Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
381/18.0T8ABT.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: DIVORCIO SEM CONSENTIMENTO
FUNDAMENTOS
SEPARAÇÃO DE FACTO
FACTOS SUPERVENIENTES
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DA SUBSTANCIAÇÃO
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. Na acção de divórcio a atendibilidade da manutenção da situação de saída de casa e ausência de relacionamento durante o decurso da acção não constitui alteração da causa de pedir sendo permitida pelo artigo 611º do CPC.

II. Tendo o legislador estabelecido que a separação de facto por um ano consecutivo é prova bastante da ruptura definitiva do casamento, por maioria de razão o será a separação por mais de dois anos.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DE DIVÓRCIO

ENTRE

AA

(aqui patrocinado por A. ..., adv.)

Autor / Apelado / Recorrente

CONTRA

BB

(aqui patrocinada por ..., adv.)

Ré / Apelante / Recorrida



I – Relatório

O Autor intentou, a 09MAI2018, a presente acção de divórcio alegando a falta de vida em comum do casal desde que saiu, no início de ABR2018, da que era a casa de morada de família, e não pretender reatar tal vida em comum, situação que evidencia a ruptura definitiva do casamento, integrando a sua pretensão na ad. d) do artigo 1781º do CCiv.

    A Ré contestou por impugnação.

 A final foi proferida sentença que, considerando que a manutenção da falta de convívio entre os cônjuges (que à data da propositura era apenas de cerca de dois meses) ao longo do decurso da acção (sendo à data de dois anos e seis meses) evidencia a ruptura do casamento, decretou o divórcio.

 Inconformada, apelou a Ré, tendo a Relação revogado a sentença de 1ª instância por entender não ser possível a atendibilidade da situação superveniente à propositura da acção por constituir inadmissível alteração da causa de pedir e que a separação por um período de cerca de dois meses, ainda que o Autor tenha o firme propósito de não reatar ao casamento, é insuficiente para evidenciar a ruptura do casamento, na acepção da alínea d) do artigo 1781º do CCiv.

 Agora irresignado, veio o Autor interpor recurso de revista nos termos do artigo 671º, nº 1, do CPC, concluindo, em síntese, por demonstrada a ruptura definitiva do casamento, devendo repristinar-se a sentença de 1ª instância.

   Não houve contra-alegação.


II – Da admissibilidade e objecto do recurso

A situação tributária mostra-se regularizada.

  O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (artigo 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (artigo 40º do CPC).

  Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (artigos 639º do CPC).

  O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC.

 Em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, o recurso sobe nos próprios autos com efeito meramente devolutivo.

 Destarte, o recurso merece conhecimento.

 Vejamos se merece provimento.

           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

 De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

 Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

 Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver por este Tribunal é a de saber se se encontra demonstrada a ruptura definitiva do casamento.


III – Os factos

Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:

Factos provados

A) - Autor e Ré contraíram casamento civil, no dia 24 de Março de 2017, sem convenção antenupcial.

B) - Deste casamento, não existem filhos.

C) - Em data não concretamente apurada, mas situada em Março ou Abril de 2018, o Autor deixou de habitar, juntamente com a Ré, tendo saído da casa onde o casal residia, sita na ..., ..., ....

D) - Desde então, até ao momento, não mais Autor e Ré se encontraram.

E) - Não mais dormiram na mesma cama, nem tomaram as refeições juntos, nem contribuíram para os encargos da vida familiar.

F) - O Autor não pretende reatar a relação conjugal com a Ré.

G) - A Ré continua a residir na casa aludida na al. C) dos factos provados.

Factos não provados

A) - Que o Autor tivesse saído da casa onde residia, juntamente com a Ré, porque já não suportava mais as constantes discussões a que a Ré dava azo.

B) - Que qualquer motivo, por mais fútil que fosse, fosse gerador de um ambiente de tensão que perturbava a estabilidade emocional do Autor.

C) - Que o desentendimento entre Autor e Ré surgisse, assim, muito facilmente, deixando aquele num estado de quase permanente angústia e ansiedade.

D) - Que o choque de culturas e, bem assim, de credos religiosos, evidenciados em muitas discussões havidas entre eles, tivesse tornado impossível a manutenção de uma vontade de partilhar as vivências enquanto casal.

E) - Que esse choque de culturas tivesse provocado muitas discussões entre Autor e Ré e tivesse tornado impossível a manutenção de uma vontade de partilhar as vivências enquanto casal.

F) - Que o desentendimento entre Autor e Ré tivesse surgido muito facilmente, deixando aquele num estado de quase permanente angústia e ansiedade.

G) - Que o Autor tenha saído, apenas episodicamente, ou esporadicamente, da casa onde residia, juntamente com a Ré.

H) - Que o Autor tivesse dito que regressava e, então, acertavam as contas.

