenda afastar-se do juízo científico, o tribunal deve motivar com particular cuidado a divergência, indicando as razões pelas quais decidiu contra essa prova ou, pelo menos, expondo os argumentos que o levaram a julgá-la inconclusiva.


48 O Acordão recorrido considera como provados os factos constantes dos Nº 35 e Nº 36 em completa oposição com o vertido no relatório pericial e esclarecimentos posteriores realizados nos autos, sem contudo explanar quais as razões que o levaram a decidir em contrário do aí vertido.


49 Assim, a decisão recorrida incorreu em violação ou errada aplicação da lei de processo nos termos do artigo 674º, nº1, al. b) do CPC, dos princípios da imediação e oralidade e ainda violou o disposto nos artigos 388º, 389º e 396º todos do CC devendo por isso ser anulada e proferida outra em conformidade com as regras e princípios da lei de processo.”


Em resposta, o Autor e Recorrido apresentou contra-alegações.


G) Após redistribuição, foram colhidos os vistos legais de acordo com o art. 657º, 2, do CPC.


Cumpre apreciar e decidir.


II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS


H) Admissibibilidade e objecto do recurso


Estão verificados os pressupostos gerais e especiais da revista enquanto espécie (arts. 629º, 1, 631º, 671º, 1, CPC).





Surge como única questão decidenda a sindicação do uso do art. 662º, 1, do CPC na reapreciação da matéria de facto, ao abrigo do fundamento previsto no art. 674º, 1, b), do CPC, tendo em conta a remissão do art. 663º, 2, e aplicação do art. 607º, 4 e 5, do mesmo CPC.


I) Factualidade assente


Após reapreciação no âmbito da apelação desencadeada junto da 2.ª instância pelo Autor, verifica-se que a materialidade estabilizada como provada e não provada pela Relação foi a que se passa a descrever:


⇒ Factos provados


1 – O autor e o réu CC são os únicos filhos do casal formado por GG e pela esposa e Ré BB.


2 – O referido GG faleceu no dia ... de ... de 2015, com 92 anos de idade, no estado de casado com a ré BB, em comunhão geral de bens.


3 – O réu CC é casado no regime de comunhão geral de bens com a Ré DD.


4 – Por testamento lavrado em 13/6/2014, no Cartório Notarial do Licenciado ... sito em ..., o sr. GG instituiu herdeiros da sua quota disponível os netos, únicos filhos do réu CC e aqui co-réus EE e FF.


5 – Como emerge desse testamento, o testador não assinou por declarar não o saber fazer, limitando-se a apor a sua impressão digital no final do texto.


6 – O falecido GG ao longo da sua vida ativa foi um empresário que se dedicou à atividade industrial, designadamente, através das sociedades comerciais I...... . ......... .. ......... .... ........., Lda. e M..... . ......, Lda., por ele criadas, e em que concedeu aos dois filhos participação no respetivo capital social.


7 – Ao longo dessa sua vida ativa o sr. GG apunha diariamente a sua assinatura em variados documentos, designadamente cheques, transferências bancárias, contratos, documentos contabilísticos e esporadicamente em escrituras públicas e outros documentos oficiais que lia previamente antes de assinar.


8 – Em 2012, o falecido pai do autor ainda conduzia (art. 13º da petição inicial).


9 – Desde 2007, então com 84 anos, o sr. GG começou a evidenciar perturbações cognitivas, cujos principais sintomas se traduziam em esquecimentos frequentes, falta de orientação no tempo e no espaço.


10 – Essa deterioração cognitiva foi diagnosticada como doença de Alzheimer algum tempo após o seu início e, como sempre ocorre nessa enfermidade, com evolução progressiva e irreversível.


11 – Por isso, deixou de poder conduzir desde pelo menos meados de 2013 e desde aí raramente saía de casa, e desde data incerta de 2013 deixou de ter qualquer intervenção activa nas empresas de que era sócio e gerente.


12 – Já em 2013 que confundia os personagens da televisão com pessoas reais.


13 – Passou a evidenciar alterações da linguagem, com discurso pouco fluente, com dificuldade na compreensão verbal e anomia.


14 – Desorientava-se, com alguma frequência, mesmo em espaços que lhe eram familiares.


