Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P1125
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: LENOCÍNIO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
AUTORIA
CUMPLICIDADE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ20070905011253
Data do Acordão: 09/05/2007
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - O conteúdo material do que seja crime deve decorrer do quadro axiológico-jurídico constitucionalmente consagrado, ou seja, só pode ser crime o comportamento que viola ou ameaça violar o quadro de valores constitucionalmente consagrados.
II - Como tal, a definição do crime em sede de direito ordinário deve reportar-se àquele quadro de valores constitucionais, sob pena de inconstitucionalidade material.
III - Na previsão normativa do n.º 1 do art. 170.º do CP o que está em causa, mais do que tudo, é a exploração de uma pessoa por outra, uma espécie de usura ou enriquecimento ilegítimo fundado no comércio do corpo de outrem por parte do agente.
IV - Inculca tal entendimento o facto do apontado tipo legal de crime prescrever que o agente actue “profissionalmente ou com intenção lucrativa”.
V - Por isso, não é exclusivamente o aspecto estrito de liberdade e autodeterminação sexual, como bem pessoal, que subjaz à criminalização do lenocínio.
VI - Assim entendida, a prática do lenocínio, p. e p. pelo n.º 1 do art. 170.º do CP, configura uma clara violação da dignidade humana, da integridade moral e física da pessoa humana e, por isso, obstáculo à livre realização da respectiva personalidade, valores constitucionalmente protegidos – cf. arts. 25.º e 26.º da CRP.
VII - Fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa da prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo, fazendo disso profissão ou com intenção lucrativa, não é um acto de intimidade da pessoa, de vida privada, de liberdade individual, já que o mesmo é projectado exactamente para fora dela e da sua esfera privada e, no fundo, acaba por significar uma exploração indigna da pessoa humana.
VIII - O direito ao trabalho constitucionalmente salvaguardado seguramente que pressupõe a dignidade humana no seu exercício.
IX - Embora a vítima do crime de lenocínio (art. 170.º do CP) possa ser, em qualquer das formas, qualquer pessoa adulta, homem ou mulher, tem sido ao nível da vítima mulher que o tema intensamente tem incidido.
X - O art. 170.º, n.º 1, do CP insere-se numa opção de política criminal, tendo em conta a necessidade de combater o tráfico de pessoas para exploração sexual, assentando o bem jurídico na protecção da dignidade da pessoa no modo de explicitação comunitária da sua liberdade e autodeterminação sexual.
XI - O art. 170.º, n.° 1, do CP protege um bem jurídico de natureza constitucional, que é a dignidade da pessoa humana, constitutiva de um dos princípios fundamentais da República Portuguesa, conforme dispõe o art. 1.º da CRP, assumindo-se aquele normativo do CP como uma dimensão de tutela jurídico-penal da garantia da dignidade humana, constitucionalmente consagrada, e protegida pelo art. 26.°, n.º 2, da Lei Fundamental, aqui na vertente da dignidade ínsita à auto-expressividade sexual, co-determinando tal inciso, axiológico-normativamente, a expressividade comunitária do modo de exercício do direito à liberdade e autodeterminação sexual, ou seja, vinculando esse exercício de autodeterminação sexual, com projecção e relevância ético-sociais, à dignidade da pessoa, de forma a que esta não constitua mera mercadoria, res possidendi, mero instrumento de prestação sexual, ainda que com o consentimento da vítima, explorada profissionalmente ou com intenção lucrativa por outrem.
XII - A criminalização do crime de lenocínio p. e p. pelo art. 170.º, n.º 1, do CP configura-se, por isso, como constitucional.
XIII - Para que se verifique o crime de lenocínio p. e p. no art. 170.°, n.° 1, do CP basta que o agente pratique alguma das condutas ali previstas (fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo) "profissionalmente ou com intenção lucrativa".
XIV - Mas não é elemento típico deste crime a existência de uma situação de exploração de necessidade económica ou de abandono da vítima.
XV - A exigência dessa situação não tem o mínimo apoio literal no n.° 1 do art. 170.° do CP (vide arts. 1.° do CP e 9.°, n.ºs 2 e 3, do CC).
XVI - A existência de uma situação de exploração de necessidade económica ou de abandono da vítima constitui, outrossim, uma circunstância qualificativa do crime de lenocínio, como resulta do n.° 2 do mesmo art. 170.° do CP.
XVII - Também a Proposta de Lei (de alteração do Código Penal) n.º 98/X, no seu art. 169.°, n.º 1, não contempla a exigência de tal situação de exploração, a qual continua a integrar uma das qualificativas do crime, nos termos do n.° 2, als. c) e d), do referido art. 169.°.
XVIII - Por outro lado, o preceito não admite interpretação restritiva, no sentido de ser tipicamente exigível o que a lei eliminou. Aceitar-se uma interpretação restritiva em tal âmbito, seria fazer entrar pela janela o que se fez sair pela porta (Revisão de 1995).
XIX - Uma interpretação restritiva do referido art. 170.º, n.° 1, do CP, no sentido de que a inexistência de uma situação de exploração de necessidade económica ou de abandono da vítima se traduz em descriminalização da conduta do agente, ainda que verificada a factualidade típica descrita no mesmo n.° 1, é que seria inconstitucional, porque contende com a definição dos pressupostos do crime, que é da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do art. 165.°, n.º 1, al. c), da CRP.
XX - A caracterização de cúmplice alcança-se através da respectiva definição legal e por confronto com a definição de autor: é punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso (art. 27.º do CP); é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou, por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução (art. 26.º do CP).
XXI - O cúmplice somente favorece ou presta auxílio à execução, ficando fora do acto típico. Só quando ultrapassa o mero auxílio, e assim pratica uma parte necessária da execução do plano criminoso, ele se torna co-autor do facto.
XXII - No caso concreto, mesmo na óptica confessada pelo arguido AS, em que não se provou que haja fomentado a prostituição das mulheres que trabalhavam no seu estabelecimento de diversão nocturna, mas tão-só favorecido ou facilitado a prática eventual de tais actos – verifica-se a prática pelo mesmo do crime de lenocínio, p. e p. pelo art. 170.º, n.º 1, do CP, como autor e não como cúmplice, pois o preceito abarca as actividades de “fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo”.
XXIII - Na verdade, resultando provado, para além do mais, que:
- em Janeiro de 2003, o arguido AS iniciou a exploração do estabelecimento comercial Discoteca…, o qual funcionava todos os dias de segunda a domingo entre as 22h00 e as 04h00;
- a arguida MF exercia funções de gerente (de facto) do mencionado estabelecimento, desde que o arguido AS iniciou a exploração do mesmo, sendo ela quem tomava todas as decisões relativas ao seu funcionamento na ausência daquele arguido, designadamente aí permanecendo todas as noites fiscalizando o seu funcionamento e recebendo dinheiro dos clientes;
- no referido estabelecimento trabalhavam várias mulheres de nacionalidade brasileira, cuja actividade consistia em aliciar os clientes a consumir bebidas alcoólicas e bem assim a acompanhá-las aos quartos e reservados existentes no interior daquele estabelecimento onde mantinham com os mesmos relações sexuais;
- para o efeito, era fornecido a cada mulher um Kit contendo um lençol descartável, toalhas e um preservativo, os quais se encontravam à disposição das mesmas junto do balcão, sendo habitualmente entregues tais objectos pelos arguidos VP, MS, JL ou SC;
- para acederem aos quartos e reservados na companhia das mulheres que ali trabalhavam, para aí praticarem actos sexuais, os clientes tinham de pagar uma quantia em dinheiro, variável em função do tempo de permanência naqueles locais: € 40 por 20 minutos e € 50 por 30 minutos;
- tais preços eram anotados antes da deslocação aos quartos e reservados nos cartões dos respectivos clientes pelas mulheres que os acompanham ou pelos arguidos VP, MS e SC, os quais ficavam encarregues de controlar o tempo de ocupação dos mencionados quartos pelos clientes, apontando o tempo que ali permaneciam, cabendo ainda a estes arguidos receber dos mencionados clientes as quantias pagas após a desocupação dos quartos, quantias essas que no final da noite eram entregues aos arguidos AS ou MF;
- pelo menos ao arguido VP cabia igualmente assegurar, em algumas ocasiões, o transporte de mulheres das suas residências para aquele estabelecimento no início e no final de cada noite, utilizando para o efeito o veículo automóvel…, registado em nome de JF, mas pertença do arguido AS, desde 1998;
- conforme previamente acordado com o arguido AS, estava estabelecido que as referidas mulheres recebiam 50% das quantias respeitantes às bebidas que lhe fossem pagas pelos clientes, bem como quantia variável (não concretamente apurada) consoante o preço de cada relação sexual que mantinham com o cliente;
- no final de cada noite cabia à arguida MF receber as quantias pagas pelos clientes, pagar às mulheres o que lhes era devido, bem como aos demais empregados do estabelecimento, revertendo as demais quantias para o arguido AS e uma percentagem não concretamente apurada para si;
é de concluir que o arguido AS efectuava a exploração lucrativa da prostituição de mulheres, exercida no estabelecimento que geria, com a colaboração da arguida MF, alimentando assim, directa ou indirectamente, com maior ou menor valor, o seu próprio rendimento. Ambos os arguidos AS e MF beneficiavam (directamente) economicamente das relações sexuais mantidas por várias mulheres no estabelecimento que exploravam, para os quais revertia uma percentagem das quantias pagas pelos clientes para o efeito.
XXIV - No que respeita à medida concreta da pena a aplicar ao arguido AS, considerando:
- os antecedentes criminais do arguido: já foi julgado e condenado em 02-02-1995, pelo crime de detenção ilegal de arma de fogo, na pena de 100 dias de multa; em 02-11-1997, por condução sob o efeito do álcool, na pena de 60 dias de multa; em 23-02-2000, pelos crimes de condução sob o efeito do álcool e ofensa à integridade física simples, na pena única de 120 dias de multa; em 05-07-2001, por crime de usurpação, na pena de 5 meses de prisão, substituídos por dias de multa; em Fevereiro de 2001, por crime de receptação dolosa, na pena de 10 meses de prisão com execução suspensa por dois anos; em 21-01-2004 (decisão transitada em 06-06-2006), pelo crime de lenocínio, praticado em 23-01-2002, na pena de 2 anos de prisão; por outro crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 10 meses de prisão; por instigação de um crime desta mesma natureza, na pena de 8 meses de prisão; e na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por 3 anos condicionada ao pagamento de 1000 euros à Instituição Particular de Solidariedade Social “O Ninho”;
- as particulares exigências de prevenção geral de integração na dissuasão do crime de lenocínio – pernicioso para as vítimas, pela eventual escravidão e pela depravação da auto-estima da pessoa, na sua liberdade e autodeterminação sexual, e para a sociedade, pela degradação e aviltamento da dignidade da pessoa na manifestação comunitária da liberdade e autodeterminação sexual – e da demais criminalidade que o mesmo crime suporta e potencia;
- as exigências de prevenção especial positiva ou de socialização, a reclamar do arguido motivação para se determinar de harmonia com o direito, já que a sua vida criminal revela falta de preparação para manter conduta lícita; e
- a medida de culpa preenchida por forte intensidade do dolo, sendo certo que o arguido se encontra inserido laboral e familiarmente;
tem-se por adequada e proporcional a pena fixada, de 2 anos de prisão, num leque aplicável de 6 meses a 5 anos de prisão.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
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Nos autos de processo comum (tribunal colectivo) com o nº 521/04.6 GAVNF do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, foram submetidos a julgamento, na sequência de acusação deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, os arguidos:
AA, nascido em 02/02/59, natural de Abade de Vermoim, Vila Nova de Famalicão, filho de ... e de ..., casado, comerciante (bar/restauração), titular do RI. n° ....., emitido em 00/00/2000, pelo arquivo de identificação de Lisboa e residente na Rua da..., n° 000, , Vila Nova de Famalicão;
BB, nascida em 17/04/73, natural de...., Vila Nova de Famalicão, filha de ...e de ..., solteira, desempregada e residente na Avenida ..., Edifício..., bloco 0, 0° C, ...;
CC, nascido em 28/07/75, natural de Brufe, Vila Nova de Famalicão, filho de ... e ..., casado, operário fabril e residente na Rua ...., n° 000, 1°, Vila Nova de Famalicão;
DD, nascido em 29/06/53, natural de S. Tomé e Príncipe, filho de ... e de ..., solteiro, empregado bar (desempregado) e residente no Edifício ...., 0° Piso, n° 00, Avenida ..., Vila Nova de Famalicão;
EE, nascido em 20/01160, natural de Miragaia, Porto, filho de ... e de ..., divorciado, empregado de mesa e residente na Rua..., 000, Vila Nova de Famalicão;
FF, nascido em 29/01146, natural de Teixoso, Covilhã, filho de ...e de ..., casado, empregado bar e residente na Rua ..., n° 00 r/c esquerdo, Vila Nova de Famalicão;

