Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LEONOR FURTADO | ||
Descritores: | RECURSO PENAL OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA NEGLIGÊNCIA MÉDICA MATÉRIA DE FACTO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA PERÍCIA VALOR PROBATÓRIO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL PRESSUPOSTOS RESPONSABILIDADE CIVIL NEXO DE CAUSALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 05/25/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
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Sumário : | I - Estando devidamente justificada a razão da divergência que o tribunal recorrido sentiu e sustentou face ao que disse o perito não merece censura a tomada de posição assumida pela Relação quanto à fundamentação para a alteração da matéria de facto, se isso se mostra consistente com um juízo de dúvida razoável; II - A perícia é um meio de prova e a sua finalidade é a percepção de factos ou a sua valoração de modo a constituir prova a que se deve atender, sempre que a percepção ou apreciação de determinados factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, o que nos termos do disposto no art. 163.º do CPP, lhe confere um valor reforçado. Porém, o facto de a mesma ser admitida nestas circunstâncias não invalida e não serve para afastar os outros meios de prova; III - Perante a dúvida ou discordância, o tribunal tem o especial dever acrescido de fundamentação da sua decisão, conforme o n.º 2 do art. 163.º do CPP. Nesse conspecto trata-se de um limite ao valor da perícia e não de uma desvalorização da prova pericial, posto que não se trata de factos observados pelo perito; IV - A decisão sobre matéria de facto que possa parecer conflituar com o relatório pericial, não constitui uma violação do disposto no art. 163.º do CPP, desde que o julgador fundamente a sua divergência relativamente ao parecer dos peritos, tal como prevê expressamente o seu n.º 2. V - Nestes termos, cingindo-se a competência e os poderes de cognição do STJ, ao julgamento da matéria de direito, a decisão sobre matéria de facto fixada pelo acórdão recorrido da Relação não pode ser alterada, salvo havendo disposição legal que expressamente comine essa revisão por atribuir força probatória especial a um determinado meio de prova. VI - A causa de pedir também integra o nexo causal e o resultado. E, a indemnização pedida com base numa causa de pedir não pode ser atribuída por outra (mesmo que próxima). VII - Além da violação do dever objectivo de cuidado é necessário que os factos permitam a imputação objectiva de um determinado resultado a essa omissão por um nexo de causalidade conforme às leis científico-naturais, de acordo com um critério de «causalidade adequada», isto é, demonstrar a concretização de um determinado resultado lesivo do risco criado, potenciado ou não diminuído pela conduta ilícita; VIII - Tendo o Hospital sido demandado ao abrigo do disposto no art. 8.º da Lei n.º 67/2007, de 31-12, por referência ao facto de a demandada médica exercer funções de obstetra, com vínculo de relação de emprego público no referido Hospital e, nada tendo o recorrente alegado quanto a essa matéria, está a mesma excluída do objecto do recurso. | ||
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Decisão Texto Integral: | Recurso Penal Processo: 34/11.0TAAGH.L2.S1 5ª secção Criminal
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I – RELATÓRIO
1. No Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central de Cível e Criminal ... – Juiz ..., foi submetida a julgamento pelo tribunal de júri, AA, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, por negligência, p. e p. pelo art.º 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao art.º 144.º, al. d), ambos do Código Penal (CP), na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de €100,00 (cem euros), no valor global de € 20.000,00 (vinte mil euros), conforme acórdão proferido no dia 14/05/2019.
BB, ora recorrente, constituiu-se Assistente no processo e formulou pedido de indemnização civil, por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes dos factos ilícitos imputados à arguida AA e ao Hospital ..., (doravante HOSPITAL), que consistiram nos momentos de dor, angústia e ansiedade que ela e o seu marido viveram, quer durante o parto, ocorrido no dia 23/07/2010, quer nos meses seguintes e até ao decesso, no dia 25/12/2010, da criança seu filho CC, aos 5 meses de idade, em virtude das lesões por este sofridas no período em que decorreu o parto e que foram causa da sua morte.
O pedido cível foi deduzido contra a arguida AA e contra o HOSPITAL, sendo que ambos foram condenados, solidariamente, nos seguintes termos:
2. Por acórdão de 21/11/2021, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) decidiu alterar a matéria de facto, absolvendo a arguida AA da prática do crime que lhe fora imputado e negou provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pela Assistente, concedendo provimento ao recurso da arguida e dos demandados civis, nos seguintes termos: 3. Desse acórdão, a Assistente interpôs recurso de revista, para o STJ que foi restrito ao pedido cível, pois, o Tribunal da Relação não admitiu o recurso quanto à parte criminal. A Assistente reclamou desse despacho de não admissão para o Presidente do STJ que indeferiu a reclamação. “(...) a) âmbito do recurso: Duas breves notas sobre o âmbito e efeitos do recurso em epigrafe: i. definitividade da absolvição criminal: A primeira nota para realçar que, sem prejuízo do disposto no art.º 402º n.º 1 do CPP, a responsabilidade criminal da arguida nestes autos está definitivamente afastada pela absolvição decretada pelo Tribunal da Relação. A decisão absolutória na parte criminal não é recorrível. O recurso interposto pela Assistente não foi admitido. O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia avaliar o estado do feto durante o período expulsivo. E como não provado: O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG”. No ponto 35 dá-se apenas como provado que: A paralisia cerebral supra referida da qual adveio uma pneumonia de aspiração foi causa directa e necessária da morte do CC, ocorrida às 18:00 horas do dia 25 de Dezembro de 2010, no hospital de .... (…) Perante os factos provados, ainda que a arguida/demandada civil, tenha praticado com culpa, um acto contrário às boas práticas médicas, que foi a não vigilância fetal alternativa ao CTG, por meio de auscultação fetal directa, durante um determinado período do trabalho de parto, não resultou, contudo, provado que esse acto tenha sido causa de uma situação de asfixia do feto nesse período, nem mesmo que tal asfixia tenha existido nesse período. Igualmente não ficou provado que da actuação da arguida a seguir a esse período, que foi considerada a adequada, tenha resultado qualquer dano. É verdade que o feto nasceu com duas circulares cervicais muito apertadas e um apgar 2-2, sinal de asfixia grave, e que lhe foi diagnosticado depois paralisia cerebral, tendo o mesmo vindo a morrer cinco meses depois em consequência dessa paralisia cerebral e das consequências que da mesma advieram, designadamente pneumonia de aspiração. Porém, não é possível dizer em que momento do parto ocorreu essa asfixia nem concluir que a mesma se deveu a má prática médica ou por omissão de algum dos procedimentos médicos, designadamente por falta daquela monitorização. Não existe, pois, qualquer nexo de conexão entre aquela omissão ou falta da arguida quanto à auscultação fetal e as lesões que foram causadas ao feto. Neste contexto, não pode haver responsabilidade civil da arguida nem da demandada civil com base nos factos que constituíam a causa de pedir do pedido de indemnização civil, face ao disposto no artigo 483.º do C. Civil e do artigo 7.º, nº 1 da Lei n.º 67/2007 de 31/12.” – sublinhado e itálico no original. 4. É deste acórdão do TRL de 17/05/2021 que, novamente inconformada, a Assistente interpõe o presente recurso, formulando as seguintes conclusões: b) A Recorrente considera queo acórdãopadece de erro notório naapreciação daprova vício que decorre do texto da decisão recorrida. m) A prova do facto citado decorreu de prova pericial, vejam-se a este propósito as conclusões transcritas na sentença do STJ de 24/02/2021: b) O registo cardiotocográfico não contém nenhuma anomalia até às 00h 53 / c) a vigilância fetal a partir desse momento é inexistente até às 01h 30 e inadequada daí em diante, o que constitui uma violação das leges artis”. n) As transcrições das declarações do perito realizadas pelo acórdão recorrido demonstram precisamente que o período omisso de vigilância não permitia interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG. o) A posição da perícia é clara no sentido de que a impossibilidade de interpretar adequadamente os 20 minutos finais do CTG não advém da duração do período de registo posterior ao reinício da monitorização, mas sim da total ausência de informação relativa ao período de 37 minutos anteriores, em que não houve monitorização. p) O tribunal a quo não rebate a perícia neste aspeto, ponto por ponto, argumento por argumento, especificada e cientificamente, com justificações de equivalente densidade e reconhecimento. q) O primeiro argumento utilizado pelo tribunal a quo para afastar a conclusão da perícia é evocar que o perito não teve em consideração “seis minutos de suspensão daquele registo, devido ao papel encravado”, não obstante a conclusão da perícia ser no sentido de que a omissão de vigilância tem por consequência a impossibilidade de interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG, sejam estes ou não registados em papel, tenham ou não sido acompanhados através do monitor ou por som. r) O acórdão impugnado dá por provado o ponto 18 tendo em conta o depoimento do perito médico que expressamente refere aquele período de seis minutos de suspensão do registo devido ao papel encravado. s) Na lógica perversa do acórdão o mesmo perito que declara que houve um período de “seis minutos de suspensão daquele registo, devido ao papel encravado” é exatamente o mesmo que, no seu entender, não teve em consideração este mesmo facto na sua perícia. t) Nas consultas técnico-científicas o perito faz menção expressa ao período de suspensão temporária do registo, não obstante concluir que “a vigilância fetal a partir desse momento é inexistente até às 01h 30 e inadequada daí em diante, o que constitui uma violação das leges artis” u) A inadequação não decorre da existência ou não de registo, mas do facto de essa vigilância não poder ser devidamente avaliada uma vez que inexistiu vigilância no período de 37 minutos anteriores o que condiciona a interpretação adequada dos 20 minutos finais de CTG v) O tribunal a quo equipara de forma grosseira e em violação do estatuído no artigo 163.º do CPP, o valor da prova pericial ao valor da prova testemunhal ao afirmar que “De todo o modo, os vinte minutos finais do CTG foram interpretados pelas médicas especialistas de obstetrícia, EE e Dra. AA, de forma diferente daquela que foi interpretada pelo Sr. Perito médico Dr. FF, interpretação essa que não pode ser desvalorizada” w) O acórdão recorrido atribui igual valor à prova pericial e à prova testemunhal, sendo que conforme é corretamente afirmado pelo acórdão do STJ de 24 de fevereiro de 2021, constante nos autos, “A prova pericial não pode ser afastada ou acabar irrelevante tão-somente pelo simples confronto “com os depoimentos prestados por médicos da especialidade, ouvidos em julgamento” (que, no caso, a final, ademais da arguida, foi apenas uma médica, por sinal, colega de trabalho daquela).” x) O acórdão recorrido no juízo que faz relativamente ao facto dado como provado na primeira instância n.º 18, viola duplamente o artigo 163.º do CPP, em primeiro lugar porque procura afastar a perícia sem fundamentar em termos técnico científicos a divergência, e em segundo lugar, porque procura afastar a prova pericial através do seu confronto com a prova testemunhal, agindo como se estas tivessem idêntico valor. y) O tribunal a quo em relação ao facto dado como provado pelo tribunal de 1.ª instância n.º 35, afasta a sua vinculação a um qualquer juízo técnico científico alegando única e exclusivamente que “Sobre a causa da morte não se pronunciou a perícia” o que manifestamente não corresponde à verdade. z) As regras da experiência comum permitem concluir pela falsidade do afirmado na medida em que num caso desta natureza seria manifestamente improvável que tendo sido solicitada uma perícia esta não tivesse qualquer quesito que levasse o perito a pronunciar-se sobre a causa da morte. aa) Havendo um quesito daquela natureza e uma resposta do perito em conformidade, um acórdão que desconsiderasse a perícia naturalmente padeceria de um vício de erro notório na apreciação da prova. bb) Na situação subjudice ocorre precisamente o relatado pois apesar do acordão afirmar que a perícia não se pronuncia sobre a causa da morte a verdade é que na Consulta técnico-científica de 24 de setembro de 2021, que tem por relator o Prof. Doutor FF, ao “Quesito 10: Quais as lesões efectivamente sofridas pelo bebé CC em consequência do parto ocorrido em 23 de julho de 2010, as quais foram causa directa e necessária da sua morte ocorrida em 25 de Dezembro de 2010” é oferecida a seguinte resposta e conclusão: “Este Conselho apenas tem conhecimento das lesões neurológicas descritas no processo e que, como se escreveu anteriormente, dada a sua natureza e cronologia de evolução podem eventualmente ser atribuídas a acontecimentos ocorridos na fase final do trabalho de parto. No nosso entender encontram-se verificados os pressupostos que permitem considerar as lesões referidas como causa adequada da morte que se veio a verificar.”. cc) O texto da decisão recorrida demonstra uma clara divergência infundada em relação aos juízos contidos em pareceres do perito, já identificados no acórdão do STJ de 24 de fevereiro de 2021, bem como uma valoração idêntica da prova pericial e da prova testemunhal, o que implica necessariamente uma violação do artigo 163.º do CPP. dd) Deste modo, o acórdão recorrido padece de um vício de erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP. ee) Foi violada a seguinte norma jurídica: Artigo 163.º do CPP, a qual deveria ter sido aplicada e interpretada no sentido de atribuir valor reforçado à prova pericial, subtraindo-a à livre apreciação do julgador.”.