15 – Frequentemente, perdia-se no interior da própria casa, não acertando com as portas das divisões, mormente a da casa de banho.


16 – Frente a um espelho, não reconhecia a sua pessoa e dirigia-se à sua própria imagem como se de uma terceira pessoa se tratasse.


17 – A partir de data incerta de 2013, deixou de ir à casa de banho autonomamente e começou a usar fraldas de dia e de noite.


18 – Pelo menos a partir dessa altura, o sr. GG perdeu total e definitivamente a capacidade de cuidar de si mesmo, necessitando de ajuda permanente de terceira pessoa para se vestir, calçar, cuidar da sua higiene e de se alimentar.


19 – No final de 2013, o estado dessa doença era já de tal forma avançado que o sr. GG se encontrava em situação de total dependência, não identificando já diversas pessoas que bem conhecia e lhe eram familiares e ou das suas relações pessoais, com quem lidava no dia a dia.


20 – Por causa dessa doença deixou, pelo menos à data do testamento, de saber assinar.


21 – Para tratamento da doença de que padecia – doença de Alzheimer –, o falecido GG, desde pelo menos 2007 e 2008 e a partir de 2013 até à morte tomava regularmente os medicamentos Ebixa e mais tarde o Axura, receitados por médicos especialistas nesse tipo de doença.


22 – Pelo menos a partir de final de Julho de 2014 o sr. GG passou a ser medicado com Sertralina.


23 – Em 13 de Junho de 2013, observado pela médica neurologista Dr.ª SS, a mesma declarou que: “O Sr. GG, de 91 anos de idade apresenta um quadro de deterioração cognitiva, terá começado a ser notado cerca de quatro anos Os primeiros sintomas foram esquecimento, com dificuldade em se lembrar de eventos, recados. Progressivamente começou a ter dificuldade em executar tarefas habituais, como gerir assuntos de natureza financeira, planear os trabalhos do campo, que estava habituado a fazer, dificuldade em conduzir o carro, perdendo-se. Actualmente apresenta um quadro de deterioração cognitiva com grave perturbação da memória, tem dificuldade em reconhecer pessoas, alterações da linguagem, com discurso pouco fluente, com dificuldade na compreensão verbal e anomia. Confunde os personagens da televisão com pessoas reais. Desorienta-se mesmo em espaços familiares com alguma frequência e tem alguns episódios de incontinência. Este quadro clínico é característico da doença de Alzheimer, apresentando-se o doente numa fase avançada da doença. O doente necessita do apoio permanente de uma terceira pessoa nas actividades de vida diária. De acordo coma Tabela Nacional de Incapacidade, Capítulo X, alínea I. 3 - Perturbações da personalidade e do comportamento devidas a doença, lesão ou disfunção cerebral, e alínea II - critérios de avaliação das incapacidades, grau V perturbações funcionais muito graves, envolvendo uma importante regressão da personalidade e profunda modificação dos padrões do comportamento, a que atribuo uma incapacidade de 0,75 (75%).


24 – O médico Dr. QQ, emitiu a seguinte declaração “(...) O Sr. GG (...), actualmente com 92 anos de idade, tem recorrido a esta clínica desde Abril de 2005, tendo sido observado por mim em várias situações de doença. Durante o ano de 2014 e até à presente data, o doente foi observado por mim em 20-05-2014 por Candidíase bucal e em Domicílio a pedido da família em 27-07-2014. Atendendo ao exame objetivo, nesse dia, apresentado pelo doente foram pedidos exames analíticos que evidenciaram Anemia por carência de ferro, pelo que o doente foi posteriormente medicado. O Sr. GG foi seguido em consulta da especialidade de Neurologia pela Dra. SS e é seguido nesta clínica L..... ..... . ....... ......... (...) desde Março de 2007 por Quadro Demencial em consulta de Neurologia pela Dra. TT. O doente está com medicação exclusiva da especialidade de neurologia para esta patologia, medicação que pode ser receitada por esta especialidade”.


25 – Também em 02/11/2014 tendo sido atendido no Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de .../..., aí se referiu que o ora falecido GG “Admitido no SU às 19.54h como vítima de queda acidental da própria altura de que resultou TCE e escoriações na região frontal direita; referência a perda de consciência; sem vómitos ou alteração do comportamento habitual. Antecedentes pessoais de doença de Alzheimer, dislipidémia e HBP; medicação habitual Ebixa, Axura, sinvastatina, lorazepan”.


