Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2507
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RAÚL BORGES
Descritores: ÂMBITO DO RECURSO
QUESTÃO NOVA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
REJEIÇÃO DE RECURSO
HOMICÍDIO
DETENÇÃO ILEGAL DE ARMA
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
MEIO INSIDIOSO
Nº do Documento: SJ2008120425073
Data do Acordão: 12/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário :

I - Os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu.
II - Sendo os recursos meios de impugnação e de correcção de decisões judiciais, e não meio de obter decisões novas, não pode o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas ao tribunal recorrido.
III - O tribunal superior, visando apenas a reapreciação de questões colocadas anteriormente e não de outras novas, não pode conhecer de argumentos ou fundamentos que não foram presentes ao tribunal de que se recorre – cf. Acs. do STJ de 27-07-1965, BMJ 149.º/297; de 26-03-1985, BMJ 345.º/362; de 02-12-1998, BMJ 482.º/150; de 12-07-1989, BMJ 389.º/510; de 09-03-1994, Proc. n.º 43402; de 01-03-2000, Proc. n.º 43/00, SASTJ n.º 39, pág. 55; de 05-04-2000, Proc. n.º 160/00; de 06-06-2001, Proc. n.º 1874/02 - 5.ª (não pode o STJ conhecer em recurso trazido da Relação de questões não colocadas perante este Tribunal Superior, mesmo que resolvidas na decisão da 1.ª instância); de 28-06-2001, Proc. n.º 1293/01 - 5.ª; de 26-09-2001, Proc. n.º 1287/01 - 3.ª; de 16-01-2002, Proc. n.º 3649/01 - 3.ª; de 30-10-2003, Proc. n.º 3281/03 - 5.ª (os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a obter decisões ex novo sobre questões não colocadas ao tribunal a quo, mas sim a obter o reexame das decisões tomadas sobre pontos questionados, procurando obter o cumprimento da lei); de 22-10-2003, Proc. n.º 2446/03 - 3.ª, SASTJ n.º 74, pág. 147; de 27-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209; de 20-07-2006, Proc. n.º 2316/06 - 3.ª; de 02-05-2007, Proc. n.º 1238/07 - 3.ª; e de 10-10-2007, Proc. n.º 3634/07 - 3.ª.
IV - A divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal é irrelevante, de acordo com jurisprudência há muito firmada – cf. Acs. do STJ de 19-09-1990, BMJ 399.º/260; de 21-06-1995, BMJ 448.º/278 (a versão do recorrente sobre a valoração da prova não integra o vício do erro notório); de 01-10-1997, Proc. n.º 876/97 - 3.ª; de 08-10-1997, Proc. n.º 874/97 - 3.ª; de 06-11-1997, Procs. n.ºs 666/97 e 122/97, de 18-12-1997, Procs. n.ºs 47325 e 930/97, Sumários de acórdãos do STJ, Vol. II, págs. 156, 158, 216 e 220; de 24-03-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247; de 19-01-2000, Proc. n.º 871/99 - 3.ª; e de 06-12-2000, Proc. n.º 733/00. Ou, como se dizia no Ac. de 18-12-1997, Proc. n.º 701/97, Sumários, ibidem, pág. 220, a convicção do tribunal não pode ser tida por errada apenas porque as partes, eventualmente, valoram a prova de modo diverso.
V - A impossibilidade de este Tribunal sindicar a prova produzida conduz a que seja manifesta a improcedência do recurso neste segmento, que assim tem, digamos, um objecto impossível, devendo ser rejeitado, nos termos do art. 420.º, n.º 1, do CPP, preceito que, nesta perspectiva, não padece de inconstitucionalidade – cf. Acs. do TC n.ºs 352/98, de 12-05-1998, BMJ 477.º/18, e 165/99, de 10-03-1999, DR, II Série, de 28-02-2000, e BMJ 485.º/93.
VI - Datando os factos em apreciação de 03-08-2006, sendo então aplicável à detenção ilegal de arma de defesa o regime da Lei 22/97, de 27-06 – já que a sobrevinda alteração legislativa, da Lei 98/2001, não releva para a incriminação –, e estando em vigor o art. 275.º do CP, é de ter em consideração a doutrina do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/97 (in DR Série I-A, de 06-03-1997), segundo a qual «A detenção, uso ou porte de uma pistola de calibre 6,35 mm não manifestada nem registada não constitui o crime previsto e punível pelo artigo 275.º, n.º 2, do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, norma que fez caducar o assento do Supremo tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989».
VII - Perante uma arma de defesa não registada nem manifestada não se pode afirmar que a perigosidade advenha da qualidade do meio empregue, não sendo de integrar a sua utilização no último segmento da al. g) do n.º 2 do art. 132.º do CP.
VIII - A jurisprudência tem entendido que o uso de arma de fogo não representará, em regra, a agravante da al. g) do n.º 2 do referido preceito (na versão vigente à data dos factos), por não constituir em si mesmo um meio particularmente perigoso – cf., designadamente, os Acs. do STJ de 10-03-2005, Proc. n.º 224/05 - 5.ª; de 15-12-2005, Proc. n.º 2978/05 - 5.ª; de 21-06-2006, Proc. n.º 1559/06 - 3.ª (com algumas reservas); de 24-05-2007, Proc. n.º 1602/07 - 5.ª; de 05-09-2007, Proc. n.º 2430/07 - 3.ª; de 13-03-2008, Proc. n.º 2589/07 - 5.ª; e de 16-09-2008, Proc. n.º 2491/08 - 3.ª.
IX - E, no sentido de que a arma utilizada na prática do crime não constitui só por si um meio insidioso, vejam-se os Acs. do STJ de 04-05-1994, BMJ 437.º/154 (a arma não pode ser considerada meio insidioso porque não tem as características de dissimulação na sua influência maléfica, no sentido de meio traiçoeiro e desleal em que a vítima nada desconfia e é apanhada desprevenida); de 11-01-1995, BMJ 443.º/54; de 17-05-1995, CJSTJ 1995, tomo 2, pág. 201; de 13-12-1995, CJSTJ 1995, tomo 3, pág. 255 (a pistola – semiautomática, de calibre 7,65, “Browning” – de que o arguido se serviu é um tipo de arma usualmente empregada no cometimento de homicídios; por outras palavras, a sua vulgarizada utilização não revela, por si só, especial censurabilidade ou perversidade de quem usa esse género de armas para matar alguém); de 17-10-1996, Proc. n.º 634/96; de 10-12-1997, BMJ 472.º/142; de 18-02-1998, Proc. n.º 1086/97 - 3.ª; de 21-01-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág.198; de 23-02-2000, BMJ 494.º/123; de 21-11-2001, Proc. n.º 2447/01 - 3.ª; de 15-05-2002, Proc. n.º 1214/02 - 3.ª; de 10-10-2002, Proc. n.º 2577/02 - 5.ª (com várias referências jurisprudenciais); e de 16-10-2003, Proc. n.º 3280/03 - 5.ª.
X - Como se refere no acórdão de 11-06-1987 (BMJ 368.º/312), “Quando a lei (artigo 132º, nº 2, alínea f), do Código Penal) fala em «meio insidioso» não quer necessariamente abarcar os instrumentos usuais de agressão (o pau, o ferro, a faca, a pistola, etc.), ainda que manejados de surpresa, mas sim aludir tanto às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, como aos que são particularmente perigosos e que, não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossíveis a defesa da vítima.
XI - A título exemplificativo e enquanto extravasam o que se prevê no âmbito dos crimes de perigo comum, estão previstos na referida alínea f) a utilização de certas armadilhas, as instalações eléctricas em casas de banho adrede preparadas para matar logo que se ligue o chuveiro, a introdução de ar ou de vírus mortais no sistema venoso sob o pretexto de se injectar um medicamento, a narcotização do paciente para depois o matar, o acto de conduzir enganosamente a futura vítima a local isolado para aí ser abatida, etc.”.
XII - A jurisprudência do STJ tem considerado abrangidos nesta alínea os casos particulares de disparos à traição ou quase à queima-roupa, onde a surpresa, somada à posição tomada pelo arguido, tornam praticamente impossível qualquer defesa da vítima – cf. Acs. de 02-05-1996, Proc. n.º 148/96; de 21-05-1997, Proc. n.º 188/97; e de 24-02-1999, Proc. n.º 1365/98, conforme citação do supra-aludido acórdão de 13-12-2000.

Decisão Texto Integral:

No âmbito do processo comum com intervenção de tribunal colectivo nº 123/06.2GAMTR, do Tribunal Judicial de Montalegre, integrante do Círculo Judicial de Chaves, foi submetido a julgamento o arguido
AA, divorciado, agricultor, nascido a 02/02/1940, filho de BB e de CC, natural da freguesia de Sarraquinhos, concelho de Montalegre, residente na Rua do .......... n° ., ............, Sarraquinhos, Montalegre, actualmente detido no E.P. de Chaves.

Por acórdão do Colectivo de Montalegre, de 5 de Novembro de 2007, foi o arguido condenado pela prática, em concurso real de crimes, de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27 de Julho, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6,00 € e pela prática de dois crimes de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea g) - actual alínea h) -, todos do Código Penal, na pena de 16 anos de prisão por cada um desses crimes.
Em cúmulo jurídico foi condenado o arguido na pena única de 19 anos de prisão e 100 dias de multa à razão diária de 6,00 €.
Foi ainda julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante DD, filho dos falecidos, sendo o demandado condenado a pagar ao demandante a título de indemnização a quantia global de 133.140,00 €, sendo 130.000,00 € a título de danos não patrimoniais, e a quantia de 3.140,00 €, a título de danos patrimoniais, sendo absolvido o demandado do demais peticionado.
Mais foi deliberado que:
Relativamente à indemnização pelos danos patrimoniais, a condenação em juros de mora reporta-se à data da citação para o demandado contestar o pedido de indemnização formulado pelo demandante e no que concerne à quantia arbitrada a título de danos não patrimoniais, apenas se vencerão juros a partir da data da decisão, à taxa legal, nos termos do disposto nos arts. 805.º, n.º 3, 2.ª parte, 806.º, n.º 1 e 2, 804.º, n.º 1 e 559.º, todos os Código Civil e ainda Portarias sucessivamente em vigor.

Inconformado, o arguido interpôs recurso do acórdão abrangendo a totalidade da decisão (partes criminal e cível), apresentando a motivação de fls. 819 a 863, a que respondeu o Mº Pº, de fls. 884 a 919 e o demandante cível de fls. 921 a 940.

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão datado de 2 de Abril de 2008, negou provimento ao recurso, confirmando na íntegra o acórdão de 1ª instância.