Termina pedindo que, em face da existência do vício previsto na al. c), do n.º 2, do art.º 410.º do CPP, se determine, de novo, a anulação do acórdão recorrido e o reenvio do processo ao Tribunal da Relação, para ser proferida nova decisão.
5. Apenas, o Recorrido Hospital contra-alegou, concluindo nos seguintes termos: “1. Do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa resultou a absolvição das demandadas civis, AA e Hospital ..., respetivamente, do pedido de indemnização civil, deduzido pela demandante, BB. 2. Fundamentando-se no erro notório da apreciação da prova, o Tribunal recorrido altera a matéria de facto presente nos pontos 18, 35, 37, 39, 40, 41, 42, 43 e 44, dos factos provados. 3. A demandante, insatisfeita com a decisão em causa, interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. 4. O objeto de recurso recai sob a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa. 5. Alegando, que a decisão em causa padece da existência de um vício de erro notório na apreciação da prova, em consequência da violação do artigo 163.º, do CPP. 6. Sendo essa violação especialmente evidente nos juízos formulados sobre os pontos 18 e 35, dos factos provados, inquinando os restantes factos. 7. Relativamente ao ponto 18, a recorrente alega uma dupla violação do artigo 163.º, do CPP, uma vez que, o tribunal impugnado afasta a perícia sem qualquer fundamento científico servindo-se do depoimento de duas testemunhas, tornando o valor da prova testemunhal idêntico ao da prova pericial. 8. Acontece que, e reforçando o já defendido pelo tribunal a quo, as duas testemunhas são médicas especialistas em obstetrícia, tendo um conhecimento qualificado e por esse motivo, o depoimento das mesmas também não pode ser desvalorizado como se de leigas se tratassem. 9. Para além disso, e dando especial evidência a este ponto, a perícia que está em causa nestes autos é uma perícia incompleta e inconclusiva. 10. Poucas respostas, com certezas, foram dadas ao Tribunal. 11. O que faz com que de pouco ou nada serviu a perícia em causa para fazer face ao desconhecimento do tribunal na área em causa. 12. Por conseguinte, não estando o tribunal plenamente esclarecido, deve servir-se da globalidade da prova produzida em sede de audiência de julgamento. Neste sentido transcreve-se os seguintes excertos: “Quando é ordenada a realização de uma perícia e o resultado da mesma é inconclusivo, tal situação não conduz necessariamente a uma dúvida insanável. Como o resultado em causa não integra um verdadeiro juízo pericial mas antes um estado dubitativo, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão sobre a matéria de facto de modo a superar, se possível, aquela dúvida.”, (Luís Filipe Pires de Sousa, “A valoração da prova pericial”, Revista Portuguesa do Dano Corporal, nº 27, DEZ. 2016) (sublinhado nosso) e ainda “ Sublinha-se, que, apesar do valor reforçado das perícias, o juiz é o perito dos peritos, tendo, inclusiva, margem para se desvincular, fundamentadamente, das conclusões periciais. (…) Ou seja, o perito não substitui o juiz, não decide os factos, apenas contribui para a decisão sobre os mesmos. (…) Na verdade, o juízo sobre a prova é necessariamente um juízo global, no sentido de a convicção se formar do escrutínio rigoroso e cuidado de cada um dos elementos probatórios individualmente considerados, mas também de todas eles no seu conjunto, directos e indirectos. A convicção formar-se-á sempre a final, ou seja, avaliada cada e todas as provas, lançando mão das regras da experiencia, da logica das coisas e do normal suceder.” (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 13.07.2020, proc. nº 818/18.8GCBRG- A.G1, em www.dgsi.pt) (sublinhado nosso). 13. Posto isto, o Tribunal não tendo uma perícia conclusiva pode, e bem, valorar a restante prova produzida, tendo sido isto que o tribunal recorrido fez, não violando o preceituado no artigo 163.º, do CPP. 14. Já quanto ao ponto 35, referente ao nexo causal entre a paralisia cerebral e a morte de CC remete-se para o que foi acima discorrido sobre a incompletude da perícia. 15. Porém, existe algumas considerações a fazer. 16. Em primeiro lugar, a veracidade do ponto 35 nunca foi posta em causa. 17. Fosse dado como provado as “as lesões supra referidas” ou “A paralisia cerebral” a nosso ver seria pouco ou nada relevante para a descoberta da verdade, uma vez que, as lesões e a paralisia cerebral estão interligadas. 18. Além disso, quer se fale nas lesões, quer se fale na paralisia cerebral, a verdade é que não se provou terem sido resultado da fase final do parto nem da conduta da arguida. 19. Tendo em conta o supra descrito, não se pode considerar que existiu uma violação do artigo 163.º, do CPP e consequente erro notório na apreciação da prova. 20. Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso e mantido o douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que absolveu das demandadas do pedido cível, fazendo, assim, JUSTIÇA! ”
6. O Exmo. Procurador Geral Adjunto neste Supremo Tribunal não emitiu parecer, concluindo que “O recurso versa apenas matéria atinente ao pedido de indemnização civil e não tem quaisquer repercussões na vertente criminal dos autos. Nesta medida, entendemos que o Ministério Público, que não representa nenhuma das partes, carece de interesse para tomar posição quanto às questões suscitadas.”.
7. Nada obsta ao conhecimento do presente recurso, pelo que, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
II. FUNDAMENTO O acórdão recorrido e relativamente à matéria em questão considerou provados os seguintes factos, neles se incluindo a alteração que a Relação efectuou aos factos 18 e 35 e os que considerou não provados, os factos 37, 39, 40, 41, 42, 43 e 44, (realçados a cinza):
«1.1. FACTOS CONSTANTES DA ACUSAÇÃO E PRONÚNCIA OU NÃO SUBSTANCIALMENTE ALTERADOS: 1. No dia 22 de Julho de 2010, pelas 08:00 horas, BB, grávida de 40 semanas de CC, por indicação da sua médica obstetra, deu entrada no hospital do ..., sito na ..., nesta cidade, a fim de proceder à indução do trabalho de parto. 2. A assistente vivia uma gravidez normal e sem registo de intercorrências. 3. Pelas 09:05 horas (22.07.10), foi iniciada a indução do trabalho de parto com prostaglandinas ("propess"). 4. Até às 16:30 horas (22.07.10), a assistente foi observada regularmente e realizou registos cardiotocográficos normais e com actividade contráctil uterina irregular. 5. Pelas 16:50 horas (22.07.10) apresentava à observação, "colo grosso com 1,5 cm" e foi-lhe administrada analgesia por via intra-muscular, que foi repetida por via intravenosa, na dose de 25mg, às 18:30 horas, 22:00 horas e 22:30 horas. 6. Às 18:30 horas (22.07.10), foi feita rutura artificial de membranas, observando-se líquido amniótico de características normais. 7. Entre as 20:30 horas e as 21:00 horas, do dia 22 de Julho de 2010, a arguida, médica especialista de ginecologia-obstetrícia que se encontrava de serviço naquele Hospital, recebeu a assistente da colega do turno anterior, verificando que a mesma se encontrava a ser monitorizada com C.T.G. (vigilância fetal cardiotocográfica). 8. A evolução posterior do trabalho de parto da assistente, até ao nascimento do seu filho, decorreu sempre sob as ordens directas e supervisão da arguida, na qualidade de médica especialista obstetra. 9. Às 22:30 horas foi retirado à assistente o "propess". 10. Pelas 22:40 horas (22.07.10), a assistente apresentou "colo grosso com 3-4 cm de dilação". 11. Foi iniciada perfusão intravenosa com ocitocina às 23:00 horas. 12. A dilatação evoluiu para 5 cm, às 00:00 do dia 23 de Julho de 2010, para 7 cm às 00:20 horas (23.07.10), para 8 cm às 00:40 horas (23.07.10) e, para dilatação completa às 00:55 horas (23.07.10). 13. Durante o trabalho de parto da assistente, os registos da vigilância fetal cardiotacográfica (CTG) foram os seguintes: 13.1. Das 10:00 horas até às 10:45 horas do dia 22.07.10: registo normal; 13.2. Das 11:40 horas até às 12:30 horas do dia 22.07.10: registo normal; 13.3. Das 14:55 horas do dia 22 de julho de 2010 até às 00:55 horas do dia 23 de Julho de 2010: registo normal. 14. O período expulsivo decorreu das 00:55 horas até às 01:50 horas, do dia 23 de Julho de 2010. 15. Entre as 00:55 horas e as 01:30 horas, o CTG foi suspenso durante período que incluiu a deslocação da parturiente para a sala de partos (sala expulsiva) e a preparação da mesma parturiente. 16. Entre as 00:55 horas e as 1:30 horas a arguida não exerceu vigilância fetal alternativa ao CTG por meio de auscultação fetal directa. 17. No período das 1:30 horas às 1:50 horas (23.07.10), o CTG acusava um episódio de desaceleração, seguido de um curto período de aparente recuperação, de 6-7 minutos. 18. O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia avaliar o estado do feto durante o período expulsivo. 19. Entre a 1:30 horas e a 1:50 horas, o registo de CTG voltou a estar suspenso durante 6 minutos, devido a papel encravado, momento em que o CGT emitiu um aviso automático de "verificar papel". 20. Para extrair o recém-nascido, a arguida fez uso de uma ventosa, quando a cabeça se tornou visível. 21. A arguida fez três tentativas para retirar o feto, tendo-se a ventosa soltado em todas elas. 22. Perante isto, a arguida exclamou "Ah, tu não queres... então fico aqui à tua espera..." , interrompendo o trabalho de parto e sentando-se num banco em frente à assistente. 23. Seguidamente, a arguida disse para a assistente "Ah... tu não queres... então, vai aqui a minha colega que é mais bruta". 24. Após, a enfermeira parteira avançou e efectuou um corte na zona do períneo (episiotomia), permitindo a saída da cabeça do bebé. 25. O nascimento ocorreu às 1:50 horas, do dia 23 de Julho de 2010, por parto vaginal não instrumentado. 26. O recém-nascido trazia duas circulares cervicais muito apertadas. 27. A pele estava cianosa e pálida, não chorava e não foi pesado devido ao seu estado. 28. Foi-lhe atribuído o índice de 2-2 na escala de Apgar, aos 1.º e 5.º minutos, correspondente a asfixia grave. 29. Após, foi chamada a médica pediatra que estava de prevenção, e o recém-nascido foi reanimado de forma superficial pela arguida e pela equipa de enfermagem, tendo-lhe feito massagem cardíaca e aspiração do nariz e boca. 30. Pelas 1:52 horas foi-lhe administrada naloxona e, pelas 1:54 horas, adrenalina intramuscular. 31. Entre 15 a 20 minutos depois chegou a médica pediatra que havia sido chamada, a qual utilizou o ambu no recém-nascido e, em face do insucesso deste, procedeu a entubação endotraqueal, administrou adrenalina às 2:15 horas e bicarbonato às 2:20 horas. 32. CC foi, depois, transferido para os cuidados de neonatologia daquele hospital (02:40 horas), onde permaneceu com ventilação mecânica até ao dia de Julho de 2010, tendo tido alta a 11/09/2010. 33. Foi-lhe diagnosticada asfixia grave com disfunção multiorgânica, EHI gra III, insuficiência renal aguda, anemia multifactorial, trombocitopenia, sepsis agente etiológico não identificado e encefalopatia neonatal de grau III, paralisia cerebral do tipo tetraplégica espástica. 34. Nos termos da ressonância magnética crânio-encefálica n° ...78, efectuada a CC, a 23 de Setembro de 2010: "Há aspetos de uma extensa e acentuada situação sequelar a lesão hipóxico-isquémica perinatal, num padrão de leucoencefalopatia multiocular quística atual. Os contornos ependimários dos ventrículos estão difusamente alargados num padrão passivo retrátil, bilateral, e os espaços sulco-cisternais à direita estão alargados e à esquerda verifica-se a presença de uma coleção subdural muito extensa e atingindo uma espessura máxima de quase 2 cm na região parieto-occipital. Apesar da extensão e volume desta coleção e dada a situação atrófica global, não resulta desvio da linha média nem colapso do ventrículo lateral esquerdo que, no entanto, fica um pouco menor que o direito. Há algumas faixas de substancia branca persistentes, nomeadamente na topografia provável das radiações oticas e eventualmente em parte da extensão das vias longas, sobretudo à esquerda. Contudo, conjuntamente com os aspetos lesionais que afetam a substancia branca, há também extensão periférica com provável envolvimento cortical generalizado, com desaparecimento da expressão da fita cortical, reduzida ao contorno pial das circunvoluções. O cerebelo é pequeno, com um vérmis particularmente reduzido de volume e com volumoso quisto reto-cerebeloso, numa situação que provavelmente não tem relação com a lesão hipóxico-isquémica supratentorial referida e o tronco cerebral não mostra lesões embora pareça ter um volume pouco reduzido. Não detetamos sinais óbvios de componentes hemorrágicos intraparenquimatosos, nomeadamente pela presença de depósitos de hemossiderina nem de fases mais recentes de evolução de degradação da hemogobina. Salienta-se que o mapa lesional atinge também os cor estriados e aparentemente também os tálamos. Conclusão: encefalopatia multiocular quística por extensa lesão hipóxico-isquémica supratentorial("hidranencefalia')" 35. A paralisia cerebral supra referida da qual adveio uma pneumonia de aspiração foi causa directa e necessária da morte do CC, ocorrida às 18:00 horas do dia 25 de Dezembro de 2010, no hospital de .... 36. Nos termos do certificado de óbito n° ...94, a causa de morte de CC deveu-se a "pneumonia de aspiração" e "paralisia cerebral".” 1.2. FACTOS CONSTANTES DA CONTESTAÇÃO 45. Na operação de mudança referida em 15. é sempre desligado o CTG, uma vez que é impossível no transporte da parturiente fazer o registo por CTG. 46. Tal operação poderá demorar em média 15 a 20 minutos, dependendo da colaboração da própria parturiente. 47. Compete ao pessoal de enfermagem a realização da vigilância fetal através do aparelho sonicaid. 48. A presença de circulares junto ao pescoço pode não provocar qualquer alteração na frequência cardio fetal, durante o trabalho de parto. 49. A aplicação de ventosa referida em 20. e 21. foi para abreviar o período expulsivo. 50. Os primeiros dez minutos após o nascimento são fundamentais na reanimação do recém-nascido. 51. A reanimação em causa não foi feita por médico especialista em neonatologia, uma vez que não existe no Hospital ... neonatologista, em presença física ou não. 52. O Hospital ... não tem equipa de urgência em presença física, mas em regime de prevenção, para a realização de cesarianas. 53. Estava estipulado que deslocação da equipa de urgência em causa para o Hospital poderia durar até 30 minutos. 54. Após o início do momento referido em 14. não havia opção para a arguida de determinar a realização de parto por cesariana, por a cabeça do feto se encontrar descaída e encaixada no canal vaginal. 55. A Arguida é uma profissional tida no meio profissional como competente, zelosa, cuidadosa, diligente e dedicada. 1.3. FACTOS CONSTANTES DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL 56. Os assistentes/demandantes são pais do menor CC. 57. A arguida/demandada exerce funções de obstetra, com vínculo de relação laboral com o Hospital .... 58. As lesões supra descritas e o seu grau de extensão causaram ao CC dor e sofrimento físico. 59. Os demandantes tinham planeado ter o seu primeiro filho. 60. O nascimento do CC resultou de uma gravidez planeada e desejada. 61. Os demandantes perceberam o circunstancialismo referido em 26. e 27. 62. E assistiram às manobras de reanimação referidas em 29. e 31. e à transferência referida em 32. 63. O que fizeram com grande apreensão, ansiedade e preocupação, temendo mesmo pela vida do seu recém-nascido filho. 64. Tendo vivenciado sofrimento e angústia. 65. Que se perpetuaram pela semana seguinte devido ao internamento. 66. A dor, angústia e ansiedade em causa, aumentaram com a constatação das lesões que se seguiram e supra elencadas. 67. O casal desde cedo percebeu que não tinha um filho saudável e que a esperança de vida do CC seria curta. 68. O que se veio a comprovar com o resultado da ressonância magnética referida em 34. 69. Os demandantes sempre cuidaram do CC com todo o amor e carinho, e sempre lhe dispensaram toda a atenção e cuidados para que pudesse ter o melhor e aliviar o sofrimento. 70. Foi um período de sofrimento, angústia e preocupação permanente.”. Factos dados como NÃO PROVADOS, pelo acórdão recorrido: “18. O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG. 37. Qualquer médico obstetra, colocado nas circunstâncias concretas do caso em apreço, tinha a obrigação de ter consciência que a falta de vigilância fetal durante 35 minutos, podia levar a que não identificasse episódio de hipoxia intra-parto e a não reagir ao mesmo. 39. A arguida actuou nos termos referidos em 15. e 16., sabendo o que estava a fazer. 40. Enquanto médica especialista, a arguida tinha conhecimento que o registo de recuperação de uma desaceleração, entre as 1:30 às 1:50 horas, não era garantia do seu bem-estar, nem excluía uma hipóxia cerebral anterior. 