Imputava-lhes o douto Acusador::
- Aos arguidos AA, MFe CC, em co-autoria, e na forma continuada, dois crimes de lenocínio, p. e p. pelos arts. 30 n° 2 e 170 n° 1 do Código Penal.
- Aos arguidos DD; FF e EE, como cúmplices e também na forma continuada dois crimes de lenocínio, p. e p. pelos arts. 27° e 170° n° 1 do Código Penal.
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Realizado o julgamento foi proferido acórdão, decidindo o Tribunal Colectivo: “julgar parcialmente procedente a acusação do Ministério Público e, nesta medida:
Condenar o arguido AA, pela co-autoria de um crime de lenocínio, p. e p. no art. 170º, nº 1, do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
Condenar a arguida BB, pela co-autoria, desse crime de lenocínio, p. e p. no art. 170º, nº 1, do Cód. Penal, na pena de 1(um) ano de prisão;
Condenar cada um dos arguidosEE, DD, CC e FF, com cúmplices desse mesmo crime de lenocínio, p. e p. nos arts. 27, nº1, do Cód. Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão;
Suspender a execução das penas aplicadas aos arguidos EE, DD, CC e FF pelo prazo de 2 anos, a contar do trânsito da decisão;
Suspender a execução da pena aplicada à arguida MF pelo período 3 anos, a contar do trânsito desta decisão, condicionada ao pagamento por esta de contribuição monetária a instituição de solidariedade social a indicar pelo Ministério Público, no montante de 1000 euros, no prazo de 3 meses a contar da notificação que for feita após a indicação dessa instituição;
Condenar, cada um os arguidos AA, MP, EE, DD, CC e FF, tendo em conta a complexidade dos autos, no pagamento de, respectivamente, 20, 10, 7, 4, 7 e 7 U.Cs., de taxa de justiça, e, solidariamente, nas demais custas crime do processo, com procuradoria máxima, devendo ainda pagar 1% da taxa de justiça devida nos termos do artº. 13º, nº 3 do D.L. 423/91, de 30/10;
Declarar perdidos a favor do Estado os bens e valores referidos em 2.1.16. (veículo IX-00-00), 2.1.22., 2.1.26. e 2.1.27.;
Ordenar o levantamento (após trânsito) da apreensão a consequente restituição aos seus possuidores/proprietários dos restantes bens apreendidos nos autos (cf. a contrario art. 109º, do Código Penal).
Deposite e oportunamente remeta boletim ao C.I.C.C.”
Inconformado, recorreu o arguido AA, apresentando as seguintes conclusões na motivação de recurso:

1 - A norma do artigo 170°, n° 1 do Código Penal protege valores que nada têm que ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, que não cabe ao Direito Penal proteger; sendo que as alterações derivadas do Decreto-Lei 48/95 eliminaram do tipo legal a exploração de situações de “abandono ou de necessidade económica” das mulheres em causa, não se podendo, por isso, concluir, como resulta do aresto posto em crise, que “as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros “são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída”. Com a actual incriminação o bem jurídico protegido não é a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas uma certa ideia de “defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade”, que não é encarada hoje como função do direito penal, o que justifica uma eventual descriminalização.
2 – Dado que a incriminação do lenocínio prevista no artigo 170°, n° 1 protege bens jurídicos transpersonalistas de étimo moralista por via do direito penal, o que se tem hoje por ilegítimo. Nesta perspectiva, o crime de lenocínio do 170°, n° 1, do C.P. constituirá um crime sem vítima, salientando-se aí que o bem jurídico protegido pela incriminação, já à luz do direito anterior – e que a versão actual do Código não faz senão reforçar –, não é a liberdade sexual da pessoa, mas um bem jurídico transpessoal que não cabe ao direito penal defender.
3 - Com efeito, o tipo legal de crime introduzido no nº 1 com a revisão de 1998 protege bens jurídicos que não são eminentemente pessoais, ficando deste modo previsto um tipo legal de crime que não se coaduna com a sistematização do Código Penal, dado que se encontra inserto no capitulo V “Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual”.
4 –Acresce que a alteração verificada com a sobredita revisão do Código Penal eleva à categoria de crimes condutas que se consubstanciam em simples comparticipação em actos lícitos e livres.
5 - Pois fomentar, favorecer ou facilitar a prática por outrem da prostituição reconduz-se a comparticipação numa conduta alheia, desenvolvida livremente pela prostituta. E, deste modo, é incriminado aquele que auxilia, favorece ou facilita outrem à prática do exercício de um direito próprio.
6 – Assim, ao incriminar o fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre e autodeterminada, o n° 1 do artigo 170° ofende o princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, plasmado no artigo 18º, n.° 2 da C.R. P. e previsto no artigo 40°, n° 1 do C.P., bem como os direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal, liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão e direito ao trabalho, previstos nos artigos 26°, n° 1, 27°, n° 1, 41°, n° 1, 47°, n° 1 e 58º, n.º 1 da C. R. P.
7 – Assim, aquela disposição normativa (artigo 170°, n° 1 do CP) está inquinada de inconstitucionalidade material, que apenas pode ser afastada através do recurso a uma interpretação restritiva do preceito que repristine a exigência de que os actos descritos no tipo legal de crime apenas sejam passíveis de o constituir quando reportando-se a pessoas “em situação de abandono ou de extrema necessidade económica”.
8 – Pelo que o recorrente terá de ser absolvido do crime de lenocínio, seja pela declaração de inconstitucionalidade ou seja pela interpretação restritiva do sobredito preceito legal.
9 – No crime de lenocínio deve distinguir-se entre lenocínio principal, quando se trata de fomentar a prostituição ou actos sexuais de relevo, e lenocínio acessório, quando se trata de a ou os favorecer ou facilitar.
10 – Fomentar significa incitar a corrupção ou determiná-la quando não exista, agravá-la quando já existe ou evitar que enfraqueça ou cesse quando já está em curso.
11 - Por seu turno favorecer ou facilitar significa beneficiar, proteger, auxiliar ou apoiar; e a realização desta operação com vista a efectuar uma distinção entre lenocínio principal e acessório releva para efeitos da medida concreta da pena, por se verificar a existência de uma diferença significativa entre uma actividade causa dans (fomentar) e outra causa non dans (favorecer ou facilitar), relevando, assim, em sede de culpa e consequentemente na medida concreta da pena.
12 – Na verdade, se a prostituição fosse crime, fomentá-la era, indubitavelmente, um acto de co-autoria e favorecê-la ou facilitá-la reconduzir-se-ia a mera cumplicidade que é, nos termos da lei, punida com uma pena especialmente atenuada.
13 – Da matéria de facto provada não resulta que o arguido/recorrente haja fomentado a prostituição das mulheres que trabalhavam no seu estabelecimento de diversão nocturna, limitando-se, pois, a favorecer ou facilitar a prática eventual de tais actos.
14 – Assim, afigura-se-nos que a pena de dois anos aplicada ao arguido não respeita os critérios impostos pelo art. 71°, do Código Penal, devendo ser reduzida para não mais de uma ano de prisão e a sua execução deve ser suspensa, respeitando, assim, a previsão contida no artigo 50° do C.P., sendo manifesto que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de modo adequado e suficiente as finalidades da punição.
15 – Sem prescindir, para o caso de se entender que a pena de dois anos de prisão não merece censura, o certo é que uma pena curta não deve ser cumprida desde logo atento o consabido efeito criminógeno da pena de prisão efectiva.
16 – O tribunal fundamentou a denegação da suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50°, 2°-1, do C.P.) tendo por base exclusivamente o passado criminal do arguido e a não assumpção da sua responsabilidade criminal em julgamento.
17 – No entanto, não fundamentou tal denegação tendo em conta o carácter desfavorável da prognose, ou seja, de que a censura do facto e a ameaça de prisão não realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição; fá-lo com referência às anteriores condenações; devendo ainda ter em conta as eventuais exigências de defesa do ordenamento jurídico.
18 – Mesmo tendo o arguido agido com dolo directo, a sua culpa ser elevada e sendo igualmente acentuada a ilicitude da sua conduta, atento o imanente desvalor e as respectivas consequências, o certo é que, como resultado do relatório social do arguido, a seu favor depõe a circunstância de se encontrar afastado do “negócio da noite”, depondo contra ele a circunstância de ter antecedentes criminais e ter sido julgado pela prática do mesmo crime, em 2004, decisão que apenas transitou em julgado em 2006 e, portanto, após a ocorrência dos factos imputados nos presentes autos.
19 – A aplicação de uma pena suspensa na sua execução não constitui um privilégio ou recompensa concedida ao agente do crime que confessa a prática do mesmo, mas, outrossim, como qualquer outra, uma forma de punição no interesse da comunidade, visando a protecção de bens jurídicos e sendo a reintegração do agente na sociedade a que se alude o artigo 40°, n° 1 do C.P. um dos meios de realizar esse fim do direito penal. E,
20 – Inequivocamente a reinserção social contribui para evitar a reincidência – obtendo-se uma prevenção especial positiva.
21 – Nenhum arguido pode, de acordo com o nosso ordenamento vigente, ser penalizado por não confessar o crime, sendo que apenas lhe fica vedado o aproveitamento de uma circunstância atenuativa.
22 – Nada obstava perante este novo crime que o tribunal “a quo” considerasse que a simples censura dos factos e a ameaça do cumprimento da prisão realizam adequada e suficientemente as finalidades da punição.
23 – Na verdade a comprovada integração social do recorrente, a sua integração familiar e actual situação profissional, como resulta do relatório social do arguido, apontam necessariamente para a ressocialização fora dos muros da prisão.

Foram violados os artigos 40º nº 1, 50º , 71º e 170º, nº 1 do C.P; 18º nº 2, 26º, nº 1 27º nº1, 40º nº 1 , 47º nº 1 e 58º nº 1, da C.R.P.

Nestes termos e nos demais de direito, sempre com o douto suprimento de VªS, Exºs deveá o presente recurso, merecer provimento, com todas as consequências legais.

Respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público à motivação de recurso, concluindo:

1- Considerando que o legislador penal com a incriminação do lenocínio pretendeu não só proteger o sentimento geral de pudor e de moralidade mas também bens intrinsecamente pessoais relacionados com a liberdade sexual de cada cidadão, então não se vislumbra como possa a incriminação de tal ilícito violar bens constitucionalmente protegidos.
2- A incriminação do lenocínio é matéria de política criminal, já que ao abrigo do principio da dignidade humana deve ser criminalizada toda e qualquer conduta que atente contra a liberdade sexual seja mediante a prática de actos de violência física contra a vítima quer mediante a exploração profissional ou com intenção lucrativa de favorecimento, fomento ou facilitação do exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo.
3- O direito penal não pode deixar de considerar como um valor ou bem jurídico a proteger e a tutelar a dignidade da pessoa humana e o correlato dever de não ver apropriado o resultado de um trabalho que, na maior parte das vezes, é desenvolvido em condições não livres ou pelo menos com total liberdade de exercício.
4- O crime de lenocínio não viola os preceitos constitucionais e enquanto se mantiver o ambiente histórico-socialmente vigente, nomeadamente a carga criminógena que lhe está associada deverá, em nosso juízo, continuar a ser um ilícito tipificado na lei, não se encontrando a sua incriminação ferida de qualquer inconstitucionalidade.
5- A pena concreta a que o arguido foi condenado mostra-se justa e adequada às exigências de prevenção geral e especial, satisfazendo igualmente as necessidades de punição.
6- Não deverá ser efectuada uma distinção nas diversas modalidades de acção integradoras do ilícito penal enunciado no art. 170° do Código Penal, como pugna o ora recorrente, pois que se fosse essa a intenção do legislador o mesmo teria para cada modalidade de acção típica consagrado uma moldura penal.
7- No caso em apreço, a simples censura do facto mediante a suspensão da pena de prisão aplicada não satisfaz as exigências de prevenção especial de socialização e geral de defesa da ordem jurídica.
8- As circunstâncias que depõem a favor do arguido, designadamente, a sua personalidade; as condições de vida do arguido; a sua integração familiar; a sua actual situação profissional, embora possam apontar para uma ressocialização do agente, são circunstâncias manifestamente insuficientes para combater todas as restantes circunstâncias agravantes que depõem contra o arguido (a gravidade da sua culpa, o elevado grau de ilicitude e os antecedentes criminais registrados) em ordem à suspensão da execução daquela pena.
9- A consciencialização da ilegalidade da conduta adoptada só será possível, no caso sub judice, se o arguido cumprir efectivamente a pena de prisão aplicada, e a demonstrá-lo temos o facto de as condenações anteriores não terem sido, em si mesmas, suficientes para o arguido se afastar da prática deste tipo de ilícitos. A reiteração no cometimento de ilícitos desta natureza parece evidenciar uma certa tendência criminosa e uma total indiferença pelos bens jurídicos tutelados pelo normativo que pune o crime de lenocínio e a demonstrá-lo temos a postura desresponsabilizadora adoptada pelo arguido ao longo das várias sessões de julgamento que nunca deixou denotar uma vontade de se afastar do cometimento de novos crimes.

Neste Supremo, o Ministério Público, na vista oportuna dos autos, pronunciou-se pelo prosseguimento dos autos, “fixando-se dia para julgamento”

Foi o processo a vistos, tendo o Exmo Presidente designado a audiência que veio a realizar-se na forma legal.

