Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A090
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FARIA ANTUNES
Descritores: QUESTÃO DE FACTO
QUESTÃO DE DIREITO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ2007092500901
Data do Acordão: 09/25/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I- O nº 6 do artº 712º do CPC determina que das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
II- Todavia, isso tem de ser entendido cum grano salis, pois o Supremo pode censurar o mau uso pela Relação dos poderes que em exclusivo lhe são conferidos pelo artº 712º do CPC, podendo sindicar o desrespeito, pela Relação, dos pressupostos exigidos para a mexida na matéria de facto, referidos no artº 712º do CPC, e, de uma maneira geral, a alteração da matéria de facto que tiver sido feita com violação da lei.
III- Uma coisa é a apreciação das provas por parte da Relação, outra a questão de saber se esta fez uso legal do artº 712º, sendo a primeira questão de facto, com a qual nada tem o Supremo, e a segunda questão de direito, em relação à qual é legítima a censura por parte do tribunal de revista.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, BB e CC demandaram DD, EE e a Companhia de Seguros FF (agora FF, Companhia de Seguros, SA), pretendendo ser indemnizados dos prejuízos que alegaram ter sofrido e terem sido causados por um incêndio que teve origem num lançamento de foguetes no decurso dumas festividades na freguesia de Quintas de ...., no concelho do Sabugal, em 24 de Agosto de 1999.
Alegaram que os dois primeiros réus agiram na qualidade de representantes da respectiva comissão de festas e que a ré seguradora assumira o dever de indemnizar os danos que resultassem das actividades dessa comissão.
Os autores vieram mais tarde a desistir do pedido formulado contra os réus DD e EE, o que foi homologado por sentença, mantendo-o todavia contra a ré Seguradora, que contestou.
Houve réplica.
Saneado, condensado, instruído e julgado o processo, foi após a resposta aos quesitos apresentada pelos autores uma reclamação por escrito sobre o modo como se respondeu a certos pontos da matéria quesitada, tendo tal requerimento sido indeferido, do que os AA agravaram diferidamente.
A final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.
Apelaram os autores para a Relação de Coimbra, com esse recurso tendo subido o anterior agravo.
A Relação de Coimbra, alterando para positivas as respostas negativas aos quesitos 1º, 2º, 3º e 4º, revogou a sentença, condenando a ré seguradora a pagar:
- ao autor BB a quanta de € 26.336,35 e o que se apurar em execução de sentença quanto aos danos na carrinha automóvel, dois motores de rega e alfaias agrícolas;
- à autora AA o que se apurar em execução de sentença quanto aos danos causados na vinha e nos castanheiros;
- ao autor CC o que se apurar em execução de sentença quanto aos danos causados nos castanheiros e carvalhos e na vinha.
Tendo revogado a sentença, não conheceu a Relação do recurso de agravo, em cuja minuta os AA defenderam que a reclamação contra a decisão da matéria de facto foi tempestiva e esta devia ter sido dada por provada no sentido proposto, uma vez que, no entender dos agravantes, a prova produzida assim o impunha.
Inconformada com a decisão da apelação, recorre agora a ré seguradora de revista, concluindo:
1º- No artº 16º da contestação impugnou, entre outros artigos, por falsidade, o artº 6º da P.I., que é o único artigo que imputa o incêndio ao lançamento dos foguetes, pelo que esta imputação deve ser considerada expressamente impugnada na contestação;
2º- Tendo o acórdão considerado que a recorrente não impugnou esta imputação do incêndio ao lançamento dos foguetes, considerando, ao invés, que esta teria aceite e, consequentemente, confessado que a Comissão de Festas teria causado o incêndio, VIOLOU UMA DISPOSIÇÃO EXPRESSA DA LEI QUE EXIGE CERTA ESPÉCIE DE PROVA PARA A EXISTÊNCIA DO FACTO, OU SEJA O DISPOSTO NOS ARTS. 341º, 352º, 354º A), 355º, Nº2, 356º Nºl E 357º, DO CÓDIGO CIVIL, E 490º DO C. P. CIVIL;
3º- NÃO TENDO HAVIDO RECLAMAÇÕES POR PARTE DOS RECORRIDOS O DESPACHO SANEADOR QUANTO Á SELECÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO TRANSITOU EM JULGADO, PELO QUE HÁ OFENSA DE CASO JULGADO FORMAL, NOS TERMOS DOS ARTS. 510º E 511º DO C. P. Civil;
Por mera cautela e sem conceder,
4º- Tendo o acórdão dado como assente que a recorrente confessou que o lançamento dos explosivos originou o incêndio causador dos danos, devia, em vez de, de imediato, revogar a sentença recorrida, considerando procedente a acção interposta, ter-se pronunciado quanto à elisão de culpa por parte da Comissão de Festas que procedeu ao lançamento dos foguetes, isto é, se esta teria ou não provado nos autos que usou de todas as providências exigidas pelas circunstâncias de modo a evitar os danos, nos termos do art. 493º, nº2 do C. Civil;
5º- Não se tendo pronunciado sobre esta questão, sobre a qual se devia ter pronunciado, é o acórdão nulo, nos termos do art. 668º, al. d) do C. P. Civil;
6º- Considerando-se que o lançamento de foguetes consubstancia o exercício de uma actividade perigosa, deve considerar-se que a segurada da recorrente ilidiu a presunção de culpa que sobre ela impendia, nos termos do artº 493º do C. Civil, porquanto se deve considerar provado que a comissão de festas usou de todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos causados;
7º- O ACÓRDÃO RECORRIDO VIOLOU O DISPOSTO NOS ARTS. 341º, 352º, 354º A), 355º, Nº2 , 356º Nºl E 357º DO CÓDIGO CIVIL E 490º DO C. P. CIVIL ;
Subsidiariamente,
8º- Violou o disposto no art. 668º, al. d) do C.P.Civil, pelo que é nulo, bem como o disposto no artºs. 483º e 493º nº2 do Código Civil,
DEVENDO SER REVOGADO, MANTENDO-SE A SENTENÇA, OU, SUBSIDIARIAMENTE, DECLARAR-SE NULO O ACÓRDÃO RECORRIDO E, CASO O MESMO MANTENHA, JULGAR-SE IMPROCEDENTE A ACÇÃO, EMBORA COM OUTROS FUNDAMENTOS.
Contra-alegaram os autores, pugnando pela manutenção do decidido.
Com os vistos, cabe agora decidir.
A Relação considerou provado o seguinte quadro factual já tido como assente na sentença apelada:
Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 2-1-91-049884/10, a Comissão de Festas de São Bartolomeu transferiu para a ré a responsabilidade civil por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros em consequência do lançamento de foguetes e/ou fogo de artifício nas festas da Quinta de São Bartolomeu, a partir do dia 21 de Agosto de 1999 e durante seis dias (A));
No dia 24 de Agosto de 1999 ocorreu um incêndio nas Quintas de São Bartolomeu, que se estendeu às freguesias de Baraçal, Vila de Touro, Rapoula do Côa e Valongo (B));
Como consequência do incêndio referido em B), ardeu um tractor marca Ursus, novo no valor de 3.500.000$00, um reboque de tractor, no valor de 350.000$00, um barracão armazém, no valor de 1.000.000$00, forragens no valor de 280.000$00 e quatro carradas de cavacos de carvalho para venda, no valor de 150.000$00, tudo propriedade de BB, aqui autor (C));
Os bombeiros não acompanharam os fogueteiros no lançamento dos foguetes nas festas realizadas nas Quintas de São Bartolomeu em Agosto de 1999 (D));
A G.N.R. não acompanhou os fogueteiros (5º);
Como consequência do incêndio, ardeu uma carrinha automóvel, 2 motores de rega e alfaias agrícolas, propriedade de BB, de valor não apurado (6º);
Ardeu, ainda, parte de uma vinha e vários castanheiros, propriedade de AA, de valor não apurado (7º);
Ardeu, ainda, uma vinha e vários castanheiros e carvalhos, propriedade de CC, de valor não apurado (8º);
O lançamento dos foguetes foi efectuado por FG (9º);
O qual tem carta de estanqueiro nº 3038, desde 93.05.05 (10º);
A G.N.R. concedeu à Comissão de Festas de São Bartolomeu autorização para o lançamento de foguetes entre 21 e 26 de Agosto de 1999 (11º);
O lançamento dos foguetes foi efectuado no local indicado pela G.N.R. (12º);
Os explosivos encontravam-se conservados em lugar seguro (13º);
Encontravam-se em bom estado de conservação (15º);
A propagação do incêndio foi facilitada pelo vento e pela existência de pasto seco (16º).
A estes factos acrescentou a Relação, como provada, a seguinte factualidade que constava dos quatro primeiros quesitos, a que a 1ª instância havia respondido negativamente:
O incêndio referido em B) foi consequência de foguetes lançados no sítio do Calvário, nas festas das Quintas de São Bartolomeu (1º);
Após o lançamento, os foguetes caíram sobre as reservas de foguetes empilhados ao lado, no mesmo local (2º);
E pegaram fogo às reservas e ao palhiço e desperdícios secos ali existentes (3º);
O fogo propagou-se ao mato circundante progredindo para nascente, incontrolado (4º).
A Relação deu como provada a factualidade a que se acaba de aludir por considerar que foi articulada pelos AA e não foi impugnada pela ré Seguradora.
Expendeu, a este propósito, o seguinte:
«… sobre o facto de o incêndio ter sido provocado pelo lançamento e rebentamento dos foguetes, nem uma palavra é dita na contestação, sendo claro que não toma posição sobre o facto de o incêndio ter sido causado pelos foguetes e os danos resultarem do incêndio.
Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos articulados na petição – diz o nº 1 do artº 490º do Código de Processo Civil – sob pena de, não o fazendo, se considerarem admitidos por acordo, se não estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto e for admissível a confissão, como é o caso.
Logo, essa factualidade está provada, podendo até já ter sido dada como assente na condensação. Logo, portanto, devem ser considerados provados os referidos pontos 1º, 2º, 3º e 4º da Base Instrutória…».
Sustenta porém a Seguradora/recorrente que impugnou que o incêndio tenha sido causado pelo lançamento dos foguetes.
Com razão o faz.
Vejamos porquê.
Tendo a acção sido proposta em 31.10.2001, é aplicável a lei adjectiva resultante da reforma introduzida pelos DL 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/9.
Assim, e nos termos do artº 490º do CPC revisto, ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos articulados na petição (nº 1), considerando-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só poderem ser provados por documento escrito (nº 2).
Resulta porém do nº 3 do mesmo artigo que se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a impugnação se não se tratar de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento.
Ora, os AA articularam no item 6º da petição inicial que os foguetes foram mal lançados, caindo sobre as reservas de foguetes empilhados ao lado e mal condicionados, pegando fogo às mesmas e ao palhiço e desperdícios secos contíguos, e a ré Seguradora no item 16º da contestação disse impugnar por falsidade a matéria arguida naquele artº 6º (e noutros artigos da mesma peça, que também indicou).
E tendo os AA sido convidados a corrigir o articulado inicial, apresentaram um novo articulado em cujo artigo 14º alegaram que o fogo resultou directamente do mau manuseamento dos foguetes deitados…, tendo a ré Seguradora, no item 26º da sua nova contestação dito impugnar por falsidade o arguido naquele artigo 14º, acrescentando, nos três itens seguintes da mesma peça, que além da exigência da prática de um acto ilícito é necessária a culpa imputável ao agente e o nexo de causalidade adequada entre tal pretenso acto ilícito e os danos invocados pelos AA, nenhum destes requisitos se verificando na acção.
Não se pode por conseguinte aceitar que a ré Seguradora deixou sem impugnação a matéria de facto que foi levada aos primeiros quatro quesitos, formulados justamente porque se entendeu – e bem – tratar-se de matéria de facto articulada, controvertida e pertinente para a solução do litígio.
A ré Seguradora a mais não estava obrigada, pois, como é consabido, e, v.g., Miguel Teixeira de Sousa confirma (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 290 e seg.), só é exigível que o réu tome posição sobre os factos que conhece ou deva conhecer segundo as regras da experiência comum ou em cumprimento de um dever de informação (como sucede, por exemplo, quanto à actividade de um seu empregado ou à deliberação de um dos seus órgãos).