41. Sabia a arguida que o período de GTG normal (de 6-7 minutos, entre as 1:30 horas e as 1:50 horas), por ser demasiado curto, não podia demonstrar nem excluir a hipótese de lesões cerebrais no feto. 42. Enquanto médica, a arguida estava em condições de saber que violava os cuidados que ao caso eram exigíveis, bem como as regras da sua profissão, não actuando conforme lhe era exigido pelos conhecimentos médicos que possuía, bem como, sabia que uma tal vigilância podia diminuir substancialmente - senão mesmo anular - os perigos de uma asfixia grave - pelo menos, com a extensão assumida - e, teria evitado, pelo menos, que caso surgisse uma falta de oxigenação do feto, a mesma não viesse a ter as proporções que teve. 43. A arguida não podia deixar de configurar como bastante provável, que a sua não vigilância no período referido em 16. era apta a não identificar e reagir a episódio de hipoxia intra-parto, o qual poderia provocar lesões cerebrais no feto, como ocorreu, não se conformando com tal perigo. 44. Mais sabia que tal conduta era proibida e punida por lei.”. i. A assistente e o seu marido formularam pedido de indemnização civil, visando a efectivação da responsabilidade civil, contra a arguida AA e o Hospital ..., EPER, com vista a que, solidariamente, estes fossem condenados a reparar os danos emergentes e não patrimoniais resultantes da actuação e omissão da arguida enquanto médica obstetra, ao serviço daquele hospital, na realização do parto do seu filho CC, que nasceu com uma afixia grave, determinando que o mesmo viesse a sofrer encefalopatia multiocular quística por extensa lesão hipóxico-isquémica supratentorial, lesões que foram a causa da sua morte que se deveu a “pneumonia de aspiração” e “paralisia cerebral”; ii. Fundaram o seu pedido de indemnização civil nos mesmos pressupostos da responsabilidade penal imputada à arguida, e constante da acusação pública, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p.p. pelo disposto no art.º 144.º, al. d), agravado pelo resultado, nos termos do art.º 147.º, n.º1 e art.º 10.º, todos do Código Penal, tendo sido a arguida absolvida desse crime; iii. E pediram que fossem ressarcidos dos danos causados ao seu filho e a si próprios nos seguintes termos:
iv. Por acórdão do tribunal de júri, na 1.ª Instância, o pedido civil foi parcialmente julgado procedente e a arguida e o hospital condenados, solidariamente a ressarcir a Assistente e o seu marido; v. Pelo acórdão recorrido, a Relação absolveu a arguida e o Hospital do pedido de indemnização civil contra ambos formulados, considerando que não resultou provado que, o facto de não ter sido efectuada vigilância fetal num determinado período do trabalho de parto, esse acto tivesse sido causa da asfixia do feto, nem que tal asfixia tivesse ocorrido nesse período de ausência de vigilância; e, por outro lado, não foi possível determinar em que momento se deu tal asfixia nem que essa se deveu a uma qualquer má prática médica, designadamente por falta de vigilância fetal. vi. No acórdão de 24/02/2021, o STJ fixou o âmbito do recurso “A decisão impugnada, que reverteu condenação em absolvição, é recorrível, - em revista -, na parte relativa à indemnização civil, em razão do valor (a demandante e aqui recorrente ficou vencida em €110.000,00), em conformidade com o estabelecido nos arts. 400º n.ºs 2 e 3, 432º n.º 1 al.ª b) do CPP e 44º da LOSJ. E também em conformidade com o disposto nos arts. 629º n.º 1, 671º e 674º n.º 1 al.ª c) do CPC, porque ao recurso na parte cível aplica-se, sempre que não exista norma própria no diploma adjetivo processual penal, o regime do recurso de revista (normal) constante lei do processo civil.”. vii. E, não podendo o Supremo Tribunal de Justiça efectuar a alteração da decisão em matéria de facto, determinou “(…) a anulação do douto acórdão recorrido com a devolução dos autos ao Tribunal da Relação para, em novo acórdão, observar, integralmente, o estatuído no art. 163º do CPP.”, uma vez que julgou verificado o vício de erro notório na apreciação da prova e, consagrado no art.º 410.º, n.º 2, al. c), do CPP. Alega a recorrente que resulta do texto do acórdão recorrido que ele padece de erro notório na apreciação da prova, cognoscível pelo tribunal de revista nos termos da al. c), do n.º 2, do art.º 410.º, do CPP. Tal vício consistiria na desconsideração do valor probatório da perícia, manifestada nos juízos formulados pelo tribunal a quo em relação aos factos n.ºs 18 e 35, dados por provados pela 1.ª instância – conclusões k a o, das alegações do recurso. Vício que, no seu entendimento, importa uma decisão diferente sobre a matéria de facto, porquanto se verifica “(…) uma clara divergência infundada em relação aos juízos contidos em pareceres do perito, já identificados no acórdão do STJ de 24 de fevereiro de 2021, bem como uma valoração idêntica da prova pericial e da prova testemunhal, o que implica necessariamente uma violação do artigo 163.º do CPP” – conclusões v) w), cc) e dd), das alegações de recurso. Impõe-se, pois, verificar se do texto da decisão recorrida, em que se devia cumprir o decidido pelo Ac. do STJ de 24/02/2021 que determinou a repetição do julgamento por procedência de vício dessa mesma natureza, se extrai a apontada desvalorização da prova pericial, tendo presente o disposto no art.º 163.º do CPP, que dispõe, sob a epígrafe Valor da prova pericial, o seguinte : 1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência. –, sublinhado, nosso. Com efeito, importa verificar se a Relação cumpriu o decidido pelo STJ, no seu acórdão de 24/02/2021, sendo certo que, aquela instância pelo acórdão de 17/05/2021, decidiu absolver a arguida enquanto demandada civil e o Hospital ... do pedido de indemnização contra ambas formulado, nos seguintes termos: “(…) altera-se a matéria de facto provada dando como não provados os factos constantes dos pontos 37, 39, 40, 41, 42, 43 e 44 e altera-se os pontos 18 e 35 dando apenas como provado no ponto 18 que: O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia avaliar o estado do feto durante o período expulsivo. E como não provado: O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG”. No ponto 35 dá-se apenas como provado que: A paralisia cerebral supra referida da qual adveio uma pneumonia de aspiração foi causa directa e necessária da morte do CC, ocorrida às 18:00 horas do dia 25 de Dezembro de 2010, no hospital de ....”.
O que releva para a decisão do caso é conhecer quais foram os limites de apreciação em que se moveu o tribunal da Relação relativamente aos juízos da perícia efectuada. A Relação alterou a resposta, estabelecendo que: “(…) a paralisia cerebral supra referida, da qual adveio uma pneumonia de aspiração, foi causa directa e necessária da morte do CC…”, fundamentando a sua decisão nos seguintes termos: “O que está em causa neste ponto é o nexo de causalidade entre as lesões e a morte do bebé, ocorrida às 18:00 do dia 25 de Dezembro de 2010, no hospital de ..., cinco meses após o seu nascimento. De acordo com a matéria de facto provada as lesões aqui em causa serão as “supra referidas” nos factos provados anteriores, pois só nesses se faz referência a lesões, isto é, lesões referidas no ponto 33- “asfixia grave com disfunção multiorgânica, EHI grau III, insuficiência renal aguda, anemia multifactorial, trombocitopenia, sepsis agente etiológico não identificado e encefalopatia neonatal de grau III, paralisia cerebral do tipo tetraplégica espástica” – que o tribunal deu como provadas com base no registo de fls. 168, o qual foi feito em 11 de Agosto de 2010, tendo por referência os elementos clínicos registados do bebé, e “encefalopatia multiocular quística por extensa lesão hipóxico-isquémica supraatentorial”, que é referida no ponto 34, na sequência de uma ressonância magnética crânio-encefálica, que foi feita a 23 de Setembro de 2010. Estas “lesões” foram todas elas detectadas e diagnosticadas após o parto. Sobre a causa da morte não se pronunciou a perícia que teve lugar nos autos, não estando por isso o tribunal de recurso vinculado a qualquer juízo técnico científico na reapreciação deste facto. Note-se que a alusão que o tribunal recorrido faz em sede de fundamentação quanto ao que terá sido referido pelo perito médico, como mera hipótese, respeita à eventual causa da paralisia cerebral e à possibilidade de a mesma poder ter surgido durante o parto em resultado de uma situação de hipoxia intraparto e não às lesões que são referidas neste ponto 35, como causa da morte, que o tribunal recorrido confunde com aquelas, ao concluir “em termos de normalidade” como causa da morte, lesões que o CC sofreu aquando do parto, que, em momento algum concretiza quais são, nem sequer considerou como tal provadas. Uma coisa são as lesões que vieram a ser diagnosticadas ao CC após o seu nascimento e no ponto 35 diz-se, bem ou mal, que essas lesões foram causa directa da sua morte. Outra coisa é ter acontecido algum incidente durante o parto, designadamente uma situação de hipoxia, que tenha causado directamente (ou contribuído para) a paralisia cerebral, que veio a ser diagnosticada ao CC depois de ele nascer, sendo precisamente na demonstração da inexistência dessa situação que assenta a impugnação da recorrente. Ora, o tribunal não deu como provado em que momento do parto ocorreu uma situação de hipoxia que tenha determinado a situação de asfixia grave do bebé ao nascer nem que tenha sido essa asfixia a causa da paralisia cerebral. Apenas dá como provado que o CC nasceu com Apgar 2-2, correspondente a asfixia grave, com duas circulares à volta do pescoço. Por isso, não há que apreciar aqui a bondade da impugnação da recorrente quanto à inexistência de eventuais lesões intraparto que terão sido causa da morte, posto que não são essas eventuais lesões que estão em causa neste facto provado. De todo o modo, não foi realizada autópsia, que poderia melhor esclarecer qual a causa concreta da morte, e do certificado de óbito resulta que o CC morreu devido a "pneumonia de aspiração" e "paralisia cerebral" (facto provado 36). A testemunha que certificou esse óbito, Dra. GG, médica pediatra, quando questionada sobre a causa da morte disse: “ele morreu em primeira linha porque tinha uma paralisia cerebral da qual adveio as complicações que provocaram a morte imediata, que foi a pneumonia de aspiração”. Quanto à paralisia cerebral referiu que esta significa que “tinha lesões cerebrais fixas que não evoluíram com o tempo, irreversíveis. Ele fez uma ressonância que dava lesões extensas e compatíveis com uma vida muito limitada, que significa que a evolução dá-se com um desenlace fatal nos primeiros meses de vida, uma grande parte do cérebro morreu”. Sobre o que pode ter sido causa da paralisia e se a mesma pode ter ocorrido durante o parto, a testemunha respondeu: “não fui eu que estive neste parto, foi uma colega minha, mas este bebé passou muito tempo connosco, desde o momento em que nasceu, até ao momento em que faleceu. Todos sabemos que ele tinha sofrido uma asfixia periparto. Era um bebé com uma asfixia perinatal e provavelmente foi daí que vieram as lesões cerebrais. Não lhe posso dizer pois isto é impossível, se foi pré, durante ou pós parto, foi “periparto”, não sabemos quando” e concretizou que “perinatal” significa no tempo à volta do parto. Mais adiante referiu, a propósito do “apgar 2-2” com que o bebé nasceu: “se um bebé nasce nessas condições, a nossa função é reanimar e depende da resposta. Há bebés com apgar 2 ao primeiro minuto que recuperamos e outros que não recuperamos, mesmo com todas as condições, há sempre bebés não reanimáveis. Impossível determinar quando ocorreu a paralisa cerebral do bebé”. E a propósito das lesões identificadas através da ressonância magnética que foi feita ao CC referiu que a ressonância só consegue identificar as lesões dois meses depois do parto. Também o perito médico, falando em abstracto, referiu que a paralisia cerebral nem sempre é consequência do parto. A atribuição ao parto depende da verificação de uma série de circunstâncias e neste caso alguns pressupostos estão reunidos e outros não. Desde logo a gasometria do cordão que não foi feita, mas há circunstâncias compatíveis com isso e é assim o mais provável.” – sublinhado nosso.
A recorrente discute o acerto desta alteração. Porém, a discussão é irrelevante. Com efeito, a nova resposta ao facto n.º 35 não altera o essencial. E o essencial é algo que não oferece dúvidas nem discussões: a criança nasceu com uma patologia (fosse ela qual fosse, embora se saiba que era uma paralisia cerebral, decorrente de uma falta de oxigenação ou uma asfixia) que, meses mais tarde, veio a estar na origem da pneumonia de aspiração e causar-lhe a morte. Note-se que perante o quadro apresentado pela criança no momento do seu nascimento e perante a reanimação ocorrida mais de 20 minutos após o nascimento (porquanto a pediatra só compareceu após chamada, não se encontrando presente no momento do nascimento), a ressonância magnética só foi efectuada dois meses após o nascimento, desconhecendo-se a razão para um diagnóstico tão tardio.
Portanto, a discussão dos recorrentes em torno da alteração do facto n.º 35 é ociosa e inútil, improcedendo o recurso na parte respeitante. Do caso concreto resulta que, quanto ao ponto 18, da matéria de facto provada, a 1.ª instância considerou provado o seguinte: “o período omisso de vigilância referido em 15 e 16 não permitia avaliar o estado do feto durante o período expulsivo nem interpretar os 20 minutos finais de CTG”. Esse período omisso de vigilância referido nos pontos 15 e 16, respeitava ao tempo ocorrido entre as 00.55 e a 1.30 do dia 23/7, em que: - o CTG foi suspenso em virtude de a parturiente ter sido transferida de local (para a sala de partos); - a obstetra não fez auscultação fetal directa;
Quanto a este ponto 18, escreveu-se no acórdão recorrido: “No ponto 18 o tribunal deu como provado: O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia avaliar o estado do feto durante o período expulsivo nem interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG. O tribunal de 1ª instância fundamentou este facto da seguinte forma: «Quanto ao facto dado como provado no n.º 18, a convicção do tribunal fundou-se no teor do depoimento de HH (médico que interveio na realização da perícia efectuada nos autos), bem como da perícia a fls. 122-123 e 699, 781-782, tudo aliado às mais elementares regras da experiência comum, na medida em que a um período omisso de vigilância se seguiu uma desaceleração, sem que o profissional médico soubesse há quanto tempo durava, o que teria, naturalmente, de o pôr em alerta e fazer supor que algo de errado se passava». A arguida impugnou este facto tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões [(transcrição das conclusões EU) a FC)]. EU- Não pode ser dado como provado que 18- O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia avaliar o estado do feto durante o período expulsivo nem interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG. EV- Tal facto não poderia, de algum modo, ser dado como provado, exactamente pelos mesmos fundamentos invocados relativamente aos factos 15 e 16 supra, cujas concretas provas aqui se dão por integralmente reproduzidas. EW- Acresce que a redacção e conceito que está na base do teor deste facto não estão correctos. EX- Na verdade, não é possível afirmar-se que a vigilância fetal garante a avaliação do estado feto, conforme dá como provada a decisão recorrida. EY- Desde logo, a testemunha GG, a partir do minuto 00.05.04 do seu depoimento identificado com o registo áudio 20190117122048 12069768 2870242.wma, a instâncias do Ministério Público sobre a possibilidade da criança ter paralisia cerebral e ter frequência cardíaca normal, afirma: "pode ter frequência cardíaca normal (...) tem um coração que funciona, tem pulmões que funcionam", o que confirma ao minuto 00.11.17 do mesmo depoimento, ao afirmar que o CTG "não diagnostica a lesão cerebral". EZ- Razão pela qual, se depois do parto e da identificada paralisia cerebral o menor tem uma "frequência cardíaca normal" e "tem um coração que funciona", é perfeitamente normal que a vigilância fetal através de CTG e directa intermitente através de "sonicaid", no trabalho de parto, não detectasse essa paralisia cerebral que, na palavras da médica GG, pode ter sido causa da pneumonia de aspiração que causou a morte — "ele morreu em primeira linha porque tinha uma paralisia cerebral, da qual adveio as complicações que provocaram a morte imediata que foi a pneumonia de aspiração", adiantando que "o que eu tento explicar é que um bebé normal pode fazer 1 pneumonia de aspiração, mas é muitíssimo mais raro do que um bebé com as dificuldades que o CC apresentava". FA- Ora, tudo isto põe, irredutivelmente, por terra toda a tese da acusação e da decisão condenatória que fazem incidir na alegada falta de vigilância a omissão que poderá ter provocado os danos e posterior morte do menor CC. Assim, tendo o menor CC uma "frequência cardíaca normal" não existia qualquer tipo de vigilância cardíaca fetal — CTG ou "sonicaid" — que fosse possível de modo a evitar as lesões e danos ocorridos. Isto é, não existe nada que fosse exigível à Arguida e que esta não tivesse feito que pudesse ter impedido os resultados ocorridos no menor CC. FB- O mesmo é confirmado pela testemunha II, ao minuto 00.41.33 do depoimento com a referência áudio 20190207112044_12069768_2870242.wma., quando questionada se é possível o bebé ter uma paralisia cerebral e não ser identificado no CTG, responde: "É", CTG só identifica "os batimentos cardíacos", paralisia "não" é identificada no CTG. FC- Termos pelos quais, o Tribunal de júri nunca poderia dar como provado que " o período omisso de vigilância referido em 15 . e 16., não permitia avaliar o estado do feto durante o período expulsivo nem interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG.", desde logo porque não há período omisso de vigilância no caso em apreço e porque não é possível afirmar-se que a vigilância fetal garante a avaliação do estado feto, uma vez que a paralisia cerebral não é detectada através de CTG. No essencial, a recorrente assenta a sua impugnação em dois vectores - por um lado na inexistência de qualquer omissão de vigilância fetal alternativa ao CTG no período referido no ponto 16, isto é, entre as 00:55 horas e as 1:30 horas, o que, como vimos a propósito da impugnação do ponto 16 improcede e, por outro, no facto de ter sido produzida prova que deveria ter levado o tribunal a concluir que a vigilância fetal não garante a avaliação do estado feto, designadamente os depoimentos prestados pelas testemunhas GG e II, cujas passagens transcreve. Quando foi ouvido em tribunal, enquanto perito médico de obstetrícia, que realizou as diversas consultas técnico-científicas requeridas pelo tribunal ao Conselho Médico Legal, o Dr. FF afirmou: “...a auscultação fetal intermitente podia garantir, transitoriamente, o conhecimento do estado do feto”…. “trinta e sete minutos (referindo-se ao tempo que o CTG esteve desligado) é um tempo prolongado. Quando o registo se reinicia, reinicia-se uma fase de desaceleração e não se consegue interpretar devidamente porque não vemos o que é que está para trás, isto é, pode ser uma desaceleração que não tem muito significado porque pode ser uma desaceleração isolada e curta, mas pode ter significado se revelasse para trás outras desacelerações mais prolongadas. Não posso interpretar aquela desaceleração, não consigo dizer o que significa a fase final. Não posso qualificar a gravidade da desaceleração porque não tenho informação quanto ao que aconteceu para trás.”… “O registo não prova nada porque é demasiado curto e porque teria de ser visto à luz do que se passou para trás, não se sabe o que se passou nos trinta e sete minutos para trás.”…. “No registo não vejo o início da desaceleração, só vejo que ela está a acontecer, está instalada e que depois acaba e regressa uma fase normal que é curta demais”… “ o registo que foi feito ao ser ligado o CTG é de 14 minutos e não 20 porque o papel encravou, havendo esse intervalo de 6 minutos que não foi lido.” “.. a ausência de vigilância naquele período (referindo-se ao período entre as 00.53 e a 01.30) não prova, não é causa directa de hipoxia. Diminui a possibilidade de verificação de um acidente que possa provocar hipoxia. Se não houve vigilância nesse período, com os elementos que tínhamos e que temos não podemos excluir essa hipótese… há esse buraco que desconhecemos, temos que admitir que pode ter acontecido alguma coisa não identificada.» Isso mesmo resulta do relatório pericial de fls. 699 em que se escreve «é especulativo comentar o que o registo poderia ter mostrado, mas a manutenção da vigilância fetal, por CTG ou, em alternativa, por auscultação directa, é essencial para detectar eventuais alterações do estado de oxigenação do feto ao longo do trabalho de parto» e de fls. 781, em que à pergunta sobre se «O final de recuperação que se encontra registado na parte final do CTG por si só pode ser considerado revelador de bem estar fetal?» se diz: «Em si mesmo não: é demasiado curto e não é possível apreciar o “bem-estar fetal”, designadamente a duração e/ou número de episódios desacelarativos, que possam ter ocorrido entre as 00h53 e as 01h30 e, ainda durante o período omisso dos vinte minutos finais.» A posição assumida pelo Sr. Perito médico teve apenas em conta o que consta do registo do CTG, não tendo o mesmo sido confrontado com a possibilidade de, nos seis minutos de suspensão daquele registo, devido ao papel encravado, a vigilância fetal, através do que se via no monitor do CTG e do que dele se ouvia, ter continuado a ser feita, pois é um facto que o aparelho não foi desligado naqueles minutos de suspensão. Refira-se o que a esse propósito referiu a Dra. EE “o CTG está ligado até ao período expulsivo, isto é, até ao momento em que a cabeça surge fora da vagina. O CTG já não interessa quando a cabeça está cá fora. Até esse momento a informação dada pelo CTG é importante” e o que disse a Dra. AA a propósito da suspensão do registo do CTG em virtude de o papel ter encravado: “Isso eu não tenho a mínima dúvida que o papel ande ou não ande ele está sempre a ser visto no monitor”. O tribunal recorrido, considerando o valor técnico científico da prova pericial, sustentou-se na mesma para dar este facto como provado, mas concluiu, em sede de fundamentação que, de acordo com as mais elementares regras da experiência comum, o profissional médico deveria supor que algo de errado se passava o que não lhe era legítimo concluir, não só porque na apreciação dos juízos técnicos científicos não entram em consideração as regras da experiência comum, mas, também, porque não foi essa, como vimos, a conclusão a que chegou o perito médico em nenhum dos relatórios que elaborou. O mesmo apenas afirmou: “a ausência de vigilância naquele período não prova, não é causa directa de hipoxia, diminuiu a probabilidade de verificação de um acidente que possa provocar hipoxia. Se não houve vigilância nesse período, com os elementos que tínhamos e que temos, não podemos excluir essa hipótese”. De todo o modo, os vinte minutos finais do CTG foram interpretados pelas médicas especialistas de obstetrícia, EE e Dra. AA, de forma diferente daquela que foi interpretada pelo Sr. Perito médico Dr. FF, interpretação essa que não pode ser desvalorizada, tendo em conta a sua especialidade e a sua experiência de longos anos a fazerem partos. A primeira, ao ser confrontada com o registo de CTG junto aos autos, afirmou: “o feto após a retoma da leitura do CTG por volta das 1h28/1h29, tem uma frequência cardíaca fetal baixa durante cerca de dois minutos, abaixo dos 110, seguido de uma recuperação que vem para os 100/110 durante três minutos e meio e depois um CTG normal durante oito a dez minutos antes do bebé sair”. Por sua vez a segunda referiu: “até às 00h58/00h57, o registo do CTG apresenta um padrão normal, sem qualquer desaceleração. O registo a seguir está à 01h30 e vemos uma frequência cardíaca registada de 80 com um ou outro spy de 70 que recupera para os 100 e que às 1h34, 1h35 está a bater os 140 com uma variabilidade boa que recupera totalmente e à volta das 01h46 já tem uma frequência à volta dos 140. Este bebé tem reservas é um padrão reactivo. houve uma paragem, o papel não corre, encravou, mas o bebé não está sem vigilância porque está o médico e está a enfermeira e vê-se no monitor. Isso eu não tenho a mínima dúvida que o papel ande ou não ande ele está sempre a ser visto no monitor. Mesmo estando sobrepostos não há aqui nenhum registo abaixo dos 110, perfeitamente normal”. Disse ainda, de forma muito segura: “Três peritos com o mesmo registo leem registos diferentes e o mesmo perito ou o mesmo obstetra que lê o registo em trabalho de parto que tem um desfecho e que passado um ano lhe dão o mesmo registo sabendo o desfecho, lê-o completamente diferente. Isto está provado cientificamente, ou seja, a leitura do registo é tudo menos um mais um são dois”. Em momento algum do seu depoimento, foi o Sr. Perito médico confrontado com a possibilidade de nos seis minutos de suspensão do registo do CTG, devido ao papel encravado, apesar de não existir registo, os batimentos cardíacos assinalados no monitor do CTG e que dele se ouviam (pois o mesmo continuou ligado) pudessem ser normais e não indiciassem qualquer desaceleração e se, nesse caso, também consideraria os 20 minutos finais de vigilância fetal, um tempo curto para avaliar o estado fetal do bebé. Essa questão, não devidamente esclarecida, suscita, face à versão expressa por duas médicas especialistas de obstétrica quanto ao registo do CTG, uma dúvida fundada e pertinente quanto à possibilidade ou não de interpretação dos 20 minutos finais de CTG. Nessa medida, importa dar como não provado a última parte do ponto18, isto é, dar como não provado que “O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG”.”.
Adiante-se que a fundamentação para a decidida alteração da matéria de facto mostra-se consistente com um juízo de dúvida razoável e está devidamente justificada a razão da divergência que Relação sentiu e sustentou face ao que disse o perito, não merecendo censura a tomada de posição assumida pela Relação. Porém, o facto de a mesma ser admitida nestas circunstâncias não invalida e não serve para afastar os outros meios de prova.
O perito auxilia o juiz, quando numa determinada questão se exige a sua especial aptidão técnica e científica para a apreciação da prova e decisão da questão, sendo que nos termos da citada norma processual penal, o juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. Todavia, tal não significa que o juiz não possa divergir desse juízo técnico, sobretudo quando o mesmo resulta hesitante ou dubitativo e, portanto, inconclusivo, colocando em crise a convicção do tribunal. Nessa circunstância, perante a dúvida ou discordância, o tribunal tem o especial dever acrescido de fundamentação da sua decisão, conforme o n.º 2, do art.º 163.º, do CPP.
Nesse conspecto trata-se de um limite ao valor da perícia e não de uma desvalorização da prova pericial, posto que não se trata de factos observados pelo perito. Assim, instado a esclarecer os factos, refere no seu depoimento, como transcrito no acórdão recorrido que “(…)“..a auscultação fetal intermitente podia garantir, transitoriamente, o conhecimento do estado do feto””, ou a propósito da verificada desaceleração “(…) Quando o registo se reinicia, reinicia-se uma fase de desaceleração e não se consegue interpretar devidamente porque não vemos o que é que está para trás(…) Não posso interpretar aquela desaceleração, não consigo dizer o que significa a fase final. Não posso qualificar a gravidade da desaceleração porque não tenho informação quanto ao que aconteceu para trás..”, ou que “(…) a ausência de vigilância naquele período (referindo-se ao período entre as 00.53 e a 01.30) não prova, não é causa directa de hipoxia. Diminui a possibilidade de verificação de um acidente que possa provocar hipoxia. Se não houve vigilância nesse período, com os elementos que tínhamos e que temos não podemos excluir essa hipótese… há esse buraco que desconhecemos, temos que admitir que pode ter acontecido alguma coisa não identificada.””.
Tais hesitações são de molde a provocar dúvida no espírito do julgador e que, no caso, conduziu a Relação a afirmar que “(…) Em momento algum do seu depoimento, foi o Sr. Perito médico confrontado com a possibilidade de nos seis minutos de suspensão do registo do CTG, devido ao papel encravado, apesar de não existir registo, os batimentos cardíacos assinalados no monitor do CTG e que dele se ouviam (pois o mesmo continuou ligado) pudessem ser normais e não indiciassem qualquer desaceleração e se, nesse caso, também consideraria os 20 minutos finais de vigilância fetal, um tempo curto para avaliar o estado fetal do bebé. Essa questão, não devidamente esclarecida, suscita, face à versão expressa por duas médicas especialistas de obstétrica quanto ao registo do CTG, uma dúvida fundada e pertinente quanto à possibilidade ou não de interpretação dos 20 minutos finais de CTG. Nessa medida, importa dar como não provado a última parte do ponto18, isto é, dar como não provado que “O período omisso de vigilância referido em 15. e 16., não permitia interpretar adequadamente os 20 minutos finais de CTG”.”. Isso mesmo se conclui no acórdão recorrido, páginas 67 in fine e 68, observando-se com pertinência que o tribunal de 1ª instância “(…) não deu como provado em que momento do parto se deu uma situação de hipoxia que tenha determinado a situação de asfixia grave do bébé ao nascer nem que tenha sido essa asfixia a causa da paralisia cerebral.”. Certo é que a criança nasceu à 01.50h, com duas circulares cervicais muito apertadas, pele cianosa e pálida, com índice de apgar – avaliação, no recém-nascido, do esforço respiratório, dos batimentos cardíacos, da cor, do tônus e da irritabilidade dos reflexos, no 1º e no 5º minuto após o nascimento, em https://www.msdmanuals.com/pt – de 2-2, aos 1.º e 5.º minutos, correspondente a afixia grave. E que, chamada a pediatra de prevenção, esta só chegou junto da criança num tempo incerto, mas seguramente entre 15 a 20 minutos após o nascimento – factos provados sob os pontos 25 a 31, 50, da matéria provada.
No caso, disse-se que a paralisia cerebral decorreu do periparto, e até, eventualmente, da intervenção tardia do pediatra, não sendo linear em que tempo do parto se deu a asfixia que lhe deu origem, designadamente que pudesse ter decorrido no período em que se verificou a falta de registo da eventual ausência de vigilância fetal – factos provados sob os pontos 31 a 33 e 36, da matéria provada.
Tal como se reconhece no aresto recorrido, a demora na reanimação do recém-nascido por especialista de neonatologia – página 69 do acórdão recorrido –, porventura, apenas poderá significar uma má prática procedimental. Todavia, essa conclusão não permite a admissão de que existe um nexo entre a hipoxia que o feto sofreu e a eventual falha de vigilância fetal no período em que o CTG não esteve ligado.
Verifica-se que, tendo a Relação bem analisado os factos e a prova produzida, fundamentou e justificou a razão da sua decisão com recurso aos depoimentos produzidos pelas diversas testemunhas (incluindo o depoimento do perito em audiência) e demais prova efectuada. Neste sentido, em comentário ao art.º 163.º, do CPP, disse SANTOS CABRAL: “A nível da valoração da prova pericial no processo penal, ao permitir-se (apesar da presunção do n.º 1 do artigo 163.º do CPP) a divergência fundamentada, acaba por não se anular, de forma absoluta, a margem de apreciação livre do julgador. Pode-se afirmar que a pré-fixada valoração da prova pericial convive com o princípio da livre apreciação da prova, não obstante (só a nível da presunção contida no n.º 1 do artigo 163º) ser configurada como uma sua «excepção». (…) No que concerne aos factos estamos em face de uma premissa em relação a qual o julgador, dentro da sua liberdade de apreciação pode divergir do facto, ou factos, de que arranca a perícia pois que, a seu respeito, tem entendimento diferente. A presunção a que alude o n.º 1 do artigo 163º do Código de Processo Penal apenas se refere ao juízo técnico científico e não, propriamente, aos factos em que o mesmo se apoia. Assim, a necessidade de fundamentar-se a divergência só se dará quando esta incide sobre o juízo pericial.” – em Código de Processo Penal, comentado, de António Henriques Gaspar e outros, 3.ª Edição Revista, págs. 632/633.
Por isso se entende não merecer censura o juízo de prova efectuado pela Relação que, na ponderação e análise das provas produzidas valorou, julgou os factos provados segundo a sua convicção e livre apreciação, sem afastar a prova pericial apresentada nos autos, mas não acompanhando o sentido apontado pelo perito. A falta de vigilância durante 35 minutos não permitia avaliar o quê? É óbvio que não permitia avaliar contemporaneamente o estado do feto, isto é, ao longo dos referenciados 35 minutos – e não só “durante o período expulsivo”, embora parecesse que fosse previsível que o eventual mau «estado» do feto nalgum momento desses 35 minutos pudesse ter influenciado “o estado do feto durante o período expulsivo”.