26 – No relatório datado de 03/11/2014, referente ao exame a que o mesmo sr. GG foi submetido aquando daquele episódio de urgência, no Serviço de Imagiologia do Centro Hospitalar de .../..., aí se refere: “(...) Sinais de leucoencefalopatia isquémica. Enfartes lacunares nos gânglios da base. As vias de circulação de líquor são amplas por perda de volume encefálico.”


27 – Essa observação demonstra a existência de um outro quadro demencial, associado a múltiplas lesões isquémicas cerebrais, denominada demência vascular ou demência por múltiplos enfartes.


28 – Na autópsia a que o cadáver de GG foi submetido em .../.../2015, do respetivo relatório datado de 31/03/2015, consta o seguinte:


a) “Boletim de informação clínica: Admitido no dia ........2015. Deu entrada na sala de emergência cadáver. Segundo o filho com antecedentes de HBP, síndrome demencial, IC e Dislipidemia.”


b) “Informação social colhida a CC (filho da vítima, portador do cartão de cidadão com o número ......42. Proveniência do cadáver: Centro Hospitalar de .../....


Antecedentes de hipercolesterolémia, patologia cardíaca e da próstata. Faria medicação “para a memória”. Na madrugada do dia ........2015 terá iniciado respiração ofegante tendo sido chamados os bombeiros para o conduzir ao hospital” (....) Foi presente o seguinte documento de identificação: Bilhete de identidade. (...) Estatura: 160cm, Peso: 42 Kg, IMC:16,4 Kg/m2 (...) Encéfalo: ... Nas diferentes secções de corte observa-se atrofia cortical frontal, observando-se área lacunar nos núcleos da base à esquerda, podendo corresponder a lesão isquémica antiga. (...) Vasos e nervos: estrias lipídicas dispersas pelo lúmen arterial das artérias carótidas. Sem alterações macroscópicas das veias jugulares. (...) Válvulas: presença estrias e placas de ateroma nas valvas da válvula aórtica. Estenose da válvula mitral com calcificação do anel valvular. Artérias coronárias: presença de placas de ateroma calcificadas no lúmen da artéria coronária descendente anterior com obstrução de cerca de 50%. Presença de placas de ateroma calcificadas no lúmen da artéria circunflexa com obstrução de cerca de 75%. Presença de placas de ateroma calcificadas no lúmen da artéria coronária direita com obstrução de cerca de 50%. Artéria Aorta: placas de ateroma dispersas. (...) Vasos: placas de ateroma dispersas pelas artérias ilíacas externa e interna bilateralmente com sinais de calcificação e ulceração” (...) Procedeu-se à colheita de fragmentos de órgãos para exame anátomo-patológico, cujo relatório segue em anexo a este e que revelou: “lesões de aterosclerose coronária e estenose de 50%. Lesões de cardiopatia isquémica crónica e hipertrofia. Lesões de valvulopatia crónica de tipo degenerativo. Lesões de silico-antracose em pulmão com enfisema. Lesões de broncopneumonia aguda incipiente à esquerda. Lesões de necrose tubular aguda em rim com atrofia. (...) Em face dos dados necrópsicos, do resultado dos exames complementares de diagnóstico, da informação clínica e da informação social colhida nesta Delegação e atrás transcritas, a morte de GG foi devida a broncopneumonia aguda em paciente com insuficiência cardíaca (cardiopatia isquémica crónica com hipertrofia associada a valvulopatia) (...) O exame toxicológico ao sangue revelou a presença de Sertralina na concentração de 57ng/mL (dose considerada terapêutica segundo a lista da TIAFT Reference blood level list of therapeutic and toxic substances The International Association of Forensic Toxicologists).


29 – O filho lá referido nesse relatório era o Réu CC.


