Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P3901
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA MENDES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
PERDA A FAVOR DO ESTADO
Nº do Documento: SJ200602010039013
Data do Acordão: 02/01/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: UNANIMIDADE
Sumário :
I - O instituto da perda dos instrumenta e producta sceleris, em matéria de tráfico de estupefacientes, está submetido a regras específicas (não totalmente coincidentes com as previstas no regime geral estabelecido no CP - arts. 109.º a 112.º), a significar que só as regras constantes dos arts. 35.º a 39.º do DL 15/93, de 22-01, podem e devem ser aplicadas à perda dos instrumentos e produtos do crime de tráfico de estupefacientes, a Menos que exista legislação especial que derrogue aquelas regras.
II - Não só inexiste legislação especial derrogatória daquelas normas, maxime disposição do Estatuto da Região Autónoma dos Açores que estabeleça que a perda de bens por crime de tráfico de estupefacientes (ou por qualquer outro crime) deva ser declarada a favor da Região, como inexiste norma naquele Estatuto que atribua àquela Região Autónoma o
domínio privado sobre os bens que sejam declarados perdidos a favor do Estado.
III - Ademais, o STJ, por acórdão de 04-11-2004, proferido no Proc. n.º 3504/04 - 5, decidiu que o Estatuto da Região Autónoma dos Açores não contém disposição expressa que declare que os bens apreendidos na Região por crime de tráfico de estupefacientes são declarados perdidos para a Região, pelo que não é possível decretar esse perdimento, sob pena de violação do princípio da legalidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º….., do 1º Juízo da comarca de…., foi proferido acórdão que condenou os arguidos AA, BB e CC , com os sinais dos autos, como co-autores materiais de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, nas penas de 5 anos, 2 anos e 10 meses e 2 anos e 6 meses de prisão, respectivamente, as duas últimas suspensas na sua execução pelo período de 4 anos, tendo-se declarado perdidos a favor da Região Autónoma dos Açores os objectos e dinheiro apreendidos.
Interpôs recurso a Exm.ª Procuradora da República, sendo do seguinte teor a parte conclusiva da respectiva motivação:
1. O douto acórdão declarou o perdimento de objectos apreendidos nos autos, em obediência ao art.35º, do DL 15/93, de 22.01.
2. Do mesmo passo, decidiu que os objectos fossem atribuídos à Região Autónoma;
3. A declaração de perdimento não é feita em função de interesses patrimoniais do Estado, mas porque há que dar destino a objectos que não podem ser devolvidos;
4. A declaração de perdimento cria um direito de propriedade sobre a coisa para o Estado;
5. A partir desse momento, é ao proprietário da coisa que compete, em exclusivo, dar o destino aos objectos sobre que incide aquele seu direito (art.1305º do C.C.), mesmo que esse proprietário seja o Estado (art.1304º do C.C.);
6. Não existe disposição legal que consinta ao tribunal ser ele a fazer a afectação dos objectos perdidos em processo-crime.
Com tais fundamentos, na procedência do recurso, pretende seja revogado o acórdão impugnado no que respeita à atribuição dos bens apreendidos à Região Autónoma dos Açores.
O recurso foi admitido.
Não foi apresentada resposta.
O Exm.º Procurador-Geral Adjunto na vista que teve nos autos promoveu a designação de dia para julgamento.
Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.
O objecto do recurso circunscreve-se à decisão de perdimento dos objectos e dinheiro apreendidos nos autos, mais concretamente no segmento em que declarou aqueles objectos e dinheiro perdidos a favor da Região Autónoma dos Açores.
Entende o Ministério Público que, ao invés do decidido, aqueles objectos e dinheiro deverão ser declarados perdidos a favor do Estado.
Para tanto, alega que a lei ao prever o perdimento dos instrumentos e produtos do crime, bem como as vantagens com o mesmo obtidas, não visa a satisfação de interesses patrimoniais, designadamente a valorização do património do Estado, mas sim a segurança das pessoas e da comunidade, face à perigosidade dos instrumentos e produtos do facto, para além de que a declaração de perdimento cria um direito de propriedade para o Estado, sendo a ele que cabe dar o devido destino aos valores objecto da declaração de perdimento, não competindo ao tribunal decidir da afectação daqueles. Do exame do acórdão recorrido resulta que a decisão de perdimento dos objectos e dinheiro apreendidos aos arguidos vem fundamentada sob a alegação de que, na Região Autónoma dos Açores, é a Região e não o Estado, o beneficiário da declaração de perdimento dos instrumentos e produtos do crime e das vantagens com o mesmo obtidas, atento o que preceituam as alíneas a) a e) do artigo 113º, do Estatuto da região Autónoma dos Açores (Lei n.º 39/80, de 5 de Agosto, alterada pelas Leis n.ºs 9/87, de 26 de Março e 61/98, de 27 de Agosto) (1), para além de que a alínea g) do artigo 77º, do Estatuto da Região Autónoma da Madeira, estabelece integrarem o domínio privado da Região os bens que, na Região, sejam declarados perdidos a favor do Estado e a que a lei especial, em virtude da razão que determine tal perda, não dê outro destino, inexistindo qualquer razão que justifique um tratamento diverso entre as duas regiões autónomas no que tange à declaração de perdimento de bens a favor do Estado.