De novo irresignado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, abrangendo a totalidade do acórdão recorrido (parte criminal e cível), apresentando a motivação de fls.1094 a 1102, que remata com as seguintes conclusões:
1ª - A folhas 25 do Acórdão, 3º parágrafo, consta que foi dado como provado que as vítimas se dirigiram ao arguido, munidas cada uma de seu gadanho, entrando a EE no terreno do arguido onde ele se encontrava com a máquina ceifeira e o FF vindo nas proximidade da esposa, seria necessário para boa decisão da causa apurar-se que ideias moviam as vítimas, pois de certeza que não apareceram ali com intenções de o ajudar nem para o abraçar, acrescendo o facto de o FF ter dito, momentos antes, que ia haver confusão.
O Tribunal de 1ª Instância não se pronunciou sobre o assunto, cujo conteúdo constitui uma circunstância atenuativa integrada na contestação quando se refere o merecimento da audiência.
2ª - A folhas 31, penúltimo parágrafo, dando isso como certo, fala-se que as testemunhas, GG, HH e II, as únicas presencias, mentiram e omitiram ao Tribunal factos relevantes, sendo ordenada a extracção de certidão para fins de Inquérito Judicial.
Face à pena aplicada, esses dados não foram necessários para a condenação, seriam-no então para a defesa.
Sobre o conteúdo dessas mentiras e omissões não houve qualquer pronúncia.
3ª - A folhas 28, 2º parágrafo, diz-se que o arguido, quando se deslocou para o local dos Autos, já ia preparado de arma no bolso para qualquer eventualidade, pois o desentendimento com o irmão e com a cunhada, vinha de há 30 anos.
Não se tendo pronunciado nem tentado averiguar se o arguido sabia que as vítimas estavam nesse local, não é razoável, sem mais, tirar-se aquela conclusão que uma vez aceite, influiu no resultado final.
4ª - A folhas 31, dá-se como certo, que o II viu a EE a esfregar a testa após ser atingida com o projéctil, mas se este disparo foi efectuado a menos de 70 cm, a testemunha não poderia deixar de avistar também o arguido, até porque se encontrava em cima da máquina ceifeira.
A averiguação desta mentira seria importante para a defesa, pois essa testemunha está senhora de tudo o que se passou e havia necessidade de o Tribunal de Ia Instância averiguar e pronunciar-se sobre esse facto.
5ª - A folhas 22, últimas linhas, deu-se como assente que o FF, com voz autoritária, disse “eu não sego e quem sega é o AA, vem para aqui com a pistola, pensa que mete medo a alguém”, recomendando ao maquinista que não ceifasse a seara dele, porque se não ia haver confusão.
Uma vez que, logo a seguir, ocorreu a cena dos tiros, parece evidente a ligação entre os dois momentos.
Havia necessidade e interesse para a boa decisão da causa que o Tribunal de Ia Instância se tivesse pronunciado sobre o teor da "confusão" que ia na cabeça da vítima FF.
6ª - O relatório da autópsia (folhas 92 e seguintes do processo) do FF refere diversas patologias de que ele era portador designadamente, hipertrofia prostática, dois volumosos sacos herniários, ventre dilatado, coração e peso fora do normal, doenças sobre as quais o Tribunal de 1ª instância não se pronunciou, dizendo apenas que era uma pessoa robusta e saudável.
Esses elementos seriam essenciais para o cálculo do montante da indemnização.
Todas estas seis matérias, constituindo como constituem, ou pelo menos, podendo constituir circunstâncias atenuativas do crime, merecem a devida pronúncia, reenviando-se o processo, para esse efeito, ao Tribunal competente e anulando-se o Acórdão respectivo.
7ª - Não sendo assim entendido, a qualificação dos crimes dos Autos deverá ser outra, pois:
O simples uso de uma pistola 6,35 mm, mesmo não registada e manifestada, só por si, não leva necessariamente a que o homicídio por ela cometido seja qualificado.
Como regra, o homicídio é simples.
Para que seja qualificado, o acto criminoso terá de ser acompanhado de circunstâncias capazes de atribuir ao seu autor uma especial censurabilidade ou perversidade, uma pistola que, ao manobrar-se, é uma arma de fraca precisão (a não ser nas mãos de um perito), e por isso, o seu uso não se torna mais censurável ou perverso que tantos outros instrumentos com características letais.
Apesar de estar incluída numa das alíneas do n.° 2 do Artigo 132° do Código Penal (alínea h)), isso não significa que a sua utilização na morte de outrem seja logo de imediato suficiente para ter esse crime como homicídio qualificado.
Não basta ser susceptível de censurabilidade ou perversidade especial, é necessário que o acto seja rodeado ou acompanhado de factores que revelem uma censurabilidade ou perversidade especial.
No caso presente, remetendo-se com a devida vénia, para a opinião do Ilustre Procurador Geral Adjunto do Venerando Tribunal da Relação do Porto, cujos termos aqui se dá por reproduzidos, vê-se que na acusação apenas consta que o uso da pistola 6,35 mm, citando a alínea g), hoje h), do n.° 2 do Artigo 132° do Código Penal, se integra na previsão de um crime de perigo comum.
Não menciona qualquer outra circunstância referente ao modo como o arguido agiu, a não ser que disparou contra as vítimas.
Refere até que as coisas aconteceram em circunstâncias que não foi possível esclarecer com segurança bastante no decurso da investigação.
Os tiros foram todos disparados de frente para as vítimas. Estas já sabiam da existência da arma e, mesmo assim, dirigiram-se para o arguido, munidas cada um de seu gadanho, chegando a EE a entrar no terreno dele (e não era para o ajudar ou abraçar) e o FF, tendo dito, momentos antes, que até ia haver confusão.
Não se vislumbra a existência da tal especial censurabilidade ou perversidade.
Todos os actos posteriores, os quais, como se disse, não fazem parte da acusação, não respeitam às vítimas. Diz-se que as abandonou, mas isso até se justifica para, estando elas mortas, vir apresentar-se às autoridades (como efectivamente sucedeu) e para evitar, que, aparecendo o demandante ou alguém do seu lado, tivesse de haver outros conflitos de violência.
O crime dos Autos merece ser subsumido na previsão do Artigo 131° do Código Penal.
Atendendo a que o arguido se apresentou voluntariamente às autoridades (podia ter fugido para o estrangeiro onde estivera como emigrante), colaborou de modo relevante com as autoridades (o que seria se ele se remete ao silêncio?), ter tido bom comportamento, estar integrado socialmente, já ter 66 anos de idade e viver sozinho, cozinhando e lavando e amanhando a própria roupa, e sobretudo, ter sido enfrentado pelas vítimas, conforme atrás se disse, a sanção a aplicar deverá situar-se no seu mínimo, fixando-se em oito anos cada uma das penas parcelares e, seguindo-se o critério e proporção do Tribunal da 1ª Instância, em nove anos e seis meses, como medida proveniente do cúmulo jurídico.
8ª - Se outro for o entendimento, considerando-se provado tudo o que, como tal, foi escrito no Acórdão proferido no Tribunal de 1ª Instância, tendo em conta as atenuantes invocadas na anterior conclusão 7ª, a pena porque, face à idade do arguido, é desumanizada, deve baixar para doze anos em relação a cada crime e, em cúmulo jurídico, para catorze anos e três meses, de harmonia com o critério e proporção já citados.
9ª - A indemnização, por se terem esquecido as patologias descritas no relatório da autópsia do FF, designadamente, os volumosos sacos herniários, a hipertrofia prostática, o volume anormal do coração, do ventre e do peso, não haver referência à situação económica do demandado, confrontando-a com a do demandante, por não se ter aludido ao mau relacionamento do demandante com o pai, e, sobretudo, por não se atender à contribuição que as vítimas tiveram na ocorrência e ainda por não se saber o tempo que teria decorrido entre o primeiro e último tiros que atingiram o FF, deverá ser reduzida para metade na hipótese indicada na conclusão 7ª e para dois quintos na 8ª.
10ª - Houve violação entre outros, dos Artigos 340° e 379° alínea c) do Código de Processo Penal, e 131° do Código Penal que deveria ser aplicado em substituição do 132° n.° 1 e 2, e bem assim o 40° n.° 2 e o 71° do mesmo diploma e ainda os princípios "in dúbio pro reo" e "quod non est in autis non est in mundo".
No provimento do recurso, pede a anulação dos acórdãos recorridos e o reenvio do processo ao Tribunal de 1ª Instância ou, se assim não for entendido, baixando a pena de dezanove anos para nove anos e seis meses, de acordo com a conclusão 7ª, ou para catorze anos e três meses, na hipótese referida na cláusula 8ª e reduzindo a indemnização para metade ou para dois quintos, conforme exposto nas ditas cláusulas 7ª ou 8ª.

O Mº Pº junto do Tribunal da Relação do Porto, notificado a fls. 1107, silenciou, não apresentando qualquer resposta.

O demandante cível DD apresentou resposta de fls. 1136 a 1157, reproduzindo na maior parte o que alegara no anterior recurso de fls. 921 a 940, em extensa, excessiva e inócua produção de pontos de vista relativamente a matéria de facto que se prendia com a parte criminal, não tendo legitimidade para tal, já que é apenas parte cível, não se tendo constituído parte assistente.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 1160.

Neste Supremo Tribunal de Justiça a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer de fls. 1166 a 1179, pronunciando-se no sentido de não merecer o recurso provimento na parte criminal.

Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, o recorrente apresentou a resposta de fls. 1184/5.

Ordenada a notificação do recorrente, nos termos do artigo 424º, nº 3, do CPP, face a eventual requalificação jurídica, aquele veio, a fls. 1204 a 1206, reproduzir anteriores posições assumidas no anterior recurso e ao abrigo do artigo 358º, nº 1, do CPP, requerer a anulação do julgamento, com baixa dos autos à primeira instância, devendo o recorrente ser interrogado no local dos factos e inquiridas sete testemunhas que indica.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

A deliberação recorrida, como de resto aconteceu com a de 1ª instância, ocorreu já em plena vigência do Código de Processo Penal na versão introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, entrada em vigor em 15 de Setembro de 2007, sendo aplicável o novo regime, por não se colocar qualquer das situações de desaplicação previstas no nº 2 do artigo 5º do CPP.
Passou a dispor o n.º 5 do artigo 411º, do CPP: “No requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação que pretende ver debatidos”.
Não tendo sido requerida audiência por qualquer dos recorrentes, e aplicando-se a lei nova, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos do artigo 419º, n.º 3, alínea c), do CPP.
*
A decisão recorrida é o acórdão da Relação do Porto de 02-04-2008, que confirmou acórdão final condenatório proferido por tribunal colectivo.

Definindo os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, dispõe o artigo 434º do CPP, que: «Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito».

Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal - acórdão do Plenário da Secção Criminal, no processo nº 46580, de 19-10-1995, Acórdão n.º 7/95, publicado no DR, I Série - A, nº 298, de 28-12-1995, que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, nº 2 e 410º, nº 3, do CPP - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido (artigo 412º, nº 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

Questões a decidir

O presente recurso visa a reapreciação da decisão recorrida nos segmentos criminal e cível.
Face às conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, em que avulta a extensão da conclusão 7ª, que nada terá a ver com esforço de síntese, as questões a apreciar e decidir são:

I – Omissão de pronúncia - Errada e deficiente valoração das provas - Conclusões 1ª a 6ª.

II – Alteração da qualificação jurídica - Convolação para crime de homicídio simples – Conclusão 7ª

III – Medida da penaRedução – Conclusões 7ª, parte final, e 8ª

IV – Montante indemnizatório - redução? – Conclusões 6ª (§ 2º) e 9ª.

