Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2735
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: REFORMA DA DECISÃO
Nº do Documento: SJ200610240027351
Data do Acordão: 10/24/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE.
Decisão: INDEFERIDO.
Sumário : 1) A reforma do mérito prevista no nº 2 do artigo 669º do Código de Processo Civil, tem o perfil substancial do recurso, já que se traduz na reapreciação do julgado, ainda pelo tribunal que proferiu a decisão.
2) Mas como faculdade excepcional que é, deve conter-se nos apertados limites definidos pela expressão "manifesto lapso", reportada à determinação da norma aplicável, à qualificação jurídica dos factos ou à desconsideração de elementos de prova conducentes a solução diversa.
3) O lapso manifesto (que não se confunde com erro ou lapso material) tem a ver com uma flagrantemente errada interpretação de preceitos legais (não por opção por discutível corrente doutrinária ou jurisprudencial) podendo, no limite, ter na base o desconhecimento.
4) O incidente de reforma não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar "error in judicando" ( que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou "aberratio legis", causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

A recorrida "Empresa-A, Limitada", invocando o disposto nas alíneas a) e b) do artigo 669º do Código de Processo Civil, requer a reforma do Acórdão alegando, nuclearmente, não ter sido ponderada a matéria de facto que, na sua óptica, conduziria a diversa solução e ter havido lapso de julgamento por a ilicitude e a culpa não estarem devidamente preenchidas.

Foram dispensados os vistos.

Conhecendo,

1- Reforma do mérito.
2- "In casu".
3- Conclusões.

1- Reforma de mérito.

O nº2 do artigo 669º do CPC (na redacção do DL nº 180/96, de 25 de Setembro e na esteira do DL nº 329/A/95, de 12 de Dezembro) consagra a figura da reforma de mérito, traduzida na reapreciação do julgado pelo tribunal que proferiu a decisão.
Sendo a regra o esgotamento do poder jurisdicional do julgador, uma vez proferida a decisão (nº1 do artigo 666º), aquele juízo de reforma é limitado a três situações precisas: lapso manifesto na determinação da norma aplicável; lapso manifesto na qualificação jurídica dos factos; preterição, por manifesto lapso, de elementos probatórios (documentos, ou outros) constantes dos autos e bastantes para, se tomados em consideração, conduzirem a decisão diversa.

Dizendo buscar maior economia processual, no evitar a interposição de recursos, ou suprir a impossibilidade legal de recorrer, o legislador conferiu ao juízo "a quo" a possibilidade de corrigir uma situação de erro notório e, assim, repor a legalidade.
Refere-se no relatório preambular do citado DL nº 329/A/95 que esta solução "será mais útil à paz social e ao prestigio e dignidade que a administração da Justiça coenvolve, corrigir que perpetuar um erro juridicamente insustentável (...) embora em termos necessariamente circunscritos e com garantia do contraditório."
Mas, como nota, e bem, o Cons. Amâncio Ferreira tratou-se de instituir mais um recurso, "sob a capa de uma reforma". "Não se pode aceitar no nosso ordenamento jurídico este recurso esdrúxulo e espera-se que o legislador na melhor oportunidade o elimine." (apud "Manual dos Recursos em Processo Civil", 6ª ed., 62).
È necessária a demonstração de lapso manifesto o que, quer na determinação da norma, quer na subsunção dos factos, tem a ver com uma totalmente errada interpretação dos preceitos legais, não por adesão a esta ou outra corrente doutrinária ou jurisprudencial (que até as há opostas) mas a um erro gritante que pode ser resultado de "lapsus scribendi", ou outro, obviamente perceptível (mas a não confundir com mero erro ou lapso material do artº 667º), senão, e no limite, um desconhecimento ("ignorantia facti et juris") da matéria tratada na decisão, gerador de erro essencial na decisão.
Isto nas hipóteses da alínea a).
A situação da alínea b) - olvidar ostensivo de elemento constante dos autos - será reveladora de menor zelo no estudo do processo ou de falta de cuidado na preparação da decisão, perfilando-se, embora, como possível, ainda assim, surge com menor grau de probabilidade.
Este incidente não tem a ver com a mera discordância da decisão, com o inconformismo perante a solução jurídica encontrada, ou com a decepção face ao sentenciado "quo tale".
Aqui, trata-se de considerar a existência de "error in judicando", o que só pode ser motivador dos recursos.
Já no incidente em apreço o erro é, tão-somente, resultado de lapso grosseiro e patente, ou de "aberratio legis", por desconhecimento ou flagrante má compreensão do regime legal.
Não é abundante a jurisprudência deste Supremo Tribunal sobre o "thema decidendum", embora "una voce sine discrepante" alinhe neste sentido (v.g os Acórdãos de 9 de Junho de 2005 - 05B1422 - decidiu que "a reforma da sentença (ou acórdão) a que alude o nº2 do artigo 669º do CPC não abrange qualquer erro de julgamento, mas apenas aquele que foi resultante de lapso do julgador na fixação dos factos ou na interpretação e aplicação da lei."; de 11 de Fevereiro de 2004 - 03S1784 - julgando que "a reforma da sentença (...) tem como desiderato suprir os lapsos ou erros manifestos assinalados naquelas alíneas a) e b), não se destina a corrigir eventuais erros de julgamento."; cf., ainda,"inter alia" os Acórdãos de 18 de Setembro de 2003 - 03B1855 - e de 3 de Fevereiro de 1999 - 98B789).

2- "In casu".

A recorrida limita-se a manifestar o seu desacordo sobre a existência de responsabilidade extra contratual, tecendo longas considerações sobre os respectivos pressupostos para concluir em sentido oposto ao do Acórdão reformando.
Mas não aponta - até porque não existe, uma vez que o Acórdão examinou todos os argumentos das partes e ponderou a que considerou melhor doutrina e jurisprudência - qualquer lapso, manifesto na qualificação jurídica, na aplicação da norma ou na desconsideração de elementos dos autos.
Ademais, (e agora apenas na perspectiva da alínea b) do nº2 do artigo 669º do CPC) o Acórdão em crise fez a ponderação - e até transcreveu "ipsis verbis" - o acervo de facto que as instâncias deram por assente, sendo que só esses relevam na decisão de um juízo de revista.
Vir agora, como, certamente por lapso, faz a recorrida - já que não se admite que um Ilustre mandatário pudesse, sem "extrema ratio", invocar, nesta fase, prova já exaurida na livre convicção do julgador de facto - referir depoimentos ou outros elementos que não conduziram à fixação dos factos materiais é, no mínimo, inoportuno.
Trata-se, enfim, de mera discordância (com aceno de uma visão securitária da sociedade, com total menosprezo pelos direitos de personalidade) que não de reconhecimento de qualquer das situações do nº2 do artigo 669º da lei adjectiva.
A seguir na linha da recorrida, todas as decisões passariam a ser alvo de pedido de reforma pois, e sempre, a parte vencida, em desacordo com o decidido, viria dizer que o julgador se enganou.

E assim protelaria o trânsito de uma decisão judicial (note-se, aliás, que esta lide está pendente desde Março de 2000 !!!), dilatando no tempo o cumprimento de obrigações, a indefinição da situação jurídica e o desgaste do lesado.
O perfil substancial do pedido de reforma corresponde à interposição de recurso, mas tratando-se de uma faculdade excepcional deve conter-se nos apertados limites definidos pela expressão "manifesto lapso", que não em termos de exercitar mero desacordo sobre a bondade do julgado.

3- Conclusões.

Conclui-se, então, que:

a) A reforma do mérito prevista no nº 2 do artigo 669º do Código de Processo Civil, tem o perfil substancial do recurso, já que se traduz na reapreciação do julgado, ainda pelo tribunal que proferiu a decisão.
b) Mas como faculdade excepcional que é, deve conter-se nos apertados limites definidos pela expressão "manifesto lapso", reportada à determinação da norma aplicável, à qualificação jurídica dos factos ou à desconsideração de elementos de prova conducentes a solução diversa.
c) O lapso manifesto (que não se confunde com erro ou lapso material) tem a ver com uma flagrantemente errada interpretação de preceitos legais (não por opção por discutível corrente doutrinária ou jurisprudencial) podendo, no limite, ter na base o desconhecimento.
d) O incidente de reforma não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar "error in judicando" ( que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou "aberratio legis", causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal.

Nos termos expostos, acordam indeferir o pedido de reforma.

Custas pela requerente com 8 UC s de taxa de justiça.

Nesta altura não é ainda nítido (embora muito se aproxime) estar-se perante situação permissiva de aplicar o nº2 do artigo 720º do Código de Processo Civil.

Lisboa, 24 de Outubro de 2006

Sebastião Povoas (Relator)
Moreira Alves
Alves Velho