Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1457/20.9T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
PACTO PRIVATIVO DE JURISDIÇÃO
PRINCÍPIO DA COINCIDÊNCIA
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
AÇÃO DE CONDENAÇÃO
AÇÃO DE ANULAÇÃO
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
ESCRITURA PÚBLICA
CONFISSÃO
PREÇO
PAGAMENTO
Data do Acordão: 03/31/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. - A ação em que se peticiona o pagamento do preço de compra de imóveis tendo como causa de pedir a nulidade da declaração confessória de pagamento/recebimento do preço não se inscreve nas ações referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis não lhe sendo aplicável o disposto no art.º 70.º, Cód. Proc. Civil.

II. - Para a aplicação do critério da causalidade, previsto al. b) do artigo 62.º do Cód. Proc. Civil, exige-se que os factos integrantes da causa de pedir tenham sido praticados em território português.

III. - Para aplicação do critério da necessidade, previsto na al. c) do art. 62 do CPC exige-se a verificação de uma impossibilidade jurídica, por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio em face das regras de competência internacional das diversas ordens jurídicas ou uma impossibilidade prática, derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente, isto é, que o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou quando a propositura da ação no estrangeiro representaria para o autor dificuldade apreciável.

IV. - A circunstância de os representantes de uma sociedade brasileira e os réus eventualmente residirem em Portugal não satisfaz as exigências do princípio da necessidade do art. 62 al. c) do CPC quando a declaração de pagamento e recebimento do preço que se pretende anular com a ação foi proferida em escritura pública realizada num cartório notarial brasileiro e em que a declarante/contraente vendedora uma sociedade brasileira. A comodidade de a ação ser proposta em Portugal exorbita o princípio da necessidade e apenas poderia ser fundamento a que as partes estabelecem um pacto privativo de jurisdição nos termos do art. 94 do CPC caso se respeitassem os requisitos aí prescritos.

Decisão Texto Integral:                                 

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

Silma - Construções, Comércio e Serviços, Ltda., pessoa coletiva de direito brasileiro, intentou a presente ação contra AA, e mulher BB, pedindo que seja declarada a nulidade da declaração confessória constante dos contratos de compra e venda celebrados no ... entre a A., Silma, Ltda. e o Réu marido, nos termos da qual a A. afirmou: “pelo preço certo e ajustado de … importância essa recebida do outorgado comprador, … em moeda corrente nacional, pelo que dão plena e geral quitação de pago e recebido …”, e os Réus condenados a pagarem-lhe a quantia de € 509.815,98, dos quais € 420.000,00 relativo ao preço da venda dos imóveis, acrescido de € 16.800,00 de juros e a que acrescem juros de mora vincendos, à taxa legal, contados desde 26 Junho de 2020.

Alegou que vendeu ao R. imóveis constando da respetiva escritura que o preço foi recebido quando, afinal e por erro sobre os motivos, o não foi.

Os RR. contestaram invocando a violação do pacto privativo de jurisdição, por preterição da convenção do foro brasileiro como o competente para dirimir o conflito, nos termos acordados na cláusula 9.ª do contrato de sociedade de conta em participação – SCP.

Em primeira instância foi decidido julgar o Tribunal incompetente em razão da nacionalidade.

Desta decisão recorreu a autora, tendo a apelação sido julgada improcedente, confirmando a decisão da primeira instância.


De novo, através de revista, veio a autora recorrer para o STJ concluindo que:

1. Tratando-se de ação respeitante à exigência de cumprimento de obrigações estamos (como o tribunal recorrido julgou) perante o domínio de aplicação do artigo 71º, nº 1 do C.P.C., no campo da repartição de competências internas do ordenamento português em função do território, que atribui a competência para julgar a causa ao tribunal do domicílio do Réu.

2. A A. ora recorrente pediu que os Réus fossem condenados a pagar-lhe determinada quantia e causa deste pedido era o fato, entre outros, de estes não lhe terem pago o preço de uma venda imóveis e não lhe terem pago uma quantia que lhes havia emprestado.

3. A circunstância prevista na al. a) do artigo 62º do C.P.C. – princípio da coincidência – significa que a competência internacional acompanha, desde logo, a competência interna de matriz territorial. Assim, os factos que, na órbita da competência interna, determinam a competência territorial do tribunal português, determinam, também, na esfera internacional, a competência da jurisdição portuguesa em confronto com as jurisdições estrangeiras.

4. Tendo a A. todos os seus legais representantes residentes em Portugal e sendo os Réus também residentes em ... é de concluir que se verifica para a A. uma dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, uma vez que seriam necessárias viagens prolongadas ao ....

5. Existe entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa elementos ponderosos de conexão pessoal – a nacionalidade dos representantes da A. e dos Réus e a sua residência em território português, ficando preenchida a previsão da alínea b) do artigo 62º do C.P.C. atribuindo competência aos tribunais nacionais para julgarem a causa.

6. Verifica-se também que foram praticados em território português factos que integram a causa de pedir (artigos 47º a 84º da p.i.) - negociações, aceitação de proposta negocial. Para além de ser em Portugal que deveria ocorrer o cumprimento das obrigações objeto da ação.

7. Está preenchida a previsão da alínea b) do artigo 62º do C.P.C. para que seja atribuída competência ao Tribunal solicitado.

8. Os fatores previstos nas várias alíneas do artigo 62º do C.P.C. são autónomos (e não cumulativos), funcionando cada um em completa independência relativamente aos outros, sendo de per si bastantes para desencadear a atribuição da competência aos tribunais portugueses.

9. O douto acórdão recorrido violou o artigo 62º do C.P.C.

10. Deve, assim, o douto acórdão recorrido ser anulado julgando-se o tribunal solicitado competente para julgar a causa e determinado a continuação dos seus termos com realização de audiência de discussão e julgamento com produção das provas requeridas.


Nas contra-alegações os recorridos defendem a confirmação da decisão recorrida e a improcedência da revista.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

… ..

 Fundamentação

Os factos que servem a decisão são os seguintes:

1 - A sociedade comercial SILMA, Construções Comércio e Serviços, Lda. foi constituída em 8 de Maio de 2013, com sede na Rua .../CE CEP 61.700.000, tendo como sócios CC, DD e EE (artº 9º da petição inicial)

2 - O DD passou uma procuração a favor do Sr. CC para que este pudesse tratar de todos os assuntos, relacionados com a constituição e gestão da sociedade. (artº 10º da petição inicial)

3 - Em 8 de Maio de 2014 através de nova alteração ao pacto social são os três sócios nomeados gerentes. (artº 23º da petição inicial) doc fls 31

4 - Em 23 de Dezembro de 2014, a A., representada pelo sócio administrador CC e o R. AA, subscreveram o instrumento particular de constituição de sociedade em conta de participação, em partes iguais, de que existe cópia a fls. 33 e 34. (artºs 30º da petição inicial)

5 - A Silma adquiriu o terreno que estava a negociar e colocou-o na disposição da parceria que havia concretizado com o Réu. (artº 33º da petição inicial)

6 - Numa primeira fase a parceria construiu no terreno adquirido sete moradias que vendeu e cujo lucro foi dividido entre o Réu e a Silma. (artº 34º da petição inicial)

7 - Numa segunda fase a parceria construiu mais oito moradias. (artº 35º da petição inicial)

8 - Em Janeiro de 2017 o CC resolveu abandonar o ..., regressando a Portugal. (artº 36º da petição inicial)

9 - A Silma possuía diversos terrenos na zona de ... e 50 %, nos termos da parceria com o Réu, nas oito moradias para cuja venda, para além de pequenos arranjos, faltava reunir a documentação necessária para as escrituras de compra e venda. (artº 38º da petição inicial)

10 - O sócio da A. DD e o Réu, que na altura se encontravam em Portugal, quando souberam que o CC havia abandonado o ..., resolveram deslocarem-se, os três, a ... para se inteirarem da situação dos negócios e tomarem decisões sobre a sua continuação, o que veio a acontecer de 9 a 17 de Março de 2017. (artº 39º da petição inicial)

11 - A A., representada pelos sócios DD e EE, estes representados pelos procuradores FF e GG, outorgou com o Réu AA, no Cartório HH, sito na Rua ..., ..., ..., Comarca ..., ..., ..., as escrituras de compra e venda os contratos de compra e venda dos seguintes bens da sociedade:

a) - Em 20 de Março de 2018, o prédio sito na Cidade ..., “...”, denominado “...” com a área de 1346,28 m2, conforme escritura e matrícula ....3, pelo preço de 135.000,00 reais, correspondente a 50% do seu valor conforme parceria;

b) - Em 24 de Novembro de 2017 um terreno situado no Lugar ..., denominado ... da ..., com área de 360 m2, pelo valor de 60.000 reais;

c) - Em 20 de Dezembro de 2017, dois terrenos, o primeiro situado no lugar..., denominado “P...”, no ..., com a área de 1.650,00, pelo preço de 90.000 reais, matrícula ....1, e o segundo situado no lugar ..., com área de 858 m2, pelo preço de 45.000 reais, matrícula ...1;

d) - Em 7 de Fevereiro de 2018 dois terrenos, o primeiro situado no Lugar ..., denominado “P...”, com a área de 924,00 m2, pelo preço de 120.000 reais e o segundo situado no Lugar ...”, denominado “...”, com a área de 1.480 m2, matrícula ....6, pelo preço de 180.000,00 reais. (artº 89º da petição inicial - parte)

12 - Nestes contratos o Réu identificou-se como tendo o estado civil de solteiro. (artº 90º da petição inicial)

13 - A A. teve conhecimento dos contratos de compra e venda atrás referidos em 25 de Abril de 2018. (artº 89º da petição inicial - parte)

14 - Assim que tiveram conhecimento da concretização da passagem da propriedade dos imóveis para o Réu, logo o gerente da A. lhe enviou um mail informando-o que já havia recebido cópia das escrituras. (artº 91º da petição inicial)

15 - Em 30 de Julho de 2018 os gerentes da A. receberam um mail do Dr. II, advogado, informando que em 26.06.2018 havia sido realizado um contrato no qual a A. sociedade, por procurador, vendia ao Réu, representado por JJ, cinco casas, 1) a primeira com o nº 849 e área de 77,53 m2, 2) a segunda com o nº 855 e a área de 77,53 m2, 3) a terceira com o nº 100 e a área de 78,36 m2, 4) a quarta com o nº 90 e a área de 75,55 m2 e 5) a quinta com o nº 78 e a área de 75,55 m2, sitas na Rua..., pelo valor total de 598.899,00 reais. (artº 92º da petição inicial)

16 - Nos contratos de compra e venda dos seus imóveis no ... atrás referidos consta que “pelo preço certo e ajustado de…importância essa recebida do outorgado comprador, … em moeda corrente nacional, pelo que dão plena e geral quitação de pago e recebido”. (artº 94º da petição inicial)

17 - No dia 15.01.2018, KK, transferiu para a conta do Réu a quantia de 54.124,00 reais, que correspondiam ao pagamento de 50 % da venda de um terreno sito em ... (terreno do ...) que havia sido adquirido pelo KK em parceria com A. e com o Réu. (doc. nº 13). (artº 119º da petição inicial)

18 - A Ré mulher é casada com o Réu marido no regime da comunhão de adquiridos. (artº 185º da petição inicial)

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver na presente Revista importa exclusivamente em saber qual o tribunal internacionalmente competente para conhecer da ação.

… …

Apreciando o mérito do recurso, a competência internacional consiste na atribuição do poder de julgar aos tribunais portugueses, no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros e a questão apenas se suscita quando uma causa concreta revele alguma conexão com outra ordem jurídica estrangeira. Se qualquer dos seus elementos como sejam, as partes, o pedido, ou a causa de pedir tiverem somente conexão com uma ordem jurídica o problema não se coloca. Existindo essa conexão, importará ainda decidir se uma determinada questão deve ser resolvida pelos tribunais portugueses ou pelos tribunais estrangeiros, isto é, a competência internacional dos tribunais portugueses incide sobre as situações que apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento português, uma relação com ordens jurídicas estrangeiras, apresentam igualmente uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa.

Sem embargo dos casos em que o nosso ordenamento jurídico admite a possibilidade de a justiça de outro Estado ser igualmente competente para julgar a causa numa aceitação de competência concorrente, podendo a prestação jurisdicional estrangeira ser incorporada nacionalmente através dos mecanismos de revisão de decisão estrangeira, outros casos são estabelecidos (no art. 63 do CPC) em que a autoridade judiciária portuguesa é a competente de forma absoluta, excluindo-se a competência de outra autoridade judiciária estrangeira. Isso significa que, para os processos indicados no referido dispositivo legal, a lex fori reconhece como internacionalmente competente apenas os seus juízes e tribunais, impedindo o reconhecimento da decisão estrangeira.

Centrando a atenção na competência internacional concorrente - a que admite a  possibilidade de ocorrência de atividade jurisdicional paralela à exercida pela jurisdição nacional a respeito da mesma causa - podendo cada país estabelecer os elementos de conexão que considere relevantes para se atribuir a competência para julgar determinados litígios, dispõe o art. 59 do CPC que sem prejuízo do firmado em regulamentos europeus ou outros instrumentos internacionais, os tribunais são competentes internacionalmente quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos no art. 62º CPC e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art. 94º CPC.

O art. 62 al. a) fixa o critério da coincidência: é atribuída competência internacional aos tribunais portugueses, quando a ação deva ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência internacional estabelecidas em lei portuguesa e tais regras (da competência internacional) constam do art. 70 e ss CPC. Quando de acordo com as regras da competência territorial previstas na ordem interna, a ação deva ser instaurada em Portugal, os tribunais portugueses terão competência internacional para julgar essa ação, mesmo que existam elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras. Assim, conforme a alínea a) do art. 62 conjugada com o que dispõe do art. 70 do CPC, as ações relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis devem ser propostas no tribunal da situação dos bens. Se os bens estão situados em Portugal, os tribunais portugueses terão competência, não só interna, como internacional, por aplicação do referido princípio da coincidência. Se o elemento de conexão utilizado na norma de competência territorial apontar para um lugar situado no território português os tribunais portugueses competentes são internacionalmente competentes - Luís Lima Pinheiro, DIP, vol. III, t. I, AAFDL Ed., 2019, p. 337.

Um outro critério é o da causalidade, previsto na al. b) do art. 62 do CPC. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a propositura da ação quando tiver sido praticado em Portugal o facto que serve de causa de pedir ou algum dos factos que a integram.

Por último, o critério da necessidade com regulação na al. c) do art. 62 citado, alcança não só a impossibilidade jurídica, por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio em face das regras de competência internacional das diversas ordens jurídicas com as quais ele apresenta uma conexão relevante, como também a impossibilidade prática, derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente. Exige-se que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real e que, segundo o princípio da necessidade, o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou quando a propositura da ação no estrangeiro representaria para o autor dificuldade apreciável. Configura-se este critério como um último recurso que previne a denegação de justiça que resultaria da circunstância de não ser possível ou ser muito difícil propor uma ação no estrangeiro.

No caso em decisão, discute-se a declaração confessória constante de contratos de compra e venda celebrados no ... entre a autora e o réu marido, declaração que estes querem ver declarada nula. Não se trata de uma ação real, sequer de uma das previstas no nº1 do art. 70 do CPC, antes identifica uma ação de anulação de uma declaração confessória em que se pretende que, continuando o negócio celebrado válido, seja apenas a declaração negocial incidente no pagamento do preço que seja considerada nula, o que afasta o primeiro elemento de conexão estabelecido no art. 62 al. a) do CPC.

Procurando-se nos restantes critérios enunciados nesse preceito se existe entre o objeto do litígio antes delimitado e a ordem jurídica portuguesa algum elemento atributivo de competência adverte-se que a mesmo que a nacionalidade dos representantes da autora e dos réus fosse portuguesa e a sua residência em território português, tal não seria relevante para essa atribuição. A previsão da al. b) desse normativo atribui aos tribunais nacionais competência para julgarem a causa se os factos integrantes da causa de pedir foram praticados em território português – factos esse que podem consistir não só na própria celebração do negócio como também nas negociações tendentes à sua realização ou na aceitação de proposta negocial, desde que estas façam parte do elenco dos factos relevantes que servem a pretensão – cfr. Lima Pinheiro, ob. cit., p. 348 e 349.

No caso em apreciação, o facto essencial, a causa de pedir, é a declaração confessória produzida numa escritura pública de compra e venda celebrada no ..., sendo de todo indiferente a esta causa a nacionalidade das partes envolvidas, a sua residência, o lugar onde tenham ocorrido as negociações tendentes à celebração da aludida escritura, razão para que não se encontre na al. b) do art. 62 do CPC fundamento para considerar o tribunal português como internacionalmente competente.

Por último, a recorrente invoca o critério da necessidade constante da al. c) do normativo em estudo que, como vimos, só terá aplicação quando o “direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”.

Para sufrágio desta conexão o recorrente sustenta que tem de reconhecer-se “uma apreciável maior dificuldade na propositura da ação, no ...” e fornece como razão serem os réus e os legais representantes da autora residentes em Portugal. Não seria assim exigível a instauração da ação fora de Portugal porque a conexão pessoal resultante da residência das partes inscreveria a atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses com base no princípio da necessidade.

Como se observa com propriedade na decisão recorrida, não é a circunstância de haver maior comodidade na propositura da ação em Portugal que constitui critério de fixação da competência internacional e menos ainda por critérios de necessidade. Aliás, essa comodidade por razões de conveniência pessoal poderia ter sido prevenida através de um pacto atributivo de competência internacional nos termos e com respeito das prescrições do art. 94 do CPC e não foi. Não sendo o domicílio e a nacionalidade das partes suficientes para determinar a competência internacional de um tribunal português, diz-se ainda por acréscimo que a residência dos representantes das partes não substitui, para efeitos de configuração da nacionalidade e residência, a nacionalidade e a residência da própria parte representada.

Não existe no caso em decisão qualquer alegação de impossibilidade prática decorrente de ocorrências anómalas e impeditivas do funcionamento da jurisdição competente (a brasileira) para que a ação seja julgada em Portugal e sem estas fica afastada qualquer ideia de necessidade atributiva de competência para que o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou para que a propositura da ação no estrangeiro representasse para o autor dificuldade apreciável.

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Síntese conclusiva

- A ação em que se peticiona o pagamento do preço de compra de imóveis tendo como causa de pedir a nulidade da declaração confessória de pagamento/recebimento do preço não se inscreve nas ações referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis não lhe sendo aplicável o disposto no art.º 70.º, Cód. Proc. Civil.

- Para a aplicação do critério da causalidade, previsto al. b) do artigo 62.º do Cód. Proc. Civil, exige-se que os factos integrantes da causa de pedir tenham sido praticados em território português.

- Para aplicação do critério da necessidade, previsto na al. c) do art. 62 do CPC exige-se a verificação de uma impossibilidade jurídica, por inexistência de tribunal competente para dirimir o litígio em face das regras de competência internacional das diversas ordens jurídicas ou uma impossibilidade prática, derivada de factos anómalos impeditivos do funcionamento da jurisdição competente, isto é, que o direito invocado pelo autor só possa tornar-se efetivo por meio de ação proposta em Portugal ou quando a propositura da ação no estrangeiro representaria para o autor dificuldade apreciável.

- A circunstância de os representantes de uma sociedade brasileira e os réus eventualmente residirem em Portugal não satisfaz as exigências do princípio da necessidade do art. 62 al. c) do CPC quando a declaração de pagamento e recebimento do preço que se pretende anular com a ação foi proferida em escritura pública realizada num cartório notarial brasileiro e em que a declarante/contraente vendedora uma sociedade brasileira. A comodidade de a ação ser proposta em Portugal exorbita o princípio da necessidade e apenas poderia ser fundamento a que as partes estabelecem um pacto privativo de jurisdição nos termos do art. 94 do CPC caso se respeitassem os requisitos aí prescritos.

… …



Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar improcedente a revista e, em consequência, confirmar a decisão recorrida

Custas pela recorrente.


Lisboa, 31 de março de 2022


Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva

2º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Freitas Neto