I) - Que a saída do Autor da casa onde residia com a Ré, tivesse sido precedida de gesto isolado de agressividade do Autor para com a Ré.

J) - Que a Ré, pese embora a situação do Autor tivesse tido contornos graves, sempre lhe tivesse dito que, caso o Autor não continuasse com agressões verbais ou outras, encerrava o assunto e perdoaria ao Autor.

K) - Que a correspondência do Autor seja, actualmente, recebida na casa onde o mesmo residia juntamente com a Ré.

L) - Que a Ré informe o Autor, por telemóvel ou SMS, do recebimento dessa correspondência.

M) - Que, inicialmente e, durante algum tempo, o Autor sempre tivesse dito que necessitava de algum tempo para pensar na situação, tendo ficado a residir inicialmente em casa de amigo em Lisboa.

N) - Que, como qualquer casal, o Autor e a Ré algumas vezes tivessem mantido pontos de vista diferentes sobre alguns aspectos da vida, mas que tal não impedia que se relacionassem normalmente, apesar de terem tido algumas discussões.

O) - Que algumas dessas discussões ou mal entendidos, ocorressem quando a mãe do Autor proferia expressões contra a Ré, demonstrando alguns ciúmes da mesma.

P) - Que a Ré tivesse conhecido o Autor pela internet, vindo após algum tempo de comunicação e contactos entre ambos, a conhecerem-se pessoalmente;

Q) - Que mantivessem, a partir daí, uma relação amorosa, com grande paixão de ambos.

R) - Que o Autor e a Ré se tivessem casado cerca de seis ou sete meses da data em que se conheceram pessoalmente.

S) - Que o Autor tivesse conhecido a família da Ré ( filhos, pais, tios, primos e demais familiares ), tendo sido bem aceite e integrado.

T) - Que o Autor se sentisse, de tal modo integrado e confortado, que pretendia ficar a residir em Angola, procurando emprego.

U) - Que a mãe do Autor, dada a distância e por não existirem muitas condições financeiras, não tivesse ido ao casamento do filho, o que nunca perdoou à Ré.

V) - Que esta situação tivesse sido causadora de mau estar entre a mãe do Autor e a Ré.

W) - Que o Autor, muitas vezes, desse razão à sua mãe, em vez de dar razão à Ré.

X) - Que, na residência do Autor e da Ré, vivessem dois filhos da Ré, adolescentes e que mantinham uma relação agradável e sincera com o Autor.

Y) - Que a filha da Ré interveio uma vez na relação da mãe com o Autor, quando este último estava um pouco tenso a falar com a Ré.

Z) - Que nunca tivesse existido um choque de culturas entre Autor e Ré.

AA) - Que a Ré tivesse sido aceite pela família do Autor.

AB) - Que nunca tivesse existido um choque entre Autor e Ré, por motivos de educação, de formação académica ou religioso.

AC) - Que a Ré professe a religião de « ... », que, desde muito nova, abraçou, indo a algumas reuniões.

AD) - Que tal nunca tivesse sido causador de discussões ou oposições entre Autora e Ré.

AE) - Que o Autor sempre tivesse manifestado respeito e consideração relativamente à religião da Ré, sempre a incentivando a não deixar de praticar e frequentar as reuniões de culto.

AF) - Que ambos pautassem a sua vida pelo respeito mútuo.

AG) - Que a Ré continue a amar o Autor, o que lhe transmitiu várias vezes, pelo telefone, durante o período de tempo ocorrido entre 16/4/2018 e Julho de 2018.

AH) - Que o Autor mantenha a Ré na dúvida sobre se pretende restabelecer a vida em comum.


IV – O direito

Com a Lei 61/2008, 31OUT, o nosso ordenamento jurídico abandonou a concepção do divórcio-sanção (por violação culposa dos deveres conjugais) adoptando uma concepção de divórcio-ruptura (baseado na ruptura definitiva do casamento).

A ‘ruptura definitiva do casamento’ que é fundamento genérico do divórcio sem consentimento do outro cônjuge – al. d) do artigo 1781º do CCiv – é um conceito indeterminado que deve ser preenchido, até por referência com os fundamentos específicos do divórcio estabelecidos nas restantes alíneas do mesmo artigo, pela prova de factos que, pela sua gravidade ou reiteração, evidenciem objectivamente (sem quaisquer considerações sobre culpa e sem cair em situações de divórcio-a-pedido) o termo da comunhão de vida que é pressuposto do casamento, bem como da definitividade desse termo, pelo firme propósito, pelo menos pela parte de um dos cônjuges, de a não restabelecer.

 Para além de estabelecer esse fundamento geral do divórcio o legislador não deixou de especificar concretas situações factuais em que entende (presume ‘jure et de juris’) serem demonstrativas da ruptura definitiva do casamento, e que são as elencadas nas als. a) a c) do referido artigo 1781º.

