Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B3610
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: QUIRINO SOARES
Descritores: ARRENDAMENTO
CONFLITO DE DIREITOS
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ200311270036107
Data do Acordão: 11/27/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2603/03
Data: 04/10/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O direito do arrendatário é um direito pessoal de gozo, isto é, um direito obrigacional, por oposição a direito real, não obstante apresentar algumas das características próprias dos direitos desta última categoria, como é o caso, p. ex., da possibilidade de ser defendido pelos meios possessórios (1037º, 2, CC).
2. No artº407º, o Código Civil afastou-se deliberadamente do princípio melior est conditio possidentis para privilegiar o da prioridade da data da constituição do direito.
3. O abuso de direito pode facilmente tornar-se em instrumentos de uma jurisprudência "imediatista ou do sentimento", se não for minimamente enquadrado numa perspectiva teórica.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. "A", deu sucessivamente de arrendamento a "B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª", e C, o rés do chão, cave e quintal do prédio urbano sito na Estrada Nacional 10-5, lugar de Porto Alto, freguesia de Samora Correia, município de Benavente;
entre os dois negócios interpôs-se uma bem sucedida acção de despejo contra a primeira arrendatária;
posteriormente ao segundo negócio, a sentença de despejo foi objecto de recurso de revisão, com fundamento na falta de citação da ré, e, na sequência do êxito deste recurso, veio "B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª", a ser absolvida do pedido, no despacho saneador, por efeito de caducidade decorrente do depósito das rendas devidas e correspondente indemnização.
Na acção em que se insere o presente recurso de revista, "B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª", pede que seja reconhecida a prevalência do seu direito de arrendatária sobre o de C, a consequente entrega do local, e, finalmente, a condenação da senhoria a indemnizar os prejuízos que lhe causou, ou, subsidiariamente, a restituir o indevido enriquecimento.
Em 1ª instância, a acção improcedeu, por causa de abuso de direito.
A Relação de Lisboa não entendeu assim, pelo que, com fundamento no disposto no artº 407º, CC, que rege para os casos de incompatibilidade entre direitos pessoais de gozo, deu provimento ao pedido de devolução do local, confirmando, no entanto a decisão recorrida na parte respeitante ao pedido de indemnização.
Ambas as partes, autora "B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª", e réus, A e C, pedem, agora, revista, com os seguintes fundamentos:
a autora
os elementos existentes no processo e a matéria de facto provada permitem concluir que se o local tivesse sido entregue logo que a senhoria teve conhecimento do êxito do recurso de revisão, a recorrente teria exercido, ali, desde então, a sua actividade e auferido os correspondentes lucros;
de todo o modo, a indisponibilidade do local provocou um empobrecimento da recorrente e consequente enriquecimento da senhoria, que, não tendo justificação, deve ser restituído;
os réus o artº407º, CC, em que se fundamentou o acórdão impugnado, deve ser interpretado no sentido de que o momento relevante para a determinação do direito prevalecente é o do efectivo gozo do direito e não o da celebração do negócio;
em todo o caso, o pedido de devolução do local arrendado, nas circunstâncias, constitui abuso de direito, tal como decidido em 1ª instância.
2. São os seguintes os factos provados:
· no dia 28/6/90, D e E, na qualidade de procurador de A, declararam que cediam a B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª, representada por F, a fruição do rés-do-chão, cave, 1° andar direito e quintal do prédio urbano sito na E.N. nº10-5, no lugar do Porto Alto, freguesia de Samora Correia, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1175, mediante o pagamento mensal de 75.000$00;
· nesse local, B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª, constituiu a sua sede e a instalar e explorar o restaurante A Chaminé;
· em 1991, a A propôs contra B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª acção de despejo do local referido, processo que correu termos no 1° Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Benavente, sob o nº220/91;
· em 21/12/93, no âmbito da referida acção, foi proferida sentença que resolveu o contrato de arrendamento, com fundamento na falta de pagamento de rendas e ordenou o despejo dessas instalações, tendo sido efectuado o despejo em 17/3/94;
· em processo de revisão de sentença, veio a mesma sentença a ser revogada, por falta de citação de B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª, em razão de emprego indevido da citação edital, tendo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 13/11/97, ordenada a citação de B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª, na pessoa do seu representante legal actual, conforme certidão junta a fls. 119 e ss.;
· no dia 17/10/94, A declarou que cedia o uso e a fruição do rés-do-chão, cave e quintal do mencionado prédio urbano a C, que declarou aceitar, mediante o pagamento mensal de 200.000$00;
· posteriormente, em 6/11/97, A declarou que cedia o uso e fruição do rés-do-chão, cave e quintal do prédio urbano identificado a C, que declarou aceitar, mediante o pagamento mensal de 256.750$00;
· C explora, naquele local, um restaurante denominado Restaurante Chinês Fuhua;
· A, pelo menos, desde Janeiro de 1998, sabia da decisão do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, referido, por ter sido dela notificada;
· em 17/3/94, B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª estava sediada no local e tinha aí os objectos que constam do auto de entrega efectuado no âmbito da acção de despejo n.º220/91;
· B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª, desde 1990 até finais de 1991, explorou o estabelecimento de restaurante;
· B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª apenas dispunha do estabelecimento situado nas instalações referidas para exercer a sua actividade;
· em 17/3/94, B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª não tinha em funcionamento qualquer estabelecimento nas instalações em causa;
· em Dezembro de o 1991, o dito estabelecimento encerrou as portas ao público, não mais reabrindo, tendo ali ficado os objectos aludidos no auto de entrega acima mencionado;
· desde então, nunca mais funcionou;
· e também nenhuma outra actividade ali foi exercida por B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª, assim como nenhum dos sócios ou gerentes jamais ali apareceu, desde então.
3. Para a total compreensão do caso, importa acrescentar, de acordo com os elementos documentais constantes do processo, que, na dita acção de despejo, posta a correr de novo, por efeito do êxito do recurso de revisão, veio a ser proferido despacho saneador sentença, transitado em julgado, em que a ré (aqui autora, B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª) foi absolvida do pedido, por caducidade decorrente do depósito das rendas devidas, acrescidas de 50%, no total de 3.262.500$00.
Sobre a incompatibilidade entre direitos pessoais de gozo, dispõe o artº407º, CC (1) o seguinte:
"Quando, por contratos sucessivos, se constituírem, a favor de pessoas diferentes, mas sobre a mesma coisa, direitos pessoais de gozo incompatíveis entre si, prevalece o direito ais antigo em data, sem prejuízo das regras próprias do registo".
O direito do arrendatário é um direito pessoal de gozo, isto é, um direito obrigacional, por oposição a direito real, não obstante apresentar algumas das características próprias dos direitos desta última categoria, como é o caso, p. ex., da possibilidade de ser defendido pelos meios possessórios (1037º, 2, CC).
A arrumação do contrato de arrendamento dentro do Livro II, (Direito das Obrigações) do Código Civil, e o destaque que, no artº1022º (noção) é dado à obrigação do senhorio de proporcionar o gozo da coisa locada, acentuando o carácter relativo dos direitos envolvidos, são, entre outros, argumentos que têm convencido grande parte da doutrina e toda a jurisprudência da natureza eminentemente pessoal ou obrigacional do direito do arrendatário.
É claro que, como diz o mestre Prof. Pereira Coelho (2), "deduzir, sem mais, desse conceito teórico...soluções para quaisquer problemas práticos seria metodologicamente errado".
É que, em todo o caso, são fortes as marcas de realidade (3) presentes no direito do arrendatário.
Mas, estando em causa dois contratos de arrendamento sucessivos sobre o mesmo local, com diferentes arrendatários, logo salta à vista que a opção pela tese do contrato real quod effectum, não serviria mais vantajosamente os interesses dos recorrentes/réus A e C.
É que, então, a constituição do direito de arrendatário, nos termos do artº408º, 1, CC, seria uma consequência da própria realização do contrato, e, uma vez que os arrendamentos em causa não estão sujeitos a registo (cfr. artº2º, 1, m, CRP (4), o direito prevalecente teria de ser o constituído pelo mais antigo dos contratos, precisamente, aquele em que figura como arrendatária a autora/recorrida B - Comércio e Indústria de Hotelaria, Lª.
Voltando, então, ao artº407º, CC (que, pelo que fica dito sobre a natureza do contrato de arrendamento, é o aplicável aos casos de incompatibilidade entre direitos de arrendatário resultante de contratos sucessivos sobre o mesmo local) logo verificaremos que não há grande margem para solução diferente.
Parece óbvio que o legislador se afastou deliberadamente, aí, do princípio melior est conditio possidentis, que é a solução do Código Civil Italiano (5), para privilegiar o da data da constituição do direito (6), divergindo da solução proposta por Vaz Serra (7), precisamente em sentido idêntico ao consagrado no artº1380º, daquele Código Civil.
Mas, o que parece nem sempre é. Só o será, talvez, em política, como alguém disse.