Consta da decisão recorrida
2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Matéria de Facto Provada (relevante)
Da audiência de julgamento e dos elementos probatórios constantes dos autos resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido AA constituiu em 9 de Outubro de 2001 a sociedade comercial por quotas denominada "Dancing Brasil", Lda., a qual tem a sua sede na Avenida Df. Carlos Bacelar, Centro Comercial ..., Loja 00, área desta Comarca, e como objecto comercial um estabelecimento de diversão com espectáculo, sendo o arguido desde a sua constituição o seu único gerente (registado).
2. Em 8 de Janeiro de 2003 mediante contrato outorgado entre a sociedade "XXXX", Lda., da qual era Legal Representante JM, e a sociedade "Dancing Brasil", Lda., representada pelo arguido AA, foi acordado o trespasse pela primeira sociedade a favor da segunda do estabelecimento comercial denominado "Discoteca Embaixada Nigth Club", sito na Rua..., Calendário, área desta Comarca, pelo preço de 14.963,94€.
3. Assim, na sequência do aludido contrato de trespasse, o arguido AA iniciou em Janeiro de 2003 a exploração do mencionado estabelecimento comercial que passou a adoptar também as designações publicitárias de "Dancing Brasil"; "Chupa Galera" e "Chupa Nenem", o qual funcionava todos os dias de segunda a domingo entre as 22h 00m e as 4h 00m.
4. A arguida MF exerce funções de gerente (de facto) do mencionado estabelecimento "Embaixada" desde que o arguido AA iniciou a exploração do mesmo sendo ela quem toma todas as decisões relativas ao seu funcionamento na ausência do arguido AA, designadamente aí permanecendo todas as noites fiscalizando o seu funcionamento e recebendo dinheiro dos clientes.
5. É também a arguida que, por vezes, efectua o pagamento no final de cada noite aos empregados do estabelecimento que ali prestam funções, designadamente, aos arguidos CC, DD; EE FF e FF, que ali exercem a actividade de empregados de bar.
6. A par da actividade de gerência acima referida, a arguida MF em 26 de Fevereiro de 2003 celebrou com a sociedade "Dancing Brasil", Lda., representada pelo arguido AA, um contrato de cessão de exploração da parte relativa ao snack bar e grill instalado no interior daquele estabelecimento pelo prazo de três meses e pela renda anual de 15.000,00€.
7. Em 31 de Janeiro de 2005 o arguido AA assinou com o arguido CC um contrato de arrendamento para exploração do mencionado estabelecimento "Embaixada" pelo período de 12 meses mediante uma renda anual de 42.000,00€ cedendo àquele os veículos de matrícula RD-00-00 e IX-00-00 bem corno todos os objectos e licenças que o constituíam.
8. Não obstante, não era essa a vontade real desses arguidos e o arguido AA continuou a gerir, com a colaboração da arguida MF, o referido estabelecimento dando ordens aos seus funcionários, fixando os preços e cuidando dos pagamentos devidos a fornecedores e aos seus funcionários.
9. O referido estabelecimento "Embaixada", sito na Rua ..., é constituído por uma recepção, um salão amplo onde existem vários sofás e um palco utilizado para a realização de show de strip tease e urna tribuna usada pelo disc-jockey com um bar único, casa de banho e vestiário.
10. Contígua a esta sala existe urna outra dependência constituída por cozinha (grill), um balcão, uma casa de banho, vários sofás e um pequeno compartimento denominado de "reservado" equipado com sofás-cama.
11. No piso superior do edifício existem quatro quartos mobilados, vulgarmente denominados de "reservados", cada um deles com sofás-cama e urna mesa sendo que o acesso a tais quartos é efectuado através da parte destinada ao grill subindo urna escada em caracol ali existente.
12. No referido estabelecimento trabalham várias mulheres de nacionalidade brasileira cuja actividade consiste em aliciar os clientes a consumir bebidas alcoólicas e bem assim a acompanhá-las aos quartos e reservados existentes no interior daquele estabelecimento onde mantém com os mesmos relações sexuais.
13. Para o efeito, é fornecido a cada mulher um "Kit" contendo um lençol descartável, toalhas e um preservativo os quais se encontram à disposição das mesmas junto do balcão, sendo habitualmente entregues tais objectos pelos arguidos EE, FF, DD ou CC.
14. Para acederem aos quartos e reservados na companhia das mulheres que ali trabalham para aí praticarem actos sexuais os clientes têm de pagar urna quantia em dinheiro que é variável em função do tempo de permanência naqueles locais: 40,00€ por 20 minutos e 50,00€ por 30 minutos.
15. Tais preços são anotados antes da deslocação aos quartos e reservados nos cartões dos respectivos clientes pelas mulheres que os acompanham ou pelos arguidos EE; FF e DD e CC, os quais ficavam encarregues de controlar o tempo de ocupação dos mencionados quartos pelos clientes apontando o tempo que ali permaneciam cabendo ainda a estes arguidos receber dos mencionados clientes as quantias pagas após a desocupação dos quartos, quantias essas que no final da noite eram entregues aos arguidos AA ou MF.
16. Pelo menos ao arguido EE cabia igualmente assegurar em algumas ocasiões o transporte de mulheres das suas residências para aquele estabelecimento no início e no final de cada noite utilizando para o efeito o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo 504, break Diesel, matricula IX- 00-00, registado em nome de DD mas pertença do arguido AA desde 1998.
17. Conforme previamente acordado com o arguido AA, estava estabelecido que as referidas mulheres recebiam 50% das quantias respeitantes às bebidas que lhe forem pagas pelos clientes, bem como quantia variável (não concretamente apurada) consoante o preço de cada relação sexual que mantinham com o cliente (este era entregue aos arguidos acima referidos nos termos descritos).
18. No final de cada noite cabe á arguida FFa receber as quantias pagas pelos clientes pagar às mulheres o que lhes é devido bem como aos demais empregados do estabelecimento revertendo as demais quantias para o arguido AA e uma percentagem não concretamente apurada para si.
19. Em data não concretamente apurada de Novembro de 2004 KK, começou a trabalhar no estabelecimento "Embaixada" fazendo-o 4 a 5 vezes por semana, acompanhando os clientes que aí se encontrassem no consumo de bebidas, das quais revestiam para si 50% do respectivo preço pago por aqueles e bem assim aos quartos existentes naquele estabelecimento para manter ali com os mencionados clientes relações sexuais pagos pelos clientes ao balcão aos arguidos CC, EE; FF ou DD ou à arguida FF a revertendo uma parte das quantias para si e a restante para o explorador daquele estabelecimento - o arguido AA.
20. Assim sucedeu no dia 17 de Fevereiro de 2005, pelas 1h 05m, KK aliciou DS a acompanha-la a um dos quatros existentes no piso superior daquele estabelecimento, mais concretamente ao quarto n° 2, para ali manterem relações sexuais pelo período de 20 minutos mediante o pagamento da quantia de 40,00€ quantia que tinha que pagar findo aquele acto no balcão sendo essa quantia repartida nos termos supra expostos.
21. Naquela noite preparava-se a referida KK para manter relações sexuais de cópula com o referido DS quando foram surpreendidos já despidos por elementos da G.N.R. que ali se encontravam a efectuar busca ao mencionado estabelecimento.
22. Na sequência de busca realizada ao interior do mencionado quarto foi encontrado um rolo de papel de cozinha, um lençol colocado no sofá utilizado, uma caixa com cinco preservativos, uma embalagem de toalhetes e um vibrador.
23. Também a partir de data não concretamente apurada, pelo menos cerca 15 dias antes de 17.2.05 EA , usando o nome de "Eli", começou a trabalhar diariamente no estabelecimento "Embaixada" onde acompanhava os clientes que aí se encontrassem no consumo de bebidas, das quais revestiam para si 50% do respectivo preço pago por aqueles e bem assim aos quartos existentes naquele estabelecimento para manter ali com os mencionados clientes relações sexuais pagos pelos clientes ao balcão aos arguidos CC, EE, FF ou DD ou à arguida MP, revertendo uma parte das quantias para si e a restante para o explorador do mencionado estabelecimento – o citado arguido AA.
24. Assim sucedeu no dia 17 de Fevereiro de 2005, pelas 0h 55m, EA aliciou FC a acompanha-la a um dos quatros existentes no piso superior daquele estabelecimento, concretamente ao quarto n° 3, para ali manterem relações sexuais nos termos descritos em 23., por tempo não concretamente apurado.
25. Naquela noite a referida EA encontrava-se a manter relações sexuais de cópula com o referido FC quando foram surpreendidos por elementos da G.N.R. que ali se encontravam a efectuar busca ao mencionado estabelecimento.
26. Na sequência da busca realizada àquele quarto foi encontrado no interior do mesmo um lençol de papel colocado no sofá, um preservativo que havia sido utilizado momentos antes pelo referido FC; um rolo de papel de cozinha; um gel lubrificante e no interior da bolsa de EA 12 preservativos.
27. Na mesma noite, pelas 00h 30m, na sequência de busca realizada ao estabelecimento foram encontrados, além do mais: na parte reservada ao grill cerca de 227 lençóis descartáveis; no gabinete da gerência vários cartões de consumo com as inscrições "pago"; no balcão existente no salão principal algemas; preservativos, frascos de estimulante sexual bem como um comando de controlo à distância cuja finalidade era a de accionar um sistema que emitia um sinal sonoro existente nos quartos/reservados por forma a avisar as mulheres que ali se encontrassem a manter relações sexuais da presença de forças policiais e assim terminarem o acto sexual; no interior de uma bolsa em cabedal pertencente à arguida MP foi encontrada uma quantia total de 1019,40€.
28. O arguido AA com a colaboração da arguida MFpelo menos desde Janeiro de 2003 que vinha explorando o estabelecimento comercial "Embaixada" auferindo do exercício de tal actividade os correspondentes lucros.
29. Também a arguida MFno mencionado período exercia na ausência do arguido AA a gerência do estabelecimento comercial "Embaixada" não desempenhando qualquer outra actividade profissional remunerada vivendo exclusivamente da exploração do mencionado estabelecimento (incluindo o referido Grill) de onde lhe vinham todos os seus rendimentos.
30. Por sua vez, os arguidos CC, FF, EE e DD prestaram auxílio à exploração pelos arguidos AA, MF e CC do mencionado estabelecimento quer exercendo no mesmo actividade de empregados de bar quer facilitando (nos termos descritos) o exercício pelos demais arguidos da actividade a que os mesmos se dedicavam com as referidas mulheres (incluindo a KK e EA) de actos de prostituição e da qual também obtiveram os respectivos proventos.
31. Os arguidos AA e MF agiram livre, voluntária e conscientemente, de comum acordo e em conjugação de esforços no propósito de fomentarem, favorecerem e facilitarem a prática de actos de prostituição pelas referidas mulheres, incluindo a EA e a KK, no estabelecimento "Embaixada" reunindo no mesmo condições para tal.
32. Os arguidos AA e MF beneficiavam (directamente) economicamente das relações sexuais mantidas pelas referidas EA e KK bem como de outras mulheres não concretamente identificadas no estabelecimento que exploravam para os quais revertia uma percentagem das quantias pagas pelos clientes para o efeito, para além de beneficiarem com a afluência de clientes que aí se deslocam com o intuito de manterem relações sexuais, que acabam também por consumir bebidas aí comercializadas.
33. Por seu turno, os arguidos CC, FF, EE e DD ao colaborarem com os arguidos AA e MF prestando àqueles auxílio, nos moldes descritos, para a prática de actos de prostituição pelas referidas mulheres (nomeadamente a EA e KK), recebendo daquelas quantias em dinheiro e controlando o tempo de permanência das mesmas no interior do quarto acompanhadas dos respectivos clientes, actuaram com a vontade livre e a perfeita consciência de que ao adoptarem tal conduta facilitavam igualmente o exercício da prostituição por aquelas mulheres e de cuja actividade advinham lucros que enriqueciam o património de todos os arguidos e do qual recebiam os respectivos proventos.
34. Sabiam os arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
35. O arguido CC já foi julgado e condenado: em 3.4.2003, pelo crime de condução sem habilitação legal, na pena de 80 dias de multa; um crime de receptação, pelo qual foi condenado em pena de multa (cf. fls. 1009 e ss.).
36. A arguida MFnão tinha em 20.3.2006 antecedentes criminais registados.
37. O arguido EE não tinha em 20.3.2006 antecedentes criminais registados.
38. O arguido FF não tinha em 20.3.2006 antecedentes criminais registados.
39. O arguido DD não tinha em 27.11.2006 antecedentes criminais registados.
40. O arguido AA já foi julgado e condenado: em 2.2.95, pelo crime de detenção ilegal de arma de fogo, na pena de 100 dias de multa; em 2.11.97, por condução sob o efeito do álcool, na pena de 60 dias de multa; em 23.2.00, pelos crimes de condução sob o efeito do álcool e ofensa à integridade física simples, na pena única de 120 dias de multa; em 5.7.2001, por crime de usurpação, na pena de 5 meses de prisão, substituídos por dias de multa; em Fevereiro de 2001, por crime de receptação dolosa, na pena de 10 meses de prisão com execução suspensa por dois anos; em 21.1.2004 (transito em 6.6.2006), pelo crime de lenocínio, praticado em 23.1.2002 (na pena de 2 anos de prisão), por outro crime de ofensa à integridade física simples (na pena de 10 meses de prisão), por instigação de um crime desta mesma natureza (na pena de 8 meses de prisão), e na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por 3 anos condicionada ao pagamento de 1000 euros à Instituição Particular de Solidariedade Social “ O Ninho” (cf. fls. 1240).
CONSTA DOS RELATÓRIOS SOCIAIS EFECTUADOS (1) QUE …:
41. O arguido FF vive em casa arrendada pela qual paga 275€ mensais.
42. Apresenta um percurso profissional regular, estando desempregado há alguns meses.
43. Vive actualmente com a cônjuge, dependendo economicamente do seu salário (450€) e da ajuda de uma filha (300€).
44. O arguido DD encontrava-se em Dezembro de 2006 hospitalizado há cerca de 4 meses devido a problema de saúde que o deixou paraplégico.
45. Vive habitualmente em casa arrendada com a sua companheira, MP, que aufere cerca de 380€ mensais.
46. O arguido EE vive com a companheira em casa arrendada, pagando renda mensal de 300€.
47. Desde há 8 anos que exerce actividade numa casa de diversão nocturna – Embaixada, onde aufere um salário mensal médio de 1000 euros.
48. O arguido AA vive em casa própria e explora actualmente um espaço designado Copacabana Bar – Restaurante Tropical, em Calendário, Vila Nova de Famalicão, desde Abril de 2006, auferindo um rendimento mensal de pelo menos 1000 euros mensais. O seu agregado familiar inclui a esposa e uma filha. O casal suporta uma prestação mensal de um empréstimo à habitação no valor de cerca de 1000 €.
49. A arguida MF vive em casa própria, adquirida com empréstimo bancário pelo qual paga mensalmente 499 euros. Vive actualmente das economias que fez.
50. O arguido CC vive em apartamento arrendado (pelo valor de 275€ mensais) com a mulher e filhos. Aufere um rendimento mensal de 640 euros.
Contestações
51. O arguido AA, explorou directamente o estabelecimento comercial denominado Dancing Brasil desde 8 de Janeiro de 2003.
52. O AA, em representação da Dancing Brasil, Ldª., e o CC Paulo subscreveram um escrito em que era cedido a este para exploração o estabelecimento comercial de diversão nocturna.
53. Os arguidos DD, EE e FF prestavam também serviços indiferenciados inerentes às funções de porteiro, empregado de bar e de mesa.
54. O sobredito estabelecimento comercial consubstancia-se também numa, usualmente designada "Casa de Alterne".
55. Os arguidos têm conhecimento de que as senhoras também aliciavam os clientes com o desiderato de obterem destes o pagamento de uma bebida, usualmente de valor mais elevado, como forma de contrapartida pela companhia que lhes dispensavam.
56. Sendo a contrapartida económica desses (alterne) serviços prestados pelas senhoras igual a 50% do preço da bebida que os clientes do estabelecimento comercial lhes pagavam.