Factos Provados

Foi dada como provada a seguinte matéria de facto, que é de ter-se por imodificável e definitivamente assente, já que da leitura do texto da decisão, por si só considerado ou em conjugação com as regras de experiência comum, não emerge a ocorrência de qualquer vício ou nulidade de conhecimento oficioso, mostrando-se o adquirido suficiente para a decisão, coerente, sem contradição, harmonioso e devidamente fundamentado.
Seguem-se os factos dados por provados:

No dia 3 de Agosto de 2006, pelas 16 horas, o arguido dirigiu-se ao lugar denominado por Vale da Ulha, sito nas proximidades da povoação de Antigo de Sarraquinhos e na freguesia de Sarraquinhos do concelho e comarca de Montalegre, por se encontrar aí uma máquina que iria proceder à ceifa em terrenos seus e noutros terrenos vizinhos.
Cerca de 60 minutos antes da hora dos Autos, o Arguido, tendo tido conhecimento de que a máquina andava a cortar centeio no sítio denominado “Vale da Ulha”, limite do lugar de Antigo de Sarraquinhos, deslocou-se para aquele local no seu tractor, a fim de mandar ceifar o centeio que semeara numa propriedade que ali possuía.
Parou no caminho público, junto ao seu terreno, durante o período em que a máquina cortava o centeio de um seu vizinho e, enquanto esteve parado, passaram por si FF e a esposa EE, respectivamente, seu irmão e cunhada, em direcção à máquina ceifeira, levando cada um a sua gadanha.
A ceifeira acabou a trabalho no campo do vizinho e dirigiu-se para uma propriedade do seu irmão FF e ali esteve parado algum tempo mas o arguido, vendo que não reiniciava a ceifa, desceu do tractor e dirigiu-se a um grupo de pessoas que estavam junto da máquina, entre as quais se encontravam GG, o filho deste HH, o maquinista II, a vitima FF e, possivelmente, a esposa EE.
Ali chegado, perguntou por que já não trabalhava a máquina e, apercebendo-se que estavam a combinar ceifar as terras de II antes da do FF, onde a ceifeira parara, dirigiu-se ao irmão, dizendo “se não segas tu que tens preferência por que é a terra mais próxima, sego eu” e mostrou a pistola que trazia consigo.
Na sequência de tal discussão, o arguido empunhou uma pistola de calibre 6,35 que trazia consigo (que não foi apreendida antes de ser deduzida a acusação) e apontou-a ao seu irmão FF ao mesmo tempo que o ameaçava dizendo que o «estourava» se a ceifa não fosse feita pela ordem como ele dizia.
Mesmo assim, o FF respondeu, com voz autoritária, “eu não sego e quem sega é o AA, vem para aqui com a pistola (referindo-se ao arguido), pensa que mete medo a alguém”, recomendando ao maquinista que não segasse a terra dele, que se não havia confusão.
Então o arguido, vendo que o irmão não queria segar a terra dele, que ficava logo a seguir à máquina, pretendendo levar o maquinista para as propriedades de GG, passando a segar as de outros vizinhos, localizadas longe dali, disse ao homem da ceifeira que viesse para a propriedade do arguido de modo a poder começar ali a ceifa sem ter de trepar o centeio do irmão.
O arguido além desta, cuja ceifa demoraria cerca de 15 minutos, não possuía na Aldeia qualquer outra propriedade com centeio.
Momentos depois, encontrando-se o arguido na coroa do seu terreno onde já se encontrava a ceifeira, as duas vítimas mortais dirigiram-se na direcção do arguido, estando cada uma delas munidas de uma gadanha na mão, tendo chegado a vítima EE a entrar no terreno do arguido.
Então, em circunstâncias que não foi possível esclarecer com segurança bastante no decurso da investigação, o arguido empunhou a pistola de calibre 6,35 milímetros que trazia consigo e apontou-a primeiro à EE, que se encontrava no terreno do arguido, disparando contra ela e atingindo-a com um projéctil que originou a sua queda. E, de seguida, disparou contra o seu irmão FFatingindo-o com três projécteis.
Os projécteis que atingiram FF provocaram-lhe as lesões descritas nos relatórios de autópsia juntos a folhas 76 a 82 – que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais – de que resultou como efeito necessário a sua morte.
Os projécteis que atingiram EE provocaram-lhe as lesões descritas nos relatórios de autópsia juntos a folhas 97 a 98 – que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais – de que resultou como efeito necessário a sua morte.
Em seguida, o arguido, após ordenar ao maquinista II que cegasse a sua terra, ordem que este acatou, abandonou o local deixando as vítimas prostradas onde tinham caído após serem atingidas pelos disparos por si efectuados.
O arguido não é titular de licença de uso e porte de arma de defesa.
O arguido para matar as vítimas utilizou uma pistola de calibre 6,35 mm que entregou às autoridades posteriormente à data em que foi deduzida a acusação nestes autos.
O arguido agiu voluntária e conscientemente pela forma descrita, com o propósito de matar, como efectivamente matou, as vítimas, bem sabendo que, com essa conduta, violava a lei vigente e incorria em responsabilidade criminal.
Cerca das 16 horas e 30 minutos, quando foi contactado por uma força da Guarda Nacional Republicana que se deslocara ao local dos factos, o arguido trazia consigo, num bolso, e entregou voluntariamente ao participante de folhas 3 dos autos, JJ, uma pistola com uma munição na câmara e uma outra no carregador.
Esta pistola foi examinada pericialmente no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, tendo-se comprovado ser de marca RECK, de modelo P6 E, sem número de série visível, de origem alemã, originalmente de alarme ou gás lacrimogéneo e adaptada para funcionar como arma de fogo de calibre 6,35 mm Browning e que se encontrava em boas condições de funcionamento (como consta do relatório junto a folhas 381 a 390 dos autos, que aqui se dá por reproduzido para todos efeitos legais).
Esta pistola não está registada ou manifestada.
O arguido tinha na sua posse a referida arma, voluntária e conscientemente, bem sabendo que, fazendo-o, violava a lei vigente e incorria em responsabilidade criminal.
Submetido a análise de pesquisa de álcool etílico no sangue, o Gabinete Médico-Legal de Chaves apurou que o cadáver FF apresentava um resultado positivo de 0,68 gr/l de sangue, concluindo que o mesmo apresentava uma intoxicação etílica aguda.
Da defesa provaram-se ainda os seguintes factos:
O arguido não trazia consigo qualquer outro objecto com que pudesse atingir as vítimas, além da pistola, assim como, naquele momento, não tinha possibilidade de recorrer à autoridade pública.
A vítima FF, entre outros crimes de ofensas corporais, já matou um cunhado, disparou uma espingarda de caça na taberna de KK, atingindo LL e atingiu também com uma arma caçadeira MM.
O FF puxou de pistola e arma caçadeira para NN, sendo certo que frequentemente levantava conflitos injustificáveis com os vizinhos por causa de caminhos e regos de água.
A esposa EE também era uma pessoa conflituosa, destemida e determinada como o marido, sendo certo que ambas as vítimas não tinham medo a ninguém e, por outro lado, eram temidas por todos os vizinhos.
O arguido é uma pessoa bem comportada, séria respeitadora e é considerado no meio social onde está inserido.
Foi o arguido que mandou chamar as autoridades a quem se entregou voluntariamente.
Do pedido de indemnização civil:
DD, casado em comunhão de adquiridos com OO, era o único filho das vítimas EE e FF.
As vítimas EE e FF tinham, à data da morte, respectivamente, 56 e 61 anos de idade, sendo pessoas robustas e saudáveis, não se lhes conhecendo doenças.
O FF entre o momento em que se aperceber que a esposa foi atingida e que caiu em virtude do tiro disparado pelo arguido e o momento em que ele próprio foi faleceu, teve consciência que a sua própria vida corria perigo, tendo-se sentido angustiado.
Ambas as vítimas exerciam a actividade agro-pecuária, nomeadamente a produção de batatas e animais para revenda e consumo próprio, designadamente vitelos e cordeiros, possuindo vários terrenos que cultivavam, tinham 5 vacas e 11 ovelhas que reproduziam e destinavam à venda, auferindo anualmente um subsídio agro-pecuário, ficando o filho DD a cuidar dos terrenos e dos animais deixados pelos pais.
Para o demandante DD a morte dos seus pais representou uma perda irreparável, sendo grande a dor, o desgosto, o sofrimento e a saudade que sofreu e sofre, tendo sido ele que suportou as despesas com o funeral dos seus pais gastando 3.140,00€.
O arguido antes de estar em prisão preventiva vivia sozinha em casa própria, tem uma filha maior, uma viatura automóvel, aufere uma pensão de reforma no valor de 350,00€ e possui a 3.ª classe como habilitações literárias
O arguido não tem antecedentes criminais.


Apreciando.