30 – Em anexo a este Relatório de Autópsia consta Relatório de Anatomia Patológica Forense, datado de 21 de Março de 2015, do qual se extrai: “antecedentes patológicos: Insuficiência cardíaca. Dislipidémia. Demência. HBP (...) Encéfalo com congestão vascular e alterações do tipo hipóxico-isquémicas antigas perivasculares, sem outras alterações valorizáveis” (...) Diagnóstico Lesões de aterosclerose coronária e estenose de 50%. Lesões de cardiopatia isquémica crónica e hipertrofia. Lesões de valvulopatia crónica de tipo degenerativo. Lesões de silico-antracose em pulmão com enfisema. Lesões de broncopneumonia aguda incipiente à esquerda”.


31 – Essas lesões de “aterosclerose coronária e estenose de 50%”, “lesões de cardiopatia isquémica crónica e hipertrofia” e “lesões de valvulopatia crónica de tipo degenerativo”, patologias que pela sua dimensão e gravidade já ocorriam seguramente muito antes de 2014, associadas à doença de Alzheimer em fase avançada e à já referida demência vascular ou demência por múltiplos enfartes, evidenciavam um estado de acentuada fraqueza, quer física quer psíquica.


32 – A Doença de Alzheimer é uma doença neurodegenerativa progressiva, decorrente da morte dos neurónios em determinadas áreas do cérebro e que causa uma crescente e irreversível deterioração das funções cognitivas, nomeadamente da memória, atenção, concentração, linguagem, capacidade de pensamento.


33 – Esta deterioração implica alterações no comportamento, na personalidade e na capacidade funcional da pessoa, dificultando de forma crescente a realização das actividades da vida diária, ficando a pessoa afectada gradualmente mais dependente da assistência de outros, até chegar a uma situação de dependência total e, mais tarde, à morte.


34 – Entre o dia 13 até ao dia 17 Junho de 2014, o R. CC levou os pais, GG e BB, da casa onde estes habitavam sita na Rua ..., para a residência sita no Largo ..., na freguesia de ..., concelho de ....


35 – Em face das doenças que o afectavam e impediam o livre exercício da sua vontade, o testador, GG, na data da outorga do testamento, em 13/6/2014, não tinha capacidade para entender o sentido da declaração que emitiu e que consta desse testamento.


36 – Estando privado da vontade e discernimento para praticar aquele acto de disposição e não tendo capacidade para compreender e entender o acto que estava a praticar.


⇒ Factos não provados


a) – que, na sequência dos factos provados sob os nºs 8 e 9, já em finais de 2010 começou a perder-se no curto trajecto, que efectuava diariamente, da fábrica para casa;


b) – que o primeiro dia em que tal ocorreu foi em 9/11/2010;


c) – que já em 2011 se tenha deslocado, por diversas vezes, aos domingos, para a fábrica, no convencimento de que se tratava de dia de trabalho, regressando a casa ao constatar que estava tudo fechado;


d) – que já não sabia ligar o rádio do carro; posteriormente deixou de saber engrenar velocidades conduzindo sempre em 1ª, arrancava com o carro travado e assim continuava (a esposa alertava-o para o “cheiro a queimado”) e por fim já não sabia sequer como pôr o carro a trabalhar;


e) – que no dia 20 de Agosto de 2013 fechou-se na casa de banho e só de lá saiu com ajuda do autor e da esposa deste;


f) – que estava, então, nu da cintura para baixo, dizendo repetidamente "Está ali um “f d p” dum cigano que me quer fazer mal";


g) – que frequentemente levantava-se a meio da noite, com alucinações e deambulava pela casa a falar sozinho e depois ficava sentado na sala às escuras.


J) Fundamentação de direito


1. O art. 662º constitui a norma central de atribuição de autonomia decisória à Relação em sede de reapreciação da matéria de facto, traduzida numa convicção própria de análise dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se encontrem disponíveis no processo.


Começa tal atribuição por estar plasmada na prescrição-matriz da competência de reavaliação factual do n.º 1, sem dependência de provocação pelas partes em sede de recurso para esse efeito:


«A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»


Depois, o n.º 2 do art. 662º, 2, do CPC estabelece verdadeiros poderes-deveres funcionais e qualificados (a lei diz «deve ainda, mesmo que oficiosamente») sempre que, aquando da reapreciação da prova sujeita à livre apreciação, não resulte uma convicção segura e fundamentada sobre os factos, uma vez confrontada com a motivação e a decisão reflectidas na 1.ª instância.


Nomeadamente quanto às als. a) e b) (ordenar a renovação de certos meios de prova sempre que haja dúvidas sérias sobre a credibilidade de algum depoimento ou sobre o respectivo sentido; ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em 1.ª instância relativamente a determinado ou determinados factos controvertidos, a produção de novos meios de prova), consagram-se poderes claramente ordenados a possibilitar à Relação a resolução de dúvidas que se afiguram perceptíveis quanto ao apuramento da verdade de certos e determinados factos alegados pelas partes, criando, dessa forma, condições de igualdade com a 1.ª instância na observação directa da fonte de prova ou no acesso a novos meios de prova1 e, assim, fazer verdadeira e autónoma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados e formar a sua própria convicção, em resultado, se for o caso, das provas que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa2. Com isso, evita-se, ademais, que a Relação parta para a construção de presunções judiciais para a dedução desses factos sobre cuja verificação teve dúvidas, sem uma adequada base dedutiva para a elaboração lógica dos factos desconhecidos, quando tem ao seu dispor, antes disso, uma competência probatória idónea a ultrapassar dúvidas relevantes.


Em acrescento, vislumbram-se ainda competências habilitadas a, em confronto com a decisão de 1.ª instância, sanar deficiências, obscuridades, contradições e incompletudes, mesmo de fundamentação, nos termos das als. c) e d) do art. 662º, 2.


Acrescente-se que as diligências complementares e extraordinárias a fazer pela Relação, tendo como foco nomeadamente as als. a) e b) do art. 662º, 2, devem ser ajuizadas como fundamentais para o apuramento da verdade material condicionante da resolução do mérito do litigio. Para isso, tais poderes-deveres não dependem de iniciativa das partes (nem são direito potestativo que lhes assista)3. São (ou podem-devem ser) exercidos oficiosamente e aspiram à formulação de um resultado judicativo próprio, destinado a “superar dúvidas fundadas sobre o alcance da prova já realizada”4. Estamos verdadeiramente perante deveres processuais de carácter vinculado, impostos para “proceder a um (verdadeiro) novo julgamento da matéria de facto, em ordem à formação da sua própria convicção, designadamente verificando se a convicção expressa pelo tribunal a quo possuía razoáveis tradução e suporte no material fáctico emergente da gravação da prova (em conjugação com os mais elementos probatórios constantes do processo)”5. Logo, é de sustentar que (também) esse poder deve ser exercitado oficiosamente sempre que, objectivamente, as diligências probatórias a fazer têm uma relação instrumental decisiva para a afinação dos factos essenciais alegados como causa de pedir (ou dos factos complementares e/ou concretizadores aludidos no art. 5º, 2, do CPC) e que conferem um possível enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal de 1.ª instância, crucial para a correcta decisão de mérito da causa, desde logo por imposição do art. 411º do CPC, sob pena da sua violação6.


Esta é uma intervenção que está de acordo com uma filosofia clara do CPC de 2013, em que, sem abdicar do princípio do dispositivo, “o tribunal também está comprometido com a verdade dos factos e daí que, por força do princípio do inquisitório, alguns desses factos possam vir a ser provados por mor da sua intervenção”, no contexto de um processo “trialógico”, “um processo de partes perante um juiz activo”7.


Assim sendo.


A norma do art. 662º do CPC, como norma central de atribuição de autonomia decisória à Relação em sede de reapreciação da matéria de facto, começa por ser uma tarefa de reponderação da decisão sobre a decisão proferida sobre a factualidade em face dos factos assentes, da prova já produzida e plasmada nos autos e, bem assim, por documentos supervenientes que imponham ou (extensivamente) sejam susceptíveis (pela sua aptidão probatória) de impor uma decisão diversa da obtida em 1.ª instância – este é o parâmetro de actuação imposto pelo n.º 1 do art. 662º.


Essa reponderação, em termos de complementaridade, pode acarretar a convicção da existência de vícios “simples” ou “amplos” (fundamentalmente por omissão e lacuna) na decisão da Relação, que levem à mobilização dos poderes-deveres funcionais do art. 662º, 2, do CPC e suas consequências em ordem à estabilização da matéria de facto8.


Ora.


O STJ não pode sindicar, em princípio, o uso feito (particularmente de forma activa) das competências probatórias atribuídas pelo art. 662º, 1 e 2, tendo em conta a regra de insindicabilidade do n.º 4 do art. 662º.