Assim sendo, a redacção do ponto 18, da matéria de facto provada, embora com imperfeições, terá pretendido reproduzir o essencial do que o perito alvitrara ou dissera: i) Que, entre as 00.55h e a 1.30h, a obstetra não vigiou o estado do feto; ii) E que, entre a 1.30h e a 1.50h (ocasião do parto) – período em que voltou a ser ligado o CTG – a vigilância não dava garantias, por duas razões: porque as leituras iniciais do CTG são incertas e porque essa incerteza se agravava por não se saber o que se passara antes (entre as 00.55 e a 1.30).
Efectivamente, é seguro que a Assistente esteve ligada ao CTG nos 20 minutos antes do parto. De modo que a Relação, ao avaliar o facto n.º 18, centrou-se na seguinte questão: a leitura do CTG nesses 20 minutos era incerta?
O perito asseverou que sim. As obstetras que testemunharam, incluindo a arguida, divergiram desse entendimento – pois interpretaram os registos do CTG nesse período como se eles fossem certos; e, confiaram na fidedignidade da leitura do CTG nesses 20 minutos, sendo peremptórias em afirmar que o facto de não se ter verificado o registo desse período de tempo “(…) o bebé não está sem vigilância porque está o médico e está a enfermeira e vê-se no monitor”.
Porém, mesmo que se admita ter havido vigilância fetal com o «sonicaid» (aparelho de auscultação fetal) o que é afirmado por testemunhas, tal não permite a afirmação que não tivessem ocorrido desacelerações nos intervalos entre auscultações, pois, a utilização do referido aparelho implica isso mesmo. Na realidade consegue-se perceber que não ocorreu uma braquicardia, mas não se consegue excluir a hipótese de hipoxia fetal que decorreria das desacelerações frequentes. Ora, vista a prova produzida e como já se referiu não se pode afirmar que decorrente da eventual falta de vigilância fetal tivesse decorrido a hipoxia sofrida pelo feto. Com efeito, uma coisa é a vigilância não ter sido avaliada, outra é não ter acontecido, contrariando o afirmado nas conclusões v) a w).
E a Relação seguiu as testemunhas, fundamentando a sua decisão nos seguintes termos: “O que está em causa neste ponto é o nexo de causalidade entre as lesões e a morte do bebé, ocorrida às 18:00 do dia 25 de Dezembro de 2010, no hospital de ..., cinco meses após o seu nascimento. De acordo com a matéria de facto provada as lesões aqui em causa serão as “supra referidas” nos factos provados anteriores, pois só nesses se faz referência a lesões, isto é, lesões referidas no ponto 33- “asfixia grave com disfunção multiorgânica, EHI grau III, insuficiência renal aguda, anemia multifactorial, trombocitopenia, sepsis agente etiológico não identificado e encefalopatia neonatal de grau III, paralisia cerebral do tipo tetraplégica espástica” – que o tribunal deu como provadas com base no registo de fls. 168, o qual foi feito em 11 de Agosto de 2010, tendo por referência os elementos clínicos registados do bebé, e “encefalopatia multiocular quística por extensa lesão hipóxico-isquémica supraatentorial”, que é referida no ponto 34, na sequência de uma ressonância magnética crânio-encefálica, que foi feita a 23 de Setembro de 2010. Estas “lesões” foram todas elas detectadas e diagnosticadas após o parto. Sobre a causa da morte não se pronunciou a perícia que teve lugar nos autos, não estando por isso o tribunal de recurso vinculado a qualquer juízo técnico científico na reapreciação deste facto. Note-se que a alusão que o tribunal recorrido faz em sede de fundamentação quanto ao que terá sido referido pelo perito médico, como mera hipótese, respeita à eventual causa da paralisia cerebral e à possibilidade de a mesma poder ter surgido durante o parto em resultado de uma situação de hipoxia intraparto e não às lesões que são referidas neste ponto 35, como causa da morte, que o tribunal recorrido confunde com aquelas, ao concluir “em termos de normalidade” como causa da morte, lesões que o CC sofreu aquando do parto, que, em momento algum concretiza quais são, nem sequer considerou como tal provadas. Uma coisa são as lesões que vieram a ser diagnosticadas ao CC após o seu nascimento e no ponto 35 diz-se, bem ou mal, que essas lesões foram causa directa da sua morte. Outra coisa é ter acontecido algum incidente durante o parto, designadamente uma situação de hipoxia, que tenha causado directamente (ou contribuído para) a paralisia cerebral, que veio a ser diagnosticada ao CC depois de ele nascer, sendo precisamente na demonstração da inexistência dessa situação que assenta a impugnação da recorrente. Ora, o tribunal não deu como provado em que momento do parto ocorreu uma situação de hipoxia que tenha determinado a situação de asfixia grave do bebé ao nascer nem que tenha sido essa asfixia a causa da paralisia cerebral. Apenas dá como provado que o CC nasceu com Apgar 2-2, correspondente a asfixia grave, com duas circulares à volta do pescoço. Por isso, não há que apreciar aqui a bondade da impugnação da recorrente quanto à inexistência de eventuais lesões intraparto que terão sido causa da morte, posto que não são essas eventuais lesões que estão em causa neste facto provado. De todo o modo, não foi realizada autópsia, que poderia melhor esclarecer qual a causa concreta da morte, e do certificado de óbito resulta que o CC morreu devido a "pneumonia de aspiração" e "paralisia cerebral" (facto provado 36). A testemunha que certificou esse óbito, Dra. GG, médica pediatra, quando questionada sobre a causa da morte disse: “ele morreu em primeira linha porque tinha uma paralisia cerebral da qual adveio as complicações que provocaram a morte imediata, que foi a pneumonia de aspiração”. Quanto à paralisia cerebral referiu que esta significa que “tinha lesões cerebrais fixas que não evoluíram com o tempo, irreversíveis. Ele fez uma ressonância que dava lesões extensas e compatíveis com uma vida muito limitada, que significa que a evolução dá-se com um desenlace fatal nos primeiros meses de vida, uma grande parte do cérebro morreu”. Sobre o que pode ter sido causa da paralisia e se a mesma pode ter ocorrido durante o parto, a testemunha respondeu: “não fui eu que estive neste parto, foi uma colega minha, mas este bebé passou muito tempo connosco, desde o momento em que nasceu, até ao momento em que faleceu. Todos sabemos que ele tinha sofrido uma asfixia periparto. Era um bebé com uma asfixia perinatal e provavelmente foi daí que vieram as lesões cerebrais. Não lhe posso dizer pois isto é impossível, se foi pré, durante ou pós parto, foi “periparto”, não sabemos quando” e concretizou que “perinatal” significa no tempo à volta do parto. Mais adiante referiu, a propósito do “apgar 2-2” com que o bebé nasceu: “se um bebé nasce nessas condições, a nossa função é reanimar e depende da resposta. Há bebés com apgar 2 ao primeiro minuto que recuperamos e outros que não recuperamos, mesmo com todas as condições, há sempre bebés não reanimáveis. Impossível determinar quando ocorreu a paralisa cerebral do bebé”. E a propósito das lesões identificadas através da ressonância magnética que foi feita ao CC referiu que a ressonância só consegue identificar as lesões dois meses depois do parto. Também o perito médico, falando em abstracto, referiu que a paralisia cerebral nem sempre é consequência do parto. A atribuição ao parto depende da verificação de uma série de circunstâncias e neste caso alguns pressupostos estão reunidos e outros não. Desde logo a gasometria do cordão que não foi feita, mas há circunstâncias compatíveis com isso e é assim o mais provável.”. Dir-se-ia que a ofensa das «leges artis» só terá relevância causal se for certo que a falta de oxigenação do feto se deu antes do parto – caso em que seria detectada mediante uma vigilância oportuna e eficaz; pois essa detecção precoce permitiria uma acção imediata que eliminasse ou minorasse os efeitos da asfixia.
É provável que a asfixia do feto antecedesse o parto; mas isso não é certo, pois, nenhum facto o diz ou foi provado. Tal asfixia pode ter ocorrido durante o próprio parto – e, nesse caso, a falta de vigilância prévia (ou seja, a respectiva violação das «leges artis») seria irrelevante. E mais: a paralisia cerebral da criança, induzida pela asfixia, pode ter directamente advindo de só tardiamente ela ter sido entubada (di-lo o perito) – pois, isso ocorreu 15 minutos após o parto e não dentro dos primeiros cinco minutos, como, segundo o perito, impõem as boas práticas.
Pareceria, assim, que a assinalada violação das «leges artis», eventualmente consistente com a omissão de vigilância, como referido pelo perito (mas sem afirmativa certeza, pois a ela se refere de forma genérica e indeterminada), só será fonte de responsabilidade se tiver impedido a detecção de uma falta de oxigenação (asfixia – ou hipoxia) nessa mesma ocasião. Por isso é que nos factos sob os pontos 37 e 43, se referem a uma «hipoxia intra-parto»; mas não se diz que esta ocorreu deveras, limitando-se a dizer que a falta ou erro da vigilância não permitia detectá-la (se acaso ocorresse).
Estes factos de onde partiu o perito e nos quais se baseou para concluir como concluiu caiem no campo das premissas em que o juiz tem liberdade de apreciação, podendo divergir da conclusão a que aquele chegou. E, esse exercício de livre apreciação da matéria de facto em que o perito se baseou não coloca em crise o valor do juízo pericial, pois que se aceita o valor científico da perícia, mas o juiz tem o poder de livremente apreciar os elementos de facto que informaram a perícia – vd. SANTOS CABRAL, em comentário ao art.º 163.º, do CPP, Código de Processo Penal, Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 2021, 3ª Edição Revista.
No caso, apenas se sabe que houve um período no acompanhamento da grávida, em que a médica obstetra não realizou a vigilância fetal durante o período expulsivo – facto provado sob o ponto 16, da matéria de facto – tendo a Relação fundamentado a sua decisão nos seguintes termos: “(…) o que aqui está em causa é saber se, nas circunstâncias concretas do caso em análise, a arguida devia ter tido a consciência de que a falta de vigilância fetal durante 35 minutos podia levar a que não identificasse episódio de hipoxia intra-parto e não reagisse ao mesmo. Ora, desde logo, não resultou provado que durante esses 35 minutos ocorreu um incidente de hipoxia, sendo a perícia e o perito médico inconclusivos quanto a tal facto, por desconhecerem o que se passou nesse período devido à falta de qualquer registo dos batimentos do feto nesse período e de, logo após o seu termo, o registo do CTG revelar uma desaceleração que está a acontecer, mas não se saber em que momento se iniciou, situando sempre as suas respostas no campo das probabilidades em função do registo posterior do CTG. Sobre a interpretação do registo do CTG a seguir a essa desaceleração houve, como já referimos, várias interpretações divergentes, entre o perito médico e as médicas especialistas, em especial quanto aos seus vinte minutos finais, que se traduziram em conclusões discordantes quanto ao estado fetal do bebé nesse período, discordância que, estando em ambos os casos fundada nos seus conhecimentos técnicos científicos e na sua experiência enquanto médicos obstetras, não permite tirar a conclusão que o tribunal recorrido alcança em sede de fundamentação de que “qualquer médico obstetra, colocado nas circunstâncias concretas do caso em apreço, tinha a obrigação de ter consciência que a falta de vigilância fetal durante 35 minutos, podia levar a que não identificasse episódio de hipoxia intra-parto”, nem permitiu a este tribunal considerar como provado a última parte do ponto 18, quanto à interpretação adequada dos vinte minutos finais do CTG.”.