Questão I – Errada e deficiente valoração das provas

Nas conclusões 1ª a 5ª o recorrente manifesta a sua discordância com o decidido, ressaltando como notório o facto de se dirigir à decisão da 1ª instância (neste aspecto é esclarecedora a parte final da 1ª conclusão: O Tribunal de 1ª Instância não se pronunciou sobre o assunto), parecendo olvidar que está a recorrer de um acórdão do Tribunal da Relação confirmativo daquela.
Na verdade, muito embora o recorrente refira nessas conclusões fls. 22, 25, 28 e 31 do acórdão recorrido, o que verdadeiramente está em causa é aquela primeira decisão, pois que são visados trechos do acórdão do Colectivo de Montalegre referentes aos factos provados e à exposição da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, que foram reproduzidos, transcritos, no acórdão ora recorrido.
E assim é que nas conclusões 1ª e 5ª são visados excertos do segmento dos factos dados por provados (respectivamente, os contidos a fls. 25 e 22 do acórdão recorrido) e nas conclusões 2ª, 3ª e 4ª, tem-se em vista passagens da narrativa em que se expõe a motivação da convicção dos julgadores de 1ª instância (os contidos a fls. 28 e 31 do mesmo acórdão).
Na conclusão 6ª, onde novamente se refere a decisão da 1ª instância, versa o recorrente o teor de relatório de autópsia da vítima FF, reportando elementos que em seu entender seriam essenciais para o cálculo do montante da indemnização, mas considera igualmente que, a par das matérias anteriores, poderiam constituir circunstâncias atenuativas do crime, a merecerem a devida pronúncia, reenviando-se o processo.
O denominador comum destas conclusões é que se estaria perante matérias que relevariam para a defesa, que não mereceram a devida pronúncia, o que deveria conduzir à anulação dos acórdãos e ao reenvio do processo ao tribunal de 1ª instância.
No fundo o que está em causa é a manifestação por parte do recorrente da sua discordância com a factualidade dada por assente.
Insurge-se contra a decisão da primeira instância, por discordar da matéria de facto assente, esquecendo que ao STJ compete apenas o reexame da matéria de direito.
Embora o recorrente refira a omissão de pronúncia sobre as matérias que refere, o que verdadeiramente está em causa é essa divergência.
Uma outra nota saliente que há a reter neste segmento do recurso, agora restrito às conclusões 1ª a 5ª, é que se trata de questões colocadas “ex-novo” perante este Supremo Tribunal.
Com efeito, cotejando o presente recurso com o anterior, verifica-se com absoluta clareza que vêm agora postas questões não submetidas a reapreciação por parte da Relação.
No anterior recurso (com 129 conclusões), nas conclusões 1ª a 29ª, referia-se o recorrente a omissões de pronúncia relativamente a questões de que o acórdão do Colectivo de Montalegre poderia e deveria ter conhecido e que o não fizera, e sobre as quais incidiu o exame do acórdão da Relação, como se vê de fls. 1052 a 1055, terminando por não dar razão a tal invocação.
Acontece que nenhuma das questões colocadas tem a ver o que quer que seja com as agora apresentadas.
O que significa que estamos perante questões novas colocadas com referência ao acórdão da 1ª instância, pretendendo-se uma primeira apreciação pelo Supremo de decisão do colectivo, o que manifestamente não pode ser, esquecendo o recorrente que em recurso está a decisão da Relação.
Os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu.
Sendo os recursos meios de impugnação e de correcção de decisões judiciais e não meio de obter decisões novas, não pode o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas ao tribunal recorrido
Constitui jurisprudência uniforme a de que os recursos se destinam a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior e não a obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições.
O Tribunal Superior, visando apenas a reapreciação de questões colocadas anteriormente e não de outras novas, não pode conhecer de argumentos ou fundamentos que não foram presentes ao tribunal de que se recorre - acórdãos do STJ de 27-07-1965, BMJ 149, 297; de 26-03-1985, BMJ 345, 362; de 02-12-1998, BMJ 482, 150; de 12-07-1989, BMJ 389, 510; de 09-03-1994, processo n.º 43402; de 01-03-2000, processo n.º 43/00, SASTJ, nº 39, 55; de 05-04-2000, processo n.º 160/00; de 06-06-2001, processo n.º 1874/02-5ª (não pode o STJ conhecer em recurso trazido da Relação de questões não colocadas perante este Tribunal Superior, mesmo que resolvidas na decisão da 1ª instância); de 28-06-2001, processo n.º 1293/01-5ª; de 26-09-2001, processo n.º 1287/01-3ª; de 16-01-2002, processo n.º 3649/01-3ª; de 30-10-2003, processo n.º 3281/03-5ª (os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a obter decisões ex novo sobre questões não colocadas ao tribunal a quo, mas sim a obter o reexame das decisões tomadas sobre pontos questionados, procurando obter o cumprimento da lei), de 22-10-2003, processo n.º 2446/03-3ª, SASTJ, nº 74, pág. 147; de 27-05-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, 209; de 20-07-2006, processo n.º 2316/06-3ª; de 02-05-2007, processo n.º 1238/07-3ª; de 10-10-2007, processo n.º 3634/07-3ª.

No que respeita à discordância com a fixação da matéria de facto, essa discussão não foi possível por incumprimento por parte do recorrente do disposto no artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP, como resulta da consulta do acórdão recorrido a fls. 1056/8, sendo nesta parte o recurso rejeitado por manifestamente infundado, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto.
Ademais não foram atendidas, de modo fundamentado, as conclusões que tinham a ver com a pretensão de discussão da convicção e processo da sua formação – fls. 1058/9.
O acórdão da Relação não deixou ainda de se pronunciar sobre a ocorrência ou não dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradições insanáveis tanto da fundamentação como entre esta e a decisão, constantes das conclusões 30ª a 42ª do primeiro recurso - fls. 1060 a 1063.
E concretamente no que respeita à matéria da conclusão 6ª o Tribunal da Relação debruçou-se sobre a questão relacionada com a invocação do relatório de autópsia, como se mostra de fls. 1062, ao abordar a verificação dos referidos vícios.

Em suma, por um lado, não houve modificação pela Relação da matéria de facto provada na 1ª instância, a qual ficou definitivamente assente, e por outro, o acórdão ora recorrido não incorre em qualquer nulidade, visto que emitiu pronúncia sobre todos e cada um dos temas sujeitos a reexame.
O que no fundo o recorrente pretende é uma vez mais suscitar a questão da valoração das provas, não podendo deixar de ter-se em conta que a fixação da matéria de facto teve na sua base uma apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do CPP.
Mas mais do que isso, acontece que na realidade o que o recorrente faz é manifestar a sua discordância com o decidido ao nível do assentamento da facticidade dada como apurada, pretendendo alterar a matéria de facto assente, olvidando por completo a regra da livre apreciação da prova ínsita no aludido artigo 127º do CPP.
A divergência do recorrente quanto à avaliação e valoração das provas feitas pelo tribunal é irrelevante, de acordo com jurisprudência há muito firmada - acórdãos do STJ, de 19-09-1990, BMJ 399, 260, de 21-06-1995, BMJ 448,278 (a versão do recorrente sobre a valoração da prova não integra o vício do erro notório), de 01-10-1997, processo n.º 876/97-3ª, de 08-10-1997, processo n.º 874/97-3ª, de 06-11-1997, processos n.ºs 666/97 e 122/97, de 18-12-1997, processos n.ºs 47325 e 930/97, Sumários de acórdãos do STJ, vol. II, p. 156, 158, 216 e 220 e de 24-03-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, 247, de 19-01-2000, processo n.º 871/99-3ª, de 06-12-2000, processo 733/00. Ou como se dizia no acórdão de 18-12-1997, processo n.º 701/97, Sumários, ibid., p. 220, a convicção do tribunal não pode ser tida por errada apenas porque as partes, eventualmente, valoram a prova de modo diverso.
Daqui resulta que se revelem processualmente inoportunas, impertinentes e irrelevantes as considerações contidas nas conclusões 1ª a 5ª, 6ª em parte e por arrastamento a parte da conclusão 9ª em que se repete esta mesma matéria.
A impossibilidade deste Tribunal sindicar a prova produzida conduz a que seja manifesta a improcedência do recurso neste segmento, que assim, digamos, tem um objecto impossível, devendo ser rejeitado, nos termos do artigo 420º, nº 1 do CPP, preceito que nesta perspectiva não padece de inconstitucionalidade - cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional nº 352/98, de 12-05-1998, in BMJ 477, 18 e nº 165/99, de 10-03-1999, in DR-II Série, de 28-02-2000 e BMJ 485, 93.
Como se referia no acórdão do STJ de 30-03-1995, BMJ 445, 355, é de rejeitar o recurso por manifesta improcedência quando o recorrente se limita a discutir matéria de facto e a livre apreciação do tribunal.
De igual sorte o acórdão de 21-06-1995, BMJ, 448, 278: “Apresenta-se como manifestamente improcedente, e, portanto, deve ser rejeitado, o recurso cuja fundamentação se circunscreve à interpretação da prova que se diz ter sido produzida em audiência, indicando-se os factos que deveriam ter sido considerados provados, em vez dos que foram dados por provados”.

Nesta parte o recurso é manifestamente improcedente.
Estabelece o artigo 420º, nº 1, alínea a), do CPP, na versão actual, que o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência.
A manifesta improcedência constitui um fundamento de rejeição do recurso de natureza substancial, visando os casos em que os termos do recurso não permitem a cognição do tribunal ad quem, ou quando, versando sobre questão de direito, a pretensão não estiver minimamente fundamentada ou for claro, simples, evidente e de primeira aparência que não pode obter provimento. Será o caso típico de invocação contra a matéria de facto directamente provada, de discussão processualmente inadmissível sobre a decisão em matéria de facto, ou de o recurso respeitar à qualificação e à medida da pena e não ser referida nem existir fundamentação válida para alterar a qualificação acolhida ou a pena que foi fixada pela decisão recorrida – acórdão do STJ, de 22-11-2006, processo 4084/06 - 3ª .
Ou, quando, através de uma avaliação sumária dos fundamentos do recurso, se puder concluir, sem margem para dúvidas, que o mesmo será claramente votado ao insucesso, que os seus fundamentos são inatendíveis – acórdãos de 17-10-1996, processo 633/96, de 06-05-1998, processo 113/98, de 05-04-2000, processo 47/00.
Desatende-se, pois, a arguição de nulidade por omissão de pronúncia, sendo o recurso de rejeitar por manifestamente improcedente neste segmento de tentativa de reapreciação de matéria fáctica, através do reenvio pretendido.
Improcedem, assim, as conclusões 1ª a 6ª.


Questão II - Alteração da qualificação jurídica - Convolação para crime de homicídio simples

Na extensa conclusão 7ª defende o recorrente que a sua conduta é de integrar no tipo base do homicídio previsto e punível pelo artigo 131º do Código Penal por não se verificar a qualificativa substanciada no uso de arma de fogo, constante da alínea g) do nº 2 do artigo 132º do mesmo diploma legal.

Vejamos se tem razão.
Antes de avançarmos, há que dizer que a notificação nos termos do artigo 424º, nº 3, do CPP, apenas visou comunicar eventual alteração de qualificação jurídica, e não qualquer alteração não substancial de factos, não se destinando a proporcionar a apresentação de prova nem visando qualquer forma de reenvio do processo, já que a requalificação a ser feita sê-lo-á com os elementos constantes da decisão, com a matéria de facto que se encontra definitivamente assente, estando em equação apenas eventual diverso enquadramento jurídico criminal.

Estabelecia o artigo 132º, do Código Penal, na redacção dada pela Lei nº 65/98, de 2 de Setembro, em vigor à data da prática dos factos:
1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2 – É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
g) - Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum.

A qualificativa de utilização de meio particularmente perigoso foi introduzida na reformulação da alínea g) operada pela alteração de 1998, constituindo actualmente a alínea h).

O arguido cometeu os crimes de homicídio fazendo uso de arma de fogo.
A utilização pelo recorrente de arma de fogo, mais exactamente, uma pistola de calibre 6,35, faz convocar, de acordo com as posições assumidas pela jurisprudência duas situações - padrão, a saber, a da alínea g) – actual alínea h) -, podendo colocar-se ainda a questão de saber se poderá preencher a situação da alínea h) – actual alínea i) -, na parte em que prevê a utilização de “qualquer outro meio insidioso”.

No caso concreto as instâncias integraram o uso de arma de fogo por parte do arguido, invocando a parte final da alínea g), por a utilização da arma se traduzir na prática de crime de perigo comum.
A decisão da 1ª instância fez tal enquadramento com a seguinte argumentação: «Relativamente ao último segmento da alínea g) (actual alínea h) do Código Penal diremos que são crimes de perigo comum os constantes dos arts 272º a 286º do citado diploma legal e ainda os constantes de legislação penal extravagante, como por exemplo o diploma que aprova o novo regime jurídico das armas e suas munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, o qual entrou em vigor 180 dias após a sua publicação.
Na verdade, em causa está a falta de escrúpulo revelada na utilização de um meio adequado à criação ou produção de um perigo comum.
No caso concreto, no momento em que foi deduzida a acusação ainda estava em vigor o art. 275º do Código Penal que estabelecia a previsão e a punição das substâncias explosivas ou análogas e as armas, constituindo tal normativo um crime de perigo comum por as condutas descritas por este tipo legal não lesarem de forma directa e imediata qualquer bem jurídico mas implicarem a probabilidade de um dano contra um objecto indeterminado, dano esse que a verificar-se será, muitas das vezes, gravíssimo».
E finaliza nestes exactos termos: «Através da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, tal normativo legal foi revogado (art. 118º, alínea o)), que disciplina o novo regime das armas, contudo a detenção, uso e porte de armas constantes da Lei nº 5/2006, sem que o arguido seja titular de licença de uso e porte de arma consubstancia-se na prática de um crime de perigo comum, motivo pelo qual a conduta do arguido AA integra-se no último segmento da referida alínea ora em apreciação».