2.2. Factos Não Provados (2).
1. A arguida MFefectuava as encomendas de produtos para o estabelecimento e pagamento a fornecedores.
2. O arguido CC geriu conjuntamente com o arguido AA o referido estabelecimento.
3. Para acederem aos quartos e reservados na companhia das mulheres que ali trabalham para aí praticarem actos sexuais os clientes têm de pagar 30,00€ por 10 minutos; 35,00€ por 15 minutos (…).
4. Que as quantias recebidas dos clientes eram entregues no final da noite também ao arguido CC.
5. Aos arguidos FF e DD cabia igualmente assegurar em algumas ocasiões o transporte de mulheres das suas residências para aquele estabelecimento.
6. A arguida MP no exercício das suas funções de gerente do mencionado estabelecimento de comum acordo e com o conhecimento e consentimento dos arguidos AA e CC, em execução do previamente acordado com aqueles, estabelece com as referidas mulheres um contacto prévio segundo o qual estas, designadamente, entregam aos arguidos 10,00€ num acto sexual de 40,00€ e 5,00€ num acto sexual de 30,00€ revertendo as restantes quantias para si.
7. No final de cada noite (…) revertem as demais quantias para o arguido CC.
8. KK, usando o nome de "Júlia" trabalhou no estabelecimento "Embaixada" diariamente revertendo uma parte das quantias o explorador daquele estabelecimento - o arguido CC.
9. No dia 17 de Fevereiro de 2005, pelas 1h 05m, a KK (…) a referida KK tinha que entregar 10,00€ aos arguidos AA, MFe CC.
10. No dia 17 de Fevereiro de 2005, pelas Oh 55m, EA iria manter relações sexuais pelo período de 20 minutos mediante o pagamento da quantia de 40,00€ de cuja quantia tinha que entregar cerca de 10,00€ aos exploradores daquele estabelecimento comercial.
11. De igual modo, o arguido CC, pelo menos desde 31 de Janeiro de 2005 que se vinha dedicando, profissionalmente à exploração do aludido estabelecimento comercial do qual retirava todos os rendimentos necessários ao seu sustento.
12. Por sua vez, os arguidos FF, EE e DD prestaram auxílio material à exploração pelo arguido CC do mencionado estabelecimento.

Contestações
13. O arguido AA explorou directamente o estabelecimento comercial denominado Dancing Brasil apenas até Junho de 2003, não obstante apenas em Fevereiro de 2004, ter celebrado o respectivo contrato.
14. Todavia, a cedência da exploração do estabelecimento ocorreu em Junho de 2003 data em que o cessionário Artur Marques Martins, liquidou a quantia referente ao valor dos bens consumíveis existentes no estabelecimento, bem como das subsequentes referentes à quantia recebida pelo arguido AA a título de retribuição pela cedência.
15. Após celebrar tal contrato o arguido AA, não mais exerceu qualquer função relacionada com a gerência e exploração do estabelecimento comercial.
16. Por seu turno a arguida Maria MP no sobredito estabelecimento desde Fevereiro de 2003 que apenas explorava a parte do estabelecimento relativa ao snack-bar e grill, não tendo relativamente à restante actividade prosseguida dentro do estabelecimento qualquer poder decisivo, não correspondendo à verdade que a mesma tomasse decisões relativas ao funcionamento do mesmo.
17. Esta arguida prosseguia apenas a exploração do snack-bar e grill instalado dentro do estabelecimento e autónomo relativamente a este.
18. Esta geria a exploração daquele estabelecimento de snack-bar sem ter, relativamente ao funcionamento do estabelecimento de diversão nocturna, quaisquer poderes de gerência, ainda que de facto.
19. O referido Artur Marques Martins e o arguido AA em Janeiro de 2005 revogaram verbalmente o contrato entre ambos celebrado.
20. Na sequência da revogação do aludido contrato o arguido AA e o CC Paulo celebraram (3). entre si contrato de arrendamento para exploração do estabelecimento comercial de diversão nocturna.
21. Cada um dos sucessivos agentes exploradores do estabelecimento comercial exerceram por si a respectiva gerência sem, portanto, qualquer interferência ou ingerência de qualquer tipo por parte do proprietário, o arguido AA.
22. Os arguidos DD, EE e FF, não tinham quaisquer funções passíveis de favorecer, facilitar ou fomentar a prática por outrem de relações sexuais ou actos sexuais.
23. No sobredito estabelecimento comercial não são praticados actos sexuais com as senhoras que ali prestavam serviço.
24. Desconhecendo, os arguidos se as senhoras aliciavam ou não os clientes do estabelecimento para algum acto sexual, sendo que, todavia, para tal não tinham quaisquer instruções.
25. Pelo que se as testemunhas EA e KK Borges praticaram actos sexuais com clientes do estabelecimento, disso os arguidos não tiveram conhecimento, nem por qualquer meio fomentaram tal prática.
26. Os arguidos apenas têm conhecimento de que as senhoras aliciavam os clientes com o desiderato de obterem destes o pagamento de uma bebida, usualmente de valor mais elevado, como forma de contrapartida pela companhia que lhes dispensavam.
27. Os arguidos, da actividade prosseguida no estabelecimento comercial, nunca obtiveram quaisquer contrapartidas económicas derivadas da prática de relações sexuais de quem quer que seja.
28. Nem nunca em situação alguma qualquer dos arguidos recrutou senhoras para a prática de relações sexuais, nem angariavam clientes para o estabelecimento com o propósito de ali manterem relações sexuais.
29. Não correspondendo, por isso, à verdade que as senhoras encontradas no estabelecimento no dia 17 de Fevereiro de 2005, ali estivessem para praticar sexo com clientes com a finalidade económica.
30. Reafirma-se, pois, que os arguidos nunca recrutaram nenhuma mulher para se prostituir no estabelecimento comercial, nem por qualquer meio exploraram a prostituição de alguma das mulheres que ali prestaram serviço, nunca tendo, pois, obtido a esse título quaisquer proventos económicos.

2.3. Motivação da decisão de facto
O Tribunal fundamentou a sua convicção quanto à matéria de facto provada nos seguintes meios de prova, analisados à luz das regras da experiência comum e da norma do art. 127º, do Código de Processo Penal.
Na confissão parcial dos factos realizada em audiência pelo arguido CC, que admitiu trabalhar no estabelecimento sempre pertencente (como afirmou) ao arguido AA, aos fins de semanas, servindo bebidas ao balcão. Além disso o arguido negou, sem convencer, desconhecer a actividade de prostituição que lá se desenvolvia e bem assim as evidências (4) que a prova real, maxime as apreensões efectuadas no seu local de trabalho, revelam. Este arguido, contrariando a tese da sua contestação conjunta e mudando de defensor já durante a audiência julgamento, argumentou que o estabelecimento sempre foi desse AA e que o contrato escrito junto aos autos fora uma simulação, no que foi secundado, v.g., pela testemunha SM, ex-contabilista da empresa, que inclusive exibiu documento que sustenta essa tese, supostamente elaborado na mesma ocasião (cf. fls. 1343) e que não é muito diverso do apresentado pelo próprio AA (cf. fls. 1344). Resulta desses elementos que, a dada altura (por sinal muito próxima da busca efectuada !?! (5)), o arguido AA decidiu simular com esse arguido uma transferência do estabelecimento que, ditam as regras da experiência e a conjugação com os demais elementos apurados, visava evitar a imputação de factos menos lícitos ocorridos nesse espaço (o que parece que num primeiro momento foi conseguido se atendermos à actuação exarada a fls. 75).
Além dessas declarações limitadas do arguido CC, no início da audiência mais nenhum dos arguidos exerceu o direito de se defender da acusação revelando pessoalmente a sua versão dos factos.
Todavia, a final, algum peso da prova produzida determinou que a arguida MF tentasse explicar a posse do dinheiro encontrado na sua posse (6), acabando então por reconhecer pertencer ao arguido AA, com quem manteve uma relação de namoro, ou seja, admitiu que ainda em meados de Fevereiro de 2005, quando este formalmente já transferira a sua exploração para o co-arguido CC, através do contrato acima referenciado, era quem na realidade o explorava e beneficiava com a sua actividade (7).
Nessa fase da audiência também o arguido AA optou por prestar algumas declarações, para, de forma incoerente (8), confessar-se “arrependido”. Perguntado do quê (?), tendo em conta a contestação escrita apresentada, o arguido deu a entender que o seu arrependimento se resumia ao alegado, mas não demonstrado, insucesso do seu negócio (9). nesse estabelecimento. Nessas declarações, este arguido acabou por admitir gerir esse estabelecimento, ressalvando que a sua actividade não envolvia a prática de prostituição. Após alguma insistência e confronto com a prova evidenciada pelo julgamento a que assistiu, acabou por admitir que fossem praticadas relações sexuais entre as mulheres que lá faziam alterne e clientes do seu estabelecimento mas não foi além dessa limitada afirmação (10).
Por fim, igualmente o arguido EE optou por prestar declarações que se ficaram pela conveniente afirmação de que ignorava a actividade que motivou a acusação deste processo e que nunca participou na mesma, nomeadamente entregando os mencionados lençóis descartáveis que se encontravam abundantemente no estabelecimento. Porém, este arguido admitiu que, tal como ele, os co-arguidos DD e CC procediam aos pagamentos devidos às mulheres que lá trabalhavam (no alterne), assim como qualquer empregado podia proceder às devidas anotações nos cartões de consumo de cada um dos seus clientes.