O perito considerou que a obstetra violou as «leges artis» (por não ter efectuado a vigilância fetal, como devia), o que determinou que não fosse possível conhecer o que aconteceu antes do parto. E, tal circunstância poderia suscitar a dúvida sobre a concreta intervenção da médica obstetra, pois, essa ignorância foi causada, indevidamente, por ela, consubstanciada no facto de não se saber se, no tempo da vigilância omitida, o feto teve realmente algum problema superável por uma vigilância então em curso. Ou seja, por não se saber o que se passou antes do parto, dada a ausência de vigilância efectiva e de registo e considerando o registo de desacelerações cardíacas notadas quando se ligou, de novo, o CTG, poder-se-ia concluir que a obstetra entrou na fase terminal do nascimento sem uma consciência integral da situação e, por isso mesmo, sujeita ao maior risco (no fundo, por ela criado) de que as coisas poderiam correr mal. Poder-se-á dizer que, em princípio, a posição meramente implícita das testemunhas (sobre a fidedignidade ou certeza da leitura do CTG nos 20 minutos, que antecederam o parto) não chegará para afastar aquela afirmação explícita do perito. E, sendo assim, poder-se-ia afirmar que a obstetra se absteve de vigiar durante 35 minutos e que a sua vigilância durante os 20 minutos seguintes não dava garantias de exactidão, assim se concluindo no sentido em que o fez o perito de que se verificou violação das «leges artis».
Porém, apesar de ter dado como provado a ausência de vigilância, a Relação concluiu que “Perante tais divergências de opiniões entre médicos da mesma especialidade e as conclusões das diversas consultas técnico cientificas assentarem em suposições quanto ao que pode ter acontecido, dificilmente se pode concluir ser exigível que a arguida, também ela médica obstetra, colocada perante o registo do CTG, onde se detecta a recuperação de uma desaceleração entre as 01:30 e as 01:50, considerasse, ou tivesse conhecimento, que esse registo era curto e não permitia garantir o bem-estar fetal do bebé, nem excluía a hipótese de lesões cerebrais no feto, quando, ainda para mais, a arguida esteve fisicamente presente na sala do parto e teve não só a possibilidade de ver esse registo, mas, também, de ler o que está no monitor do CTG e de ouvir os barulhos que o mesmo emite referentes aos batimentos cardíacos do bebé, quando tal registo encravou durante 6 minutos por falta de papel. Acresce que, que tal como resultou dos depoimentos das médicas especialistas e do próprio perito médico, não basta a vigilância fetal para se detectar que o feto se encontra em situação de hipoxia intraparto, é necessário também outros factores para além de uma desaceleração cardíaca. De todo o modo, ainda que se pudesse considerar que no momento em que é religado o CTG existe uma situação que pudesse revelar uma asfixia do feto, os depoimentos de todos os especialistas (perito médico, EE e AA) convergem no sentido de que foi feito aquilo que devia ter sido feito, abreviar o parto, tendo o nascimento ocorrido vinte minutos após essa desaceleração, o que foi considerado por todos como uma solução rápida e adequada à situação em concreto.” – sublinhado nosso. E, nesse conspecto julgou não provados os factos 18 e 35.
Verifica-se, assim, que a Relação não deixou de considerar a prova pericial produzida. Mas que, tendo-a analisado e ponderado em conjunto com a restante prova, concluiu de modo diverso sobre a ponderação dos factos com base nos quais o perito se pronunciou, tal como bem resulta do acórdão recorrido: “Uma das limitações ao princípio da livre apreciação da prova, legalmente prevista, é a do valor da prova pericial, que tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos de factos, que, nos termos do artigo 163.º do CPP, se presume subtraído à livre apreciação do julgador. Por isso, quando estiver em causa esse tipo de prova, não pode o tribunal decidir de acordo com a sua convicção, com base nas máximas da experiência ou nas regras da normalidade ou da experiência comum, podendo, contudo, divergir do juízo contido no parecer dos peritos desde que fundamente a divergência, nos termos do n.º 2 do art.º 163.º, que deverá assentar em prova do mesmo valor. No caso dos autos foram solicitadas diversas consultas técnico-científicas ao Conselho Médico Legal junto do Instituto de Medicina Legal, cujos relatórios se mostram juntos aos autos e que foram tidos em consideração na convicção do tribunal recorrido, quanto a alguns dos factos provados. Na reapreciação da impugnação dos factos em causa importa por isso ter em conta o valor dessa “prova pericial” e, bem assim, o que a propósito da mesma foi já considerado pelo STJ no acórdão que determinou o reenvio. Quando o tribunal, após analisar a prova, ficar aquém da dúvida razoável, então, há que aplicar o princípio do in dubio pro reo, que decorre do princípio da presunção de inocência do arguido, com assento no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República e que dá resposta ao problema da dúvida sobre o facto e impõe que o non liquet da prova seja sempre resolvido a favor do arguido.”
Assim, a decisão sobre matéria de facto que possa parecer conflituar com o relatório pericial, não constitui uma violação do disposto no art.º 163.º do CPP, desde que o julgador fundamente a sua divergência relativamente ao parecer dos peritos, tal como prevê expressamente o seu n.º 2 . Foi o que fez o tribunal da Relação.
Nestes termos, cingindo-se a competência e os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, ao julgamento da matéria de direito, a decisão sobre matéria de facto fixada pelo acórdão recorrido da Relação não pode ser alterada, concluindo-se, assim, não resultar da decisão recorrida que o tribunal a quo tenha incorrido no invocado vício de erro notório na apreciação da prova, na medida em que aquele tribunal respeitou o especial valor probatório da prova pericial em processo penal, ao fundamentar, nos termos do art.º 163.º, n.º2 do CPP, as suas divergências com o juízo contido no parecer dos peritos. Note-se que a causa de pedir também integra o nexo causal e o resultado (imediatamente, uma certa patologia – donde depois resultará a morte). É que, como bem se sabe, a indemnização pedida com base numa causa de pedir não pode ser atribuída por outra (mesmo que próxima).
Ora, verifica-se que, nos termos da sua petição de indemnização civil, a recorrente fundamenta a razão do seu pedido do seguinte modo:
A causa de pedir assenta, assim, na imputação à médica obstetra de “acções e omissões” na intervenção que efectuou por ocasião do nascimento da criança, atribuindo-se a essa conduta a ocorrência de uma “asfixia grave” na criança que lhe provocou paralisia cerebral, causa directa da sua morte.
E o Hospital foi demandado ao abrigo do disposto no art.º 8.º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, por referência ao facto de a demandada médica exercer funções de obstetra, com vínculo de relação de emprego público, no referido Hospital – conforme articulado no ponto 4º, da p.i. da indemnização civil.
Sobre esta questão decidiu-se no acórdão recorrido que “O pedido de indemnização civil que foi formulado pelos demandantes fundamenta-se nos mesmos factos que determinaram a responsabilidade criminal da arguida, dos quais foi a mesma absolvida, e não noutros factos que, se tendo provado em julgamento (designadamente factos resultantes da contestação da arguida) a assistente/demandante apenas veio invocar no recurso que interpôs para o STJ e que consubstanciam uma alteração da causa de pedir, num momento e por uma via inadmissível. Perante os factos provados, ainda que a arguida/demandada civil, tenha praticado com culpa, um acto contrário às boas práticas médicas, que foi a não vigilância fetal alternativa ao CTG, por meio de auscultação fetal directa, durante um determinado período do trabalho de parto, não resultou, contudo, provado que esse acto tenha sido causa de uma situação de asfixia do feto nesse período, nem mesmo que tal asfixia tenha existido nesse período. Igualmente não ficou provado que da actuação da arguida a seguir a esse período, que foi considerada a adequada, tenha resultado qualquer dano.”. E, assim julgou não ser “(…) possível dizer em que momento do parto ocorreu essa asfixia nem concluir que a mesma se deveu a má prática médica ou por omissão de algum dos procedimentos médicos, designadamente por falta daquela monitorização. Não existe, pois, qualquer nexo de conexão entre aquela omissão ou falta da arguida quanto à auscultação fetal e as lesões que foram causadas ao feto.”, pelo que “(…) não pode haver responsabilidade civil da arguida nem da demandada civil com base nos factos que constituíam a causa de pedir do pedido de indemnização civil, face ao disposto no artigo 483.º do C. Civil e do artigo 7.º, nº 1 da Lei n.º 67/2007 de 31/12.” – sublinhado nosso.
Efectivamente, o único facto contrário às «leges artis» que se imputa à médica é o de não ter exercido vigilância fetal alternativa ao CTG por meio de auscultação fetal directa no período entre as 0H55 e as 1H30. Mas a omissão culposa desse dever, por si só, não basta para lhe imputar a responsabilidade pelas lesões que a criança apresentava, designadamente a paralisia cerebral. Além da violação do dever objectivo de cuidado, é necessário que os factos permitam a imputação objectiva de um determinado resultado a essa omissão por um nexo de causalidade conforme às leis científico-naturais, de acordo com um critério de «causalidade adequada», isto é, demonstrar a concretização de um determinado resultado lesivo do risco criado, potenciado ou não diminuído pela conduta ilícita. Nos termos do citado art.º 483.º, do CC, aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Mas, para isso impõe-se que se verifique um nexo de causalidade adequada, o que não se provou. Quanto a esta parte da decisão nada é dito nas alegações da recorrente, pelo que está excluída do objecto do recurso.
5. Pelo exposto, improcedem as alegações da Recorrente, negando-se provimento ao recurso.
Termos em que acordam os Juízes da 5.ª Secção, do Supremo Tribunal de Justiça, em: Lisboa, 25 de Maio de 2023 (processado e revisto pelo relator) Leonor Furtado (Relator) Agostinho Torres (Adjunto) António João Latas (Adjunto)
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