No Tribunal da Relação acolheu-se esta orientação, discordando-se da posição expressa pelo Mº Pº junto desse Tribunal, tendo-se discorrido do seguinte modo:
«Como circunstâncias qualificativas, é imputada ao arguido a da al. g) actual al. h) do nº2 do artº 132º CP, que apenas foi utilizada no acórdão recorrido no segmento relativo ao uso do meio que se traduza na prática de crime de perigo comum (ou seja uso da arma de fogo);
Daqui que o enfoque do MºPº no meio particularmente perigoso, esteja deslocado. Não é isso!....
Por outro lado só por si o uso da arma mesmo preenchendo a previsão da al. g) não chega para qualificar o crime, face á necessidade de preenchimento em concreto de um dos conceitos de especial perversidade ou censurabilidade.
Ora vejamos então se o uso da arma pelo arguido preenche ou não conceito de meio que se traduza na prática de crime de perigo comum.
Deixando de lado a “história” criminal das armas e do preceito em causa, os actos relativos ao uso e porte de arma (proibida ou sem o necessário registo ou licença) foram enquadrados no artº 260º (primeiro) e 275º depois, no Código Penal de 1982 integrado nos crimes de perigo comum. Face ás vicissitudes da sua regulamentação, o uso de armas de fogo proibidas manteve-se no Código Penal, e as demais armas de fogo (permitidas) sem manifesto ou sem licença passaram para a previsão do artº 6º Lei 2/97 e Lei 98/01 de 5/8, e actualmente com a revogação desta Lei e do artº 275º CP, todo o regime das armas e sua punição passou para a Lei 5/06 de 3/2 (em vigor desde 23/8/06), onde a responsabilidade criminal se encontra regulada nos artºs 86º e ss.
Exactamente a secção onde começa e se insere o artº 86º, tem como epigrafe “ “Responsabilidade criminal e crimes de perigo comum”.
Daqui cremos poder concluir que entre a regulamentação do CP relativa ás armas e a actual existe uma continuidade normativa, em que o uso de arma de fogo constituiu sempre “a prática de crime de perigo comum”, e continuando a Lei 5/06 a considerar o uso de arma de fogo como a dos autos crime de perigo comum, encontra-se preenchido o conceito da al. g) do nº2 artº 132º CP á data (actual al. h). Cfr. no sentido de a arma de fogo integrar este conceito – Ac. STJ 6/2/91 Proc. 41580, 2/12/92 Proc. 43275, 27/10/93, proc. 43099, 17/2/94, Proc.43151 todos in Simas Santos et alli, Jurisprudência Penal. págs. 351, 354, 355 e 356».

O arguido foi condenado pela autoria, em concurso real com os homicídios, de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, porque não era titular nem portador de licença de uso e porte da mesma, mas com referência à pistola de marca Reck, não registada nem manifestada - fls. 704 - e não aquela com que disparou, referindo-se a acusação àquela, como não podia deixar de ser, até porque a outra pistola só mais tarde veio a ser entregue pelo arguido.
Com a pistola efectivamente utilizada na prática dos crimes passava-se a mesma situação de indocumentação, considerando as instâncias preenchida a qualificativa por força dessa situação.
A questão a analisar é a de saber se o uso de uma arma por quem não detém licença de uso e porte de arma ou estando-se face a situação de falta de manifesto e de registo constitui a prática de crime de perigo comum.

Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, § 25, pág. 37, a propósito ensina: Crimes de perigo comum são os constantes dos arts 272 a 286, sendo certo que a ligação entre exemplos-padrão e o tipo de culpa agravado deve fazer-se através da falta de escrúpulo em princípio revelado pela utilização de um meio adequado à criação ou produção de um perigo comum.
Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2ª edição, AAFDL, 2007, pág. 34/5, a propósito do «meio que se traduz na prática de crime de perigo comum» diz: “Fundamento do indício de especial censurabilidade ou perversidade é a particular aptidão do meio para reduzir as possibilidades de defesa da vítima e para lesar uma diversidade de bens jurídicos de um conjunto indeterminado de pessoas. A alínea g) não visa, pois, resolver problemas de concurso efectivo entre o homicídio doloso e os crimes de perigo comum, mas tão só assinalar o especial desvalor da acção que vai tipicamente associado ao emprego de um meio de perigo comum para causar a morte de outrem, dando como exemplos a explosão com granada ou rajada de metralhadora”.
E mais adiante: “Meio de perigo comum é um meio tipificado no art. 272 e ss. (e em legislação penal avulsa) cuja força expansiva e incontrolável é adequada para ameaçar vários bens jurídicos de uma série de pessoas”
No nosso caso, ao tempo da prática das infracções, essa arma indocumentada não preenchia o tipo de crime do artigo 275º do Código Penal então vigente, como se pode ver da análise da evolução do tratamento legal da situação.
A detenção, uso e porte de uma arma permitida, quando não manifestada nem registada, conheceu diversos enquadramentos desde o Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17/04, discutindo-se mais tarde, na vigência do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, se por falta do manifesto e do registo se deveriam considerar como proibidas as armas em tais condições e, pois, inclusas no artigo 260º deste Código.
O Decreto-Lei n.º 207-A/75, de 17 de Abril, estabelecera punições diferentes para as armas proibidas e para as permitidas, mas não registadas, nos artigos 4º e 5º, nº 1, alínea a).
De acordo com este último preceito eram punidos com pena de prisão de 3 meses a 2 anos e multa de 5000$ a 100000$ os autores, cúmplices ou encobridores dos crimes de detenção, uso e porte de qualquer arma de fogo que, embora não proibida, não se encontrasse devidamente manifestada e registada.
Tais preceitos vieram a ser expressamente revogados pelo artigo 6º, nº 2, do citado Decreto-Lei 400/82, passando o artigo 260º do Código Penal a referir apenas armas proibidas.
A questão foi debatida e no Assento de 5 de Abril de 1989, in DR-I Série, de 12-05-1989, foi resolvido o conflito de jurisprudência, embora não de forma totalmente consensual, com a seguinte formulação: «A detenção, uso ou porte de uma pistola de calibre 6,35 mm, não manifestada nem registada, constitui o crime previsto e punível pelo artigo 260º do Código Penal».
Acontece que a distinção feita em 1975 entre os conceitos de armas permitidas e armas proibidas manteve-se, não sendo estes redifinidos pela legislação penal posterior, inclusive na abordagem feita na 3ª alteração do Código Penal pelo Decreto-Lei nº 48/95 de 15 de Março, designadamente no artigo 4º onde se dá uma definição geral de arma.
Aquando dessa revisão defendia-se que a indocumentação das armas permitidas deveria receber uma protecção contra-ordenacional e não penal, devendo ser alvo de reacções criminais apenas as armas proibidas – cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 12ª edição, pág. 790.
Com a entrada em vigor do Código Penal revisto (1995), mais propriamente do artigo 275º, veio a caducar o Assento de 5 de Abril de 1989.
E assim, em 6 de Fevereiro de 1997, o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão nº 3/97, in DR-I Série-A, de 06-03-1997 (e BMJ 464, 35), estabeleceu a seguinte jurisprudência: «A detenção, uso ou porte de uma pistola de calibre 6,35 mm não manifestada nem registada não constitui o crime previsto e punível pelo artigo 275º, nº 2, do Código Penal revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, norma que fez caducar o assento do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Abril de 1989».
A situação em apreciação passa a ser objecto de expressa criminalização em 1997.
A Lei nº 22/97, de 27 de Junho, veio alterar o regime de uso e porte de arma, definindo no artigo 1º, nº 1, o que se consideravam armas de defesa, integrando-se na enumeração legal, na alínea b), as pistolas até calibre 6,35 mm inclusive, cujo cano não exceda 8 cm, regulando-se no nº 2 as condições de concessão para fins de defesa, pelo Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública, de licença de uso e porte de arma.
Prevendo o caso de detenção ilegal de arma de defesa, dispunha o artigo 6º do referido diploma: «Quem detiver, usar ou trouxer consigo arma de defesa não manifestada ou registada, ou sem a necessária licença nos termos da presente lei, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias».
Esta lei veio a ser rectificada pela Lei nº 93-A/97, de 22 de Agosto, e alterada pela Lei nº 29/98, de 26 de Junho, em ambos os casos sem interferência, porém, com as normas aqui aplicadas.
Com a 3ª alteração à Lei nº 22/97 operada pela Lei nº 98/2001, de 25 de Agosto, foi modificado o artigo 6º, cujo nº 1 passa a dispor: «Quem detiver, usar ou trouxer consigo arma de defesa ou de fogo de caça não manifestada ou registada, ou sem a necessária licença nos termos da presente lei, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias».
Esta alteração é inócua para o nosso caso, já que apenas se inovou, submetendo ao regime, a par das armas de defesa, as armas de fogo de caça.
A Assembleia da República pela Lei nº 24/2004, de 25 de Julho, veio autorizar o Governo a legislar sobre o regime jurídico das armas e suas munições, com o sentido, além do mais, de proceder à classificação das armas, munições e outros acessórios por classes, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização, de definir e estabelecer o regime jurídico relativo à concessão, renovação, caducidade e cassação de licenças de detenção e de uso e porte das armas classificadas e de criar e tipificar um regime específico de responsabilidade criminal e finalmente de proceder à revogação de várias normas legais e diplomas, entre os quais os quatro citados.
O novo regime é implementado com a publicação da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, que aprova o novo regime jurídico das armas e suas munições, apresentando no artigo 2º uma longa lista de definições respeitantes a tipos de armas, partes das armas de fogo, munições das armas de fogo e seus componentes, funcionamento das armas de fogo e outras definições.
De acordo com a classificação das armas constante do artigo 3º, a arma em causa é da classe B1 (nº 4 do preceito citado), cabendo-lhe no novo regime a licença B1, já que transitam para esta licença as já concedidas licenças de uso e porte de arma de defesa - artigos 12º, b), 14º e 113º, nº 1, a), sendo o manifesto obrigatório - artigo 73º.
Em sede de responsabilidade criminal, sob a epígrafe “detenção de arma proibida”, o artigo 86º prevê 4 situações de acordo com as classes de armas, dispondo:
1-Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo:
a)……………………………………………………………………………………..........b)………………………………………………………………………………………….c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
d)…………………………………………………………………………………………
2- A detenção de arma não registada ou manifestada, quando obrigatório, constitui, para efeitos do número anterior, detenção de arma fora das condições legais.
Pelo artigo 118º são revogados vários diplomas reguladores da matéria, incluindo os quatro supra referidos, maxime, a Lei nº 22/97, de 27 de Junho - alínea h).
A Lei nº 5/2006 entrou em vigor em 22 de Agosto de 2006, de acordo com o disposto no artigo 120º, já que as necessidades de legislação especial previstas no artigo 119º nada têm a ver com a detenção ilegal, por indocumentação, de arma de defesa.
Daqui decorre que, datando os factos em apreciação de 3 de Agosto de 2006, e sendo então aplicável à detenção ilegal de arma de defesa o regime da Lei 22/97, já que a sobrevinda alteração legislativa, da Lei nº 98/2001, não releva para a incriminação, e estando em vigor o artigo 275º do Código Penal, é de ter como boa a solução de ter em consideração a doutrina do Acórdão n.º 3/97.
A indocumentação de arma não se integra no conceito de crime de perigo comum.
O que está em causa é apenas a situação de arma indocumentada, pois só a falta de registo e de manifesto pertinem à arma como tal; a licença para uso e porte de arma respeita não à arma, mas ao seu detentor e utente, constituindo título habilitante daquela detenção, porte e uso.
Como se pode ler no ponto 23 do preâmbulo do Decreto-Lei nº 400/82, de 23-09, o novo Código acolheu duas grandes tendências do moderno pensamento penal, sendo uma num forte sentido da descriminalização e outra uma vocação para a neo-criminalização, sendo esta quase exclusivamente restrita aos crimes de perigo comum.
No ponto 31, a justificar a inserção do capítulo III do Título II, dedicado aos crimes de perigo comum, assinala-se que «O ponto crucial destes crimes (…) reside no facto de que condutas cujo desvalor é de pequena monta se repercutem amiúde num desvalor de resultado de efeitos não poucas vezes catastróficos. Clarifique-se que o que neste capítulo está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo. A lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal esteja preenchido. O dano que se possa vir a desencadear não tem interesse dogmático imediato. Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético - social. Adiante-se que devido à natureza dos efeitos altamente danosos que estas condutas ilícitas podem desencadear, o legislador penal não pode esperar que o dano se produza para que o tipo legal de crime se preencha. Ele tem de fazer recuar a protecção para momentos anteriores, isto é, para o momento em que o perigo se manifesta».
Os crimes de perigo caracterizam-se pela não exigência típica de efectiva lesão do bem jurídico tutelado, razão pela qual a consumação se basta com o risco (efectivo ou presumido) de lesão do bem jurídico, risco que se consubstancia numa situação de perigo, a qual só por si é objecto de tutela.
Tais crimes são de perigo, porque não existe ainda qualquer lesão efectiva para a vida, a integridade física ou para bens patrimoniais de grande valor; e de perigo comum, porque é susceptível de causar um dano incontrolável sobre bens juridicamente tutelados de natureza diversa.
Os acórdãos referidos na decisão recorrida de 2-12-1992, de 27-10-1993 e de 17-02-1994, proferidos nos processos n.ºs 43275, 43099 e 43151, consideram como integrando tal crime os casos de arma não manifestada nem registada e em que o portador não tinha licença de uso e porte de arma, mas há que ver que à época era esse o entendimento baseado no assento de 1989, tendo-se a situação alterado com o Acórdão n.º 3/97.
A caracterização da detenção de arma proibida (proibida apenas por remissão punitiva) como crime de perigo comum deixou de ter assento no Código Penal em resultado da revogação do artigo 275º operada pelo artigo 118º, alínea o), da Lei nº 5/2006, passando para esta Lei - artigo 86º.
Como se referiu supra, à data dos factos estava em vigor o artigo 275º do Código Penal e a jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 3/97.
De resto, sempre se dirá que perante uma arma de defesa não registada nem manifestada, não se pode afirmar que a perigosidade advenha da qualidade do meio empregue.
Aqui não está em equação a qualidade do meio, que agrave especialmente o desvalor da acção do homicídio.
Bem diversamente, trata-se de algo que tem que ver com o controlo da posse de armas permitidas por particulares, que tem a ver com injunção provinda da Administração.
Pelo exposto, uma pistola, considerada como arma de defesa, só porque indocumentada, não constitui um crime de perigo comum.
Destarte, é de afastar a integração da arma utilizada pelo recorrente no último segmento da alínea g) do n.º 2 do artigo 132º do Código Penal.

Resta averiguar se a arma de fogo pode ser considerada meio particularmente perigoso, abordagem feita na primeira instância - fls. 727 - citando-se trecho de Figueiredo Dias, sem o expressar concretamente, e no sentido de a afastar.

A jurisprudência tem entendido que o uso de arma de fogo não representará em regra a agravante em causa, a da alínea g) na versão vigente à data dos factos, por não constituir em si mesma um meio particularmente perigoso – cfr. neste sentido, acórdãos do STJ, de 05-01-1983, BMJ 323, 181; de 17-02-1994, BMJ 434, 292; de 07-04-1994, BMJ 436, 253; de 15-12-1999, BMJ 492, 327; de 27-09-2000, CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 179 e BMJ 499, 122 (o simples facto de se usar uma arma não manifestada nem registada não indicia só por si um alto grau de risco e de culpa que legitime a qualificativa em causa; no caso em apreciação nesse acórdão, porém, estava-se perante transformação da arma, o que lhe introduz factores de álea que a tornam mais perigosa - particularmente perigosa); de 13-12-2000, CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 241 (uma pistola de calibre 6,35 mm, o usual nas pistolas de defesa, não constitui, em si mesmo, um meio particularmente perigoso; sendo perigoso, não corresponde ao nível de exigência qualificativa pressuposto na referida norma; mas adianta que a utilização de uma pistola, em certas circunstâncias, como ocorre no caso aí em apreciação, pode constituir meio insidioso. É que, por vezes, a insídia não se situa no tipo de arma que é utilizada na acção, mas no conjunto de circunstâncias que envolvem tal utilização, residindo aí sim, a especial censurabilidade ou perversidade do agente); de 28-02-2002, processo n.º 226/02-5ª; de 03-10-2002, processo n.º 2709/02-5ª; de 4-10-2003, processo n.º 2024/03-3ª; de 15-10-2003, processo n.º 2024/03-3ª; de 10-03-2005, processo n.º 224/05-5ª; de 15-12-2005, processo n.º 2978/05-5ª; de 21-06-2006, processo n.º 1559/06-3ª (com algumas reservas); de 24-05-2007, processo n.º 1602/07-5ª; de 05-09-2007 processo n.º 2430/07-3ª; de 13-03-2008, processo n.º 2589/07-5ª; de 16-09-2008, processo n.º 2491/08-3ª.
Vejamos alguns desse acórdãos.
Acórdão de 24-10-2001, processo n.º 2764/01-3ª – À falta de definição legal do que seja meio particularmente perigoso, deve entender-se por tal aquele que simultaneamente revele uma perigosidade muito superior à que normalmente anda associada aos meios comuns usados para matar e seja revelador de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente e do mesmo relator:
Acórdão de 06-03-2003, processo n.º 4406/02-3ª - O meio “particularmente” perigoso tem que ser em todas as situações um meio que ultrapasse os normal e habitualmente utilizados para matar, sob pena de alargarmos o conceito e transformarmos em tipos qualificados o que a lei apenas concebeu como tipos simples, fazendo-se do homicídio qualificado, e por essa via, a regra e não a excepção.
Acórdão de 29-09-2004, processo n.º 1247/04-3ª - Na alínea g) do n.º 2 do artigo 132º , a lei refere-se a meio particularmente perigoso. Esta há-de ser um meio (instrumento, método ou processo) que, para além de dificultar de modo exponencial a defesa da vítima, é susceptível de criar perigo para outros bens jurídicos importantes; tem que ser um meio que revele uma perigosidade muito superior ao normal, marcadamente diverso e excepcional em relação aos meios mais comuns que por terem aptidão para matar, são já de si perigosos ou muito perigosos sendo que na natureza do meio utilizado se tem de revelar já a especial censurabilidade do agente (cita acórdão supra referido de 13-12-2000 CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 241 e 20-10-2003, CJSTJ tomo3, pág. 208).
Estão assim afastados da qualificação os meios, métodos ou instrumentos mais comuns de agressão que, embora perigosos ou mesmo muito perigosos (facas, pistolas, instrumentos contundentes) não cabem na estrutura valorativa, fortemente exigente, do exemplo-padrão.
Acórdão de 07-07-2005, processo n.º 2314/05-5ª – não é o simples uso da arma que torna automaticamente mais censurável a conduta do agente.
Para que tal meio possa ter-se como particularmente perigoso para este efeito é mister que o seu uso ou o processo de sua utilização dificultem significativamente a defesa da vítima e que criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes. Não é de valorizar isoladamente, para efeitos de qualificação do homicídio, o uso de arma mesmo proibida, que, em si, pouca diferença faria do uso de outra qualquer arma de fogo (no caso imperou a qualificação por estar em uso uma caçadeira de canos serrados e face à actuação de surpresa e possibilidade de o disparo para dentro de casa atingir outras pessoas e bens, elementos que no seu conjunto conduzem a especial censurabilidade).
Acórdão de 24-05-2007, processo n.º 1602/07-5ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 206 do mesmo relator do anterior e repetindo posição no acórdão de 29-03-2007, processo n.º 647/07-5ª - o uso de arma de fogo não representa, em regra, a agravante do meio especialmente perigoso, nem bastará tal utilização para se concluir por uma censurabilidade especialmente relevante, integradora do homicídio qualificado.

E no sentido de que a arma utilizada na prática do crime não constitui só por si um meio insidioso, vejam-se os acórdãos do STJ, de 04-05-1994, BMJ 437, 154 (a arma não pode ser considerada meio insidioso porque não tem as características de dissimulação na sua influência maléfica, no sentido de meio traiçoeiro e desleal em que a vítima nada desconfia e é apanhada desprevenida); de 11-01-1995, BMJ 443, 54; de 17-05-1995, CJSTJ 1995, tomo 2, pág. 201; de 13-12-1995, CJSTJ 1995, tomo 3, pág. 255 (a pistola - semi-automática, de calibre 7,65, “Browning” - de que o arguido se serviu é um tipo de arma usualmente empregada no cometimento de homicídios; por outras palavras, a sua vulgarizada utilização não revela, por si só, especial censurabilidade ou perversidade de quem usa esse género de armas para matar alguém); de 17-10-1996, processo n.º 634/96; de 10-12-1997, BMJ 472, 142; de 18-02-1998, processo n.º 1086/97 - 3ª; de 21-01-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág.198; de 23-02-2000, BMJ 494, 123; de 21-11-2001, processo n.º 2447/01 - 3ª; de 15-05-2002, processo n.º 1214/02 - 3ª; de 10-10-2002, processo n.º 2577/02 - 5ª (com várias referências jurisprudenciais); de 16-10-2003, processo n.º 3280/03 - 5ª.
Como se refere no acórdão de 11-06-1987, BMJ 368, 312, “Quando a lei (artigo 132º, nº 2, alínea f), do Código Penal) fala em «meio insidioso» não quer necessariamente abarcar os instrumentos usuais de agressão (o pau, o ferro, a faca, a pistola, etc.), ainda que manejados de surpresa, mas sim aludir tanto às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, como aos que são particularmente perigosos e que, não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossíveis a defesa da vítima.
A título exemplificativo e enquanto extravasam o que se prevê no âmbito dos crimes de perigo comum, estão previstos na referida alínea f) a utilização de certas armadilhas, as instalações eléctricas em casas de banho adrede preparadas para matar logo que se ligue o chuveiro, a introdução de ar ou de vírus mortais no sistema venoso sob o pretexto de se injectar um medicamento, a narcotização do paciente para depois o matar, o acto de conduzir enganosamente a futura vítima a local isolado para aí ser abatida, etc.”.
A jurisprudência do STJ tem considerado abrangidos nesta alínea os casos particulares de disparos à traição ou quase à queima roupa, onde a surpresa somada à posição tomada pelo arguido tornam praticamente impossível qualquer defesa da vítima - acórdãos de 02-05-1996, processo n.º 148/96; de 21-05-97, processo n.º 188/97; de 24-02-1999, processo n.º 1365/98, conforme citação do supra aludido acórdão de 13-12-2000.

Na Doutrina entende-se não se operar a integração da qualificativa de meio particularmente perigoso.
Como diz Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, § 24, pág. 37, “Utilizar meio particularmente perigoso é (…) servir-se para matar de um instrumento, de um método ou de um processo que dificultem significativamente a defesa da vítima e que (não se traduzindo na prática de crime comum) criem ou sejam susceptíveis de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes”.
Expende ainda dever ponderar-se que “a generalidade dos meios usados para matar são perigosos e mesmo muito perigosos. Exigindo a lei que eles sejam particularmente perigosos, há que concluir duas coisas: ser desde logo necessário que o meio revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar (não cabem seguramente no exemplo-padrão e na sua estrutura valorativa revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes); em segundo lugar, ser indispensável determinar, com particular exigência e severidade, se da natureza do meio utilizado – e não de quaisquer outras circunstâncias acompanhantes - resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Sob pena, de outra forma - aqui, sim! –, de se poder subverter o inteiro método de qualificação legal e de se incorrer no erro político-criminal grosseiro de arvorar o homicídio qualificado em forma-regra do homicídio doloso”.
Maia Gonçalves, Código Penal, 13ª edição, 1999, a págs. 454, na mesma linha opina: “A utilização de meio particularmente perigoso significa que o meio utilizado deve exceder a perigosidade dos meios que normalmente são utilizados no cometimento do crime de homicídio; de outro modo, o homicídio qualificado transformar-se-ia no homicídio - regra. Não cabem aqui armas vulgares, paus, pedras, facas, etc., mas já cabe, v. g., a gasolina incendiada”.
Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2ª edição, AAFDL, 2007, pág. 36, diz: “Por meio particularmente perigoso deve entender-se aquele meio que, não estando tipificado no artº 272º e ss. ou em legislação avulsa como meio de perigo comum, todavia, pela forma como é usado, não só diminui as possibilidades de defesa da vítima, como ainda ameaça bens jurídicos pessoais de um conjunto indeterminado de pessoas. É o caso, por exemplo, da utilização de um automóvel a alta velocidade numa rua da cidade para provocar a morte a uma pessoa por atropelamento”.
Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2ª edição, 2008, a propósito desta situação expende: «A perigosidade do meio concretiza-se não apenas pelo meio em si, mas também pela forma como ele é empregue. Por vezes verifica-se a tendência para considerar que meio perigoso é aquele que se manifesta apto para produzir a morte, correndo-se o risco de considerar todos. Recorrendo ao exemplo das armas de fogo, é inegável a perigosidade que apresentam, e a possibilidade forte do seu emprego conduzir à morte, mas não se pode aceitar que este motivo seja suficiente para a considerar um meio particularmente perigoso e revelador de maior grau de censurabilidade. Faz sentido pensar em meios que apresentam uma perigosidade para além do comum comprometendo, não apenas a vida daquele que se pretende atingir, como a de outros bens quer daquela pessoa quer de outras. Um exemplo que encaixa perfeitamente neste padrão é o de um atentado à bomba, em que se armadilha a viatura de uma pessoa, para que esta, ao ligar a ignição do carro, provoque uma explosão. Neste caso, a forma de execução do facto apresenta uma perigosidade para além do normal, justificando uma maior censura ao agente. Deve atender-se aos meios empregados, bem como à forma como os mesmos são utilizados».

Conclui-se que no caso presente o uso pelo recorrente de arma de fogo nas condições referidas não constitui prática de crime de perigo comum, não representa meio especialmente perigoso, nem utilização de meio insidioso, para concluir por uma censurabilidade especialmente relevante em termos de tipicidade do crime em causa.

Afastada a integração da conduta provada do recorrente na situação exemplo da alínea g), ora actual alínea h) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, cumpre averiguar se desde logo é de ter por certo que a subsunção se terá de fazer pelo crime base, ou se estarão reunidos os pressupostos de preenchimento de uma situação valorativamente análoga que permita o enquadramento no chamado homicídio qualificado atípico, p. e p. pelo artigo 132º, nº 1, do Código Penal.

Teresa Serra, Homicídio Qualificado, a págs. 75, a propósito de homicídio qualificado atípico, refere que os critérios quanto a afirmação ou não da especial censurabilidade ou perversidade do agente na ausência de qualquer das circunstâncias exemplificadas no nº 2 deverão ser aferidos pelo Leitbild (tipo orientador) dos exemplos padrão.
“A exigência de um grau especialmente elevado de ilicitude ou de culpa, para se poder afirmar um homicídio qualificado atípico, constitui um importante critério quanto à decisão a tomar relativamente a casos cuja pena concreta se venha a situar no âmbito de justaposição das molduras penais do tipo simples e do tipo qualificado.
Com estas exigências, parece posta de parte qualquer possibilidade de multiplicação de casos de homicídio qualificado atípico”.
E depois explica, dizendo “… a própria lei encarrega-se de limitar tais hipóteses, ao adoptar, na descrição das diversas circunstâncias do nº 2 do art. 132º, cláusulas gerais e conceitos indeterminados, para cujo preenchimento podem concorrer inúmeras diversas situações de facto, sem que para isso seja necessário recorrer à aceitação de um caso de homicídio qualificado atípico”, dando como exemplos as circunstâncias previstas nas alíneas b), c) e f). “O que significa que, nestes casos, nos encontramos nos limites de uma interpretação declarativa lata, ou seja, perante circunstâncias inominadas, mas ainda incluídas nos exemplo-padrão respectivos”.
A mesma Autora, em Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (de 30-10-1995 a 02-05-1996), CEJ, 1998, Volume II, explicita a fls.157: «A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente tem de limitar-se aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente à imagem de cada um dos exemplos-padrão enunciados no nº 2.
De acordo com esta interpretação, a decisão do juiz é ainda uma decisão vinculada. Caso contrário, o juiz deixará de ter critérios seguros na sua decisão, e esta passa a ser discricionária: se não se guiar pelos exemplos-padrão previstos no nº 2, o juiz tenderá a guiar-se pelos seus próprios critérios do que seja censurabilidade ou perversidade».
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem defendido a possibilidade de configuração de crime de homicídio qualificado atípico, com formulações mais ou menos exigentes.
Assim, no acórdão de 19-06-1996, processo 203/96: na presença de especial censurabilidade ou perversidade está-se perante um crime de homicídio qualificado mesmo que se não verifique qualquer daqueles indicadores; outras circunstâncias não indicadas são susceptíveis de revelar aquela especial censurabilidade ou perversidade, podendo ver-se neste sentido, os acórdãos de 11-05-1983, BMJ 327, 458; de 26-11-1986, BMJ 361, 283; de 16-05-2002, processo 1071/02-5ª; de 15-12-2005, processo 2978/05-5ª (Os indicadores enumerados não esgotam a inventariação e relevância de outros índices de especial censurabilidade ou perversidade que a vida apresente, como resulta da expressão usada pelo legislador: «entre outras»); de 09-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, 212; de 17-01-2007, processo 3845/06-3ª; de 11-07-2007, processo 1583/07-3ª.
Numa outra abordagem, alude-se à insuficiência da vertente qualidade/quantidade dos dados disponíveis para justificar de per si, isoladamente considerados, a integração como indicador ou índice, mas já podendo revelar tal possibilidade, se apreciados em conjunto.
Neste sentido, os acórdãos de 10-10-2002, processo 3577/02; de 30-10-2003, processo 3281/03; de 15-12-2005, processo 2978/05 e de 02-03-2006, processo 472/06, todos da 5ª secção e do mesmo relator.
Numa outra posição mais restritiva, podem ver-se os acórdãos de 15-05-2002, processo 1214/02-3ª; de 20-11-2002, processo 2818/02-3ª; de 29-09-2004, processo n.º 1247/04-3ª; de 13-07-2005, CJSTJ 2005, tomo 2, 251; de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, 173; de 16-06-2005, processo 553/05; de 23-06-2005, processo 1301/05; de 07-07-2005, processo 1670/05 e de 13-07-2005, processo 1833/05, todos da 5ª secção e do mesmo relator, sendo este último publicado na CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 244; de 21-06-2006, nos processos 1913/06 e 1559/06 da 3ª secção.

Versando o caso concreto.
A decisão sobre a integração do crime qualificado, supondo a imputação de especial e qualificado tipo de culpa, exige que se proceda à definição da imagem global do facto de modo a aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio.
Tudo aconteceu por uma disputa de estabelecimento de ordens e prioridades na ceifa de centeio em campos do arguido, das vítimas e de outros vizinhos, pretendendo o FF, cuja terra seria a próxima a ser ceifada, que a máquina fosse ceifar terra de outro vizinho mais distante, opondo-se o arguido, pretendendo que, como o irmão não pretendia exercer a preferência por ser a sua a terra mais próxima, então a ceifa deveria ser na sua terra.
Na discussão que então se gerou, o arguido exibiu a pistola, que apontou ao irmão, dizendo que o estourava, caso não se fizesse a ceifa do seu terreno.
O arguido disse ao maquinista que viesse para o seu terreno, o que este fez.
Encontrando-se o arguido na coroa do deu terreno onde se encontrava já a ceifeira, o irmão e cunhada dirigiram-se na sua direcção, cada um com uma gadanha na mão, chegando a cunhada a entrar no terreno.
O que se seguiu foi um primeiro disparo contra a cunhada e de seguida três disparos contra o irmão.
O que se passou entretanto é desconhecido, pois como ficou provado esses disparos ocorreram «em circunstâncias que não foi possível esclarecer com segurança bastante no decurso da investigação», isto é, não se sabe o que aconteceu desde o momento em que o irmão e cunhada do arguido foram na sua direcção e aquele em que tiveram lugar os disparos.
O arguido disparou contra e matou seu irmão e sua cunhada, não vencendo as contra motivações éticas decorrentes da existência da relação familiar.
O arguido agiu com frieza e manifestou indiferença em relação ao irmão e cunhada, abandonando o local, deixando as vítimas prostradas onde tinham caído após serem atingidas pelos disparos e dando ordens ao maquinista para que se seguisse a ceifa no seu terreno.
Noutra perspectiva integrante da visão plena do sucesso há que ter em consideração o facto de o arguido na aldeia ter só aquela terra de centeio, cuja ceifa demoraria cerca de 15 minutos.
A ser levada por diante a combinação feita entre o irmão e vizinhos no sentido de proceder-se em primeiro lugar à ceifa de terras mais distantes, o que só era possível por o irmão do arguido ter prescindido do seu “direito de preferência”, sendo que a ceifeira parara justamente no seu terreno, isso significaria que em primeiro lugar seriam segadas as terras mais distantes, depois a do irmão e a do arguido.
O certo é que o homem da ceifeira acabou por ir para o terreno do arguido aí se desenrolando as cenas dos tiros.
Se, por um lado, o sangue frio, a indiferença manifestada pelo arguido, deixando os familiares prostrados no chão e dando ordem para seguir a ceifa podem inculcar uma ideia de maior desvalor da sua conduta, indiciando de alguma forma a existência de situação de estrutura análoga à dos exemplos padrão, substanciando especial censurabilidade ou perversidade, por outro, haverá que ter em conta o facto de o irmão e cunhada estarem armados com gadanhas e dirigirem-se contra si, bem como os antecedentes da vítima FF dados por provados, que o arguido conhecia e relacionados com comportamentos anteriores, como o ter dado a morte a um cunhado e atingido com caçadeira por duas vezes dois indivíduos.
Sobremaneira valerá aqui o argumento que se retirará do facto de existir uma zona de nebulosidade, de penumbra, relativamente ao que se passou imediatamente antes dos disparos, sendo de arredar a configuração de especial censurabilidade ou perversidade.
Assim sendo, é de desqualificar os crimes de homicídio qualificado por afastamento da alínea g) do nº 2 do artigo 132º, do Código Penal e por não ser viável a integração das condutas na figura de homicídio qualificado atípico, operando-se a convolação para dois crimes de homicídio simples, p. p. pelo artigo 131º do Código Penal, nesta parte procedendo a pretensão expressa na conclusão 7ª.

Questão III - Medida da pena

O recorrente aborda a questão da medida da pena sob duas perspectivas, sendo na conclusão 7ª para o caso de vingar a tese do crime de homicídio simples e na conclusão 8ª para o caso de ser mantida a qualificação.
Face à decidida desqualificação dos crimes de homicídio, a moldura abstracta a ter em consideração é a de 8 a 16 anos de prisão.
As instâncias neste particular tiveram em conta naturalmente a penalidade cabida ao homicídio qualificado.
Passa-se a transcrever o que discorreu o acórdão recorrido, o qual por seu turno transcreve o que consta do acórdão do colectivo de Montalegre:
«Para determinar a pena o Tribunal ponderou: a moldura penal – 12 a 25 anos de prisão); “as exigências de prevenção geral fazem-se sentir no presente caso, na medida em que é necessário vincar bem que a vida humana é inviolável e que a comunidade em que se encontra inserida o arguido tem sido surpreendida, por diversas vezes, com a prática deste tipo de crime, que gera sempre conflituosidade e alvoroço e, por vezes, desencadeia outros tipo de crimes (normalmente por familiares das vítimas) como forma de retaliação ao anteriormente praticado”, considerou acentuado o grau de ilicitude e da culpa, e “ter agido com dolo directo,..., mas também atento todo o circunstancialismo que rodeou a prática deste tipo legal, o qual teve como antecedente uma outra situação de confronto entre arguido/vitimas com a exibição às vítimas de uma arma, acompanhada de palavras ofensivas das vítimas.”, “Milita contra o arguido o facto de não ter confessado a prática dos factos, tentando desculpabilizar-se dizendo que matou para se defender. O arrependimento de que falou o arguido não convenceu o tribunal na medida em que não é de olvidar o facto de os irmãos e a cunhada EE já se encontrarem desavindos há vários anos e ter sangue frio para continuar a cegar vendo os corpos dos seus familiares estendidos a poucos metros de distância.”

“A favor do arguido milita o facto de ser delinquente primário, ter bom comportamento anterior e posterior aos factos e ter colaborado com o tribunal na descoberta da verdade material na medida em que mostrou receptividade não só a participar na fase da investigação mas também colaborante ao ter prestado declarações em julgamento, ainda que o tribunal não lhe tenha dado total credibilidade conforme supra se deixou exposto.

Há ainda que ter em consideração que as vítimas também contribuíram, “de alguma forma”, para o resultado final na medida em que foram elas que foram ter com o arguido tendo, pelo menos, a vítima EE chegado a entrar no terreno do arguido, o que poderá ser interpretado como uma provocação.

Acresce que também se provou que a vítima FF, entre outros crimes de ofensas corporais, já matou um cunhado, disparou uma espingarda de caça na taberna de KK, atingindo LL e atingiu também com uma arma caçadeira MM e que puxou de pistola e arma caçadeira para NN, sendo certo que frequentemente levantava conflitos injustificáveis com os vizinhos por causa de caminhos e regos de água e a esposa EE também era uma pessoa conflituosa, destemida e determinada como o marido, sendo certo que ambas as vítimas não tinham medo a ninguém e, por outro lado, eram temidas por todos os vizinhos, o que também é bem demonstrativo do contributo que as vítimas, com a sua personalidade e conduta social, deram para o desenrolar dos factos, apesar de não ser desculpável o comportamento do arguido.
De realçar também que foi o arguido que mandou chamar as autoridades e a elas entregou-se voluntariamente.
As necessidades de prevenção especial, como supra se referiu, são diminutas, uma vez que o arguido é pessoa bem comportada, séria, respeitadora e considerada no meio social onde está inserido, até porque acreditamos que não mais voltará o arguido a praticar o tipo de crie pelo qual vem acusado.”

Daqui resulta que nenhum factor constante dos factos provados, e mencionados pelo recorrente, ou impostos pelo artº 71º CP, deixou de ser ponderado no acórdão recorrido, nem dele resulta que tenha sido efectuada uma inadequada ponderação em prejuízo do arguido.

Antes face á pena aplicada próxima do mínimo legal (16 anos) seria de questionar se não teriam sido excessivamente valorados os factos favoráveis ao arguido, para cujo cúmulo jurídico um dos crimes apenas “ contribuiu” com 3 anos de prisão.

Do exposto decorre que não há razões para alterar / reduzir a pena aplicada ao arguido pela comissão dos apontados crimes contra a vida humana».


As instâncias pronunciaram-se sobre os aspectos que há que ter em atenção nos termos do artigo 71º do Código Penal.
De salientar que o arguido se apresentou às autoridades, mas que fez entrega de uma outra arma diversa da que utilizara contra os familiares.
De atender ao modo de execução e à superioridade em razão da arma de fogo.
A primariedade do arguido, que à data dos factos contava 66 anos de idade
Conjugando todos os elementos já abordados pelas instâncias e os ora referidos, entende-se por adequado e proporcional fixar a pena por cada um dos crimes de homicídio em 13 anos de prisão.

Nos termos do artigo 77º do Código Penal há que efectuar o cúmulo jurídico destas penas parcelares, devendo atender-se ao conjunto dos factos e à personalidade do arguido nos termos do nº 2 daquele preceito.
A moldura penal do concurso é de 13 a 25 anos de prisão.
Considerando as circunstâncias em que se desenvolveram as duas condutas criminosas, tendo lugar em acto seguido, e a conexão entre uma e outra, emergindo ambas de um mesmo estado de espírito e a personalidade do arguido, manifestada na acção violenta que levou a cabo, sendo que até então, contando 66 anos de idade, não tivera qualquer intersecção com o sistema de justiça, fixa-se a pena conjunta em 16 anos de prisão.

Questão IV - Pedido Cível

Nas conclusões 6ª e 9ª vem o recorrente alegar que foram esquecidas as patologias de que seria portador a vítima FF, descritas no relatório de autópsia, as quais importariam agora em sede de determinação da dimensão do montante indemnizatório.
Como já se referiu a propósito da 1ª questão abordada é de acatar a matéria de facto assente, aliás como decidido pela Relação, pois que o arguido não impugnou na altura própria a matéria de facto nos termos impostos pelo artigo 412º, nº 3, do CPP, sendo afastados os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de contradição insanável da fundamentação.
Nesta sede decidiu o acórdão recorrido que o relatório de autópsia “não é por si só suficiente para impor outra solução, sendo certo que como resulta da fundamentação do acórdão o médico que fez a autópsia foi ouvido em audiência”. Em causa estava o segmento dos factos provados em que se refere que as vítimas eram “pessoas robustas e saudáveis, não se lhes conhecendo doenças”.
Face aos factos definitivamente assentes não pode ser acolhida esta pretensão do recorrente.
Da mesma forma não pode ser atendida a circunstância do alegado mau relacionamento do demandante com o pai, que não ficou provado.
Pelo contrário provado ficou que “Para o demandante DD a morte dos seus pais representou uma perda irreparável, sendo grande a dor, o desgosto, o sofrimento e a saudade que sofreu e sofre”.
Ademais, a referida invocação, como as demais constantes da conclusão 9ª, desde o não se atender à contribuição que as vítimas tiveram na ocorrência, passando pela questão de não se saber o tempo que teria decorrido entre o primeiro e último tiros que atingiram o FF, ou ainda a falta de referência à situação económica do demandado em confronto com a do demandante, é feita pela primeira vez neste recurso, não constando qualquer destes pontos da conclusão 127ª do anterior recurso onde se abordava o pedido de indemnização civil.
Destinando-se o presente recurso a reapreciar a decisão do Tribunal da Relação e não tendo havido qualquer decisão sobre estes aspectos por não lhe terem sido colocadas tais questões, constituindo agora questões novas, não podem as mesmas constituir objecto do presente recurso.
Improcedem assim as conclusões 6ª (agora na componente cível) e 9ª.

Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em:
a) Rejeitar, por manifesta improcedência, o recurso na parte em que invoca nulidade por omissão de pronúncia e errada valoração das provas;
b) Julgar parcialmente procedente o recurso na parte respeitante ao enquadramento jurídico criminal, e em consequência:
- Absolver o recorrente dos dois crimes de homicídio qualificado, operando a respectiva convolação para dois crimes de homicídio simples, p. p. pelo artigo 131º do Código Penal;
- Condenar o arguido por cada um destes crimes na pena de 13 anos de prisão e, em cúmulo jurídico, fixar a pena conjunta em 16 anos de prisão;
- Manter o demais (respeitante à pena de multa) decidido;
c) Julgar improcedente o recurso no que respeita ao pedido cível.
Custas criminais pelo recorrente, na parte em que decaiu (arguição de nulidade), nos termos dos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do CPP e artigos 74º, 87, n.ºs 1 e 3 e 89º do CCJ, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
Nos termos do artigo 420º, nº 3, do CPP, vai o recorrente condenado na soma de 4 UC.
Custas cíveis pelo recorrente.
Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94º, nº 2, do CPP.

Lisboa, 4 de Dezembro de 2008


Raul Borges (Relator)
Fernando Fróis