Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1858/06.5TBMFR.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: ALEGAÇÕES
MATÉRIA DE FACTO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 02/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. No âmbito do recurso de impugnação da decisão da matéria de facto, não cabe despacho de convite ao aperfeiçoamento das respectivas alegações.
2. Tal sucede num caso em que o recorrente, no recurso de apelação, invocando a mera discordância quanto aos motivos em que o tribunal se fundou, pretendia a impugnação das respostas aos pontos 1º a 50º da base instrutória e a anulação das respostas aos demais pontos.
          A.G.
Decisão Texto Integral:



Acordam neste Supremo Tribunal de Justiça:

I - MARIA propôs contra
A. - ENGENHARIA, ARQUITECTURA, CONSTRUÇÃO CIVIL, UNIPESSOAL, Ldª,
acção declarativa com processo ordinário, pedindo a condenação da R. no pagamento da quantia de € 21.155,00 acrescida de juros, à taxa legal, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos em consequência do incumprimento do contrato de empreitada celebrado entre ambas.
Contestou a R., imputando à A. o invocado incumprimento contratual, concluindo pela improcedência da acção e pedindo, em reconvenção, a condenação da A. a pagar-lhe a quantia de € 42.536,04, acrescida de juros, correspondente ao valor ainda em dívida pelos trabalhos efectuados e pelos prejuízos decorrentes da privação de materiais utilizados na obra em causa. 
Na 1ª instância foi julgada improcedente a acção e parcialmente procedente a reconvenção, condenando-se a A. a pagar à R. a quantia de € 10.544,00 com juros legais, bem como o montante, a liquidar, correspondente aos custos decorrentes da privação de andaimes retidos no imóvel.
A Relação de Lisboa, no âmbito de recurso de apelação interposto pela A. alterou a sentença e condenou a A. no pagamento da quantia de € 2.320,00 (correspondente à diferença entre o valor dos trabalhos a mais – 5.000,00 – acrescido do valor de materiais de € 70,00 e o que a A. já havia pago) e juros legais, bem como o montante, a liquidar posteriormente, correspondente aos custos dos projectos e dos estudos de arquitectura e decorrentes da privação do material retido no imóvel.

A A. interpôs recurso de revista onde concluiu que:

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

II - Factualidade apurada pelas instâncias:
1. Mostra-se inscrita a favor da A. Maria, divorciada, pela ap. 32/20060203, a aquisição, por compra, do prédio urbano sito na R. …, descrito na CRP de Mafra sob o nº 00213/911121, inscrito na respectiva matriz sob o art. 41º, da dita freguesia – A);
2. O prédio encontrava-se, com 90% das telhas existentes na coberta partidas e cobertas de fungos e líquenes, sem telhas em algumas partes da cobertura, o que permitia a entrada de água da chuva e originou o apodrecimento da estrutura de sustentação do telhado, com o beirado com telhas partidas, cobertas de fungos e líquenes e, em alguns locais, sem telhas, com a cimalha irregular e com fissuras, pinturas das paredes interiores danificadas pela entrada constante de água, com implosão e desprendimento do reboco, humidades de ascendência por capilaridade nas paredes, pavimentos interiores construídos em tábuas e vigas estruturais de madeira, em parte, e em cimento afagado e com pintura assente sobre terreno natural, noutras partes, pavimentos parcialmente apodrecidos, pelas infiltrações de águas da chuva, tectos interiores feitos de tábuas de madeira fixados numa estrutura, igualmente, de madeira, totalmente apodrecidas, instalação eléctrica com fios descamados, interruptores partidos, outros em falta, tomadas partidas e outras em falta, canalização constituída por tubos de chumbo, muito antigos, partidos e com sinais de corrosão, canalizações de esgotos em plástico (não PVC) partidos, paredes exteriores constituídas por reboco, parcialmente, apodrecido, com pintura de cor branca, cobertas de líquenes e fungos, sujidade, fissuras e desprendimento de reboco em alguns locais, caixilharias constituídas por portas e janelas em madeira, com acabamentos em pintura, apresentando desprendimento da tinta e exposição da madeira às águas da chuva, sol e vento, estando os vidros partidos ou sendo inexistentes, a permitir a entrada da água da chuva, ferragens corroídas, dada a ferrugem acumulada com o tempo, não fechando, anexo a apresentar a cobertura sem telhas ou com as existentes partidas, tendo uma estrutura em vigas de madeira totalmente apodrecida e as paredes com falta de reboco e de materiais estruturais e quanto ao pátio interior, as paredes encontravam-se com os rebocos fissurados, com desprendimento de grande parte do mesmo, ocorrendo a presença de fungos e líquenes, estando o pavimento sem qualquer acabamento sobre o terreno natural – C);
3. A A. decidiu mandar proceder à realização de obras de reparação e conservação do prédio, tendo contactado a R. que se dedica à actividade de engenharia, arquitectura e construção civil, para que esta lhe apresentasse um orçamento para o efeito, no seguimento do que a R. apresentou à A., em 21-10-05, um orçamento, propondo-se executar os referidos trabalhos pelo valor global de € 61.550,00; ao calcular o valor dos ditos trabalhos, a R. apurou o montante indicado no mencionado caderno de encargos, ou seja, € 61.550,00, sem IVA – A), D), F) e 51º;
4. A A. não aceitou o orçamento referido em 3., do que deu conhecimento à R., na pessoa do arquitecto V.; entendia ser elevado o valor proposto e alegava não dispor, para o efeito, de quantia superior a € 50.000,00 – 1º, 2º, 3º;
5. A A. disse à R. que dispunha apenas do montante de € 50.000,00 para os trabalhos que pretendia; nessa sequência a R. baixou o valor do dito orçamento e, por acordo com a A., reduziu a quantidade de trabalhos a realizar até perfazer o montante de € 50.000,00 e, em aditamento, apresentou o valor indicado a fls. 88 dos autos – 50º e 4º;
6. Nessa sequência, a A. decidiu cortar trabalhos orçamentados, até ao limite do valor que dizia dispor (€ 50.000,00), designadamente, decidiu: quanto à estrutura, não construir o lintel, nem a laje de pavimento em vigotas e abobadilha, na zona dos quartos e sala de estar; não substituir a cimalha, mas apenas conservá-la; as escadas de acesso apenas seriam demolidas, não sendo reconstituídas; relativamente às paredes do Piso 1, em vez do acabamento em estuque, seriam rebocadas a cimento, afagadas e pintadas com uma demão de tinta; relativamente às paredes do Piso 0, em lugar de serem reparadas, ficavam no estado em que se encontravam; as portas interiores seriam conservadas e não reparadas; o espaço destinado a canil apenas levaria cobertura em vigas de madeira e telha, sendo as fases dos trabalhos aludidas no aditamento que faz fls. 88 meramente indicativas – 53º e 54º;
7. Não se procedeu às medições, mapa de trabalhos e mapa de quantidades por a A. solicitar urgência no início dos trabalhos, invocando que entrava água no interior do prédio – 55º;