E, com efeito, não são poucos, nem modestos, os contributos para uma interpretação mais elaborada daquela norma, que, aproveitando ao máximo o velho ditado jurídico (melior est conditio possidentis), pretendem, à sombra dele, evitar, por um lado, uma contradição nos termos, face ao confronto daquele artigo com o princípio da eficácia relativa dos direitos meramente obrigacionais (406º, 2, CC) e com a regra da defesa possessória posta ao serviço de alguns direitos pessoais de gozo, como é o caso do locatário (1037º, 2, CC), e, por outro lado, a solução aparentemente injusta de obrigar o detentor do gozo da coisa a entregá-la ao terceiro que, sem ele saber, tinha contrato mais antigo e incompatível (8).
Não menos injusta, porém, deverá dizer-se, do que a que sempre resultará da aplicação, em circunstâncias semelhantes, do artº408º, 1, CC (contratos reais), sempre que os contratos em colisão não estejam sujeitos a registo
Pelo menos por uma vez, o Supremo Tribunal de Justiça já tomou posição sobre o problema, enveredando pela tese acolhida nas instâncias (acórdão de 13.10.93, na revista 081842 (9).
Não se vêm razões de peso para inflectir a orientação já tomada, tanto mais que, no caso em apreço, a ré, actual detentora, não se pode gabar de ter sido a primeira a entrar no gozo do arrendado.
· Como se diz no acórdão sob recurso, a recorrente autora não fez prova dos lucros cessantes que alegou. E tinha, naturalmente, esse ónus, porque o dano faz parte do conjunto de elementos constitutivos do direito de indemnização (483º, 1, e 342º, 1, CC).
Deitar mão à reserva do enriquecimento sem causa é tarefa inútil, porque, por um lado, não está provado que houve empobrecimento da autora por causa da indisponibilidade do local, e, por outro, o enriquecimento da ré A, proveniente do recebimento das rendas, não foi, nem seria, em qualquer circunstância, o resultado do alegado empobrecimento da autora. Ora, para o funcionamento da fonte de obrigações prevista nos artº473º, e ss., CC, é necessária a existência de um nexo causal entre o enriquecimento de um e o empobrecimento do outro.
· Sobre o alegado abuso de direito que motivou a decisão absolutória da 1ª instância, o acórdão impugnado foi suficientemente elucidativo na demonstração da inanidade, da falta de fundamento, do recurso a tal figura.
Os factos provados encarregam-se de mostrar a inadequação da indumentária lhe pretendiam vestir.
Testemunhos veneráveis da justa reacção da jurisprudência contra os rigores do legalismo, institutos como o abuso de direito, a boa fé, a alteração anormal das circunstâncias, que o legislador propositadamente deixou em aberto, à criatividade e ponderação da doutrina e da jurisprudência, podem facilmente tornar-se em instrumentos deletérios de uma jurisprudência "imediatista ou do sentimento" (10), se não forem minimamente enquadrados numa perspectiva teórica.
4. Pelo exposto, negam a revista, com custas pelos recorrentes

Lisboa, 27 de Novembro de 2003
Quirino Soares
Neves Ribeiro
Araújo Barros
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(1) Código Civil
(2) In Direito Civil, Arrendamento, Filiação, Sumários das Lições ao Ciclo Complementar de Ciências Jurídicas, em 1977-78, pag.20
(3) Expressão do mesmo mestre
(4) Código do Registo Predial
(5) Cfr. a informação dada por Vaz Serra, na R.L.J., 110º, pag.169 e ss.
(6) Cfr., nesse sentido, P. Lima e A. Varela, no Código Civil Anotado, vol. II, nota 1, ao artº407º, e, ainda, Pereira Coelho, em Direito Civil, Sumários das Lições ao Ciclo Complementar de Ciências Jurídicas em 1977-78, texto copiografado, pag.19; O. Carvalho, em Direito das Coisas, texto copiografado, pag.22 e ss., e Henrique Mesquita, em Obrigações Reais e Ónus Reais, pag.154, nota 50
(7) No seu estudo Efeitos dos contratos, no BMJ, 74º
(8) Cfr., além de Vaz Serra, no loc. cit., O. Ascensão, na Revista da Ordem dos Advogados, ano 45, pag.384, e José Andrade Mesquita, em Direitos Pessoais de Gozo, pag.191 e ss.
(9) Disponível na base de dados do ITIJ (Instituto de Tecnologias da Informação da Justiça), na Internet.
(10) Conforme Menezes Cordeiro, em Revista da Ordem dos Advogados, ano 58, pag.937, citando Oliveira Ascensão.