Tivemos ainda em conta a prova real, consubstanciada nas apreensões e exames localizadas no tempo e espaço vertido nos respectivos autos, que permitiram materializar a actividade desenvolvida no referido estabelecimento, relaciona-los com os arguidos e bem assim esclarecer a forma como era organizada aquela, em confronto e sustento com prova pessoal produzida (sem esquecer as afirmações/negações absurdas dos arguidos) (vide,v.g., os elementos de fls. 83, 120, 122, 74 a 82, 89 a 96, 183 a 189, 492 e ss.).
Na prova documental dos autos, que permitiu o mesmo tipo de indagação: esclarecendo a forma como estava estabelecida a sua actividade no estabelecimento; a relação financeira entre os arguidos AA e MP e a sociedade Dancing Brasil; o evolução real e/ou simulada da gerência (11) que os movimentos a crédito na conta do arguido AA e da sociedade Dancing Brasil prosseguiram pelo mês de Fevereiro de 2005. do mesmo, em conjugação com outros elementos de prova produzidos; o aspecto revelador das instalações, neste caso com os documentos fotográficos (vide, v.g. fls. 96, 128 a 134, 169 a 178, 136, 144, 147, 148, 162, 279, 281 a 282, 164, 227, 444 a 447, 453 a 455, 528, 705 a 778, 797 a 853 951 a 990).
Na prova pessoal, constituída também pelo depoimento das testemunhas ouvidas durante o processo, em declarações para memória futura (com excepção da que conseguimos ouvir em audiência), ou já em audiência de julgamento que infra mencionamos e que atendemos na parte em que se mostrou fundado em ciência directa e credível, neste caso por ser espontânea, não contrariada por forma ou prova relevante e/ou corroborada pelos restantes elementos de prova coligidos.
Tivemos assim em conta o depoimento de JD, sargento da GNR que participou nas investigações; AB, soldado da GNR, que participou em vigilância e na busca ao estabelecimento, tendo constatado pessoalmente a forma como se processava o contrato para a obtenção de serviços sexuais, vulgo, prostituição, com as mulheres que lá se encontravam, bem como o envolvimento de cada um dos arguidos na actividade aí desenvolvida; PC, agente da GNR que, com a mesma razão de ciência, revelou os mesmos factos, confirmando ainda o flagrante de dois casais nos quartos reservados para aqueles contactos sexuais, no dia da busca, e a existência de um sistema de alarme accionado por comando sem fios que emitia sinal sonoro e visual (luz) na zona desses quartos;.., também agente da GNT que revelou, com a mesma razão de ciência elementos referentes à actividade de prostituição desenvolvida no estabelecimento; JA, igualmente agente da GNR, que revelou também alguns elementos resultantes da busca e vigilância em que participou; DD , tenente da GNR, que revelou alguns factos resultantes da busca relatada nos autos; DS, auxiliar de acção educativa, que foi encontrado num desses quartos (vide fls. 77) após se ter proporcionado, como relatou, por “sugestão” de uma mulher (a testemunha KK) que o abordou no estabelecimento, a prática de sexo remunerado; FC, empresário, que foi encontrado noutro dos quartos em que se praticava a prostituição (vide fls. 77), na companhia da testemunha EA, em preliminares de relação sexual, tendo ainda revelado que nesse dia a arguida MP e o arguido EE estavam no balcão a servir bebidas; EA, uma das mulheres que trabalhou nesse estabelecimento, contratada pelo arguido AA, que acabou por revelar que nesses quarto estava a praticar sexo com o Francisco. Disse ainda que os arguidos EE e DD lhe explicaram para que eram esses quartos; que nos mesmos fazia “strip” ou o “que quisesse”. Em função do que mais pagasse o cliente “havia sexo”, disse a mesma. Nesse dia, quando subiu ao quarto com o Francisco, disse ter levado um lençol e previamente feito anotar no cartão essa “subida”, alegadamente para fazer “strip”.
Nas declarações para memória futura de RR, SS e KK (12)., o que se retira é somente mais uma confirmação da actividade de alterne e o envolvimento de alguns dos arguidos na actividade desenvolvida no bar, já que estas testemunhas, como é habitual (dada a compreensível situação de vulnerabilidade), não quiseram, notoriamente, comprometer os arguidos (e assim comprometer-se a si), remetendo-se a negativas inconsistentes quanto à prática organizada de prostituição que outros elementos probatório revelam. Aliás, esse tipo de atitude ficou também patente no depoimento da testemunha EA, que só foi mais completo devida à instância e confronto que a imediação em audiência permitiu. Deste modo, esses depoimentos, nas suas omissões e afirmações, foram relevados em consonância com os outros elementos de prova que os confirmam e desconsiderados no confronto com aqueles que claramente os desacreditam e já foram acima citados.
Foi também relevado o essencial depoimento da testemunha SM, contabilista, também indicada pela defesa, que denunciou a falsidade (simulação) dos documentos outorgados entre os arguidos AA e CC no sentido de ceder a este a exploração do estabelecimento em causa, conforme foi confirmado por este último.
Já na defesa dos arguidos foram ouvidos: .., .. e ..., que, com relevo, se limitaram a abonar.
Sobre a situação socio-económica dos arguidos, relevamos ainda as declarações incontestadas e os documentos e os relatórios sociais juntos.
Nos C.R.Cs. juntos, suportamos a matéria relativa ao historial criminal dos arguidos.
Salienta-se que, no plano subjectivo, em face da falta de confissão dos arguidos, ponderámos o iter criminis apurado.
Existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica (13), os relativos ao aspecto subjectivo da conduta criminosa.
Em correcção e simultânea corroboração desta afirmação, diz-nos N. F. Malatesta (14) que exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas passa-se a concluir pela sua existência.
Na prática, como refere este mesmo autor (15), afirma-se muitas vezes sem mais nada o elemento intencional mediante a simples prova do elemento material (...) O homem, ser racional, não obra sem dirigir a suas acções a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim.
No caso, a conduta objectiva apurada permite concluir, pelos dolos apurados. Não temos dúvidas de que todos os arguidos eram sabedores da actividade ilícita apurada e, com maior ou menor grau, participaram na mesma. Dos elementos objectivos apurados, nomeadamente a relação com a sociedade Dancing Brasil, a colaboração confessada e materializada nos elementos financeiros coligidos, a actuação no dia a dia do estabelecimento, na contradição reveladora entre o que se afirma e o que patenteiam (logicamente) os elementos probatórios coligidos, resulta que o arguido AA era o principal autor e beneficiário dessa actividade e a arguida MP era colaboradora/comparticipante/beneficiária nessa actividade, sendo a alegada e formalizada exploração “autónoma” do dito “grill” apenas mais um expediente/alibi frustrado pela prova coligida.
Contrariando os indícios que sustentaram a acusação, ficou por demonstrar na prova produzida em audiência que o arguido CC, tivesse um papel que nessa actividade fosse diverso dos demais cúmplices/empregados do estabelecimento.
Nos factos não provados, o tribunal ponderou a ausência de prova segura dos mesmos ou a contradição com aquela positivamente mencionada, que comprovou, de forma segura, outra matéria ou a negação dessa”.
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Cumpre apreciar e decidir.

Inexistem vícios ou nulidades de que cumpra conhecer nos termos do artigo 410º nºs 2 e 3 do Código de Processo Penal.
Suscita o recorrente as seguintes questões:

I- Inconstitucionalidade material do artigo 170°, n° 1 do CP, pois que, no sem entendimento, ao incriminar o fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre e, autodeterminada, o n° 1 do artigo 170° ofende o princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, plasmado no artigo 18º, n.° 2 da C.R. P. e previsto no artigo 40°, n° 1 do C.P., bem como os direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal, liberdade de consciência, liberdade de escolha de profissão e direito ao trabalho, previstos nos artigos 26°, n° 1, 27°, n° 1, 41°, n° 1, 47°, n° 1 e 58º, n.º 1 da C. R. P.
Inconstitucionalidade essa que apenas pode ser afastada através do recurso a uma interpretação restritiva do preceito que repristine a exigência de que os actos descritos no tipo legal de crime apenas sejam passíveis de o constituir quando reportando-se a pessoas “em situação de abandono ou de extrema necessidade económica”.
Pelo que o recorrente terá de ser absolvido do crime de lenocínio, seja pela declaração de inconstitucionalidade ou seja pela interpretação restritiva do sobredito preceito legal.
II- Se a prostituição fosse crime, fomentá-la era, indubitavelmente, um acto de co-autoria e favorecê-la ou facilitá-la reconduzir-se-ia a mera cumplicidade que é, nos termos da lei, punida com uma pena especialmente atenuada.
Da matéria de facto provada não resulta que o arguido/recorrente haja fomentado a prostituição das mulheres que trabalhavam no seu estabelecimento de diversão nocturna, limitando-se, pois, a favorecer ou facilitar a prática eventual de tais actos.
III- Assim, afigura-se-lhe que a pena de dois anos aplicada ao arguido não respeita os critérios impostos pelo art. 71°, do Código Penal, devendo ser reduzida para não mais de um ano de prisão e a sua execução deve ser suspensa, respeitando, assim, a previsão contida no artigo 50° do C.P., sendo manifesto que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de modo adequado e suficiente as finalidades da punição.

Analisando:

Sobre a inconstitucionalidade alegada.

A questão sobre a pretensa inconstitucionalidade do artigo 170º nº 1 do Código Penal, já foi equacionada e decidida pelo Tribunal Constitucional
Assim, o Acórdão nº 144/2004, de 10 de Março de 2004, proc. Nº 566/2003, 2ª secção, daquele Tribunal debruçando-se sobre a eventual inconstitucionalidade da norma contida no artigo 170º, nº 1, do Código Penal, por violação dos artigos 41º e 47º, nº 1, conjugados com o artigo 18º, nº 2, da Constituição, considerou como questão prévia à problemática entre o Direito e Moral, a de saber se a norma do artigo 170º, nº 1, do Código Penal apenas protege valores que nada tenham a ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, não susceptíveis de protecção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa.
E, fundamentou de forma, que merece a pena transcrever:
“Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da pessoa prostituída (cf. sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas caracterizando-o como “fenómeno social total” e, depreende-se, um fenómeno de exclusão, JOSÉ MARTINS BRAVO DA COSTA, “O crime de lenocínio. Harmonizar o Direito, compatibilizar a Constituição”, em Revista de Ciência Criminal, ano 12, nº 3, 2002, p. 211 e ss.; do mesmo autor e LURDES BARATA ALVES, Prostituição 2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspectiva não resulta de preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e actividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei nº 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).
É claro que a esta perspectiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o “mundo da prostituição” (e note-se que neste terreno tem sido longo o percurso que conduziu o pensamento sociológico desde a caracterização da prostituição como anormalidade ou doença – assim, C. LOMBROSO e G. FERRO, La femme criminelle et la prostituée, 1896, e, no caso português, os estudos de TOVAR DE LEMOS, A prostituição. Estudo anthropologico da prostituta portuguesa, 1908, e, sobre as concepções da ciência acerca da prostituição no início do século, cf. MARIA RITA LINO GARNEL, “A loucura da prostituição”, em Themis, ano III, nº 5, 2002, p. 295 e ss. – até ao reconhecimento de que as prostitutas são vítimas de exploração e produto de uma certa exclusão social). Mas tal horizonte de compreensão dos bens relevantes é sempre associado a ideias de autonomia e liberdade, valores da pessoa que estão directamente em causa nas condutas que favorecem, organizam ou meramente se aproveitam da prostituição.
Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41º, nº 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia.
Por outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172º, nº 3, alínea e), do Código Penal], sempre com fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.
7. Por outro lado, que uma certa “actividade profissional” que tenha por objecto a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício de profissão ou de actividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos directamente associados à protecção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 471º, nº 1 e 61º, nº 1, da Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos [artigo 59º, nº 1, alíneas b) e c) ou nº 2, alínea c), da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do artigo 47º, nº 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta conclusão a aceitação de perspectivas como a que aflora no pronunciamento do Tribunal de Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de Novembro de 2001, Processo nº 268/99), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como actividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico, aliás, MASSIMO LUCIANI, “Il lavoro autonomo de la prostituta”, em Quaderni Costituzionali, anno XXII, nº 2, Giugno 2002, p. 398 e ss.). Com efeito, aí apenas se considerou que a permissão de actividade das pessoas que se prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer consequência para a licitude das actividades de favorecimento à prostituição.
8. As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de incriminar as condutas previstas no artigo 170º, nº 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incriminação a uma opção de política criminal (note-se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de discussão no plano de opções de política criminal – veja-se ANABELA RODRIGUES, Comentário Conimbricense, I, 1999, p. 518 e ss.), justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desprotecção social.
Tal opção tem o sentido de evitar já o risco de tais situações de exploração, risco considerado elevado e não aceitável, e é justificada pela prevenção dessas situações, concluindo-se pelos estudos empíricos que tal risco é elevado e existe, efectivamente, no nosso país, na medida em que as situações de prostituição estão associadas a carências sociais elevadas (sobre a realidade sociológica da prostituição cf., por exemplo, ALMIRO SIMÕES RODRIGUES, “Prostituição: – Que conceito? – Que realidade?”, em Infância e Juventude, Revista da Direcção-geral dos Serviços Tutelares de Menores, nº 2, 1984, p. 7 e ss., e JOSÉ MARTINS BARRA DA COSTA e LURDES BARATA ALVES, Prostituição 2001 ..., ob.cit., supra) não é tal opção inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade. Ancora-se esta solução legal num ponto de vista que tem ainda amparo num princípio de ofensividade, à luz de um entendimento compatível com o Estado de Direito democrático, nos termos do qual se verificaria uma opção de política criminal baseada numa certa percepção do dano ou do perigo de certo dano associada à violação de deveres para com outrem – deveres de não aproveitamento e exploração económica de pessoas em estado de carência social [cf., com interesse para a questão da construção do conceito de dano nesta área e independentemente da posição sobre a pornografia aí defendida, matéria que não tem relevância no contexto do presente acórdão, CATHERINE MACKINNEN, Pornography: On Morality in and Politics, em Toward a Feminist Theory of State, 1989, que defende a incriminação da pornografia em face da sua ofensividade contra a imagem da mulher e a construção da respectiva identidade como pessoa. Também sobre tal lógica de construção do dano, cf. SANDRA E. MARSHALL, “Feminism, Pornography and the Civil Law”, em Recht und Moral (org. HEIKE JUNG e outros), 1991, p. 383 e ss., defendendo a autora que, na pornografia, o dano consistiria na negação da humanidade da mulher, sendo relevante para o tema do presente Acórdão a perspectiva de que “a perda da autonomia não é um assunto meramente subjectivo ... a autonomia é negada mesmo que não se reconheça. Aqui pode ser traçado um paralelo com a escravatura ... A própria condição da escravatura requer que o escravo não se veja a si próprio como alguém que possui ou a quem falta autonomia ... Isto pode ser formulado dizendo que uma tal pessoa não se pode ver a si própria completamente. Como item da propriedade não possui um em si mesma”]. O entendimento subjacente à lei penal radica, em suma, na protecção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência, protecção directamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana. Questão diversa que não está suscitada nos presentes autos é a que se relaciona com a possibilidade processual de contraprova do perigo que serve de fundamento à incriminação em casos como o presente ou ainda, naturalmente, com a prova associada à aplicação dos critérios de censura de culpa do agente e da atenuação ou eventual exclusão de culpabilidade, em face das circunstâncias concretas do caso.
9. Em face do exposto, não se pode considerar que estejam violados pela norma em crise quaisquer normas ou princípios constitucionais. “
E, ante o exposto, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional, por violação dos artigos 41º, nº 1, 47º, nº 1 e 18º, nº 2, da Constituição, a norma constante do artigo 170º, nº 1, do Código Penal.
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Também o Acórdão nº 196/2004, de 23 de Março de 2004, do mesmo Tribunal, in proc. Nº 130/04, da mesma 2ª secção, foi chamado a debruçar-se sobre a alegada inconstitucionalidade material do artigo 170º nº 1 do C.Penal, fundamentada em que: - Ao incriminar o fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre e autodeterminada, o n.º 1 do artigo 170º CP ofende o princípio da fragmentariedade ou subsidiariedade do direito penal, consagrado no n.º 2 do artigo 18º da CRP (e vazado para o n.º 1 do artigo 40º do CP), os direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada, à identidade pessoal e à liberdade, consagrados nos artigos 26º, n.º 1, e 27º, n.º 1, da CRP, e ainda o direito ao trabalho, defendido pelos artigos 47º e 58º da CRP; Direitos estes últimos que nada impede sejam exercidos, na prática, com o auxílio e participação de terceiros. Alegava-se ainda que essa inconstitucionalidade apenas poderá colmatar-se através duma interpretação restritiva do preceito que repristine a exigência de que os actos descritivos no tipo legal só constituem crime quando referidos a pessoa “em situação de abandono ou de extrema necessidade económica.”»

A posição do Tribunal Constitucional foi a mesma do acórdão anterior, como fundamentou:
“3.A questão de constitucionalidade cuja apreciação é objecto do presente recurso de constitucionalidade – isto é, a da conformidade com a Constituição da República Portuguesa do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, que pune o crime de lenocínio – foi recentemente apreciada por este Tribunal, por esta mesma Secção, tendo concluído, no acórdão n.º 144/04, por unanimidade, pela inexistência de inconstitucionalidade.
Neste acórdão foram tratadas alegadas violações, pela norma em causa, do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18º, n.º 2, e dos artigos 41º (liberdade de consciência) e 47º, n.º 1 (liberdade de profissão), da Constituição da República, distinguindo-se as questões de constitucionalidade de quaisquer apreciações, no plano político-criminal, sobre a mesma norma, e concluindo-se, depois de identificar o bem jurídico protegido por esta, que o legislador não está constitucionalmente proibido de adoptar um tipo criminal como o que ela prevê – e isto, tomando-se já em conta, nesse aresto, a redacção do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, na versão resultante das alterações introduzidas pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro.
Ora, pode desde logo observar-se – embora tal não seja decisivo – que, se o Tribunal Constitucional entendesse que existia desconformidade da norma em causa com outros parâmetros constitucionais, para além dos então analisados – como por exemplo os artigos 26º, n.º 1, e 27º, n.º 1, conjugados com o artigo 18º, n.º 2, da Constituição –, lhe teria sido possível pronunciar-se pela inconstitucionalidade, nos termos do artigo 79º-C, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional.
Verifica-se, porém, além disso, que a fundamentação expendida nesse acórdão n.º 144/04 é inteiramente transponível para o presente processo, e, designadamente, para o confronto da norma em causa com os outros parâmetros invocados pelo agora recorrente: os artigos 58º (direito ao trabalho), 26º, n.º 1 (direitos à livre expressão da sexualidade, à vida privada e à identidade pessoal) e 27º, n.º 1 (direito à liberdade) da Constituição da República.
Não se vê que, pelo confronto com estes direitos constitucionalmente consagrados, haja de chegar-se a solução diversa daquela por que se concluiu nesse aresto, no qual se confrontou já a norma em questão, designadamente, com o artigo 18º da Constituição (confronto no qual se centra também o parecer jurídico junto aos autos), concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade.
Assim, no presente caso há apenas que, remetendo para os fundamentos desse acórdão n.º 144/04 (de que se junta cópia), reiterar o juízo de não inconstitucionalidade do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, na redacção resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, e, consequentemente negar provimento ao recurso.
Acresce que, tendo sido requeria a nulidade e pedida aclaração desse Acórdão nº 196/2004, com o fundamento de que não tomou posição sobre, a questão da conformidade constitucional do preceito quando reportado a actos de fomento, favorecimento ou facilitação de actos de prostituição de pessoas livres e autodeterminadas, ou seja, de pessoas que, além do mais, não agem num quadro de abandono, necessidade económica ou carência social de qualquer tipo., veio o tribunal Constitucional expressamente afirmar que: “a, no recurso de constitucionalidade apreciado pelo aresto reclamado não estava em causa apenas determinada dimensão normativa do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal – designadamente, a interpretação deste no sentido de se aplicar ao fomento, favorecimento ou facilitação da prostituição de pessoa livre e autodeterminada –, a qual não foi identificada como tal pelo recorrente, enquanto objecto do recurso. Mas é certo também, por outro lado, que resulta da decisão reclamada, ao não restringir a pronúncia no sentido da inconstitucionalidade e ao remeter para a fundamentação do Acórdão n.º 144/2004, que ela se pronunciou sobre a constitucionalidade do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal sem distinções, incluindo, pois, também, o fomento, favorecimento ou facilitação do exercício da prostituição de pessoa livre e auto determinada”
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De igual modo, no proc. nº 922/03 da 1ª secção do Tribunal Constitucional,”nas alegações que então apresentou, o recorrente suscitou a inconstitucionalidade do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, tendo, quanto a essa questão, concluído assim (fls. 358 e seguintes):
“[...]
6º. O bem jurídico tutelado pelo artº 170º, n.º 1, não é a autodeterminação sexual.
7º. O Estado não tem legitimidade para criar bens jurídicos transpersonalistas, de carácter místico, recorrente a um direito penal de fachada para reprimir a organização e exploração comercial de condutas sexuais que se integram no chamado fenómeno da prostituição.
8°. O Estado democrático de direito distingue-se dos restantes precisamente por ser alheio a uma qualquer moral nacional ou de Estado ético.
Antes sim,
9°. Visa a tutela e o respeito das diversas morais.
10º. A interpretação jurídica da norma inscrita no art° 170º, n° 1, não pode assentar num «texto legal» isolado do sistema jurídico, da base axiológica do Estado, em suma, da realização do direito.
11°. Com esta incriminação o bem protegido não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas persiste aqui uma certa ideia de «defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade», que não é encarada hoje como função do direito penal.
12°. Parece irrefutável no nível axiológico do Estado democrático de direito que esse crime está descriminalizado.
13°. Mais entende que a sua sustentação assenta em interpretação materialmente inconstitucional por colidir com o art° 1º da Constituição da República Portuguesa.

O Acórdão nº 303/04 de 5 de Maio de 2004, também não julgou inconstitucional tal norma e, reiterou, uma vez mais que a norma do artigo 170º, n.º 1, do Código Penal, na versão resultante da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, não viola a Constituição da República Portuguesa, e, designadamente, não ofende os princípios enunciados no artigo 1º.
Remetendo, pois, para os fundamentos dos supra referidos acórdãos, cuja argumentação é transponível para os presentes autos, e que versou sobre a problemática trazida pelo recorrente no presente recurso, conclui-se que não se verifica a inconstitucionalidade alegada.
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Em idêntico sentido, aliás, tem decidido o Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, no Ac. de28-09-2005 Proc. n.º 3771/03 - 3.ª Secção se entendeu que conforme tem sido entendimento do TC, a incriminação das condutas previstas no art. 170.º, n.º 1, do CP, corresponde a uma opção de política criminal justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência.
O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo, uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir da qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprime, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desprotecção social.
Essa opção não é inadequada ou desproporcional ao fim de proteger bens jurídicos pessoais relacionados com a autonomia e a liberdade, não se podendo considerar que o preceito do art. 170.º do CP viole quaisquer normas ou princípios constitucionais.

Como resulta do Ac. deste Supremo de 15-01-2004 Proc. n.º 3371/03 - 5.ª Secção,
O conteúdo material do que seja crime deve decorrer do quadro axiológico-jurídico constitucionalmente consagrado.
Dito de outra forma, só pode ser crime o comportamento que viola ou ameaça violar o quadro de valores constitucionalmente consagrados.
Em consequência, a definição do crime em sede de direito ordinário deve reportar-se àquele quadro de valores constitucionais, sob pena de inconstitucionalidade material.
Na previsão normativa do n.º 1 do art. 170.º do CP o que está em causa, mais do que tudo, é a exploração de uma pessoa por outra, uma espécie de usura ou enriquecimento ilegítimo fundado no comércio do corpo de outrem por parte do agente.
Inculca tal entendimento o facto do apontado tipo legal de crime prescrever que o agente actue “profissionalmente ou com intenção lucrativa”.
Assim entendida, a pratica do lenocínio, previsto e punido no n.º 1 do art. 170.º do CP, configura uma clara violação da dignidade humana, da integridade moral e física da pessoa humana e, por isso, obstáculo à livre realização da respectiva personalidade, valores constitucionalmente protegidos - cf. arts. 25.º e 26.º da CRP.
Fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa da prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo, fazendo disso profissão ou com intenção lucrativa, não é um acto de intimidade da pessoa, de vida privada, de liberdade individual já que o mesmo é projectado exactamente para fora dela e da sua esfera privada e, no fundo, acaba por significar uma exploração indigna da pessoa humana.
O direito ao trabalho constitucionalmente salvaguardado seguramente que pressupõe a dignidade humana no seu exercício.
A criminalização do crime de lenocínio configura-se, por isso, como constitucional.
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Não se ignora o carácter fragmentário, subsidiário, do direito penal de hoje, assumindo-se funcionalisticamente, como ultima ratio de salvaguarda e tutela de bens jurídicos fundamentais à convivência comunitária, sendo o crime entendido numa perspectica teleológico-racional, em que numa sociedade livre, secularizada, e pluralista, a legitimação do direito penal assenta na necessidade de protecção de bens jurídicos fundamentais da pessoa e, da comunidade.
Mas, o direito penal não pode arredar-se da sociedade que serve, axiologicamente fundada na matriz constitucional.
A axiologia juridico-constitucional é a barreira intransponível da dogmática jurídico-penal, e os bens jurídicos de tutela penal são afinal explicitação referenciadora da axiologia constitucional, em que a norma penal garante a sua protecção, restabelecendo a confiança da comunidade na estabilização contrafáctica da norma violada.
Por outro lado, há que não esquecer “que a extensão, o sentido e, enfim, a aplicação do direito penal ficam em última análise dependentes da teleologia, das valorações e das proposições político-criminais inerentes ao sistema.” (Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora 2001, p. 26).

Pesquisando a evolução legislativa, a partir de 1982, verifica-se:
Versão Originária (1982)
Art. 215.º
Lenocínio
“1- Quem fomentar, favorecer ou facilitar a prática de actos contrários ao pudor ou à moralidade sexual, ou de prostituição relativamente:
a) A pessoa menor ou portadora de anomalia psíquica;
b) A qualquer pessoa, explorando situação de abandono ou de extrema necessidade económica;
será punido com prisão até 2 anos e multa até 100 dias.
2- Na mesma pena incorre quem explorar o ganho imoral de prostituta, vivendo, total ou parcialmente, a expensas suas”.

Art. 216.º
Lenocínio agravado
“Relativamente aos comportamentos descritos no artigo anterior, a pena será:
a) A de prisão de 2 a 4 anos e multa até 150 dias se o agente os realizar com intenção lucrativa;
b) A de prisão de 2 a 6 anos e multa até 180 dias se os realizar profissionalmente;
c) A de prisão de 2 a 8 anos e multa até 200 dias se usar fraude, violência ou ameaça grave;
d) A de prisão de 2 a 8 anos e multa até 200 dias se a vítima for cônjuge, ascendente, descendente, filho adoptivo, enteado ou tutelado do agente, ou lhe foi entregue em vista da sua educação, direcção, assistência, guarda ou cuidado.”

Versão Revista (1995)
Art. 170.º
Lenocínio
“1- Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo, explorando situações de abandono ou de necessidade económica, é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
2- Se o agente usar de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, ou se aproveitar de incapacidade psíquica da vítima, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.”

Versão da Lei 65/98, de 02-09
Art. 170.º
(…)
“1- Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
2- …”

Versão da Lei 99/01, de 25-08
Art. 170.º
(…)
“1-…
2- Se o agente usar de violência, ameaça grave, ardil, manobra fraudulenta, de abuso de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou se aproveitar de incapacidade psíquica da vítima ou de qualquer outra situação de especial vulnerabilidade, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.”

Como escreve Anabela Rodrigues in Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 518 (I. A construção do tipo e o bem jurídico – 1. O art. 170º - 1 e o problema da eventual descriminalização da conduta nele contida § 1.) “Com a entrada em vigor do CP de 1982, operou-se a revogação da disposição legal incriminadora contida o artº 2º- 1 do DL 44 579, de 19 de Setembro de 1962, de acordo coma qual bastava que o agente “favorecesse” ou “de algum modo facilitasse” o exercício da prostituição para poder ser punido pela prática do crime de lenocínio (sobre esta concepção de lenocínio c. f. Beleza dos Santos, RLJ, 60º, 97; era também esta concepção tradicional a vazada no ProjPE, artº 263º -1, Actas. 1979, 212). Não se exigia como o passou a fazer o artº 215º - 1b) do referido CP de 1082, que o agente, ao “fomentsr, favorecer ou facilitar”, na linguagem do legislador de então, “a prática de actos contrários ao pudor ou `moralidade sexual” (…) por qualquer pessoa, estivesse a explorar uma “situação de abandono ou extrema necessidade económica” em que tais pessoas se encontrassem. Esta orientação manteve-se na versão do CP de 1995 que, com as transformações devidas no teor verbal da incriminação (cf. Comentário ao artigo 169º), continuou a exigir, para que de lenocínio se pudesse falar, que o agente fomentassse, favorecesse ou facilitasse”, o exercício da prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo, explorando situações de abandono ou de necessidade económica”(artº 70º - 1). É, de novo, a primitiva orientação que, de alguma forma, consagra agora a L 65/98, de 2 de Setembro, deixando de exigir a verificação deste elemento típico e alargando, assim, o âmbito da incriminação.
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É diversa a doutrina sobre o crime de lenocínio - (v.vg. - Beleza dos Santos, O Crime de Lenocínio in, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 60.º, n.ºs 2332 a 2344, 2346, 2347, 2349 e 2351 a 2353.; - Código Penal: Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993 - maxime, Acta n.º 24, p. 229 a 270.; Karl Prelhaz Natscheradetz, Direito Penal Sexual: Conteúdo e Limites (Dissertação), Almedina.;- Sénio Alves dos Reis, Crimes Sexuais: Notas e Comentário aos arts. 163.º a 179.º do Código Penal, Almedina, 1995, p. 67 a 70. ; José António Rodrigues Marques, O Crime de Lenocínio no Direito Penal Português, Estudos Comemorativos do 150.º aniversário do Tribunal da Boa Hora, Ministério da Justiça, 1995, p. 175 a 183:- Teresa Beleza, Sem Sombra de Pecado. O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do Código Penal in, Jornadas de Direito Criminal/Revisão do Código Penal, I Volume, Centro de Estudos Judiciários, 1996, p. 157 a 183. ;- Anabela Miranda Rodrigues: Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 518 a 532;O papel dos sistemas legais e a sua harmonização para a erradicação das redes de tráfico de pessoas in, Revista do Ministério Público, n.º 84 (Out./Dez. 2000), p. 15 a 29. ).
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Há hoje quem entenda dever encontrar-se descriminalizado o referido artigo 170º nº 1 do Código Penal, porquanto como sintetiza Anabela Rodrigues, ibidem § 2, p,519,: - “Com esta incriminação o bem jurídico protegido, não é, como devia, a liberdade de expressão sexual da pessoa, mas persiste aqui uma certa ideia de “defesa do sentimento geral de pudor e de moralidade”, que não é encarada hoje como função do direito penal e, de qualquer modo, não presidiu ao novo enquadramento dos “crimes contra a forma que assumem os atentados contra a liberdade(…)”.
Nesta ordem de ideias, mesmo quando o artº 170º nº 1 exigia a verificação de situações “de abandono ou de necessidade económica”, pressupunha situações de “miséria e de exclusão social”, que no dizer de Figueiredo Dias, não justificaria a intervenção do Direito Penal, por se tratar de “de um problema social e de polícia”, o que conduzia à descriminalização.
Nesta perspectiva seria contraditória a solução actual ao eliminar a verificação do elemento “exploração de situações de abandono ou de necessidade económica”, resultando num alargamento da incriminação
Verdadeiramente digno de tutela penal seria o comportamento tipificado no artigo 170º nº 2 do C.Penal.

Com o devido respeito, não perfilhamos tal entendimento.
Não é exclusivamente o aspecto estrito de liberdade e autodeterminação sexual, como bem pessoal, que subjaz à criminalização.
Embora a vítima do crime de lenocínio, constante do artigo 170º do C.Penal, possa ser, em qualquer das formas, qualquer pessoa adulta, homem ou mulher, tem sido a nível da vítima mulher que o tema intensamente tem incidido.
Em anotação ao artigo 170º, escreve Maia Gonçalves (in Código Penal Português, anotado e comentado, 17ª edição, p. 598, nota 3):
“Integra-se na orientação seguida pelo Código, na sequência da Convenção Internacional sobre a Repressão do Tráfico de Seres Humanos, de 2 de Dezembro de 1949, de, em matéria de prostituição e de actos contrários à moralidade sexual, só punir quando forem postos em causa, por forma relevante, os valores da comunidade e as concepções ético-sociais dominantes, e de que a reacção criminal contra a prostituição deve dirigir-se menos à prostituta do que è engrenagem de que ela tantas vezes é vítima “-
Aliás, já o Decreto-Lei nº 44579 de 19 de Setembro de 1962 (que proibia o exercício da prostituição a partir de 1 de Janeiro de 1963), explicitava no preâmbulo:
“Não se espera que as medidas preconizadas levem ao desaparecimento de prostitutas, pois as continuará a haver em Portugal, como, na prática, as há por todo o Mundo, no momento presente. Mas, além do mais, dar-se-á o grande passo de proibir e colocar sob a alçada da lei toda a compllcada engrenagem que actualmente as explora, o que já se afigura muito importante.”
Na actualidade, o crime de lenocínio surge ainda como dimensão do tráfico de pessoas, em que o tráfico de mulheres é um fenómeno em crescimento, nomeadamente na União Europeia.
Como refere Anabela Rodrigues in O papel dos sistemas legais e a sua harmonização para a erradicação das redes de tráficos de pessoas, Revista do Ministério Público, ano 21º, nº 84, p. 21 e segs, “As forças judiciais e policiais de vários Estados-membros têm também notado o aparecimento de grandes redes criminosas neste domínio,
Aparentemente existem ligações com outras formas de criminalidade.
Os elevados ganhos conseguidos pelas organizações criminosas envolvidas no tráfico de mulheres, levam obviamente a actividades de branqueamento de capitais e implicam, a criação de empresas fictícias envolvidas em actividades ilícitas. Algumas fontes também têm indicado que as mulheres vítimas de tráfico são frequentemente deslocadas de um Estado-membro para outro de forma a satisfazer clientes com novas prostitutas e a dificultar que as vítimas sejam detectadas pela polícia ou pelos serviços sociais.
(…)
Depois de as mulheres serem transportadas para o país de destino existem várias formas para as forçar a iniciarem e /ou continuarem uma actividade de prostituição.”
Na União Europeia, os Estados-membros aprovaram a Acção comum de Fevereiro de 1997 com vista a “aperfeiçoar as disposições penais dos Estados-membros e a sua cooperação judicial no contexto do combate ao tráfico de seres humanos.
No que diz respeito às medidas a adoptar no plano nacional, os principais elementos contidos nesta Acção Comum são os seguintes:
- Criminalização de comportamentos tais como a exploração sexual de uma pessoa com fins lucrativos utilizando coação, ou falsas promessas, ou abuso de autoridade ou outra pressão que não permitia uma verdadeira opção a essa pessoa;
Tráfico de pessoas para obtenção de ganhos com vista a uma exploração sexual.” (idem ,ibidem)
Como refere a mesma Distinta Professora, “No âmbito da incriminação, no Código Penal, do tráfico de pessoas (artº169º) e do lenocínio (artº 170º), a recente alteração ao CP (Lei nº 65/98, de 2 de Setembro) veio retirar dos tipos legais o elemento “exploração de situação de abandono ou necessidade.” Esta alteração correspondeu às exigências de alargar, tornando-a mais fácil, a incriminação de certas condutas ligadas ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual.”(idem, ibidem , p. 26)

Aliás, bem se compreende o alargamento de tal incriminação uma vez que, as exigências probatórias são elevadas, é normalmente escassa a colaboração das vítimas, não sendo também “descurável, a circunstância de que algumas das vítimas, por ânsia de lucro ou necessidade de sustento de dependências tóxicas, preexistentes ou entretanto adquiridas, vencida a relutância inicial, adiram ou se conformem coma situação de exploração a que são submetidas e se neguem assim a qualquer acção de colaboração com as autoridades.” – Euclides Dâmaso Simões, -Tráfico de Seres Humanos, A lei Portuguesa e a importância da Cooperação Judiciária Internacional, in Polícia e Justiça, III série, nº 4 , p. 260, 261. (v. ainda a análise deste autor na sequência da Convenção de Palermo e Protocolo adicional à mesma, ratificados por Portugal e publicados no Diário da República de 2 de Abril de 2004,bem como a decisão Quadro de 19-72002, da União Europeia).

Como se disse em determinada altura, na discussão Parlamentar, na Assembleia da República, aquando da revisão do Código Penal: “O ritmo de mutações sociais que hoje vivemos traz consigo novas formas de criminalidade e agravamento quantitativo e qualitativo de certas formas de comportamentos criminosos a exigirem resposta não só dos aparelhos de investigação criminal como dos próprios textos básicos de política criminal.”
(…)
Especial atenção devem merecer por parte do Estado a protecção de certo tipo de vítimas, particularmente indefesas face às agressões, as mais diversas de que podem se objecto. Daí o essencial das alterações que agora propomos e que, aliás, colhem consenso, muitas delas nas bancadas da oposição.
Assim, no que respeita à parte especial, as alterações propostas visam basicamente: (…) a intensificação do combate aos crimes de exploração sexual de pessoas objecto de prostituição e de tráfico; (…)
(…)
Nos crimes de tráfico de pessoas e de lenocínio alargar-se a incriminação, retirando-se das descrições típicas a exigência de exploração de situações de abandono ou de necessidade. Na verdade, bastará nestes casos, o constrangimento à prostituição ou à actividade sexual de relevo em país estrangeiro, através de violência, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta ou a exploração sexual de outra pessoa (desenvolvida profissionalmente ou com intenção lucrativa) para que as condutas já possuam indispensável relevância ético-penal, e para que, como tal devam ser punidas.
(Diário da Assembleia da República, 1 série, nº 48. de 13 de Março de 1998, p. 1625 e 1626.
Nesta sequência, a diferença entre o crime de tráfico de pessoas (artº 169º do C.Penal) e o crime de lenocínio, nas várias modalidades, será de ordem territorial.
Salienta Maia Gonçalves, (ibidem, p. 596, nota 2,) em anotação ao artigo 169º (tráfico de pessoas) do Código Penal: - “É elemento típico deste crime a circulação de pessoas para país estrangeiro para a prática da prostituição ou de actos sexuais de relevo, não estando, portanto aqui incriminada a circulação dentro do mesmo país, para as aludidas práticas. Neste caso, a incriminação só será possível através dos artºs 170º, (…), se se verificarem os outros elementos constitutivos desses crimes.”
Dâmaso Simões (ibidem, p. 265), assinala: “(…) sempre deveria perspectivar-se a hipótese de aplicação do regime plasmado no artigo 170º do Código Penal para o crime de lenocínio, primordialmente vocacionado, a meu ver, para os casos de “tráfico nacional” (isto é, de arrastamento para a prática de prostituição ou de actos sexuais de relevo dentro do País, sem cruzamento de fronteiras).”
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O artigo 170º nº 1 do Código Penal, insere-se, pois numa opção de política criminal, tendo em conta a necessidade de combater o tráfico de pessoas para exploração sexual, assentando o bem jurídico na protecção da dignidade da pessoa no modo de explicitação comunitária da sua liberdade e autodeterminação sexual.
E, como refere Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 24: “Parafraseando uma afirmação antecipadora de Kohlrausch, dir-se-á que uma ciência jurídico-penal que nada tenha a oferecer às necessidades correctamente entendidas da política criminal não só se torna em peça decorativa inútil, como é falsa.
A esta luz, numa palavra, todas as categorias e todos os conceitos da dogmática jurídico-penal devem apresentar-se funcionalmente determinados pelas (e ligados às) finalidades eleitas pela política criminal. (…)”
E, mais adiante, a pág, 25, escreve o mesmo Ilustre Professor:”(…) as finalidades e as proposições político-criminais devem, elas também, ser procuradas e estabelecidas no interior do quadro de valores e de interesses que integram o consenso comunitário mediado e positivado pela Constituição do Estado. Somente desta maneira poderá de resto a política criminal, como deve, conceder uma importância primária á protecção dos direitos, das liberdades e das garantias da pessoa – de toda e qualquer pessoa, só por o ser.”
O artigo 170º n° 1 do Código Penal. protege um bem jurídico, de natureza constitucional, que é a dignidade da pessoa humana, constitutiva de um dos princípios fundamentais da República Portuguesa, conforme artigo I ° da Constituição da República. assumindo-se o artigo 170° n° 1 do Código Penal como uma dimensão de tutela jurídico-penal da garantia da dignidade humana, constitucionalmente consagrada e, protegida constitucionalmente pelo artigo 26° nº 2 da Constituição, aqui na vertente da dignidade insita à auto-expressividade sexuaL co-determinando tal inciso, axiológico-normativamente, a expressividade comunitária do modo de exercício do direito à liberdade e autodeterminação sexual. ou, dito de outro modo, vinculando esse exercício de autodeterminação sexual. com projecção e relevância ético-sociais, à dignidade da pessoa, de forma a que esta não constitua mera mercadoria, res possidendi, mero instrumento de prestação sexual, ainda que com o consentimento da vítima, explorada profissionalmente ou com intenção lucrativa por outrem.
Para se verificar o crime de lenocínio. p. e p. no artº 170° n° 1 do Código Penal, basta que - como aliás da sua redacção resulta -, o agente pratique alguma das condutas ali previstas (fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo), "profissionalmente ou com intenção lucrativa".
Não é elemento típico do crime p. e p. no nº 1 do art° 170° do C.Penal, a existência de uma situação de exploração de necessidade económica ou de abandono da vítima.
Nem a exigência dessa situação tem o mínimo apoio literal no n° 1 do art° 170° do CP. (v. aliás artºs 1 ° do CP e 9° nºs 2 e 3 do Código Civil)
A existência de uma situação de exploração de necessidade económica ou de abandono da vítima, constitui, outrossim, uma circunstância qualificativa do crime de lenocínio como resulta do n° 2 do mesmo artº 170°.
Também a Proposta de Lei (de alteração do Código Penal) nº 98/X, no seu. art° 169° nº 1, não contempla a exigência de tal situação de exploração, a qual continua a integrar uma das qualificativas do crime, nos termos do n° 2 aI. c) e d) do referido artigo 169°.
O artigo 170º nº 1 do Código Penal, não é assim, inconstitucional, nem admite interpretação restritiva no sentido de ser tipicamente exigivel, o que a lei eliminou.
A admitir-se uma interpretação restritiva, em tal âmbito, seria fazer entrar pela janela, o que se fez sair pela porta (revisão de 1995).
Uma interpretação restritiva do referido artigo 170º n° 1 do Código Penal no sentido de que a inexistência de uma situação de exploração de necessidade económica ou de abandono da vítima, se traduz em descriminalização da conduta do agente ainda que verificada a factualidade típica descrita no mesmo n° 1, é que será inconstitucional, porque contende com a definição dos pressupostos do crime, que é da reserva relativa de competência legis1ativa da Assembleia da República, nos termos do at1igo 165° nº 1 aI. c) da Constituição da República.