Decidindo, dir-se-á.
O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, diploma que define o regime aplicável ao tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, dispõe de regulamentação própria no que concerne à perda dos instrumenta e producta sceleris, bem como às vantagens retiradas do facto, estabelecendo que os instrumentos e produtos do crime de tráfico e as vantagens dele decorrentes, bem como os eventuais juros, lucros e outros benefícios obtidos através daqueles, são declarados perdidos a favor do Estado – artigos 35º a 38º.
Por outro lado, o n.º 1 do artigo 39º daquele diploma manda que os bens, vantagens e direitos em causa revertam em 30% para a entidade coordenadora do Programa Nacional de Combate à Droga, em 50% para o Ministério da Saúde e em 20% para os organismos do Ministério da Justiça.
Por outro lado, ainda, certo é que o n.º 2 daquele normativo impõe que a alienação de veículos automóveis declarados perdidos seja precedida de anuência prévia da Direcção-Geral do Património do Estado, proibindo o n.º 3 a alienação de bens que, pela sua natureza ou características, possam vir a ser utilizados na prática de outras infracções, bens que deverão se destruídos caso não ofereçam interesse criminalístico, científico ou didáctico.
Finalmente, o n.º 4 do artigo em apreço estatui que, na falta de convenção internacional, os bens ou produtos apreendidos a solicitação de autoridades de Estado estrangeiro ou os fundos provenientes da sua venda são repartidos entre o Estado requerente e o Estado requerido, na proporção de metade.
Daqui decorre que o instituto da perda dos instrumenta e producta sceleris, em matéria de tráfico de estupefacientes, está submetido a regras específicas (não totalmente coincidentes com as previstas no regime geral estabelecido no Código Penal – artigos 109º a 112º), a significar que só as regras constantes dos artigos 35º a 39º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, podem e devem ser aplicadas à perda dos instrumentos e produtos do crime de tráfico de estupefacientes, a menos que exista legislação especial que derrogue aquelas regras.
Ora, a verdade é que não só inexiste legislação especial derrogatória daquelas normas, maxime disposição no Estatuto da Região Autónoma dos Açores que estabeleça que a perda de bens por crime de tráfico de estupefacientes (ou por qualquer outro crime) deva ser declarada a favor da Região, tal como inexiste norma naquele Estatuto que atribua àquela região autónoma o domínio privado sobre os bens que sejam declarados perdidos a favor do Estado.
Ademais cumpre referir que este Supremo Tribunal, por acórdão de 4 de Novembro de 2004, proferido no Recurso n.º 3504/04-5ª, recurso que apreciou decisão também prolatada pelo tribunal a quo, (já) decidiu que o Estatuto da Região Autónoma dos Açores não contém disposição expressa que declare que os bens apreendidos na Região por crime de tráfico de estupefacientes são declarados perdidos para a Região, pelo que não é possível decretar esse perdimento, sob pena de violação do princípio da legalidade.
Deste modo, há que revogar o acórdão recorrido na parte em que declarou perdidos a favor da Região Autónoma dos Açores os objectos e dinheiro apreendidos nos autos. Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão impugnado na parte em que declarou perdidos a favor da Região Autónoma dos Açores os objectos e dinheiro apreendidos, declarando-se os mesmos perdidos a favor do Estado.
Sem tributação.
Oliveira Mendes (relator)
João Bernardo
Pires Salpico
Silva Flor

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(1) - É do seguinte teor o artigo 113º, alíneas a) a e), do Estatuto da Região Autónoma dos Açores:)
«Integram o domínio privado da Região:
a) Os bens do domínio privado do Estado existentes no território regional, excepto os afectos aos serviços estaduais não regionalizados;
b) Os bens do domínio privado dos três antigos distritos autónomos;
c) As coisas e direitos afectos a serviços estaduais transferidos para a Região;
d) Os bens adquiridos pela Região dentro ou fora do seu território ou que por lei lhe pertençam;
e) Os bens abandonados e os que integrem heranças declaradas vagas para o Estado, desde que uns e outros se situem dentro dos limites territoriais da Região».