Uma dessas situações é a separação de facto por um ano consecutivo (al. a)).

  A 1ª instância considerou que tal fundamento não se verificava à data da propositura da acção e, por isso, não podia decretar o divórcio com esse fundamento; mas, por outro lado ficara demonstrado que essa separação de facto perdurava já há mais de dois anos e que, como tal, evidenciava objectivamente o fundamento geral da al. d) do artigo 1781º do CCiv. E assim decretou o divórcio.

  A Relação, por seu turno, considerou que não podia atender-se à subsistência da separação de facto durante a pendência da causa, porquanto tal atendibilidade resultaria em inadmissível alteração da causa de pedir.

  Não sufragamos, no entanto, tal entendimento.

Um mesmo conflito de interesses pode ser fonte de uma diversidade de pretensões judiciais, consoante os diversos modos de tutela jurídica que o mesmo potencie, cabendo ao impetrante optar por aquele que, em função dos meios de prova de que disponha ou de outras condicionantes, melhor satisfaça o interesse pretendido.

Não sendo imposto ao Autor qualquer ónus de cumular na mesma acção pretensões distintas que, porventura, possa deduzir com base na mesma factualidade, o que, de resto, melhor condiz com o princípio do dispositivo, é-lhe lícito formular n vezes a mesma pretensão, desde que a baseie em n causas de pedir. Efeito preclusivo só se verifica aqui no domínio pouco importante das questões secundárias ou instrumentais, ou seja as referentes a factos que visam completar o objecto da acção anteriormente apreciada.

A causa de pedir é, assim, constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material alegada. Nesse sentido a causa de pedir não se basta com a mera alegação de factos naturalísticos (factos ‘brutos’), mas antes esses factos devem ser alegados por referência a um quadro jurídico-normativo (factos ‘institucionais’) em função do efeito jurídico pretendido.

Não estando o tribunal vinculado às qualificações jurídicas efectuadas pelas partes, incumbindo-lhe antes proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, não basta uma mera qualificação jurídica dos factos alegados diferente da pretendida pelas partes para se concluir por causa de pedir diferente. Importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando mesmo contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa (Cf. acórdão do STJ de 18SET2018, proc. 21852/15.4T8PRT.S1).

Nas acções em que a pretensão deduzida é o divórcio não se nos afigura curial configurar cada uma das situações elencadas no artigo 1781º do CCiv como correspondendo a distintas causas de pedir; pelo contrário, a causa de pedir é a mesma: o elenco de factos demonstrativos da ruptura do casamento por referência ao quadro jurídico de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge. Determinar, dentro desse quadro jurídico, qual é o que especificamente se adapta ao caso, ou se o mesmo não cabe nesse quadro jurídico, já é matéria de qualificação.

E assim não se vê qualquer obstáculo a que, de acordo com o estatuído no artigo 611º do CPC, se considerem os factos supervenientes, ainda que constitutivos, que se produzam durante o decurso da acção, para que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão (no mesmo sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de 23FEV2021 no proc. 3069/19.0T8VNG.P1.S1).

Mas ainda que se entendesse que as diferentes alíneas do artigo 1781º do CCiv correspondessem a diferentes causas de pedir, não ocorreria no caso alteração da causa de pedir.

Com efeito, o Autor alegou circunstâncias factuais – saída de casa em função do mau relacionamento do casal, terminando a vida em comum e com intensão de a não reatar – que considerava evidenciarem, à data da propositura da acção, a ruptura definitiva do casamento em conformidade com a al. d) do artigo 1781º do CCiv. A consideração da reiteração da ausência de convivência durante o curso da acção é apenas complemento do que foi alegado como causa de pedir.

É que não há uma estanquicidade entre as alíneas a) e d) do artigo 1781º do CCiv. A separação de facto é uma circunstância objectiva da ruptura do casamento, mas só por si não evidencia a definitividade dessa ruptura. Essa definitividade pode resultar de dois modos: por ter perdurado por um ano consecutivo (al. a), ou, não tendo essa duração, pela verificação de outras circunstâncias factuais que objectivamente induzam a definitividade da recusa (al. d)).

Ou seja, não vemos qualquer impedimento a que o tribunal tenha atendido na fixação dos factos aos que se verificaram no decurso da acção, designadamente os atinentes à perduração da ausência de vida em comum, e que tenha concluído, em função disso, pela ruptura definitiva do casamento. Ademais tendo o legislador estabelecido que a separação de facto por um ano consecutivo é prova bastante da ruptura definitiva do casamento, por maioria de razão o será a separação por mais de dois anos.


V – Decisão

Termos em que se concede a revista, revogando a decisão recorrida e repristinando a sentença de 1ª instância.

Custas, aqui e nas instâncias, pela Ré (sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie).

                                                                                  

Lisboa, 15SET2022

Rijo Ferreira (Relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista