Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B039
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
CADUCIDADE
EXECUÇÃO
EMBARGOS DE EXECUTADO
Nº do Documento: SJ2009021200039
Data do Acordão: 02/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
1. Tendo o beneficiário respeitado qualitativamente o acordo de preenchimento, a inscrição, numa livrança subscrita em branco, de um montante superior ao devido à data do preenchimento não a inutiliza como título executivo.
2. A morte de um dos subscritores não provoca a caducidade do direito de preenchimento.
Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA, BB e CC (filhos menores de AA e por ela representados, demandados enquanto sucessores de seu pai, DD) deduziram embargos à execução contra eles instaurada pela Caixa de C... A... M... do R... N..., CRL, com base uma livrança subscrita (em branco) pela primeira embargante e seu marido, DD, entretanto falecido, para garantia de um crédito que a ambos concedera, e na qual, de acordo com o que fora acordado, segundo sustenta, inscreveu o valor de 57.765.403$00 (€ 273.168,68).
A quantia exequenda – 57.765.403$00 – foi posteriormente reduzida, por iniciativa da exequenda, que veio ao processo comunicar que, entretanto, tinha recebido € 29.927,87 em virtude de um seguro.
Em síntese, invocaram a inexequibilidade do título, por não estar assinado pelos executados; por ter sido preenchida após a morte de DD, que provocara a caducidade da autorização para o preenchimento, que assim, foi abusivo; por não ter respeitado essa autorização, “no concernente às datas de emissão, de vencimento e importância”; por assim sofrer de falsidade, por incluir uma quantia cujo pagamento não era devido (correspondente a despesas judiciais resultantes de não cumprimento atempado das obrigações decorrentes do contrato de mútuo).
A exequente contestou e, julgando a causa no saneador, o tribunal julgou os embargos totalmente improcedentes, a fls. 65.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de fls. 135, foi julgada parcialmente procedente a apelação interposta pelos embargantes. A Relação decidiu não ter caducado o direito do exequente de preencher a livrança subscrita em branco e que o preenchimento tinha respeitado o que havia sido acordado, embora o montante nela inscrito incluísse um valor (€ 15.340,80), a título de despesas judiciais, por corresponder a uma dívida não vencida, não pudesse ser considerado, nestes termos:
“É que, sendo possível conhecer, no âmbito da acção declarativa, da existência de obrigação, ainda não exigível, no momento da propositura da acção, desde que o réu a conteste, e bem assim como condená-lo a satisfazer a prestação, no momento próprio, nos termos do disposto pelo artigo 662º, nº 1, do CPC, semelhante faculdade é, claramente, inaplicável à acção executiva que, por essência, pressupõe o incumprimento da obrigação, por se encontrar em oposição com a norma especial contida no texto do artigo 802º, do CPC. (…).
Assim sendo, as diligências destinadas a tornar certa ou exigível a obrigação exequenda revestem a natureza de verdadeiros preliminares da execução, de pressupostos substancias da mesma, razão pela qual se o credor instaurar logo o procedimento executivo, antes de tornar certa ou exigível a obrigação, não se encontrando a parte, no início do processo, em condições de quantificar as despesas judiciais (custas de parte) que vai passar a efectuar, apesar de reembolsáveis, não esclarecendo a natureza das despesas, nem podendo o pedido formulado, enquanto ilíquido, especificar os respectivos valores, não pode o mesmo, na falta de oportuno indeferimento liminar, proceder, sem mais, consequentemente, na parte em que excedeu os limites constantes do título executivo, atento o prescrito pelo artigo 811º-A, nº 2, do CPC, na redacção anterior à introduzida pelo DL nº 38/03, de 8 de Março.
No caso em presença, se a obrigação de pagamento das despesas de justiça só se vence quando a execução estiver finda, dever-se-á adoptar, por analogia, o procedimento contemplado pelo artigo 457º, nº 2, do CPC, apresentando o exequente, concluída a execução, a respectiva conta de honorários, sobre a qual se pronunciarão os executados e o juiz, a final, incluindo a secretaria, na liquidação a efectuar, a verba de honorários, em consonância com o preceituado pelos artigos 805º, nº 2, do CPC, e 53º, nº 1, do Código das Custas Judiciais.
Procedem, assim, nesta parte, as conclusões constantes das alegações dos embargantes.”
2. Novamente recorreram os embargantes, agora para o Supremo Tribunal de Justiça. O recurso foi recebido como revista, com efeito meramente devolutivo.
Nas alegações que apresentaram formularam as seguintes conclusões:

“1. A «livrança» que subjaz a estes autos não pode produzir efeitos como livrança, uma vez que não contém a promessa pura e simples de pagar a quantia de 51.689.849$00.
2. Ao decidir que a recorrida preencheu a «livrança», computando no montante que lhe apôs um valor indevido, deveria o Tribunal a quo ter julgado ineficaz a «livrança», por preenchimento abusivo em violação do pacto de preenchimento.
3. O acórdão recorrido que julga parcialmente procedente o recurso dos recorrentes, na parte concernente ao preenchimento abusivo da «livrança», e ao mesmo tempo reconhece a essa mesma «livrança» a qualidade de título executivo de uma quantia diferente daquela que consta do documento é contraditório e faz errada interpretação e aplicação dos arts. 10º e 17º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças, aplicável ex vi do art. 77º daquela Lei. Deveria o Tribunal a quo ter declarado e ineficácia daquela «livrança», negando-lhe a qualidade de título executivo, em conformidade com o disposto no art. 75º, nº 2 da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças.
4. O preenchimento realizado pela recorrida não teve na base um «contrato de preenchimento», mas uma mera «declaração» assinada pelos subscritores da «livrança» e desacompanhada de qualquer aceitação pela destinatária.
5. O direito cartular incorporado na livrança só existe na medida do documento. Um escrito contendo a palavra livrança, a promessa pura e simples de pagar e a assinatura dos subscritores, sem mais, não produz efeitos como livrança, atento o disposto nos arts. 75º e 76º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças.
6. À data da morte do subscritor, o documento ainda não estava preenchido com os elementos necessários, designadamente com a soma pecuniária determinada prometida.
7. Quando o subscritor faleceu, o escrito não preenchia os requisitos formais para valer como livrança. E, não havendo então título de crédito, a responsabilidade pelo mesmo não se transmitiu.
8. O subscritor DD faleceu em 20 de Março de 2002 e a livrança só foi preenchida em 27 de Novembro de 2002. No momento do preenchimento havia já caducado o direito da embargada a preencher o documento.”
A exequente contra-alegou, pronunciando-se no sentido de ser negado provimento ao recurso.

3. A matéria de facto que vem provada é a seguinte:
Em 22 de Setembro de 1999, a exequente, por via de escritura pública, declarou que, para solicitação dos capitais de que DD e AA necessitassem, para aplicação exclusiva aos fins previstos na lei vigente sobre crédito agrícola mútuo, abria a favor destes um crédito, até à quantia de doze milhões de escudos, com garantia hipotecária sobre a fracção designada pela letra “Z”, descrita na CRP, sob o nº 1189.
No dia 22 de Outubro de 2001, por documento escrito e assinado, a exequente declarou emprestar a DD e AA, a pedido destes, a quantia de 50.000.000$00, a título de crédito à habitação (nº .....) – construção de habitação própria – regime geral – a pagar pelos obrigados, em 240 prestações mensais, com início, em 22 de Novembro de 2001, e que não foram pagas, a partir de 22 de Maio de 2002.
Na mesma data, por escrito, devidamente assinado, DD e AA declararam que “Em garantia do cumprimento das obrigações ou responsabilidades assumidas no contrato de crédito nº ..., de 22/Out./2001, e/ou dele emergentes, junto remetemos uma livrança por nós subscrita, em branco, a favor da Caixa de C... A... M... de R... N..., CRL, ficando autorizados a preenchê-la, fixando-lhes a data, o vencimento, que poderá ser à vista, quando e como entenderem, o montante do capital mutuado, respectivos juros contratuais e quaisquer outras despesas, sempre que deixemos de cumprir qualquer das obrigações emergentes deste contrato (...)”.
A exequente preencheu a livrança, acima referida, nos termos constantes de folhas 23 dos autos principais, dando-a à execução.
Por escritura de 30 de Abril de 2002, foram os embargantes declarados habilitados como únicos herdeiros de DD, falecido a 20 de Março de 2002.
Em 28 de Dezembro de 2002, encontrava-se em dívida à exequente, relativamente ao contrato de crédito nº ...., a quantia total de € 273.168,68, que inclui capital, juros remuneratórios e de mora, e despesas judiciais.”

4. Como se viu, os recorrentes sustentam que, ao incluir na livrança a referida quantia de € 15.340,80 a título de despesas judiciais, numa altura em que não tinham sido realizadas despesas dessa natureza, a exequente “não só violou o pacto de preenchimento, como deixou de ter título executivo” para a quantia pela qual instaurou a execução, pois que deixou de ter um título que incorporasse “a promessa pura e simples de pagar uma quantia determinada” (a que nele se encontra inscrita).
E sustentam ainda que caducou o direito de preencher a livrança, pois que não estava preenchida à data da morte do subscritor DD, nem tinha “saído do âmbito da relação imediata”; nesse momento, não existia livrança, por não estarem satisfeitos os requisitos formais legalmente exigidos; logo, com a sua morte “não se transmitiu qualquer obrigação cambiária”.
Assim, estão em causa neste recurso duas questões:
– Saber se a inclusão da quantia de € 15.340,80 significa que o pacto de preenchimento foi violado, verificando-se a inexequibilidade do título;
– Saber se, com a morte de um dos subscritores da livrança, caducou o direito do beneficiário de proceder ao respectivo preenchimento, para o qual lhe tinha sido concedida autorização pelos subscritores.

5. Antes de mais, cumpre observar que se não pode considerar a conclusão acima transcrita com o nº 4, por contrariar abertamente o texto das alegações, nas quais se tem como assente a existência de um “pacto de preenchimento que o falecido e sua mulher celebraram com a embargada” e que se traduz num “contrato bilateral que atribui o direito de preencher a livrança em certos e determinados termos”, apesar de se afirmar também que “consta (…) de uma ‘declaração’ assinada pelos subscritores da ‘livrança’ e desacompanhada de qualquer aceitação pela destinatária”.

6. Assim, cabe verificar se a inclusão da quantia de € 15.340,80, que o acórdão recorrido excluiu por corresponder a uma obrigação não vencida à data da instauração da execução, implica que se considere abusivamente preenchida a livrança utilizada como título executivo, em termos de prejudicar essa função.
Os recorrentes sustentam que o acórdão recorrido é contraditório e viola o disposto nos artigos 10º e 17º da LULL, pois devia ter concluído pela inexequibilidade do título.
Cumpre recordar que o acórdão recorrido considerou parcialmente procedente a apelação, nos termos descritos, mas não entendeu que a livrança tivesse sido abusivamente preenchida em termos de prejudicar a respectiva exequibilidade. Diferentemente, começou por analisar o pacto de preenchimento, verificou que a exequente tinha sido autorizada a preencher a livrança que foi subscrita e que lhe foi entregue em branco “nomeadamente, quanto ao montante do capital mutuado, aos respectivos juros contratuais e a quaisquer despesas”, se os mutuários “deixassem de cumprir qualquer das obrigações emergentes desse contrato” de mútuo.
E entendeu que nessas “quaisquer despesas” se incluíam as “despesas judiciais, ou seja, as custas de parte, em cujo conceito, porém, não cabem os honorários (...)”.
O obstáculo apontado pelo acórdão recorrido para que a execução pudesse seguir pelo montante reclamado pela exequente (incluindo, portanto, os € 15.340,80 em questão) foi o de a obrigação de suportar as despesas judiciais não ser “certa e exigível” e de a exequente não estar em condições de a tornar “certa e exigível” quando instaurou a execução, porque a obrigação só no final da execução se vencia. Remeteu, portanto, para o mecanismo previsto no nº 2 do artigo 457º do Código de Processo Civil, que entendeu ser aplicável.
Não existe, assim, qualquer contradição no acórdão recorrido.
E, de qualquer forma, não pode entender-se que o preenchimento da livrança por um montante que excede os limites dos créditos certos e exigíveis no momento da instauração da execução tenha como consequência a inexequibilidade respectiva ou que, como sustentam os recorrentes, não possa valer como livrança.

7. A presente execução baseou-se numa livrança, subscrita e entregue à beneficiária (a exequente) em branco, como garantia de um contrato de mútuo celebrado entre a beneficiária e os subscritores, que a autorizaram a “preenchê-la, fixando-lhes a data, o vencimento (…), quando e como entenderem, o montante do capital mutuado, respectivos juros contratuais e quaisquer outras despesas, sempre que” deixassem de cumprir qualquer das obrigações emergentes (…)” daquele contrato.
Quando a execução foi instaurada, a livrança, entretanto preenchida pela beneficiária, apresentava todos os requisitos definidos pelos artigos 75ºe 76º da LULL para assim ser considerada e, portanto, para servir de base à execução (artigo 46º, c) do Código de Processo Civil).
Tratando-se de uma execução baseada num título extra-judicial, os embargos podem ter como fundamento, além da “inexequibilidade do título” e das outras causas previstas no artigo 814º do Código de Processo Civil para a execução fundada em sentença, qualquer fundamento “que seria lícito deduzir como defesa no processo de declaração” (artigo 816º).
Ao opor à execução a excepção de preenchimento abusivo, os embargantes estão a apontar a inobservância de um acordo respeitante à relação extracartular que os liga (contrato de mútuo, garantido por livrança subscrita e entregue à beneficiária com o montante da dívida em branco, acompanhada de uma autorização para o correspondente preenchimento, como se sabe), o que no caso é admissível, por se tratar de questão suscitada no âmbito das relações imediatas (artigos 10º e 77º, II, da LULL).
Ora, tendo a beneficiária respeitado qualitativamente o acordo de preenchimento, não é a circunstância de ter sido inscrito na livrança um montante superior ao devido à data do preenchimento que a inutiliza enquanto título executivo. Como se escreveu no acórdão de 24 de Maio de 2005 deste Supremo Tribunal (disponível em www.dgsi.pt como proc. nº 05A1347), no domínio das relações imediatas o preenchimento duma livrança feito pelo tomador por valor superior ao resultante do contrato de preenchimento não torna a livrança nula; esta mantém a sua validade relativamente ao montante resultante do mesmo contrato, quer quanto ao tomador, quer quanto ao subscritor e respectivo avalista. A excepção de preenchimento abusivo, por conseguinte, não interfere na totalidade da dívida, confinando-se aos limites desse preenchimento. Por isso, se o subscritor inicial entregou a livrança em branco de quantia e o detentor imediato a preencher por quantia superior ao convencionado, a livrança vale segundo a quantia inferior, aproveitando-se os actos jurídicos praticados. Isto porque, no âmbito das relações imediatas, a obrigação cartular está sujeita ao regime comum das obrigações e, nos termos do art.º 292º do CC, a nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada”, o que não está demonstrado.

8. Também não tem fundamento a alegação de caducidade “do direito da embargada a preencher o documento”.
Com efeito, esse direito foi-lhe contratualmente concedido por um acordo celebrado no contexto do contrato de mútuo celebrado entre a embargante e DD.
Conforme consta da matéria de facto provada, “por escritura de 30 de Abril de 2002, foram os embargantes declarados habilitados como únicos herdeiros de DD, falecido a 20 de Março de 2002”.
Falecido DD, a sua posição contratual, com todos os direitos e obrigações que a integram, transmitiu-se aos embargantes, uma vez que se trata de uma “relação jurídica patrimonial”, nos termos utilizados pelo artigo 2024º do Código Civil, e que nem a natureza da autorização concedida, nem nenhuma disposição legal impõem a sua extinção por morte do titular (artigo 2025º do mesmo Código); nem, aliás, tal extinção foi convencionada.
É irrelevante, quanto a este ponto, que, à data do falecimento do subscritor, a livrança ainda não estivesse completa. Os embargantes sucederam na relação subjacente e é no domínio desta que se situa o pacto de preenchimento.

9. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelos embargantes.


Lisboa, 12 de Fevereiro de 2009

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lázaro Faria
Salvador da Costa