8. Segundo o acordado entre A. e R., conforme o aditamento de fls. 88, pelos trabalhos a realizar por esta no descrito prédio, a A. entregaria, na adjudicação, início da Fase 1 (demolição e cobertura), o valor correspondente a 10% + 10% (€ 10.000); no início da Fase 2 (estrutura, paredes em elevação, projectos), valor correspondente a 20% (€ 10.000); no início da Fase 3 (canalização, electricidade, loiças sanitárias), valor correspondente a 20%; no início da Fase 4 (portas interiores, janelas e portas exteriores), valor correspondente a 20% (€ 10.000); no início da Fase 5 (acabamentos), valor correspondente a 15% (€ 7.500); e na entrega da obra, valor correspondente a 5% (€ 2.500) – F);
9. A A., na adjudicação dos trabalhos e a pedido da R., emitiu os cheques nºs ... e ..., no valor de € 5.000 cada, sobre conta do Millenium BCP, que foram pagos em 31-10-05 e 2-11-05, respectivamente, para pagamento dos trabalhos correspondentes à Fase 1; durante a execução da Fase 2 (estrutura, paredes em elevação e projectos), a A. emitiu e entregou à R. mais dois cheques, com os nºs ... e ..., sacados sobre conta do Millenium BCP, no valor de € 5.000 cada, que obtiveram boa cobrança em 30-11-05 e 2-12-05, respectivamente; durante a execução da Fase 3 (canalização, electricidade, loiças sanitárias), a A. emitiu e entregou à R. mais dois cheques, com os nºs ... e ..., sacados sobre conta do Millenium BCP, no valor de € 5.000 cada, pagos em 20-12-05 e 21-12-05, respectivamente – F), H) e I);
10. No período em que a R. executou os trabalhos acordados, a A. acompanhou de perto o desenrolar dos mesmos – N);
11. A A., no decurso da execução da obra, apresentou diversos pedidos de alterações aos trabalhos acordados; as alterações pedidas pela A. atrasavam o seu andamento e faziam encarecer o seu custo, conforme lhe foi comunicado, por diversas vezes, pelo arquitecto V. – 56º, 57º e 58º;
12. Em Janeiro de 2006, a A. começou a entrar em conflito com a R.: assim, sabendo que tinha de aprovar a escolha de materiais à sua disposição em fornecedores - azulejos de parede, mosaico de pavimento, etc. - furtou-se aos contactos telefónicos do arquitecto V., atrasando o decurso dos trabalhos; sabendo que o arquitecto tinha em preparação um projecto de licenciamento de alterações para dar entrada na Câmara Municipal de M., não lhe atendia as chamadas telefónicas, obrigando o mesmo a remeter-lhe duas missivas escritas por via postal sobre a matéria – 59º, 60º, 61º e 62º;
13. Perto do início do mês de Fevereiro de 2006, a A. manifestou à R., na pessoa do arquitecto V., a sua percepção de que os trabalhos das três primeiras fases de execução não se encontravam concluídos e que isso lhe desagradava - 7º;
14. No início de Fevereiro de 2006, a R., na pessoa do arquitecto V., transmitiu à A., que o dinheiro entregue para a execução da obra estava a acabar – 8º;
15. Na sequência do referido em 14., a A. solicitou a realização de uma reunião para aquilatar da situação – 12º;
16. Nessa sequência, realizou-se um encontro em 11-2-06, tendo a A. feito novos pedidos de alteração e tendo resultado de pedido da A. a colocação dos tectos em fase prematura – 63º;
17. Em 11-2-06, a A. encontrou-se com o representante da R., arquitecto V., no local dos trabalhos; A. e R. realizaram uma reunião, em Fevereiro de 2006, num café, na Malveira – J) e L);
18. Após a reunião de 11-2-06, A. e R. acordaram que iria ser efectuada uma medição aos trabalhos realizados, através de peritos, para se aferir se os trabalhos efectuados pela R. correspondiam aos pagamentos efectuados pela A. e acima mencionados em G), H) e I) – 14º;
19. A partir de 22-2-06, devido à chuva que se fez sentir, ocorreram infiltrações de água da chuva, através do telhado, pelo menos, as infiltrações acima referidas deixaram os tectos danificados – 10º, 11º e 16º;
20. No dia 25-3-06, foi realizada medição dos trabalhos efectuados no prédio, intervindo J., desenhador, por parte da A., o arquitecto V., por parte da R. – M);
21. No final da aludida medição, por sua iniciativa, o medidor indicado pela A. decidiu elaborar o seu próprio relatório que assinou, do qual consta que “a entrada de água pelo telhado, provocada pela não conclusão do mesmo, falta de telhas, assim como da não execução da caleira e/ou rufo de remeta com a parede confinante do vizinho; o beirado estava desalinhado; a cimalha/sanca do remete do beirado não estava alinhada; o entulho não foi retirado do local; a provável necessidade de substituição de placas de carão gesso utilizadas na execução de tectos falsos e após 22-2-06, entrou água pelo telhado” – 15º;
22. Algum tempo volvido sobre a reunião de Fevereiro de 2006, a A. colocou um cadeado no portão do prédio em questão; a A. procedeu assim sem que tivesse havido acordo no sentido da substituição da R. na execução dos trabalhos, impedindo o acesso dos trabalhadores desta ao prédio – O) e 64º;

23. À data, a R. tinha realizado os seguintes trabalhos:
Demolição da estrutura da abertura em madeira e substituição por madeira nova, demolição das telhas existentes e transporte para vazadouro, com substituição integral por telhas novas, colocação de sub-telha, colocação de isolamento térmico em XPS, na zona da sala, isolamento térmico em lã de rocha, na zona dos quartos, duas paredes em alvenaria de tijolo na casa de banho, tapamento de roços das especialidades, aplicação de reboco de cimento novo, aplicação de estuque, aplicação de azulejo cerâmico na casa de banho, pintura de paredes do Piso 0, construção de contra-parede em alvenaria de tijolo, demolição de pavimentos em madeira, existentes na sala, construção de laje de pavimento em cimento, colocação de mosaico cerâmico na casa de banho, demolição de tectos existentes em madeira, aplicação de tectos em gesso cartonado, nos quartos, hall de entrada e Piso 0, aplicação de tectos em gesso cartonado hidrófugo no tecto da sala e da casa de banho, pintura de tectos no Piso 0, pinturas de tectos nos quartos do Piso 1, construção de estrutura de suporte para tecto, na zona da cozinha existente, demolição da instalação eléctrica existente e transporte da mesma para vazadouro próprio, abertura de roços de passagem de tubos de enfiamento, colocação de tubos de enfiamento, enfiamento de fios eléctricos, colocação de caixa de quadro no Piso 0, colocação de caixa de quadro no Piso 1, colocação de tubos para tomadas de telefone e TV, demolição de tubagens em chumbo, corroídas e partidas, por inaproveitáveis, e transporte para vazadouro próprio, construção de rede de abastecimento de água fria e quente para casa de banho, colocação de torneiras na casa de banho, construção de rede de abastecimento de água fria para a cozinha, construção de esgoto da casa de banho, colocação de novo reboco em cimento próprio para o efeito, nas paredes exteriores, aplicação de sanita, bidé, lavatório e banheira – P);
24. Aquando do mencionado em 22., além dos trabalhos descritos em 23., a R. tinha ainda realizado: transporte da estrutura da abertura em madeira para vazadouro próprio; aquisição e colocação do beirado sobre a cimalha; demolição de paredes não estruturais; demolição de reboco existente até ao "osso"; realização de duas paredes em alvenaria de tijolo nos quartos e duas no Piso 0; aplicação de reboco areado no Piso 0; colocação de mosaico cerâmico em todo o hall de entrada; regularização de pavimentos no Piso 0, em cimento; aplicação de sanca de remate de tectos nos quartos; demolição de todo o reboco das paredes exteriores até ao "osso" e transporte para vazadouro próprio. Trabalhos esses (no seu conjunto) correspondentes a 54,5% dos trabalhos acordados – 68º e 69º;
25. A R. construiu os tectos falsos e a casa de banho – 9º;
26. O telhado era composto por ripas de madeira, telhas de cobertura e telhas de beirado e como se encontravam argamassadas com cimento, foram partidas em número não determinado – 22º e 26º;
27. A R. não construiu o lintel, no qual assentaria a cimalha, tendo deixado a cimalha velha e construído o beirado assente na mesma – 29º, 30º e 31º;
28. A A. obrigou a R. a solicitar ao arquitecto V. projectos de arquitectura, dois estudos prévios, um estudo de tectos e inúmeras peças desenhadas, extras; solicitou a realização de mais trabalhos, além dos acordados, na casa-de-banho, cozinha, Piso 0, demolição de paredes, traduzidos em alterações correspondentes a 10% do valor acordado – 70º, 71º e 72º;
29. A R., através de advogado, remeteu à A., por correio registado com aviso de recepção, a missiva cuja cópia faz fls. 172/175 – Q);
30. A A. veio a contratar terceira pessoa para efectuar trabalhos na obra; veio a acordar a sua realização com D., industrial da construção civil, que subscreveu o doc. nº 6 com a petição; o mesmo partiu o beirado construído para fazer o lintel e executar a cimalha nova – 18º, 19º e 32º;
31. Em consequência das infiltrações das águas pluviais, através do telhado, os tectos construídos em pladur (gesso) ficaram podres, na sequência do que D. removeu-os e apenas aproveitou a lã de rocha que seria de isolamento; D. procedeu à reposição de novos tectos falsos – 34º, 35º, 36º e 37º;
32. A A. ficou na sua propriedade, pelos menos, com 20 sacos de cimento da R. e com os andaimes ali instalados; orçava, cada saco de cimento, em média, não menos do que a importância de € 3,50; ao não poder dispor dos referidos andaimes, a R. suportou um custo no valor de € 50,00/dia – 65º, 66º e 67º.

III - Decidindo:

1. O acolhimento da pretensão da recorrente está dependente da resposta que for dada ao modo como foi resolvida pela Relação a impugnação da decisão da matéria de facto oportunamente suscitada.

A Relação absteve-se de analisar as questões que envolviam a modificação da decisão da matéria de facto com fundamento em que a apelante não cumprira os requisitos formais previstos no anterior art. 690º-A do CPC, na medida em que se limitou a enunciar, de forma genérica, uma série de pontos de facto cuja alteração pretendia e a invocar depoimentos testemunhais e documentos sem uma efectiva apreciação crítica.

2. Resulta claro do art. 712º, nº 6, do CPC, que das decisões da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, não cabe recurso de revista. Tal não afasta, porém, a possibilidade de apreciar o uso dos mecanismos legais, o que constitui jurisprudência constante deste Supremo frequentemente assumida para rejeitar um certo entendimento segundo o qual seria insindicável a decisão do tribunal de 1ª instância fundada em prova gravada, uma vez que a Relação não beneficiaria dos mesmos factores com que o tribunal de 1ª instância se confrontou, maximizando o relevo atribuído aos princípios da livre convicção (art. 655º do CPC) e da imediação.

Como tem sido frequentemente observado por este Supremo Tribunal, um tal entendimento representa uma violação frontal do regime instituído, tanto mais que o legislador, quando formulou a solução legalmente consagrada, não desconhecia as circunstâncias que rodeiam o exercício das funções atribuídas à Relação em sede de impugnação da decisão da matéria de facto. Apesar disso, admitiu a possibilidade de formar nova convicção sobre o material probatório produzido, sem exclusão dos depoimentos gravados, com eventual modificação da decisão da matéria de facto.

Numa outra vertente mais próxima, aliás, do caso presente, é também unanimemente admitida a possibilidade de reapreciar a decisão da Relação que rejeite a impugnação da decisão da matéria de facto por motivos formais ligados ao cumprimento dos requisitos legalmente previstos.

3. Segundo o art. 690º-A do CPC, introduzido com a reforma de 1995/96, o recorrente, sob pena de rejeição do recurso da matéria de facto, deveria especificar não só os pontos de facto considerados incorrectamente julgados, como ainda os meios de prova que impusessem resposta diversa. Deveria ainda apresentar escrito dactilografado com as passagens da gravação em que se fundasse quando a impugnação estivesse relacionada com meios de prova oralmente prestados perante o tribunal.
Desse modo, terminada a fase das alegações, caberia à Relação reapreciar a decisão impugnada, procedendo a uma valoração autónoma dos meios de prova utilizados na 1ª instância, servindo-se não apenas dos elementos fornecidos pelas partes nas suas alegações e contra-alegações, como dos que resultassem dos autos (art. 712º, nº 2).

Tal regime primitivo repartia com razoabilidade os ónus e os deveres das partes e do Tribunal da Relação, promovendo mais seriedade na interposição dos recursos da matéria de facto e dificultando o seu uso abusivo. Apesar disso, foi rapidamente modificado pelo Dec. Lei nº 183/00, de 10-8. Mantendo-se o ónus de concretização dos pontos de facto impugnados e dos meios de prova que, no entender do recorrente, deveriam determinar a modificação da decisão, foi dispensada a transcrição dos depoimentos, a qual foi substituída pela sua mera referenciação, atento o assinalado em acta, nos termos do anterior art. 690º-A, nº 2, e do art. 522º-C, nº 2, do CPC.

Sendo este o regime aplicável ao caso, a impugnação da decisão da matéria de facto importa para a Relação a necessidade de reponderar as provas produzidas, implicando para a recorrente o cumprimento dos ónus de alegação inscritos no texto legal.

Ao abrigo de tal regime impõe-se a indicação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, exigência bem diversa de uma referência genérica a um rol de factos controvertidos. Exige-se igualmente a especificação (e apreciação crítica) dos concretos meios de prova constantes do processo ou que nele foram registados determinantes de uma decisão diversa quanto a cada um dos factos impugnados, exigência que, relativamente aos meios de prova gravados, deve ainda ser acompanhada da indicação do local onde se encontra a gravação.

4. Longe destas exigências andou a recorrente que, no que concerne à concretização dos pontos de facto impugnados, se limitou a solicitar a alteração das respostas aos pontos 1º a 50º e 73º a 74º e a anulação das respostas aos pontos 51º a 72º (!).

Também a outra vertente do ónus de alegação não foi devidamente cumprida.

Insurgindo-se contra uma decisão fundada em determinados meios de prova que ficaram concretizados na motivação, era suposto que se aprimorasse na enunciação dos reais motivos da sua discordância traduzidos na análise crítica (e séria) da prova produzida e não na genérica discordância quanto ao facto de o tribunal de 1ª instância ter dado mais relevo a umas testemunhas do que a outras. Ónus esse que deveria passar pela análise conjugada dos diversos meios de prova, relevando os que foram oralmente produzidos e os de outra natureza constantes dos autos.

Em face de tantas e tão graves distorções em relação aos trâmites impostos pela lei, não seria exigível que a Relação desse seguimento à referida pretensão genérica, justificando-se a rejeição do recurso na parte respeitante à decisão da matéria de facto.

Com efeito, o regime legal instituído não acolhe de forma alguma a impugnação genérica e imotivada de todos os pontos inscritos na base instrutória, do mesmo modo que se afastou de um modelo alternativo que impusesse à Relação a realização de um segundo julgamento. O que está subjacente ao regime vigente é a impugnação especificada e motivada dos pontos relativamente aos quais existe discordância, levando a que a Relação repondere a decisão que foi tomada sobre determinados pontos de facto, servindo-se dos meios de prova que se mostram acessíveis.

5. Argumenta a recorrente que as falhas de cumprimento do ónus de alegação deveriam ter motivado a prolação de um despacho de convite ao aperfeiçoamento. Trata-se de uma questão que não tem recebido deste Supremo Tribunal uma reposta unívoca, ainda que se prefigure um entendimento largamente maioritário que contraria aquela alegação.

Quedando-nos apenas pela jurisprudência referente aos últimos dois anos, verifica-se o seguinte:

a) Arestos que negam a possibilidade de ser emitido despacho de convite ao aperfeiçoamento das alegações:

- Ac. do STJ, de 22-9-11 – Revista nº 1368/04.5TBBNV.S1 – Álvaro Rodrigues

- Ac. do STJ, de 15-9-11 – Revista nº 455/07.2TBCCH.E1.S1 – Álvaro Rodrigues

- Ac. do STJ, de 21-6-11 – Agravo nº 7352/05.4TCLRS.L1.S1 - Paulo Sá

- Ac. do STJ, de 29-4-10 – Revista nº 101/2000.P1.S1– Custódio Montes

- Ac. do STJ, de 7-7-10 – Revista nº 7673/04.3TBVNG.P1.S - João Camilo

- Ac. do STJ, de 7-10-10 – Revista n.º 595/06.5TBBNV.L1.S1 – Ferreira de Sousa

- Ac. do STJ, de 25-3-09 – Revista n.º 542/09 – Salreta Pereira

- Ac. do STJ, de 28-5-09 – Revista n.º 160/09.5YFLSB – Oliveira Rocha

- Ac. do STJ, de 2-7-09 – Revista n.º 266/09.0YFLSB – Lázaro Faria

- Ac. do STJ, de 7-7-09 – Revista n.º 322/09.5YFLSB – João Camilo

- Ac. do STJ, de 22-9-09 – Revista n.º 2312/03.2TVLSB.S1 – Álvaro Rodrigues

b) Arestos que admitem a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento:

- Ac. do STJ, de 4-3-10 - Revista n.º 1444/05.7TBCBR-A.C1.S1- Alberto Sobrinho

- Ac. do STJ, de 24-6-10 – Revista n.º 2653/04.1TVPRT.P1.S1 – Cunha Barbosa

- Ac. do STJ, de 9-9-10 - Revista n.º 6016/06.6TBVFX.L1.S1-Oliveira Vasconcelos

- Ac. do STJ, de 22-10-09 – Agravo n.º 58/1999.S1 – Oliveira Vasconcelos.

O argumento principal contra a pretensão da recorrente extrai-se da mera comparação entre o texto do anterior art. 690º-A (correspondente ao actual art. 685º-B) e o do anterior art. 690º do CPC (actual art. 685º-A). Sendo verdade que neste se prescrevia a prolação de um tal despacho relativamente a falhas de alegação em sede de recurso de apelação relativo à matéria de direito, já o mesmo não acontecia com o que especificamente visava os recursos de impugnação da decisão da matéria de facto.

Tal como a posterior evolução normativa o pode confirmar (mantendo-se semelhante discrepância nos actuais arts. 685º-A e 685º-B do CPC), não estamos perante qualquer lacuna legal que deva ser suprida mediante aplicação analógica do primeiro normativo.

Por outro lado, sendo verdade que o processo civil deve tender a privilegiar os aspectos substanciais em detrimento dos de natureza meramente formal e que, em tal desiderato se integra a previsão de amplos poderes conferidos ao juiz no que concerne ao aperfeiçoamento dos articulados ou ao suprimento de outros aspectos formais, a invocação de tais objectivos e princípios genéricos não deve afastar-nos do rumo interpretativo, ponderando, em primeira linha, as opções do legislador relativamente a determinados actos ou fases processuais.

Ora, a comparação de ambos os preceitos deixa bem claro que o legislador pretendeu ser mais rigoroso no que concerne aos recursos da matéria de facto, restringindo aquela medida paliativa aos recursos de matéria de direito.

6. Compreende-se, aliás, a razão de ser deste regime.

A ampliação dos poderes da 2ª instância em sede de apreciação ou reapreciação da decisão da matéria de facto foi o resultado de reivindicações que visaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a sindicabilidade do juízo formado pelo tribunal colectivo ou pelo juiz singular sustentado em meios de prova oralmente produzidos e não registados. Não sendo concebível a manifestação de mera discordância sem uma coerente aplicação dos preceitos legais, é natural que a impugnação de decisão de facto, sustentada ou não em meios de prova oralmente produzidos, seja sequencial a uma firme e segura convicção formada a partir da apreciação crítica dos meios de prova, em contraponto com a apreciação que deles fez o tribunal de 1ª instância.