Porém, esta solução não impede, abrigado no fundamento da revista previsto no art. 674º, 1, b), do CPC, que se verifique se a Relação, ao usar tais poderes, agiu dentro dos limites configurados pela lei para esse exercício e/ou verificar se a Relação omitiu o exercício de tais poderes, que se impunham relativamente a aspectos relevantes para a decisão. Isto é, por um lado, a verificação-censura do mau uso (deficiente ou patológico) desses poderes; por outro lado, a verificação-censura ao não uso dos poderes9 – tudo conjugado como ainda vistos como sindicação de “errores in procedendo”.


Serão sempre situações manifestas e objectivas de vício processual; mas são situações que, mesmo que residuais e muito limitadas, atentos os poderes do STJ, não podem ser ignorados, se assim for, na sindicabilidade da revista.10


2. Vista a pretensão recursiva, os Recorrentes não colocam em causa o controlo feito na instância superior nem, portanto, o exercício legítimo dos poderes legais de reconfiguração da matéria de facto, imputando-lhe – o que não faz – uma privação de poderes que estaria vedado em 2.ª instância.


Se bem vemos, os Recorrentes censuram a forma como se empreendeu a análise crítica das provas e, nessa linha, se constituiu a nova convicção do tribunal, que alterou de modo radical a materialidade assente, a que fez subsumir o direito aplicável constante do art. 2199º do CCiv. Em particular, os Recorrentes não se conformam com a forma como o tribunal recorrido valorou prova testemunhal (desconsiderada na 1.ª instância) em detrimento das conclusões de prova pericial e, nessa senda, imputou “falta de fundamentação para modificar a decisão que quanto a tais provas depoimentos vinha da 1.ª instância” (v. Conclusões 30. a 33., 39. a 40., 45. a 46.) e “omissão quanto às razões que levaram à prevalência da prova testemunhal sobre o relatório pericial”.


3. Neste âmbito, precisemos que o art. 662º do CPC, consagrando o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, estabiliza os poderes da Relação enquanto verdadeiro tribunal de instância, proporcionando a reapreciação do juízo decisório da 1.ª instância para um efectivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito. Por isso a doutrina tem acentuado que, nesse segundo grau de jurisdição, se opera um verdadeiro recurso de reponderação ou de reexame, sempre que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da matéria de facto em causa (em especial os depoimentos gravados), que conduzirá a uma decisão de substituição, uma vez decidido que o novo julgamento feito modifica ou altera ou adita a decisão recorrida.11


Sempre – nunca é demais sublinhar – com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1.ª instância (é perfeitamente elucidativa a aludida remissão feita pelo art. 663º, 2, para o art. 607º, que abrange os seus n.os 4 e 5) e, destarte, sem qualquer subalternização – inerente a uma alegada relação hierárquica entre instâncias de supra e infra-ordenação no julgamento – da 2.ª instância ao decidido pela 1.ª instância quanto ao controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de uma determinada matéria de facto, precipitado numa convicção verdadeira e justificada, dialecticamente construída e, acima de tudo, independente da convicção de 1.ª instância12.


Pois bem.


O que se verifica objectivamente, a págs. 81 a 110 do acórdão recorrido, é uma análise circunstanciada e detalhada dos meios de prova disponíveis nos autos – depoimentos de parte, testemunhas, relatórios e declarações médicos, informações clínicas, relatório de autópsia e de anatomia patológica forense, relatório de perícia médico-legal indirecta, documentos de diversa natureza, incluindo testamento e parecer médico-legal –, com o consequente reflexo na consideração como provados dos factos n.os 9 a 36, incluindo e rematando com o recurso a presunções naturais ou judiciais para dar como provados os factos 35. e 36.


Dessa verificação decorre, em especial, que o acórdão recorrido procedeu a uma análise do alcance da prova pericial, em conjugação com a prova testemunhal, utilizando um método relacional, dotado de crítica racional nos aspectos tidos como essenciais e alinhando a prova considerada na sua globalidade – sem juízos de prioridade, que a lei não determina em sede de livre apreciação da prova – para retirar conclusões sobre o alcance – muito lato e significativo – da impugnação feita sobre a factualidade provada em 1.ª instância no sentido de aferir da sua ampliação.


Não se demitiu nem se refugiou em critérios imprecisos nessa análise; não se espraiou em considerações genéricas sobre princípios de ordem processual; muito menos se escondeu em alusões vagas à tarefa de reapreciação fáctica para chegar às suas conclusões; antes se realiza uma convicção própria, reflectida na forma e nas razões com que se funda de maneira justificada a modificação do elenco de factos provados (nomeadamente quando se confrontou com as asserções da prova pericial, o que legitima desde logo quaisquer desvios13).


Mais.


Nessa convicção não se exarou dúvida assente em depoimentos contraditórios, que nos remetesse para alguma das hipóteses do art. 662º, 2, do CPC, nomeadamente quando se confrontou com a prova testemunhal que pudesse contrariar o resultado conferido pela prova pericial e documental constante dos autos (nomeadamente a perícia médico-legal e o parecer médico-legal).


Nesta convicção fez-se toda uma nova motivação, adequada ao caso concreto e suficientemente explicativa das razões pelas quais, mesmo sem a imediação da 1.ª instância, a Relação entendeu proferir uma decisão diversa, transparecendo dela um inequívoco e seguro fio condutor quanto à matéria da patologia que afectaria o testador no momento da sua outorga em face da forma como foi tratada e conjugada a prova analisada14.


Para isso, ademais, não se fez uso ilegítimo de poderes relativos a factos instrumentais ou complementares previstos, a título inquisitório, no art. 5º, 2, do CPC.


Deu-se cumprimento aos n.º 4 e 5 do art. 607º no seu dever de fundamentação especificada, declarando para todos os factos reapreciados os motivos da sua decisão na credibilidade dos depoimentos, no conteúdo dos documentos e nas conclusões dos peritos, dando-se cumprimento aos princípios reitores do art. 662º, 1, do CPC («deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida15 ou um documento superveniente impuserem decisão diversa»).


Em suma.


Regendo-se no domínio da livre apreciação da prova e sem se vislumbrar que tenha desrespeitado os limites da força probatória de qualquer meio de prova, muito menos imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório material (no que aqui mais interessa, para a força probatória de prova documental, cfr. art. 376º do CCiv., assim como os arts. 389º e 396º do CCiv), estamos perante actuação processualmente lícita (art. 607º, 4, 5, 1ª parte, 663º, 1 e 2, CPC) e insindicável nos termos dos arts. 662º, 4 («Das decisões da Relação prevista nos n.os 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.»), e 674º, 3, 1.ª parte («O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista…), do CPC. É evidente que se compreende o inconformismo do Recorrente, expresso nas Conclusões da revista, desde logo porque a ampliação factual é de monta – a decisão de 1.ª instância continha apenas 8 (oito) factos provados! – e conduziu a um resultado decisório inverso ao proferido em 1.ª instância. Mas – bem ou mal, como sói dizer-se –, perante uma (re)apreciação legítima e sem desconformidade legal de força probatória e feita em regime de prova livre e “não tarifada”, não há como evitar a aplicação da irrecorribilidade ope legis em revista do acórdão recorrido das decisões em matéria de facto que os Recorrentes pretendiam ver agora reapreciadas.


III. DECISÃO


Em conformidade, julga-se improcedente a revista.


Custas da revista pelos Recorrentes.


STJ/Lisboa, 2 de Novembro de 2023


Ricardo Costa (Relator)


Luís Espírito Santo


Maria Olinda Garcia


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

_______________________________________________

1. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 627.º a 877.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, sub art. 662º, págs. 170-171, 174-175.↩︎

2. V. Ac. do STJ de 7/9/2017, Processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1, Rel. TOMÉ GOMES, in www.dgsi.pt.↩︎

3. Por todos, v. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 640º, pág. 166, sub art. 662º, págs. 294-295, FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 536-537.↩︎

4. ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 662º, pág. 298.↩︎

5. FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II cit., pág. 537, completando: “Foi, assim, arredada a conceção segundo a qual a atividade cognitiva da Relação se deveria confinar, tão-somente, a um mero controlo formal da motivação/fundamentação efetuada em 1ª instância”.↩︎

6. V. Acs. do STJ de 5/7/2022, processo n.º 400/180.0T8PVZ.P1.S1, com referência aos pontos II. e III do Sumário, e de 15/3/2023, processo n.º 2755/20.7T8FAR.E1.S1, sempre como Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎

7. URBANO LOPES DIAS, “Limites do poder cognitivo do juiz – nas instâncias e no STJ”, Blog do IPPC, 3/4/2017, https://blogippc.blogspot.com/2017/04/limites-do-poder-cognitivo-do-juiz-nas.html, pág. 5.↩︎

8. V. o Ac. do STJ de 5/7/2022 cit. (supra, nt. (6)), em referência aos pontos IV. e VI. do Sumário.↩︎

9. V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.9.2013”, CDP n.º 44, 2013, págs. 33-34, ID., “Dupla conforme e vícios na formação do acórdão da Relação”, de 1/4/2015, in https://blogippc.blogspot.com/2015/04/dupla-conforme-e-vicios-na-formacao-do.html; ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 662º, págs. 312-313, sub art. 682º, págs. 435-436; JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º cit., sub art. 662º, pág. 177, sub art. 674º, pág. 232.

Na jurisprudência do STJ, v. Acs. de 11/2/2016, Processo n.º 907/13.5TBPTG.E1.S1, Rel. ABRANTES GERALDES; 26/11/2019, processo n.º 431/14.9TVPRT.P1.S1, Rel. PEDRO LIMA GONÇALVES (“(…) das decisões da Relação incidentes sobre renovação da produção de prova ou sobre a produção de novos meios de prova, bem como dos restantes procedimentos afirmados nas alíneas c) e d) do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil, não cabe recurso para o STJ, ou seja, este recurso está vedado sempre que a Relação na valoração que faça dos meios de prova a cuja reponderação tenha procedido não encontre dúvidas sobre a credibilidade do depoente ou o sentido com que deve valer o conteúdo do respetivo depoimento, nem sobre a prova realizada na 1ª instância. Assim, o recurso poderá ter lugar apenas quando, reconhecida uma situação de dúvida como a prevista nas alíneas a) e b), e com as deficiências constantes das alíneas c) e d), e confrontado, o Tribunal da Relação, em vez de cumprir o dever de a ultrapassar, lançando mão dos meios postos ao seu dispor para perseguir a descoberta da verdade, se remete à passividade, incumprindo a lei processual que lhe cominava esse poder-dever.”: sublinhado nosso); e 6/9/2022, processo n.º 3714/15.7T8LRA.C1.S1, Rel. GRAÇA AMARAL (“(…) estando em causa a apreciação de aditamento de matéria de facto relevante, uma vez que o acórdão recorrido entendeu não ser de conhecer da referida matéria, de acordo com os termos acima concluídos quanto à melhor interpretação do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, há que considerar que o tribunal a quo não logrou utilizar todos poderes que a lei lhe confere para o efeito (nomeadamente o poder/dever previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC). Consequentemente, não pode deixar de se considerar que a decisão de afastar a possibilidade de aditamento da matéria de facto indicada pelo Recorrente reconduz-se na violação do dever de reapreciação da referida matéria.”); sempre in www.dgsi.pt.↩︎

10. Para tudo, v., ainda mais recentemente, os Acs. do STJ de 15/6/2023, processo n.º 6132/18.1T8ALM.L1.S2, e de 17/10/2023, processo n.º 2154/07.6TBPVZ.P2-B.S1, sempre como Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎

11. V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A impugnação das decisões judiciais”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 395-396, 399-400, 400, 402-403.↩︎

12. V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Prova, poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia”, CDP n.º 44, 2013, págs. 33-34, 36; na jurisprudência, v., exemplificativamente, os Acs. do STJ de 10/7/2012, processo n.º 3817/05.6TBGDM-B.P1.S1, Rel. FERNANDES DO VALE, e 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, Rel. AZEVEDO RAMOS, in www.dgsi.pt.↩︎

13. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 389º”, Código Civil comentado, I, Parte Geral (artigos 1.º a 396.º), coord.: A. Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 1070.↩︎

14. Sobre o ponto, v. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMANDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º cit., sub art. 662º, pág. 170.↩︎

15. Logo, também a prova sujeita a apreciação livre.↩︎