Sempre que o réu não conhece nem tem o dever de conhecer os factos (é o caso da ré Seguradora/recorrente relativamente ao incêndio e suas causas e efeitos) justifica-se a possibilidade de uma declaração evasiva.
Bastava inclusive, para a factualidade em causa se considerar impugnada – ut referido nº 3 do artº 490º do CPC – a ré ter dito que ignorava se houve ou não o articulado incêndio, pondo em dúvida a veracidade da tese factual dos AA, porque lhe não era exigível o conhecimento de condutas alheias. Os factos foram imputados a terceiros, que não à própria ré, não sendo factos pessoais dela nem de que ela devesse ter conhecimento.
Ora a ré não se limitou a dizer que ignorava os factos alegados, o que já de per si consubstanciaria impugnação, indo mais longe, afirmando contundentemente ser falso o alegado pelos AA.
E nem se diga que é vedado ao Supremo sindicar a alteração da decisão da matéria de fato operada na Relação, repristinando as respostas negativas dadas na 1ª instância as quatro primeiros quesitos.
O nº 6 do artº 712º do CPC, já em vigor à data da instauração da acção, determina que das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Todavia, isso tem de ser entendido cum grano salis, pois o Supremo, como uniformemente tem decidido, pode censurar o mau uso pela Relação dos poderes que em exclusivo lhe são conferidos pelo artº 712º do CPC, podendo sindicar o desrespeito, pela Relação, dos pressupostos exigidos para a mexida na matéria de facto, referidos no artº 712º do CPC, e, de uma maneira geral, a alteração da matéria de facto que tiver sido feita com violação da lei.
Assim, por exemplo, se a Relação, por presunção judicial, dá como provado um facto que não foi alegado nem quesitado, facto esse em oposição com um facto dado como provado por acordo das partes, em violação do disposto nos artºs 664º, 490º, nº 2, 659º, nº 3 e 712º (acórdão do STJ, de 27.9.2005, tirado na revista 1891/05-1, sumariado no Boletim de Circulação Interna nº 93, pág. 70) .
Já Alberto dos Reis dizia (Anotado, V, pág. 474) que uma coisa é a apreciação das provas por parte da Relação, outra a questão de saber se esta fez uso legal do artº 712º, acrescentando que a primeira questão é de facto, com a qual nada tem o Supremo, sendo a segunda questão de direito, em relação à qual é legítima a censura por parte do tribunal de revista.
Não se sufraga portanto a alteração das respostas aos quatro primeiros quesitos, de negativa para positiva, com o fundamento de que a ré/recorrente não impugnou a factualidade vazada nesses pontos da base instrutória.
Não sendo permitido à Relação proceder à alteração da aludida matéria de facto com fundamento em confissão ou acordo da ré/recorrente quanto a ela, caberia ao STJ pronunciar-se sobre a bondade das conclusões recursórias da apelação, se fosse caso disso, nos termos do artº 715º, nº 2, ex vi artº 726º do CPC.
Não o fará, contudo, pois o que os AA pretendem (com base numa vaga referência a documentos e testemunhos), em primeira mão, nas conclusões da apelação, é que se proceda à alteração da já aludida matéria de facto, e se inverifica, desde logo, qualquer das excepções referidas no segmento final do nº 2 do artº 722º do CPC, que fixa o numerus clausus dos casos em que o STJ tem competência para decidir de facto.
Termos em que se concede a revista, revogando-se o acórdão recorrido e ordenando-se a baixa dos autos à 2ª instância, para, se possível pelos mesmos Ex.mos Desembargadores, se conhecer do agravo – não julgado ainda, com fundamento no nº 1 do artº 710º do CPC – decidindo se a sobredita reclamação dos AA por escrito foi bem ou mal indeferida por extemporaneidade, pelo Mmº Juiz, o qual, na segunda hipótese, se deverá pronunciar sobre o mérito substancial de tal reclamação. Custas pelos recorridos.

Lisbos, 25 de Setembro de 2007

Faria Antunes (relator)
Moreira Alves
Alves Velho