Quanto à segunda questão: sobre a cumplicidade
A caracterização de cúmplice alcança-se através da respectiva definição legal, e, por confronto coma definição de autor.
É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral á prática por outrem de um facto doloso. – artº 27º do Código Penal.
É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou, por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa á prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução – artº 26º do C.Penal.
O cúmplice somente favorece ou presta auxílio à execução, ficando fora do acto típico. Só quando ultrapassa o mero auxílio, e assim pratica uma parte necessária da execução do plano criminoso, ele se torna co-autor do facto.
Ora, mesmo na óptica confessada pelo recorrente na conclusão 13ª - Da matéria de facto provada não resulta que o arguido/recorrente haja fomentado a prostituição das mulheres que trabalhavam no seu estabelecimento de diversão nocturna, limitando-se, pois, a favorecer ou facilitar a prática eventual de tais actos - procede a prática do crime na forma de autor que não de cúmplice, pois que o artº 170º nº 1 abarca as actividades de “fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou a prática de actos sexuais de relevo”
Na verdade, o arguido efectuava a exploração lucrativa da prostituição das referidas mulheres, exercida no estabelecimento que geria, com a colaboração da arguida MF, alimentando assim, directa ou indirectamente, com maior ou menor valor, o seu próprio rendimento. Os arguidos AA e MF beneficiavam (directamente) economicamente das relações sexuais mantidas pelas referidas EA e KK bem como de outras mulheres não concretamente identificadas no estabelecimento que exploravam para os quais revertia uma percentagem das quantias pagas pelos clientes para o efeito
É pois co-autor do crime de lenocínio, e não de cúmplice,

Por último, e sobre a questão da pena:
Todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Só não será assim, e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, v.g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. (Figueiredo Dias in Direito Penal Português -As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211, e Ac. de 15-11-2006 deste Supremo, , Proc. n.º 2555/06- 3ª)
1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
Deve-se a Günther Jakobs , na sequência do pensamento de Luhmann, a expressão de que finalidade fundamental ou primordial da pena encontra-se na estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada. E, é esta função primária da pena faz concluir pela existência de uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos “ e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, medida óptima essa, porém que não fornece ao julgador o quantum exacto da pena.
A moldura de prevenção, comporta ainda abaixo do ponto óptimo ideal outros em que a pressuposta tutela dos bens jurídicos “é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena pode ainda situar-se sem que perca a sua função primordial de tutela de bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico – abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.” - Figueiredo Dias (Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime- Faculdade de Direito, Coimbra, 1996)
É este entendimento funcionalista que enforma o nosso sistema legal penal:
A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artº 40º nº 1 do C.Penal.
Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artº 40º nº 2
O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O n ° 2 do artigo 71º do Código Penal, estabelece, que:
Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou, contra ele, considerando nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência:
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Considerou a decisão recorrida:
“No processo de concretização da sanção penal, aplicável aos arguidos, percorremos três fases: a determinação da moldura penal abstracta, a fixação da pena adequada e a indagação do tipo de pena exigido.
Aquela primeira etapa já está parcialmente cumprida, com a referência à medida abstracta com que as normas aplicáveis punem as infracções em causa.
(…)
Passemos então à análise das circunstâncias que o art. 71º, do Cód. Penal, exemplificadamente enumera e a que devemos atender para fixação da pena concreta.
Censurabilidade da conduta
No caso dos arguidos AA e MP, estamos perante condutas que pela sua persistência no tempo e total falta de responsabilização até ao final da audiência, revelam culpa acentuada, sendo no caso do arguido AA mais agravada essa censura atento o papel preponderando e dominante que tem na prática dos factos, quando havia sido condenado, ainda em 2004, pela prática de factos da mesma natureza.
(…)
Ilicitude
O grau de ilicitude é acentuado pela indicação que a matéria assente nos dá do resultado da actividade dos arguidos, que é prolongada no tempo e gera reincidentemente o desvalor punido.
Reflectiremos nas penas os antecedentes criminais detectados ou a sua ausência. Teremos especial atenção os antecedentes do arguido AA, com um historial criminal de onde resulta claro que as penas não privativas da liberdade foram ineficazes para evitar a prática de uma variedade considerável de ilícitos criminais, desde pelo menos 1995.
Ter-se-ão em conta as informações favoráveis do I.R.S. no que toca à reintegração dos arguidos.
A prevenção geral, dada a frequência deste género de ilícitos, deve ser devidamente acautelada.
Ponderados estes elementos cremos serem necessárias e adequadas as seguintes penas (cf. art. 70º, do Cód. Penal):
- Arguido AA - 2 anos de prisão;”

O arguido AA com a colaboração da arguida MFpelo menos desde Janeiro de 2003 que vinha explorando o estabelecimento comercial "Embaixada" auferindo do exercício de tal actividade os correspondentes lucros.
Os arguidos AA e MFbeneficiavam (directamente) economicamente das relações sexuais mantidas pelas referidas EA e KK bem como de outras mulheres não concretamente identificadas no estabelecimento que exploravam para os quais revertia uma percentagem das quantias pagas pelos clientes para o efeito, para além de beneficiarem com a afluência de clientes que aí se deslocam com o intuito de manterem relações sexuais, que acabam também por consumir bebidas aí comercializadas.
Sabiam os arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
No referido estabelecimento trabalhavam várias mulheres de nacionalidade brasileira , sendo algumas transportadas das suas residências para aquele estabelecimento no início e no final de cada noite utilizando para o efeito o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo 504, break Diesel, matricula IX- 00-00, registado em nome de José Fernando Costa Oliveira mas pertença do arguido AA desde 1998
Na sequência de busca realizada ao estabelecimento foram encontrados, além do mais: na parte reservada ao grill cerca de 227 lençóis descartáveis; no gabinete da gerência vários cartões de consumo com as inscrições "pago"; no balcão existente no salão principal algemas; preservativos, frascos de estimulante sexual bem como um comando de controlo à distância cuja finalidade era a de accionar um sistema que emitia um sinal sonoro existente nos quartos/reservados por forma a avisar as mulheres que ali se encontrassem a manter relações sexuais da presença de forças policiais e assim terminarem o acto sexual; no interior de uma bolsa em cabedal pertencente à arguida MP foi encontrada uma quantia total de 1019,40€.
O arguido AA já foi julgado e condenado: em 2.2.95, pelo crime de detenção ilegal de arma de fogo, na pena de 100 dias de multa; em 2.11.97, por condução sob o efeito do álcool, na pena de 60 dias de multa; em 23.2.00, pelos crimes de condução sob o efeito do álcool e ofensa à integridade física simples, na pena única de 120 dias de multa; em 5.7.2001, por crime de usurpação, na pena de 5 meses de prisão, substituídos por dias de multa; em Fevereiro de 2001, por crime de receptação dolosa, na pena de 10 meses de prisão com execução suspensa por dois anos; em 21.1.2004 (transito em 6.6.2006), pelo crime de lenocínio, praticado em 23.1.2002 (na pena de 2 anos de prisão), por outro crime de ofensa à integridade física simples (na pena de 10 meses de prisão), por instigação de um crime desta mesma natureza (na pena de 8 meses de prisão), e na pena única de 2 anos e 10 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por 3 anos condicionada ao pagamento de 1000 euros à Instituição Particular de Solidariedade Social “ O Ninho” (cf. fls. 1240).
O arguido AA vive em casa própria e explora actualmente um espaço designado Copacabana Bar – Restaurante Tropical, em Calendário, Vila Nova de Famalicão, desde Abril de 2006, auferindo um rendimento mensal de pelo menos 1000 euros mensais. O seu agregado familiar inclui a esposa e uma filha. O casal suporta uma prestação mensal de um empréstimo à habitação no valor de cerca de 1000 €.

Assim, tendo em conta: as particulares exigências de prevenção geral de integração, na dissuasão do crime de lenocínio, pernicioso para as vítimas, pela eventual escravidão e, pela depravação da autoestima da pessoa, na sua liberdade e autodeterminação sexual, e pernicioso para a sociedade, pela degradação e aviltamento da dignidade da pessoa na manifestação comunitária da liberdade e autodeterminação sexual, e. demais criminalidade que o mesmo crime suporta e potencia; a prevenção especial postiiva ou de socialização, a reclamar do arguido motivação para se determinar de harmonia com o direito, já que a sua vida criminal revela falta de preparação para manter conduta lícita, e a medida de culpa preenchida por forte intensidade do dolo, sendo certo que o arguido se encontra inserido laboral e familiarmente, tornam justa por adequada e proporcional, a pena aplicada de dois anos de prisão, num leque aplicável de 6 meses a 5 anos de prisão, por tal pena aplicada constituir in casu, o ponto de equilíbrio na defesa do ordenamento jurídico, e, sem exceder a medida da culpa do agente, assegurar assim, a estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade na reposição da norma violada.

Relativamente á suspensão da execução da pena considerou a decisão recorrida:
No que diz respeito ao arguido AA, por razões já consideradas supra na definição da sua pena, julgamos que inexistem motivos para considerar possível o prognóstico positivo que exige o citado art. 50º.
Com efeito, por um lado, os antecedentes criminais deste arguido e a persistência da sua actividade, nos termos apurados neste julgamento, revelam personalidade desviante que não se emendou anteriormente com penas efectivas não privativas da liberdade. Por outro lado, o facto de ao arguido não serem conhecidos outros comportamentos ilícitos posteriores aos que agora julgamos não evita o juízo, nessa matéria, bastante negativo, que a sua conduta perante os factos revela. Na verdade, o arguido apresentou uma defesa escrita assente na total irresponsabilidade pelos factos – a denominada “fuga em frente”, defesa essa que, por sinal, foi posta em causa por ele próprio e pelos arguidos, em audiência, sem, porém, expressar ou revelar, até ao final, qualquer sinal de efectivo arrependimento, significativo de alguma mudança de personalidade que o Tribunal pudesse considerar em seu favor para julgar viável, mais uma vez, essa opção não privativa da liberdade. Nesse quadro, julgamos inevitável, a execução da pena aplicada.”
Na verdade, apesar de o arguido se encontrar laboral e familiarmente inserido, nada vem provado no sentido de que se encontre motivado para seguir uma vida honesta, com respeito pelos valores do direito, sendo que, por outro lado, as cicunstâncias do crime, a conduta anterior a este demonstrativa da personalidade anti-jurídica do arguido, na prática de vários crimes tendo até já cumprido pena de prisão, tornam insubsistente um juízo de prognose favorável, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena – ainda que subordinada a condições – realizam de forma adequada e suficiente as finalidades a punição.,
Não se verificam pois os pressupostos do artigo 50º nº 1 do Código Penal.

Do exposto, o recurso, não merece provimento.

Termos em que, decidindo:

Negam provimento ao recurso, e confirmam o acórdão recorrido.
Tributam o recorrente em 5 Ucs de taxa de justiça.

Lisboa, 5 de Setembro de 2007


Pires da Graça (relator por vencimento)
Henriques Gaspar
Soreto de Barros
Maia Costa ( voto de vencido, no sentido de que a incriminação em questão, «para se conformar com a Constituição, deve ser interpretada como exigindo que se verifique uma situação de exploração de necessidade económica ou de abandono das pessoas que se prostituem». Não se detectando no caso dos autos «qualquer facto que revele ou sequer indicie vagamente alguma situação de exploração», e porque «nenhuma suspeita pode formar-se de que houvesse um aproveitamento de situações de carência económica ou de abandono em que as prostitutas se encontrassem (…), a única conclusão que se pode retirar da matéria de facto é que a prática da prostituição era inteiramente livre da sua parte, que era o seu modo de vida, o seu “trabalho”, por elas livremente escolhido. Perante estes factos, a única conclusão possível é a da exclusão da ilicitude», com a consequente absolvição do recorrente)

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(1) Com relevo e em consonância com a restante prova.
(2) Os sublinhados pretendem realçar o sentido da decisão negativa.
(3) I. é, que quiseram outorgar tal negócio.
(4) Dizem as regras da experiência que quanto mais se negam as evidências mais claro se torna o envolvimento nas mesmas, ou, como diz o ditado, mais se esconde o Sol com peneira.
(5) Apesar de os mandados busca estarem emitidos desde Setembro de 2004.
(6) Alegadamente entregue por um dos empregados do estabelecimento no início dessa noite …
(7) Este é só mais um elemento probatório que confirma a falsidade de tal documento e da versão que a defesa apresentou na contestação, nessa matéria.
(8) Já que até então nada tinha confessado o admitido … !
(9) Vide saldo médio das contas bancárias tituladas pelo arguido, pessoalmente, e pela sociedade Dancing Brasil, de que era gerente único.
(10) … ainda que reveladora da defesa apresentada pelo arguido, tal foi a sua inconstância evolutiva ao longo da audiência de discussão da prova.
(11) Note-se, quanto a esse aspecto, que os movimentos a crédito na conta do arguido Augusto e da sociedade Dancing Brasil prosseguiram pelo mês de Fevereiro de 2005.
(12)Transcritas a fls. 335 e ss.
(13) M.Cavaleiro Ferreira, in Curso de Proc. Penal. vol. II, 1981, p. 292.
(14) In “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, p. 172 e 173.
(15) Ibidem, p. 176 e 177.