Por outro lado, tendo sido afastado um regime maximalista que admitisse a realização de um segundo julgamento na Relação e tendo-se optado pela sindicabilidade da decisão da matéria de facto restrita a determinados pontos controvertidos, corresponde ao cumprimento das regras básicas do regime instituído a enunciação, por parte do recorrente, dos pontos de divergência, não sendo concebível, nem denotando o grau de firmeza e de seriedade necessários, a invocação de uma discordância genérica.

Assim ocorre no caso presente em que se pretende a impugnação das respostas aos pontos 1º a 50º, seguida da pretensão de anulação (também infundada) de todas as demais respostas!

Em suma, relativamente à decisão da matéria de facto, em que a Relação nem sequer goza dos poderes previstos no art. 664º do CPC para as regras de direito, cumpre ao recorrente ser rigoroso no cumprimento das exigências legais, sem esperar do Tribunal uma atitude compassiva ou despacho de convite ao aperfeiçoamento de aspectos de ordem técnica que consabidamente deveriam ser cumpridos com rigor. Pretendendo o recorrente a modificação da decisão da 1ª instância e dirigindo uma tal pretensão a um Tribunal que nem sequer intermediou a produção da prova, não pode deixar de se compreender uma maior exigência, impondo, sem paliativos, regras mais precisas e os correspondentes efeitos cominatórios.

É, aliás, esta perspectiva com que deve ser encarado, nesta fase, o princípio da cooperação: quem impugna uma decisão sobre a matéria de facto deve fornecer ao Tribunal da Relação os elementos que decorrem de norma expressa e de leitura inequívoca, não podendo constantemente reclamar-se uma cooperação de sentido único que, através de um abrandamento ilegítimo da exigência, leve a dispensar-se a parte do cumprimento de um ónus de alegação que a lei claramente lhe impõe.

Nestes termos, improcede o recurso de revista na parte em que se pretende a anulação do acórdão recorrido e a determinação da reapreciação da decisão da matéria de facto.

7. A resposta à questão anterior coloca em crise as demais questões que a recorrente suscita, pois que a sua procedência estava dependente da modificação da decisão da matéria de facto.

Na verdade, a maior parte das alegações apresentadas pela recorrente pressupõe uma matéria de facto substancialmente diversa da que se encontra estabilizada.

Assim ocorre quanto ao alegado cumprimento defeituoso do contrato de empreitada que teria originado danos por infiltrações de água e motivado as reparações que a A. executou através de terceiro, pretensão sustentada na invocação de argumentos probatórios que não se encontram reflectidos na decisão da matéria de facto provada.

Na verdade, esta não permite afirmar aquela conclusão, pois que, na sequência dos contactos negociais, as partes acordaram não apenas na redução do preço como ainda na redução dos trabalhos que a R. executaria, de onde resultou que o preço global de € 50.000,00 não incluía, quanto à estrutura, a execução do lintel, nem a substituição da cimalha, a qual apenas seria objecto de conservação. Consequentemente a R. não construiu o lintel, no qual assentaria a cimalha, tendo deixado a cimalha velha e construído o beirado assente na mesma, motivo por que, a partir de 22-2-06, devido à chuva que se fez sentir, ocorreram infiltrações de água da chuva, através do telhado que deixaram os tectos danificados.

Importante é que não existem elementos que permitam assacar à R. defeituosa execução da empreitada, ónus cuja prova recaía sobre a A.

Pelos mesmos motivos, não existem motivos para imputar à R. a responsabilidade pelas despesas que a A. efectuou com a adjudicação dos trabalhos a terceira pessoa.

Por um lado, foi a A. que impediu a R. de continuar os trabalhos cuja execução ainda estava em curso, procedendo ao encerramento, com um cadeado, do portão do prédio e impedindo assim o acesso dos trabalhadores da R. Por outro, não está provado que tal correspondesse à reparação de defeitos (ainda que carecidos de reparação urgente), sendo decorrência da actuação da A. de impedir a R. de prosseguir com a execução da empreitada.

III - Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista, confirmando o acórdão recorrido.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.

Lisboa, 9-2-12

Abrantes Geraldes (Relator)

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva