Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
634/13.3TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: HELDER ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
BOA FÉ
INVALIDEZ
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA
CONTRATO DE ADESÃO
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
SEGURADORA
APÓLICE DE SEGURO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
FIM CONTRATUAL
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
NULIDADE DE CLÁUSULA
DECLARATÁRIO
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / OBJECTO NEGOCIAL / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO.
Doutrina:
- J. C. MOITINHO DE ALMEIDA, O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, p. 23-24;
- JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO, O Problema do Contrato, As Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual, Reimpressão, Almedina, p. 550;
- JOSÉ MANUEL DE ARAÚJO BARROS, Cláusulas Contratuais Gerais, DL N.º 446/85 – Anotado, Recolha Jurisprudencial, W. Kluver e C. Editora, p. 170 e ss.;
- MOITINHO DE ALMEIDA, Contrato de Seguro, Estudos, C. Editora, p. 98;
- PINTO MONTEIRO, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, p. 290 a 293.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 280.º, N.º 1 E 294.º.
REGIME JURÍDICO DAS CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS (RJCCG): - ARTIGOS 15.º E 16.º.
DL N.º 446/85, DE 25-10.
Referências Internacionais:
DIRECTIVA N.º 93/13/CEE, DO CONSELHO, DE 5 DE ABRIL DE 1993.
Jurisprudência Nacional:

ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 29-03-2012, PROCESSO N.º 3687/04.1TVLSB, IN SATJ, CIVEL 2012, WWW.STJ.PT;
- DE 09-07-2014, PROCESSO N.º 360/08.5TVLSB.L1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 18-09-2014, PROCESSO N.º 2334/10.7TBGDM.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT,
- DE 27-09-2016, PROCESSO N.º 240/11.7TBVRM.G1.S1, IN WWW.DGSI.PT,
- DE 10-01-2017, PROCESSO N.º 3135/12.3TBVIS.C1.S1, IN SASTJ, CIVEL 2017, WWW.STJ.PT,
- DE 17-10-2019, PROCESSO N.º 2978/15.0T8FAR.E1.S1, IN WWW.DGSI.PT
Sumário :
I - No contrato de seguro do ramo vida associado a um crédito à habitação, em regra, é a seguradora quem exclusivamente estabelece as cláusulas a que o contrato de seguro há-de obedecer, vertendo-as na respectiva apólice, à qual os segurados se subordinarão, caso queiram aderir à sua subscrição, e daí que o mesmo seja, tipicamente, um contrato de adesão que, enquanto tal, está sujeito ao regime previsto no DL n.º 446/85, de 25-10.

II - A etiologia fundamental da figura das cláusulas contratuais gerais decorre da constatação de que, sem a preservação de um mínimo de igualdade, não é possível falar em liberdade das partes na conformação da vontade negocial. A consagração do princípio geral da boa fé – com um alcance muito mais vasto do que os limites clássicos ao princípio da liberdade contratual impostos pelas tradicionais normas protectoras ou pela consagração de proibições relativas – visa repor a igualdade nas relações jurídico-negociais, face a uma desigualdade que axiomaticamente se pressupõe.

III - Serão abusivas, à luz dos critérios enunciados no art. 16.º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (RJCCG), por opostas à boa fé e como tal proibidas: (i) as cláusulas que ofendam a confiança legítima provocada pelos factores enunciados na lei (o sentido global das cláusulas, o processo de formação do contrato singular e o teor deste); e (ii) as cláusulas que, sem justificação legítima, contrariem, dificultem ou impeçam os objectivos prosseguidos pelas partes com o contrato.

IV - Para decidir da conformidade à boa fé, mister se torna fazer um juízo comparativo entre a ordenação levada a cabo pelas cláusulas contratuais gerais e a que resultaria de uma equilibrada ponderação de interesses.

V - Para aferir da natureza abusiva de uma cláusula no domínio do contrato de seguro, deve ponderar-se a finalidade do contrato e quando, em resultado de cláusulas de exclusão ou limitativas, a cobertura fique aquém daquela que o tomador podia de boa fé contar, tendo em consideração o objecto e a finalidade do contrato, devem tais cláusulas ser consideradas nulas.

VI - Uma cláusula constante das condições especiais de uma apólice de seguro, como a que está em causa nos autos, na qual se explicita o que deve entender-se por invalidez total e permanente e se definem as condições cumulativas de que depende a indemnização contratada, reconduzindo a mencionada invalidez ao estado daquele que, por força de doença ou acidente, fique total e irreversivelmente incapacitado de exercer a sua profissão ou actividade compatível com as suas habilitações, conhecimentos e experiência, e que, em consequência desse estado, tenha uma perda da capacidade de ganho de, pelo menos, 2/3, deixando, como tal, de poder auferir rendimentos que lhe permitam pagar a dívida, não contraria a boa fé e o princípio da confiança, nem confere à seguradora uma vantagem injustificada e desproporcionada.

VII - Limitando-se tal cláusula a clarificar o conceito de invalidez total e permanente – ou, dito de outro modo, a clarificar o risco coberto pelo seguro (sendo que era com essa cobertura que os segurados, tendo em conta a finalidade do contrato, podiam razoavelmente contar) – não se verifica qualquer redução, desproporcionada ou drástica, do risco coberto pelo seguro que favoreça injustificadamente a seguradora em detrimento dos aderentes, não podendo essa estipulação, como tal, ser considerada abusiva nos termos dos arts. 15.º e 16.º do RJCCG.

VIII - Ainda que assim não fosse, a pretensão dos recorrentes sempre estaria votada ao insucesso, porquanto, mesmo que se declarasse a nulidade da cláusula em questão, a solução passaria por determinar, por via interpretativa, qual o conteúdo e sentido da expressão “invalidez total e permanente” coberta pelo contrato de seguro, a qual não poderia deixar de ser entendida por um declaratário normal, colocado na posição dos recorrentes, senão como uma situação em que a pessoa afectada se encontrasse num estado que a deixasse total e irremediavelmente incapaz de exercer uma actividade laboral, em termos de lhe ser inviável obter meios de subsistência.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]

I. RELATÓRIO


1. AA e BB intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo experimental, contra CC - Vida Seguros, S.A. e Banco DD, S.A., requerendo a intervenção principal do lado activo deste último e a condenação da 1.ª ré no pagamento das seguintes quantias:

- A quantia de € 101 936,59 reclamada pelo DD, S.A. na execução n.º 824/11.3T…, juros de mora, custas e despesas com o agente de execução e todas as outras que o autor tenha de pagar em virtude desse processo, cujo cômputo relegaram para momento posterior;

- 47 prestações pagas indevidamente ao DD, S.A., que ascendem a cerca de € 23 699,28; e

- € 20 000,00 a título de danos morais decorrentes da penhora do imóvel hipotecado ao DD, S.A..

Alegaram para tanto - e em síntese - , haver celebrado com o DD, S.A., em 17-09-2004, um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca, pelo valor de € 80 000,00, e um contrato de mútuo com hipoteca, pelo valor de € 22 600,00, mútuos esses que se destinaram à aquisição de duas fracções autónomas e que seriam amortizados em 360 prestações mensais e sucessivas, com início a 25-09-2004, sendo que, naquela mesma data (17-09-2004), outorgaram igualmente um contrato de seguro do “Ramo Vida”, titulado pela apólice nº 0…/0…5, destinado a cobrir, além do risco morte, o risco invalidez, pelo valor do capital mutuado pelo DD, S.A., nele figurando como tomador do seguro a 1.ª ré, CC Vida Seguros, S.A..

Mais alegaram que, em 23-07-2006, o autor AA foi vítima de um acidente de viação, em consequência do qual sofreu vários e graves traumatismos, sendo que, não obstante todos os tratamentos médicos que lhe foram prestados, o mesmo apresenta deficiências incapacitantes gerais permanentes superiores a 60%.

Referiram, outrossim, que à data do acidente o autor exercia a actividade profissional de director de vendas e que as sequelas que sofreu o impedem de desempenhar essa sua actividade, bem como qualquer outra actividade normal e remunerada. Pelo que, a sua situação clínica lhe permite accionar o seguro do ramo vida que contratou com a ré CC Vida Seguros, S.A., sendo precisamente para salvaguardar o crédito, perante a indisponibilidade permanente para a profissão e a impossibilidade de auferir rendimentos, que se impõe a outorga deste tipo de contratos de seguro.

Sucede – mais dizem - , que, participada a doença do autor à 1.ª ré, esta alegou que a apólice se encontrava anulada por falta de pagamento do prémio desde 24-05-2006, quando, na verdade, tal pagamento estava incluído no valor mensal da prestação do crédito à habitação e, desde a data do acidente até 25-05-2010, os autores continuaram a pagar ao DD, S.A. essa prestação, para amortização do crédito e pagamento dos juros, o que deveriam ter deixado de fazer desde a data do acidente (23-07-2006), uma vez que este foi a causa única e adequada da IPP superior a 60%, legitimando, assim, o accionamento do seguro de vida em causa.

Alegaram, ademais, que a cessação do pagamento das prestações por volta de Maio de 2010 originou o incumprimento definitivo do mútuo hipotecário à habitação e a instauração de execução contra os autores.

Concluíram, assim, no sentido de que têm direito, por força do contrato de seguro celebrado, ao reembolso do valor das prestações pagas indevidamente ao réu DD, S.A. entre Julho de 2006 e Maio de 2010 (por ser à 1.ª ré que cabia pagar a totalidade do capital que, à data do acidente, estivesse em dívida), bem como a ser indemnizados em montante não inferior a € 20 000,00 já que, estando na iminência de ficar sem habitação, têm vivido em permanente terror e em constante angústia, padecendo forte abalo psíquico e intenso sofrimento moral.

Ainda, e rematando, aduzem, com vista a justificar a requerida intervenção principal provocada do DD, S.A. que assiste a este, enquanto beneficiário do seguro, o direito ao recebimento do capital que, à data, se encontrar em dívida, tendo, assim, o mesmo um interesse igual ao dos autores no presente pleito.

2. Citada, a ré CC Vida Seguros, SA apresentou contestação, na qual se defendeu por excepção e por impugnação, invocando, por um lado, a inexistência de seguro válido à data do acidente, por o mesmo ter sido resolvido por falta de pagamento do prémio e a falta de alegação dos factos necessários para que a incapacidade do autor se integre na invalidez total e permanente tal como delineada no referido contrato de seguro, impugnando, no mais, a generalidade da factualidade alegada na petição inicial e pugnando, a final, pela sua absolvição do pedido.


3. Por sua vez, o DD, S.A. juntou procuração aos autos.


4. Os autores responderam à contestação, sustentando, em suma, que a alegada resolução do contrato é ineficaz por apenas ter sido endereçada à autora.


5. Não obstante terem demandado o DD, S.A. como se de réu se tratasse, os autores pediram, desde logo, na petição inicial, que fosse admitida a intervenção principal provocada daquele como seu associado, o que, posteriormente, na sequência da prolação de despacho para esse efeito, clarificaram, afirmando ser, efectivamente, essa intervenção que pretendiam.

A requerida intervenção principal foi deferida e, em consequência, o interveniente foi citado para os termos da causa.

6. Realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido despacho convidando os autores a aperfeiçoar a petição por forma a concretizarem factualmente as condições de que depende a cobertura complementar de invalidez total e permanente ao abrigo da qual o autor formula a sua pretensão indemnizatória, convite ao qual os mesmos responderam.


7. Notificada do aperfeiçoamento, a ré sustentou que a petição se devia considerar inepta por não ter sido suprida a insuficiência da causa de pedir.


8. A tal pretensão responderam, por seu turno, os autores, afirmando que alegaram os factos constitutivos do seu direito e a que a perícia médica requerida dissiparia as dúvidas da ré no que respeita à incapacidade do autor e à sua irreversibilidade.


9. Retomada a audiência prévia, foi fixado valor à causa e proferido despacho saneador, foram seleccionados os factos assentes e, após, indicação do objecto do litígio, foram enunciados os temas da prova, tendo ainda sido admitida a prova apresentada pelas partes, designadamente a requerida perícia médica, que foi requisitada ao Gabinete Médico-Legal respectivo.


10. Notificados da junção aos autos do relatório pericial de avaliação do dano corporal, realizado pelo IML, requereram os autores a realização de segunda perícia, colegial, com base em alegadas discrepâncias entre esse relatório e um relatório médico que juntaram aos autos, pretensão essa à qual a ré se opôs.

A segunda perícia colegial foi deferida, tendo sido junto aos autos o respectivo relatório pericial de avaliação do dano corporal.


11. Realizou-se audiência de julgamento, tendo os autores requerido, nesse sede, o aditamento de um novo tema da prova, pedido que foi indeferido.


12. Finda a audiência, foi proferida sentença julgando a acção improcedente, com a consequente absolvição da ré do pedido.


13. Inconformados com o assim decidido, recorreram os autores, quer da decisão interlocutória que indeferiu o requerido aditamento de um tema da prova, quer da decisão final, embora sem sucesso, tendo o Tribunal da Relação do Porto julgado a apelação improcedente, mantendo integralmente a sentença proferida.


14. Ainda inconformados com o decidido na parte em que alegaram a questão nova, apenas em 2.ª Instância, relacionada com a apreciação da nulidade da Cláusula inserta no contrato de seguro que define as condições cumulativas para que se verifique uma situação de invalidez total e permanente, recorrem agora os autores de revista, rematando a sua alegação recursória com conclusões que – na sequência da prolação de despacho de convite nesse sentido – sintetizaram nos seguintes termos:

1) O douto Acórdão ora recorrido deve ser revogado, na parte em que conclui pela não nulidade do clausulado inserto no contrato de seguro, referente à definição de invalidez total e permanente;

2) Sendo que, os Recorrentes estão em tempo quanto à matéria de nulidade do clausulado, ainda não ter ocorrido trânsito em Julgado, atento que a questão apenas foi levantada em sede de recurso;

3) Vejamos, do contrato de seguro em questão nos Autos consta a seguinte cláusula especial, aposta no artigo 1.º n.º 1, que concretiza as condições em que o segurado poderá ver accionado o seguro por incapacidade total e permanente, dispondo o seguinte:

“estado de invalidez em que se encontre a pessoa segura quando cumulativamente, e em consequência de doença ou acidente, se verificarem relativamente a ele as 3 condições seguintes:

a. Total incapacidade para o exercício da sua profissão ou para qualquer outra actividade lucrativa compatível com as suas capacidades, conhecimentos e aptidões;

b. Perda de ganho de, pelo menos, 2/3 do rendimento auferido na profissão declarada, em consequência do seu estado;

c. Irreversibilidade da invalidez total e clinicamente consolidada, isto é, sem quaisquer esperanças de haver melhoras no seu estado de saúde por continuação de tratamento médico”

4) Ora, tal cláusula, inserta em contrato de seguro, e tal e qual todos os contratos estando sujeita aos princípios da Liberdade Contratual, tem limites, expressamente previstos na Lei, mormente os da boa-fé e do abuso de direito;

5) Especialmente quando se trata, como se trata em concreto, de um contrato de mera adesão, sem intervenção da parte segurada;

Posto Isto,

6) Os termos em que a Ré coloca uma situação de incapacidade total e permanente, melhor explanados supra, são abusivos, violando os bons princípios da boa-fé, segurança e confiança jurídicas, e outros direitos constitucionalmente protegidos, e quiçá mesmo violando princípios e directivas comunitárias;

7) Vejamos, para que o Autor pudesse ser qualificado como incapaz, nos termos do contrato teria de cumprir três requisitos cumulativos, a saber: estar totalmente incapaz de exercer a sua profissão habitual ou qualquer outra compatível com aquela, perda de ganho de 2/3 e estar a incapacidade clinicamente consolidada e ter carácter irreversível;

8) Ora, tais exigências extravasam o normalmente admissível e retiram conteúdo funcional do seguro, sendo a cláusula abusiva e ambígua, chegando a ser contraditória, conforme melhor explanado nas Alegações;

9) Partamos então para a análise do 1.º requisito: “a. Total incapacidade para o exercício da sua profissão ou para qualquer outra actividade lucrativa compatível com as suas capacidades, conhecimentos e aptidões”;

10) Mas qual o quantitativo exigível para que se considere a pessoa segura totalmente incapaz? Será 100% de Incapacidade?... Será 10% de Incapacidade?... Serão os 49 pontos de que o Autor padece?... Serão 2/3 de Incapacidade?... A incapacidade será avaliada em termos da Tabela Nacional de Incapacidades para efeitos laborais ou terá em conta o dano civil ou outro critério?

11) A condição nada nos diz, nada nos esclarece!!!

12) Logo, concluindo, esta condição, só por si, faria com a que cláusula fosse nula por abusiva e ambígua, por confusa e ininteligível!!!

13) Abusiva pois não quantifica o que é estar “Totalmente Incapaz”, sendo que totalmente numa escala em que se avalia o estado de saúde da pessoa segura exprime 100% de incapacidade, o que só é possível acontecer com o decesso da pessoa;

14) É ambígua porquanto não elucida um critério claro e preciso para fazer descer do abstracto para o concreto o que é “Totalmente Incapaz”!

15) Ainda focados nesta primeira condição, entramos agora na vertente profissional da mesma, importando saber o que se deve entender por “incapaz para o exercício da sua profissão ou qualquer outra actividade lucrativa compatível com as suas capacidades, conhecimentos ou aptidões”?...

16) Ora, pegando no exemplo do Recorrente Autor, este possuía a profissão de vendedor, mas se não tivesse profissão ou não pudesse exercer esta profissão, qualquer outra actividade compatível com as suas capacidades, conhecimentos ou aptidões;

17) Portanto, “incapaz para o exercício da sua profissão…” refere-se à profissão que a pessoa segura exercia à data do acidente ou após o acidente?

18) Mas se a pessoa segura não tivesse profissão ou não pudesse continuar a exercer a sua profissão, a pessoa segura também teria de ficar “incapaz para qualquer outra actividade lucrativa compatível com as suas capacidades, conhecimentos ou aptidões”;

19) Ora, redigida a 2.ª parte desta primeira condição relativa ao lado profissional da pessoa segura susceptível de poder beneficiar do accionamento do seu seguro de vida teríamos que essa pessoa teria de ser “incapaz para o exercício da sua profissão, exercesse, não exercesse, ou não pudesse exercer, à data ou após o acidente ou qualquer outra actividade, por conta própria ou por conta de outrem, como profissão liberal ou como dono de empresas, lucrativa, correspondente ao rendimento residual obtido depois de pagos os custos, compatível com as suas capacidades, por aquele que é apto, conhecimentos, de acordo com o seu saber, instrução e perícia ou aptidões, podendo fazer alguma coisa.”

20) Ora, aqui chegados mais uma vez verificamos que também por aqui a cláusula deve ser considerada nula por abusiva ou dúbia, na medida em que a torna impossível de accionar;

21) Pois, por um lado, basta que a pessoa segura seja capaz, de acordo com o seu saber ou instrução, para poder fazer alguma coisa, seja lá o que for, para deixar de beneficiar do accionamento da cláusula,

22) E, por outro, não mensura que grau de instrução ou saber é que é necessário e que cai fora do âmbito da sua profissão e que é preciso para ser considerado que ela ainda pode fazer alguma coisa;

23) E, ainda, considerando que tem de desempenhar uma actividade lucrativa, no sentido de ter lucros, após a dedução dos custos, parece que mesmo estando totalmente incapaz e exercesse profissão ou qualquer outra actividade compatível com as suas capacidades, conhecimentos e aptidões, não lucrativa, não podia beneficiar do accionamento da cláusula, o que é inaceitável.

24) Passando agora à análise da segunda condição, prevista no segundo travessão, qual seja: “Perda de ganho de, 2/3 do rendimento auferido na profissão declarada, em consequência do seu estado”, relacionada com o aspecto financeiro da cláusula;

25) Efectivamente, alude-se à perda de 2/3 do rendimento auferido na profissão declarada;

26) Ora, se é profissão declarada não é qualquer outra actividade lucrativa compatível com as suas capacidades, conhecimentos ou aptidões;

27) Logo, por aqui a cláusula é nula por abusiva, ou por ambiguidade, por incongruente que o estatuído na primeira condição;

28) Impondo-se saber se estes 2/3 se referem à perda de ganho com a profissão ou actividade lucrativa ou se é com a incapacidade física, ou se é às duas?

29) Aliás, a ininteligibilidade da cláusula ainda resulta mais visível se a cotejarmos com o artigo 1 das condições gerais do contrato de seguro em que se define a invalidez Absoluta e Definitiva, exigindo esta cláusula que a pessoa segura esteja impossibilitada de exercer qualquer actividade remunerada e tiver de recorrer à assistência de terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente.

30) Ademais, na douta sentença proferida em 1.ª instância foi com fundamento de a incapacidade física e profissional do Apelante, alegadamente por não se enquadrar no objecto da apólice e na cláusula em apreço, que o Tribunal de 1.ª Instancia considerou a acção improcedente;

31) No entanto, como se tem vindo a aduzir supra, a cláusula é nula por abusiva e ou ambígua.

32) Logo, o tribunal a quo não podia fundamentar o seu juízo decisório num segmento do contrato de seguro nulo.

33) Mandando a verdade dizer que, atentas as condições particulares da apólice juntas aos autos com a contestação da Seguradora Apelada, a apólice tem as coberturas: principal em caso de morte, pela qual pagava um prémio anual de 452,40€ e a cobertura complementar de invalidez total e permanente – antecipação de capital, pela qual pagava um prémio anual de 153,90€.

34) As condições particulares da apólice juntas aos autos identificam uma outra cobertura complementar, qual seja: Invalidez Absoluta e Definita, mas os Apelantes não a subscreveram;

35) Contudo, as condições gerais da apólice juntas aos autos também em sede de contestação explicam apenas o que se deve entender por Invalidez Absoluta e Definitiva, no seu art.º 1;

36) Não definem o que se deve entender por invalidez total e permanente;

37) Porém, a cláusula 2, n.º 3 das ditas condições gerais clarifica que “Para os devidos efeitos, é assimilado à morte o estado de invalidez Absoluta e Definitiva da pessoa segura.”

38) Ora, sabemos que nos termos da cláusula 1.ª das condições gerais: “Invalidez Total e Permanente” é um estado de invalidez em que se encontra a pessoa segura;

39) Se assim é, como na verdade é, a cobertura complementar de invalidez total e permanente é uma forma de invalidez;

40) Pelo que, atento o disposto no art.º 2.º, n.º 3 das condições gerais ela é equiparada á cobertura principal em caso de morte.

41) Logo, o sentido que supra se expõe sai reforçada pela interpretação da sistemática das condições gerais, especiais e particulares;

42) No sentido de que aquela deve ser declarada nula por abusiva e ou ambígua.

43) Isto porque, a intenção quando se criou essa cláusula fosse que a pessoa segura se encontrasse numa situação clínica equiparada à morte, provavelmente em coma, aquele que se consegue perspectivar;

44) Ora, uma cláusula que tenha como pressuposto este condicionalismo, em obediência ao princípio da boa-fé e da confiança entre as partes devem contratar tem de ser declarada nula e de nenhum efeito;

45) Esta interpretação é aquela que se impõe em face da teoria do real declaratário, plasmada no artigo 236.º do CC;

46) E é aquele que se apresenta admissível de acordo com o vertido no artigo 9.º do CC;

47) Por fim, quanto ao prescrito na terceira condição da cláusula em apreciação: “… - Irreversibilidade da invalidez total e clinicamente consolidada, isto é, sem quaisquer esperanças de haver melhoras no seu estado de saúde ou continuação de tratamento médico.”.

48) Esta condição não colide com as anteriores e é de aceitação cumulativa;

49) A questão é as anteriores condições são contraditórias entre si, abusivas e dúbias e ambíguas, daí a demandada nulidade.

50) Assim, por ser contrária aos ditames da boa-fé, na medida em que limita o conceito de invalidez total e permanente a quem esteja fisicamente morto ou definitivamente não possa exercer qualquer outra profissional compatível com a que tinha, uma perda de ganho de 2/3, ela é nula;

51) Sendo ainda a cláusula ambígua e duvidosa perante os declaratários;

52) Restringindo-se, em moldes não admissíveis, e em absoluto as hipóteses do seu accionamento;

53) Resumindo, não obstante se puder ter uma situação como a do Autor, que possui uma incapacidade de 46 pontos, que deixou de ter emprego e teve de passar a fazer uns biscates para sobreviver, carecendo de ajuda financeira de terceiros, o seguro não cobre estas situações;

54) Mas então o que cobrirá?

55) Será que os Autores, se antecipassem esta situação, mormente de exclusão, teriam ainda assim feito este seguro???

56) Expectariam eles que em situação idêntica o seguro não pudesse ser accionado??? Seria expectável por um normal e comum declaratário que o seguro não pudesse ser accionado numa situação como a que decorre dos Autos?

57) O contrato de seguro é efectuado tendo em vista a cobertura em caso de ocorrência de um eventual risco;

58) No caso, e não obstante a grave situação clinica do Autor, que infra, para melhor integração se descreve, o seguro declina a responsabilidade por não assunção da condição do Autor na definição de incapacidade;

59) Mas a condição do Autor não é um número, é um facto;

60) A inserção de uma cláusula geral de definição de incapacidade perde a conexão com a realidade da vida das pessoas;

61) Beneficiando a posição da Seguradora, em detrimento do Segurado, sem razão plausível;

62) Acresce que, o clausurado em referência é ambíguo;

63) E, por tudo isto, a cláusula é abusiva, por violação dos bons princípios orientadores do direito, nomeadamente da boa-fé, segurança e certezas jurídicas;

64) Pelo que a Clausula inserta é nula, devendo ser reconhecida a nulidade da cláusula inserta, nos termos do disposto no artigo 286.º do CC, 15.º do DL 446/85, de 25 de Outubro, 20.º, 37.º e 60.º da CRP;

Resulta assim,

65) Apodíctico é que o Acórdão recorrido violou, entre outros, os seguintes preceitos legais: 13.º, 20.º, 37.º, 60.º, 61.º, 62.º, 80.º e 86.º e da CRP; 2.º, 4.º, 5.º e 607.º n.ºs 4 e 5 do CPC; 9.º, 12.º, 209.º 217.º, 219.º, 227.º, 236.º a 239.º, 286.º, 342.º n.º 2, 405.º e 406.º do CC e ainda 5.º, 6.º, 8.º, 15.º e 16.º do DL 446/85, de 25 de Outubro, pelo que deve ser reformulada, o que se requer.


15. A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção integral do acórdão recorrido e pedindo, ainda, a condenação dos autores por litigância de má fé.


II. QUESTÃO PRÉVIA: ADMISSIBILIDADE DO RECURSO DE REVISTA

O Acórdão da Relação do Porto confirmou, integralmente e sem voto de vencido, a sentença que julgou totalmente improcedente a acção.

Ora, dispõe o art. 671.º, n.º 3, do CPC, que “Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”

Sucede, porém, que, consoante decorre do antecedente relatório, os recorrentes restringiram o objecto da revista à invocada nulidade da cláusula constante do ponto 1. do artigo 1.º das condições especiais do contrato de seguro em causa nos autos, questão esta que apenas em sede de recurso de apelação foi suscitada, sendo certo que, a despeito de se tratar de questão nova, a Relação dela cuidouna medida em que, estando em causa uma nulidade, se impor o seu conhecimento oficioso (arts. 24.º do DL n.º 446/85, de 25-10[2], 286.º do CC, e 608.º, n.º 2, in fine, do CPC).

Em consequência, tendo a mencionada questão – que é agora objecto da presente revista – sido alvo de apreciação, pela primeira vez, em 2.ª instância, não se verifica, pois, a dupla conformidade de decisões impeditiva da admissibilidade do recurso de revista (art. 671.º, n.º 3, “a contrario”, do CPC).


III. OBJECTO DO RECURSO DE REVISTA

Encontrando-se os limites objectivos do recurso balizados, como sabido, pelas conclusões da respectiva alegação (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), a única questão decidenda traduz-se, como decorre do já expendido, em saber se a cláusula constante do ponto 1 do artigo 1.º das condições especiais do contrato do seguro em causa nos autos é (ou não) nula.


IV. FACTOS

- No Acórdão recorrido, foram considerados provados os seguintes factos:

1. No dia 17 de Setembro de 2004, na qualidade de compradores e mutuários, através de escritura pública com documento complementar os autores celebraram os seguintes contratos:

a. compra e venda e mútuo com hipoteca (€ 80 000,00); e

b. mútuo com hipoteca (€ 22 600,00).

2. Nesses actos notariais interveio como entidade mutuante o “Banco DD, SA”.

3. A quantia mutuada e recebida do empréstimo para habitação, foi integralmente aplicada pelos autores na compra dos seguintes prédios:

a. fracção autónoma designada pelas letras “AS”, pertença a prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 140 da freguesia de …, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 2028º; e

b. fracção autónoma designada pela letra “B”, pertença a prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 140 da freguesia de …, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 2028º.

4. A quantia total objecto do mútuo ascendeu a € 102 600,00, e foi entregue aos aqui autores por depósito à ordem através do nº 2…6, para a conta bancária aberta em nome daqueles junto do “Banco DD, SA”, no dia da celebração da escritura pública referida em 1.

5. O empréstimo foi concedido pelo prazo de 360 meses, a contar desde o dia 25 de Setembro de 2004, seria amortizado em 360 prestações mensais, de capital e juros, a primeira com vencimento no mesmo dia do mês seguinte e as restantes em igual dia dos meses subsequentes.

6. Nessa data foi ainda outorgado seguro de vida, denominado de “CC - Vida”, cobrindo, além do risco de morte, também o risco de invalidez, pelo valor do capital mutuado pelo banco credor…

7. Contrato de seguro titulado pela apólice nº 0…/0…5, celebrado com a ré “CC Vida – Seguros, SA”.

8. Pelos autores participada a doença à ré “CC Vida – Seguros, SA”, esta comunicou que a apólice se encontrava anulada devido a não pagamento de prémio, desde 24 de maio de 2006.

9. A ré “CC Vida – Seguros, SA”, celebrou com os autores AA e BB o contrato de seguro do ramo vida, modalidades “SPV 2 Cab. T.A.R.”, titulado pela apólice nº 0…/0…5, nos termos do qual assumiu o risco da morte e invalidez total e permanente que, em virtude de acidente ou de doença, sobreviesse aos respectivos beneficiários, com início a 24 de maio de 2004, até ao limite de € 102 000,00...

10. Sendo indicado como beneficiário irrevogável o “Banco DD, SA”.

11. Na sequência da celebração do aludido contrato de seguro, os referidos AA e BB constituíram-se na obrigação de proceder ao pagamento dos prémios devidos, de acordo com o estipulado nas condições particulares e gerais da apólice.

12. Acordaram as partes que o pagamento do prémio do seguro seria efectuado anualmente, mediante débito directo na conta bancária titulada pelos segurados, com o NIB 00…60, conforme indicação expressa efectuada por aqueles nas propostas entregues.

13. Nos termos do nº 1 do artigo 9º das condições gerais da apólice, «os prémios eventuais, sobre prémios e encargos legais são devidos antecipadamente, na data de início do período a que se referem», sendo certo que «salvo disposição em contrário, a cobrança dos prémios será efectuada através de débito directo bancário devidamente autorizado pelo tomador do seguro».

14. Por seu turno, dispõe o artigo 10º das condições gerais que:

1. O não pagamento dos prémios dentro dos 30 dias posteriores à data do seu vencimento concede à seguradora a faculdade de, nos termos legais, e após pré-aviso em carta registada dirigida ao domicílio do tomador do seguro e do beneficiário designado de forma irrevogável, com pelo menos 8 dias de antecedência, resolver o contrato.

2. O tomador do seguro dispõe da faculdade de repor o contrato em vigor nas condições originais, se efectuar o pagamento do prémio em atraso dentro de 6 meses contados a partir da data em que se tenha verificado a resolução do contrato. A reposição em vigor ocorrerá no dia seguinte ao do pagamento do prémio respectivo. A seguradora reserva-se o direito de exigir ao tomador do seguro uma prova do estado de saúde das pessoas seguras antes de aceitar a referida reposição.

15. Nos termos do nº 1 do artigo 1º das condições especiais, considera-se invalidez total e permanente o estado de invalidez em que se encontre a pessoa segura quando cumulativamente, e em consequência de doença ou acidente, se verificarem relativamente a ele as três condições seguintes:

a. Total incapacidade para o exercício da sua profissão ou para qualquer outra actividade lucrativa compatível com as suas capacidades, conhecimentos e aptidões;

b. Perda de ganho de, pelo menos, 2/3 do rendimento auferido na profissão declarada, em consequência do seu estado;

c. Irreversibilidade da invalidez total e clinicamente consolidada, isto é, sem quaisquer esperanças de haver melhoras no seu estado de saúde por continuação de tratamento médico.

16. A 23 de Julho de 2006 o autor AA foi vítima de um acidente de viação, que sofreu por embate de um veículo automóvel.

17. Por força das lesões que sofreu em consequência do acidente de viação referido em 16., o autor AA apresenta défice funcional permanente da sua integridade físico-psíquica fixável em 46 pontos.

18. Por força do acidente de viação referido em 16 ., o autor João AA apresenta as seguintes sequelas:

a) inúmeras cicatrizes na perna direita (anca, coxa e joelho);

b) atrofia da perna e coxa direitas;

c) lesão do nervo ciático da perna direita;

d) dores na anca e perna direita;

e) diminuição da força muscular e movimentos da perna direita;

f) claudicação da marcha;

g) impossibilidade de saltar, correr ou andar apressadamente;

h) desequilíbrio;

i) dificuldade em pegar ou carregar pesos.

19. À data em que ocorreu o acidente de viação referido em 16., o autor AA exercia actividade profissional como … na empresa denominada “EE, Lda.”, com o que auferia o rendimento mensal de € 1 047,80.

20. As lesões sofridas pelo autor AA em consequência do acidente referido em 16., e as dores que as mesmas causaram e causam, tiveram influência no exercício das tarefas desempenhadas pelo autor no âmbito da sua actividade profissional.

21. As lesões sofridas pelo autor AA em consequência do acidente referido em 16. determinam-lhe dificuldade de mobilidade e deslocação.

22. As lesões sofridas pelo autor AA em consequência do acidente referido em 16., e as suas sequelas, tiveram impacto emocional e psicológico negativo no autor, que se isolou bastante, tendo complexos e sentimentos de vergonha com as marcas e cicatrizes que lhe foram causadas, e tendo perdido dinâmica e espírito activo.

23. Após 23 de Julho de 2006, e pelo menos até 2010, com a ajuda de familiares próximos, os autores continuaram a pagar ao “Banco DD, SA”, a prestação devida para amortização do crédito e respectivos juros.

24. Em 2010 os autores entraram em incumprimento dos contratos de mútuo referidos em 1. a 5., o que originou a instauração de processo de execução pelo “Banco DD, SA”.

25. Por força do referido em 8., 23. e 24. os autores padeceram de forte abalo psíquico e sofrimento moral, vivendo angustiados.

26. Na sequência do referido em 6. , 7. e 9. a 11., a ré “CC Vida – Seguros, SA”, anualmente passou a emitir e enviar avisos de cobrança para o “Banco DD, SA”, para que este procedesse ao débito na conta bancária referida em 12..

27. A 19 de Maio de 2006 a ré “CC Vida – Seguros, SA”, emitiu o aviso de cobrança/recibo nº 0…9, referente ao período de 24 de Maio de 2006 a 23 de Maio de 2007, e procedeu ao seu envio para o “Banco DD, SA”, no dia 08 de Junho de 2006, por via informática…

28. E procedeu ao envio do aviso de cobrança para os autores.

29. No entanto, o aviso de cobrança referido em 27. não foi pago em virtude de insuficiência de saldo bancário, sendo devolvido à ré “CC – Seguros, SA”, a 27 de Junho de 2005.

30. Na sequência, a ré “CC – Seguros, SA”, novamente remeteu o aviso de cobrança para o “Banco DD, SA”, a 10 de Julho de 2006, que mais uma vez foi devolvido por insuficiência de saldo bancário.

31. A 02 de Agosto de 2006, a ré “CC – Seguros, SA”, remeteu à autora BB comunicação escrita, dirigida ao lugar de …, …, …, interpelando-a para pagar o valor do prémio referido em 27. …

32. E paralelamente deu conhecimento de tal comunicação ao “Banco DD.

33. Não obstante o referido em 31. e 32., os autores não procederam ao pagamento do prémio de seguro referido em 27..

34. A ré “CC – Seguros, SA”, remeteu à autora BB carta registada datada de 17 de Outubro de 2006, para resolução do contrato de seguro titulado pela apólice nº 0…/0…5, com efeitos reportados a 24 de Maio de 2006.

35. Nem os autores, nem o “Banco DD, SA”, efectuaram o pagamento dos prémios vencidos, nem solicitaram a reposição do referido contrato de seguro.

- E não provados os seguintes:

1. Que por força do acidente de viação referido em 16., o autor AA apresente as seguintes sequelas:

a. dores ao urinar e/ou evacuar;

b. dores nas relações sexuais;

c. cãibras frequentes.

2. Que por força das lesões que sofreu em consequência do acidente de viação referido em 16., o autor AA apresente deficiências incapacitantes gerais e permanentes superiores a 60%.

3. Que após o período de recuperação, por força das sequelas de que ficou afectado, o autor AA não tenha logrado manter a aptidão, diligência e capacidade que as suas funções lhe exigiam.

4. Que após o período de recuperação, por força das sequelas de que ficou afectado, o autor AA tenha deixado [de] realizar as suas funções profissionais em moldes semelhantes ao que anteriormente exercia.

5. Que as sequelas de que o autor AA padece em consequência das lesões para si resultantes do acidente de viação referido em 16. impliquem inabilidade para a realização, ainda que descontínua, da generalidade dos trabalhos laborais.

6. Que por força das lesões que sofreu em consequência do acidente de viação referido em 16., e das sequelas das mesmas, o exercício da profissão do autor AA (director de vendas) se tenha tornado impossível.

7. Que as sequelas determinadas ao autor pelas lesões que sofreu em consequência do acidente referido em 16. impeçam o autor de desempenhar qualquer outra actividade remunerada.

8. Que o pagamento do prémio de seguro relativo ao contrato referido em 6., 7. e 10. alguma vez tenha sido incluído no valor mensal da prestação do crédito à habitação.

9. Que a autora BB jamais tenha recebido as comunicações referidas em 31. e 34..


V. DIREITO

1. O “thema decidendum” da revista – como já antes referido – circunscreve-se unicamente à questão de saber se a cláusula constante do ponto 1. do artigo 1.º das condições especiais do contrato de seguro em causa nos autos é ou não nula.

A questão mereceu resposta negativa por parte do Tribunal da Relação do Porto que, analisando a dita cláusula à luz do disposto no art. 15.º, do DL n.º 446/85, de 25-10, concluiu não ser a mesma atentatória das exigências da boa fé, não enfermando, portanto, de nulidade.

É contra este entendimento que se insurgem os ora recorrentes, sustentando, em suma, que a cláusula do contrato de seguro em causa nos autos, que concretiza as condições em que o segurado poderá ver accionado o seguro por incapacidade total e permanente, é abusiva, ambígua e contraditória, violando os princípios da boa fé, da segurança e da confiança jurídicas, além de outros direitos constitucionalmente protegidos, dado que os três requisitos cumulativos exigidos para que o autor possa ser qualificado como incapaz nos termos do contrato extravasam o normalmente admissível e retiram conteúdo funcional ao seguro, beneficiando a posição da seguradora em detrimento do segurado, sem razão plausível.

Pedem, por isso, que tal cláusula seja declarada nula e de nenhum efeito nos termos dos arts. 286.º do CC, 15.º do DL n.º 446/85, de 25-10, e 20.º, 37.º e 60.º da CRP.

Crê-se, porém – desde já se adiante, e sempre salvaguardando o muito respeito - ,ser manifesto que não lhes assiste razão.

Senão, vejamos:

O contrato de seguro é – na linha da elucidação de J. C. MOITINHO DE ALMEIDA[3]-“aquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos ou, tratando-se de evento relativo à pessoa humana, entregar um capital ou renda ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de pretensão a realizar em data determinada.

Ora, face à factualidade dada como provada supra, sob os pontos 1. a 7. e 9. a 11., dúvidas não restam estar aqui em causa um contrato de seguro do ramo vida subscrito pelos recorrentes – concomitantemente com os mútuos hipotecários contraídos na mesma data, junto do DD, S.A., para aquisição de dois imóveis –, seguro esse destinado a garantir o risco de morte, mas também, a título complementar, o risco de invalidez total e permanente, pelo valor do capital mutuado, sendo, portanto, seu beneficiário o referido Banco credor.

Trata-se, de resto, de qualificação jurídica de todo pacífica nos autos.

O dissenso entre as partes centra-se, na verdade, conforme já salientado, tão só no âmbito da cobertura complementar do aludido seguro, atinente ao risco de invalidez total e permanente, ou, mais concretamente, na cláusula constante do art. 1.º, n.º 1, das condições especiais do contrato, que prevê as condições de que depende o seu acionamento, e à qual é assacada o vício da nulidade.

Pois bem.

As cláusulas contratuais gerais, é sabido, são entendidas como proposições pré-elaboradas, sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitam a subscrever ou a aceitar (art. 1.º, n.º 1, do DL n.º 446/85, de 25-10, que aprovou o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais e que doravante se designará por RJCCG).

Tais cláusulas caracterizam-se, assim: (i) pela sua generalidade, uma vez que se destinam a ser propostas a destinatários indeterminados ou a ser por eles subscritas; e (ii) pela sua rigidez, por serem elaboradas sem prévia negociação individual e recebidas em bloco por quem as subscreve ou aceita, que, assim, não tem qualquer possibilidade de modelar o seu conteúdo, nem de introduzir nelas alterações[4].

Ora, no contrato de seguro do ramo vida associado a um crédito à habitação – como o que está em causa nos autos –, é a seguradora quem exclusivamente estabelece as cláusulas a que o contrato de seguro há-de obedecer, vertendo-as na respectiva apólice, à qual os segurados se subordinarão, caso queiram aderir à sua subscrição, e daí que o mesmo seja, tipicamente, um contrato de adesão que, enquanto tal, está sujeito ao regime previsto no citado DL n.º 446/85, de 25-10.

À semelhança da nossa lei civil básica, na qual a boa fé se encontra amplamente consagrada – como sucede, desde logo, em matéria de cumprimento das obrigações e de exercício de um direito (arts.762.º, n.º 2, e 334.º do CC) – também nesta sede, de cláusulas contratuais gerais, a boa fé é proclamada como princípio geral orientador.

Com efeito, dispõe o art. 15.º do RJCCJ que “São proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé”, acrescentando o art. 12.º do mesmo regime que “As cláusulas contratuais gerais proibidas por disposição deste diploma são nulas nos termos nele previstos.”

Prevê-se, assim, quanto a este aspecto, solução que corresponde ao direito comum (arts. 280.º, n.º 1, e 294.º do CC).

Apesar de a boa fé assumir, em geral, um duplo sentido, posto que “ora significa a consciência ou convicção justificada do sujeito de ter um comportamento conforme ao direito – a boa fé subjectiva –, ora traduz uma regra de conduta – a boa fé objectiva”, é certo que o preceito analisado – art. 15.º do RJCCG – se reporta à boa fé objectiva[5], ou seja, “a uma cláusula geral, que exprime um princípio normativo. Portanto, não se fornece ao julgador uma regra apta a aplicação imediata, mas apenas uma proposta ou plano de disciplina, exigindo a sua mediação concretizadora. Deixa-se aberta, deste modo, a possibilidade de atingir as situações carecidas de uma intervenção postulada por exigências fundamentais de justiça.“[6]

Conforme observa, a este propósito, JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO[7], “em vez de actuar no interior de uma relação já constituída, modelando integrativa e restritivamente os procedimentos que as partes devem adoptar, na fase da sua execução, a boa fé incide directamente, neste campo, sobre as estipulações que se propõem determinar o conteúdo contratual. Em posição frontalmente antagónica à autonomia privada, ela constitui-se aqui como uma heteronomia inevitável, pois, independentemente da concreta conduta do utilizador, traça, em abstracto, limites objectivos que ele tem imperativamente que observar como condição de eficácia das cláusulas por si introduzidas no contrato. Dando corpo a autênticas normas gerais de proibição de conteúdos, a boa fé desempenha, assim, nesta área, um papel que habitualmente cabe à ordem pública e aos bons costumes.”

A aplicação da boa fé, como critério do controlo do conteúdo das cláusulas contratuais gerais, encontra assim justificação na ideia de que – de novo segundo o mesmo Mestre[8]“quem, pelo modo de contratar utilizado, fica em posição de adulterar, em seu benefício, a paridade dos termos contratuais, sujeita-se, por isso mesmo, à especial obrigação de cuidar dos interesses dos parceiros com quem vai entrar em relação, cumprindo-lhe evitar estipulações que importem a lesão desproporcionada desses interesses.”

Por outro lado, sendo as cláusulas contratuais gerais, por definição, estipulações destinadas a valer numa multiplicidade de relações – uma vez mais conforme o Prof. Sousa Ribeiro[9]“os interesses a ponderar não são os que eventualmente marcam, de forma individualizadora, cada contrato singular, mas os interesses típicos do círculo de contraentes normalmente envolvidos numa operação negocial daquele género. Só esses interesses o predisponente, na sua actividade planeadora dos termos uniformes dos seus futuros contratos, pode de antemão descortinar e tomar em consideração. Só eles, por consequência, devem entrar na valoração do conteúdo do contrato, o mesmo é dizer, na valoração do cumprimento do dever, que a boa fé faz recair sobre o predisponente, de não prejudicar excessivamente a contraparte, através de estipulações desproporcionadas.”

Esta ideia de proporcionalidade, de equilíbrio e de igualdade, é também considerada – note-se - por JOSÉ MANUEL DE ARAÚJO BARROS[10], quando refere que o princípio geral da boa fé plasmado no art. 15.º do RJCCG entronca na própria razão de ser da protecção jurídica conferida por este regime.

A etiologia fundamental da figura das cláusulas contratuais gerais decorre, pois, da constatação de que, sem a preservação de um mínimo de igualdade, não é possível falar em liberdade das partes na conformação da vontade negocial. A consagração do princípio geral da boa fé – com um alcance muito mais vasto do que os limites clássicos ao princípio da liberdade contratual impostos pelas tradicionais normas protectoras[11] ou pela consagração de proibições relativas[12], que se revelarem insuficientes neste campo – visa, assim, repor a igualdade nas relações jurídico-negociais, face a uma desigualdade que axiomaticamente se pressupõe. E tal “porque a massificação e generalização influenciaram a disciplina contratual de tal modo que os meios de pressão e de sugestão podem ser potenciados de forma a anularem completamente qualquer apriorística liberdade de contratar”, de modo que “age de má fé quem, valendo-se da vantajosa posição contratual, cria em seu favor um marcante desequilíbrio das prestações.[13]

Refira-se, aliás, que o “significativo desequilíbrio” das prestações foi o critério eleito pela Directiva n.º 93/13/CEE, do Conselho, de 5 de Abril de 1993[14] (relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com consumidores) para aferir da natureza abusiva de uma cláusula, estatuindo-se no seu art. 3.º, n.º 1, que “Uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.”

E como expende ALMENO DE SÁ[15]“Tal desequilíbrio surge como resultante de uma perturbação do processo formativo do contrato, perturbação essa “exposta” pela ausência de negociação individual”, pelo que “Verifica-se, assim, uma estreita conexão entre dois vectores, que formam na sua unidade, a “bitola” de fiscalização instituída: orienta-se pelo princípio da boa fé, mas exige a presença de um significativo desequilíbrio dos direitos e deveres dos contraentes, em detrimento do consumidor.”

Ora – e sempre na senda de ALMENO DE SÁ[16]‑não obstante a lei portuguesa apenas convocar o princípio da boa fé como cláusula geral de controlo, sem que, portanto, se indique, de forma expressa, uma “medida” ou contra pólo aferidor que marque o horizonte de sentido pelo qual o juiz, no quadro genérico desse princípio, deve orientar a sua intervenção correctora, crê-se que os critérios concretizadores a que a lei alude no art. 16.º do RJCCG, aliados ao escopo tido em vista com o consagrado mecanismo de sindicância do conteúdo das cláusulas contratuais gerais, permitem concluir que a ideia de um adequado equilíbrio contratual de interesses assume aqui um papel preponderante, cabendo, pois, à jurisprudência fazer essa ponderação.

Sendo que – e consoante o mesmo Autor [17]-, “tal equilíbrio será posto em causa se o utilizador procurar realizar a todo o custo, na conformação do contrato, os seus próprios objectivos, sem atender, de forma minimamente razoável, aos legítimos interesses do cliente.”

Donde, nessa ponderação de interesses, cumprirá atender, por um lado, “aos justificados interesses daquele que recorre a condições negociais gerais, designadamente de racionalização, certificação e uniformização e, por outro, aos interesses da contraparte, tal como eles resultam de uma consideração aprofundada das normas legais e princípios que tenham conexão com o tipo negocial em causa.[18]

O objectivo negocial visado pelas partes é, aliás, um dos vectores a que, na concretização do princípio da boa fé, o legislador faz apelo.

Dispõe, neste particular, o art. 16.º, do RJCCG, que “Na aplicação da norma anterior devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada e, especialmente:

a) A confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;

b) O objectivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efectivação à luz do tipo de contrato utilizado.

Com essa remissão para os valores fundamentais do direito, em face da situação concreta, pretende-se que a decisão obedeça aos ditames da dogmática jurídica, excluindo-se, dessa forma, quer a hipótese de arbítrio, quer uma solução que atenda apenas às características do caso concreto, dado que os valores fundamentais do direito, ainda que só detectados em concreto, correspondem a vectores genéricos, referenciáveis em abstracto[19].

Consagram-se, para além disso, no citado normativo, outros dois critérios fundamentais para definir a contrariedade à boa fé e, consequentemente, para aferir do carácter abusivo de uma cláusula, a saber: (i) o critério da confiança; e (ii) o objectivo negocial visado pelas partes.

Nas palavras de ARAÚJO BARROS [20]“o objectivo não é mais do que o interesse que a parte visa satisfazer com o contrato. A confiança reporta-se à legítima expectativa quanto a um equilíbrio desse interesse com o da contraparte. Há, assim, como que uma presunção jure de jure de que não actua de boa fé aquele que, iludindo a confiança depositada pela contraparte contratual, elegeu determinada cláusula da qual objectivamente para si resulta vantagem injustificável, tendo em conta os interesses dos contraentes.

(…)

Em suma, e procurando alguma materialidade no enunciado da lei, uma cláusula será contrária à boa fé se a confiança depositada pela contraparte contratual naquele que a predispôs for defraudada em virtude de, da análise comparativa dos interesses de ambos os contraentes, resultar para o predisponente uma vantagem injustificável.”

O desiderato subjacente à tutela de que se vem cuidando é, por conseguinte, o de corrigir eventuais abusos por parte de quem predispôs os termos do contrato, à luz da relação contratual a constituir, e daí que o legislador aluda à ponderação dos “valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada”.

No entanto – e consoante também salienta ARAÚJO BARROS[21]“Este caminhar para o concreto tem, todavia, um limite, dado que a boa fé que aqui se quer sindicar é a do predisponente e, sendo que o diploma está originariamente vocacionado para regular cláusulas dirigidas a uma generalidade de pessoas, o critério dessa boa fé só poderá abarcar a forma como o autor lida com o destinatário previsível das mesmas. Não sendo de lhe contrapor, pois, características ou interesses dos indivíduos que venham a aceitar as cláusulas que se não identifiquem com os interesses típicos do universo de pessoas a quem aquelas foram dirigidas.

Decorrentemente, a confiança a que alude a al. a), do art. 16.º, do RJCCG, deve ser aferida por padrões normalizantes, como o sentido global das cláusulas ou o teor do contrato, da mesma forma que o objectivo negocial a que se refere a al. b) do mesmo normativo deve ser delineado à luz do tipo de contrato utilizado.

Não é, portanto, qualquer confiança depositada pelas partes que é merecedora de protecção, mas antes tão só e apenas a que se reporta ao normal destinatário. Por sua vez, o objectivo negocial a atender será somente aquele que se identifica com os interesses que tipicamente se visam realizar através do contrato em que as cláusulas se inserem. 

E compreende-se que assim seja, porquanto, dirigindo-se as cláusulas a uma generalidade de destinatários, os interesses que o predisponente deve ponderar em termos de não abusar da sua privilegiada situação, serão precisamente os desse universo de pessoas, consubstanciando-se no objectivo típico dos que pactuam contratos como aquele onde as cláusulas se inserem.

Com efeito, são as cláusulas contratuais gerais, através dos tipos negociais que prefiguram, que indiciam, no seu conjunto, os objectivos prosseguidos pelas partes, os quais devem obter realização prática.

Pelo que, conforme sublinha, a este propósito, PINTO MONTEIRO[22], não poderão ser convencionalmente retiradas ao contrato, sob pena de se frustrar a respectiva finalidade, as obrigações que constituam elementos essenciais do tipo contratual (ou, dito de outro modo, que constituam a sua causa ou a função económico-social que é própria desse contrato) e nem as obrigações que se apresentam como essenciais na economia do contrato, tendo em conta o escopo prosseguido pelas partes, uma vez que a sua exclusão impediria a obtenção do resultado pretendido.

Dir-se-á, assim e em síntese, que serão abusivas, à luz dos critérios enunciados no art. 16.º do RJCCG, porque opostas à boa fé e, como tal, proibidas: (i) as cláusulas que ofendam a confiança legítima (e, portanto, a confiança não contrária a outros valores jurídicos ou aos deveres de indagação que no caso caibam) provocada pelos factores enunciados na lei (o sentido global das cláusulas, o processo de formação do contrato singular e o teor deste); e (ii) as cláusulas que, sem justificação legítima, contrariem, dificultem ou impeçam os objectivos prosseguidos pelas partes com o contrato.

Sem embargo, os enunciados vectores não esgotam, ainda assim, o alcance do princípio da boa fé como critério de ponderação do conteúdo do contrato, cumprindo igualmente atender aos “valores fundamentais do direito”, a que o art. 16.º do RJCCG primariamente se refere (isto é, os valores de justiça e de equivalência contratual que devem presidir à modelação das cláusulas contratuais gerais e informar a apreciação da sua eficácia), bem como à ideia de equilíbrio, ou de reequilíbrio, das prestações que, por sua vez, tem subjacente a de reposição de igualdade.

O mesmo é dizer que, sendo a tutela que domina toda esta área norteada pela proibição dos excessos desequilibradores em que se traduz o princípio da boa fé, o que importa é que exista sempre um processo de ponderação dos interesses contrapostos, do utilizador e do aderente das cláusulas contratuais gerais, com vista a ajuizar do equilíbrio na sua conformação, assim se cumprindo, em pleno e sem lacunas, a finalidade tuteladora do controlo do conteúdo das cláusulas que se vem analisando[23] .

No fundo, para decidir da conformidade à boa fé, mister se torna fazer um juízo comparativo entre a ordenação levada a cabo pelas cláusulas contratuais gerais e a que resultaria de uma equilibrada ponderação de interesses.

No que tange em concreto ao contrato de seguro - em que, como se deixou dito, se recorre a cláusulas pré-redigidas e gerais, impostas, desde logo, por exigências técnicas (já que os riscos que o segurador assume devem ser homogéneos de modo a poderem constituir objecto de compensação estatística) - , tal como faz notar MOITINHO DE ALMEIDA[24], são frequentes cláusulas que limitam arbitrariamente a protecção dos segurados ou tornam particularmente difícil o exercício dos direitos que a estes pertencem, e que, contrapostamente concedem injustificados direitos aos seguradores.

Assim, para aferir da natureza abusiva de uma cláusula neste domínio, deve ponderar-se a finalidade do contrato e quando, em resultado de cláusulas de exclusão ou limitativas, a cobertura fique aquém daquela que o tomador podia de boa fé contar, tendo em consideração o objecto e a finalidade do contrato, devem tais cláusulas ser consideradas nulas[25] .

Isto tudo exposto, analisemos, então, a tal luz, essa cláusula constante do art. 1.º, n.º 1, das condições especiais do contrato de seguro, à qual os recorrentes imputam o vício da nulidade, sendo que, conforme dimana do acervo factual provado, é o seguinte o seu teor:

- Considera-se invalidez total e permanente o estado em que se encontre a pessoa segura quando, cumulativamente, e em consequência de doença ou acidente, se verificarem relativamente a ela as três condições seguintes:

a. Total incapacidade para o exercício da sua profissão ou para qualquer outra actividade lucrativa compatível com as suas capacidades, conhecimentos e aptidões;

b. Perda de ganho de, pelo menos, 2/3 do rendimento auferido na profissão declarada, em consequência do seu estado;

c. Irreversibilidade da invalidez total e clinicamente consolidada, isto é, sem quaisquer esperanças de haver melhoras no seu estado de saúde por continuação de tratamento médico.

Em causa está, como já se referiu, um seguro, pactuado conjuntamente com dois mútuos hipotecários, que garante, em caso de morte ou de invalidez total e permanente (em consequência de doença ou acidente), a liquidação ao Banco mutuante do montante em dívida, tanto de capital como de juros.

Resulta, assim, ser evidente que o escopo específico de tal contrato é o de garantir que caso um dos segurados morra ou se veja incapacitado de trabalhar e, consequentemente, de auferir rendimentos, fique assegurado o pagamento ao Banco do “quantum” em dívida, libertando-se o outro desse encargo. É, pois, este, o preciso interesse dos segurados.

Já o interesse do Banco, enquanto mutuante, consiste em ver reforçada a garantia de que o montante emprestado, bem como os respectivos juros, lhe serão pagos, ainda que os mutuários possam ficar em situação que impossibilite ou dificulte essa restituição.

No que concerne aos riscos tipificados no contrato, são eles a morte e a invalidez total e permanente em consequência de doença ou acidente da pessoa segura.

É, portanto, de meridiana clareza que os ditos eventos relevam na medida em que afectem a capacidade dos mutuários de auferir rendimentos que lhes permitam satisfazer a dívida que assumiram.

E é justamente nesse sentido o entendimento que vem sendo sufragado por este Tribunal Supremo[26], afirmando repetidamente que, à luz dos fins que presidem a um seguro como aquele em causa nos autos, o sinistro ou a verificação do risco ocorre quando os réditos dos devedores (aderentes) ficam comprometidos em ordem ao regular reembolso do mútuo, em razão da invalidez total e permanente que os torna incapazes de exercer uma actividade remunerada.

Nesta conformidade, a cláusula constante das condições especiais da apólice, na qual se explicita o que deve entender-se por invalidez total e permanente, definindo-se quais as condições cumulativas de que depende a indemnização contratada evidencia-se perfeitamente compreensível e expectável para qualquer aderente de um contrato de seguro semilar, posto que aí mais não se faz do que reconduzir a mencionada invalidez ao estado daquele que, por força de doença ou acidente, fique total e irreversivelmente incapacitado de exercer a sua profissão ou outra actividade compatível com as suas habilitações, conhecimentos e experiência, e que, em consequência desse estado, tenha uma perda da capacidade de ganho de, pelo menos, 2/3, deixando, como tal, de poder auferir rendimentos que lhe permitam pagar a dívida.

Não se vê, assim, salvo sempre o muito respeito, que tal cláusula restrinja, de forma desproporcionada, os direitos dos segurados que aderiram à cobertura complementar de invalidez total e permanente, e nem que frustre a confiança que os mesmos, razoável e legitimamente, nela depositaram face ao sentido global das cláusulas, ao processo de formação do contrato e ao seu teor; e muito menos se vislumbra que tal cláusula esvazie de conteúdo o objectivo visado pelas partes ao contratar.

Na verdade, a cláusula em análise limita-se a clarificar o conceito de invalidez total e permanente ou, dito de outro modo, o risco coberto pelo seguro, sendo que era naturalmente com essa cobertura que os segurados, tendo em conta a finalidade do contrato, podiam razoavelmente contar, a qual, consequentemente, não resulta, de modo nenhum, contrariada, impedida ou sequer dificultada por essa estipulação.

De resto, não vemos como negar que do juízo comparativo que se faça entre a ordenação levada a cabo na cláusula em apreço e a que resultaria de uma equilibrada ponderação de interesses – da recorrida enquanto predisponente da cláusula e dos recorrentes enquanto aderentes – não se extrai solução diversa, não podendo, como tal, dizer-se que a cláusula contraria a boa fé, o princípio da confiança e muito menos que esvazia de conteúdo o contrato de seguro, ou que confere à seguradora uma vantagem injustificada e desproporcionada.

Na realidade – mais se anote - , a ora enfocada cláusula nem sequer se afasta da definição de invalidez constante do diploma que vigorava à data em que foi outorgado o contrato de seguro, e que definia a protecção nas eventualidades de invalidez e velhice dos beneficiários com enquadramento obrigatório no regime geral de segurança social (DL n.º 329/93, de 25-09 [27]).

Com efeito, previa-se no art. 2.º, n.º 1, do citado Decreto-Lei, que “Integra a eventualidade invalidez toda a situação mórbida, de causa não profissional, determinante de incapacidade permanente para o trabalho.”

Dispunha, por sua vez, o art. 17.º desse diploma legal que “Considera-se em situação de invalidez o beneficiário que, em consequência de incapacidade permanente, física ou mental, não possa auferir na sua profissão mais de um terço da remuneração correspondente ao seu exercício normal”; acrescentando o n.º 2 do mesmo normativo que “A incapacidade para o trabalho é permanente quando seja de presumir que o beneficiário não recuperará, dentro dos três anos subsequentes, a capacidade de auferir no desempenho da profissão mais do que 50% da remuneração correspondente.”

Como ressalta evidente, a cláusula em apreço não se afasta das definições ínsitas nesses transcritos normativos, antes com elas coincidindo, ficando assim reforçada a ideia de que não se verifica, por força dessa estipulação, qualquer redução, desproporcionada ou drástica, do risco coberto pelo seguro que favoreça injustificadamente a seguradora em detrimento dos aderentes.

Por seu turno, e no que tange à protecção da confiança, tem-se por certo que da análise que se faça da cláusula concernente à cobertura complementar de invalidez total e permanente – no contexto do contrato celebrado, quando considerado na sua globalidade e tendo em mente o seu teor e finalidade – se tem, necessariamente, de concluir que os recorrentes, a exemplo de qualquer outro destinatário que àquele aderisse, apenas podem ter adquirido a confiança de que, caso viessem a ficar total e permanentemente incapacitados de trabalhar e, consequentemente, de auferir rendimentos, a seguradora satisfaria o montante, de capital e juros, que estivesse em dívida ao Banco por força dos contratos de mútuo celebrados. Mas já não podem ter adquirido, como é evidente, a confiança de que tal prestação indemnizatória seria satisfeita perante qualquer incapacidade - independentemente de ficar ou não afectada a sua capacidade para trabalhar e para angariar rendimentos - , posto que tal hipótese está, obviamente, longe de se enquadrar na finalidade subjacente ao contrato de seguro em questão.

Foi, de resto, essa a finalidade e a razão de ser do contrato de seguro que os recorrentes expressamente invocaram na petição inicial, alegando ser precisamente para salvaguardar o crédito, perante a indisponibilidade permanente para a profissão e a impossibilidade de auferir rendimentos, que se impõe a outorga deste tipo de contratos.

Destarte, não se vislumbra em que medida a confiança depositada no dito contrato poderia ficar defraudada e muito menos se concebe, ponderando os interesses de ambos os contraentes, que a seguradora aufira, por força da dita cláusula, uma qualquer vantagem injustificada ou desproporcionada.

Tudo para concluir, pois, que não sendo a cláusula em questão desproporcionada, não favorecendo injustificadamente a posição contratual do predisponente e também não prejudicando inequitativa e danosamente o aderente, não pode a mesma considerar-se abusiva nos termos dos arts. 15.º e 16.º do RJCCG.

Por outro lado, e contrariamente também ao invocado pelos recorrentes, a dita cláusula não contém qualquer ambiguidade, não sendo, por isso, susceptível de criar confusão quanto à medida da incapacidade exigível para o accionamento da cobertura em questão.

Com efeito, os recorrentes, sempre com o muito respeito, confundem – ou intentam a tal –, a medida da incapacidade permanente geral fixada, ou, mais rigorosamente e de acordo com a actual definição, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica com a incapacidade para o trabalho - conceitos estes que, é certo, não são susceptíveis de ser confundidos. Na verdade, aquele representa o parâmetro de dano que corresponde à afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, constitutiva de um défice que pode ter eventual repercussão nas actividades da vida diária e na actividade profissional, mas que é independente desta, sendo avaliado em relação à capacidade integral do indivíduo. E daí que um défice, ainda que fixado em menor percentagem daquele que, face ao acervo factual provado, foi fixado ao autor, possa ter como consequência uma incapacidade total para o trabalho habitual; ao passo que um fixado em maior percentagem pode não ter nessa actividade qualquer repercussão em termos de impedir o seu desempenho, ainda que com esforços acrescidos - tudo dependendo, afinal, das limitações de que a pessoa afectada tenha ficado a padecer e, bem assim, das tarefas e esforços que aquela actividade demande[28].

Não pode, assim, colher a tese dos recorrentes de que, face ao teor da primeira condição inserta na cláusula em análise, se fica sem saber qual o quantitativo exigível para que a pessoa segura se considere em situação de invalidez total e permanente, posto que, independentemente do défice que, em concreto, for fixado, o que releva é tão só e apenas que se verifique uma total incapacidade para o exercício da profissão habitual, ou para outra compatível com as capacidades, conhecimentos e aptidões da pessoa segura.

Também no que tange à perda da capacidade de ganho não inferior a 2/3 se dirá que se trata de condição que não suscita qualquer dúvida, sendo antes uma decorrência da primeira que, para além disso, vai ao encontro do interesse das partes na celebração do contrato. Com efeito, sendo precisamente a impossibilidade de auferir rendimentos e a consequente impossibilidade de liquidar as prestações mensais do mútuo ao Banco que se visa acautelar com a celebração do contrato de seguro, não se vê em que medida é que tal cláusula possa gerar confusão ou ser atentatória da boa fé.

O que decorre da aludida condição é apenas e só que a perda da capacidade de ganho se terá de situar, no mínimo, em 2/3, o que, ponderando os contrapostos interesses, se afigura equilibrado, atendendo a que, face ao escopo do contrato, se a dita perda for inferior àquele limite, razoável é concluir que o risco de incumprimento do empréstimo por parte do mutuário não se agravou ou, pelo menos, não se agravou em termos tão intensos que justifiquem o accionamento do seguro[29].

Refira-se, aliás, que tal juízo e ponderação é igualmente o que deflui da solução que, à data da outorga do contrato de seguro, se encontrava consagrada na lei para efeitos de protecção na eventualidade de invalidez e da consequente atribuição de pensão a beneficiários enquadrados no regime da segurança social, sendo que já então se entendia que o reconhecimento da situação de invalidez estava dependente não só da incapacidade permanente para o trabalho, mas também da impossibilidade de auferir na sua profissão mais do que um terço da remuneração correspondente ao seu exercício normal (cf. art. 17.º, n.º 2, do já citado DL n.º 329/93, de 25-09)[30] .

Donde, se era essa a previsão legal para a situação de invalidez, há igualmente que entender que a previsão constante da cláusula contratual em apreço, para além de não ser desajustada ou inadequada e de também não criar qualquer desequilíbrio entre as prestações, não enferma de qualquer ambiguidade, desde logo porque o sentido atribuído à invalidez, ainda que para efeitos de atribuição de uma pensão, já então era entendido, por força da lei, como estando dependente da perda da capacidade de ganho, a qual, de resto – insista-se ‑constitui a verdadeira causa do contrato.

Por todas estas razões expendidas, pois, a cláusula em questão não é nula, nem enferma de qualquer ambiguidade. Sendo certo que, ainda que fosse ambígua, não enfermaria de nulidade, antes valendo com o sentido que lhe daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-la ou aceitá-la, quando colocado na posição de aderente real (art. 11.º, n.º 1, do RJCCG).

Ora, esse sentido, face ao que se deixou explanado, só pode ser o que acima se apontou, soçobrando assim igualmente, e por esta via, a invalidade que os recorrentes porfiam em assacar à cláusula constante do ponto 1 do art. 1.º das condições especiais do contrato de seguro.

Por outro lado, não há que chamar à colação a cláusula de invalidez absoluta e definitiva constante das condições gerais da apólice de seguro, posto que, tal como os recorrentes expressamente reconhecem, não havendo os mesmos subscrito tal cobertura e também não tendo sido ao abrigo da mesma, a qual assenta em pressupostos diversos[31], que deduziram o seu pedido indemnizatório, a alegação assim feita surge totalmente insubsistente e falha de sentido.

Na verdade, o que releva para o caso, e se patenteia de todo incontornável, é que os recorrentes não lograram sequer provar que o autor, em consequência do acidente que o vitimou, tenha ficado totalmente incapacitado para a sua profissão, quanto mais para o exercício de outra qualquer actividade, compatível com as suas habilitações e capacidades, que fosse susceptível de gerar rendimentos.

Com efeito, nesse conspecto, apenas se provou que, em consequência do acidente de viação que o vitimou em 23-07-2006, o autor apresenta um défice funcional permanente da integridade física ou psíquica fixado em 46 pontos e que as lesões por ele sofridas e as dores causadas tiveram influência no exercício das tarefas que desempenhava no âmbito da sua actividade profissional enquanto director de vendas e lhe determinaram dificuldade de mobilidade e deslocação (cfr. factos provados sob os pontos 16. a 21.), dados estes, porém, que são manifestamente insuficientes para que se tenha por preenchido o conceito de invalidez total e permanente abrangido pelo seguro.

Ou seja, ainda que esteja adquirido que as lesões decorrentes do aludido acidente tiveram influência no exercício das tarefas que o autor desempenhava profissionalmente, já não ficou demonstrado que, após o período de recuperação e por força das ditas sequelas, o autor não tenha logrado manter a aptidão, diligência e capacidade que as suas funções exigiam, que tenha deixado de exercer essas funções em moldes semelhantes aos anteriores, que as sequelas e lesões resultantes do acidente impliquem inabilidade, ainda que descontínua, da generalidade dos trabalhos laborais, que o exercício da sua profissão de director de vendas se tenha tornado impossível e muito menos que esteja impedido de desempenhar qualquer outra actividade remunerada (cf. factos dados como não provados sob os pontos 3. a 7).

Ora, a falta de prova desses factos, constitutivos do alegado direito do recorrente, é quanto basta para que lhe faleça base e razão no pretendido accionamento do contrato de seguro em causa (art. 342.º, n.º 1, do CC)[32].

Dúvidas não restam, por isso, que, não sendo a cláusula atinente à cobertura complementar de invalidez total e permanente inválida e não se enquadrando o caso ajuizado, em face da factualidade dada como provada, no âmbito do contrato de seguro, não pode ser assacada qualquer censura ao acórdão recorrido que, assim sendo, se terá de manter integralmente.


*


Sem embargo, refira-se ainda que, em todo o caso, a pretensão dos recorrentes sempre estaria votada a insucesso, por isso que, mesmo que se declarasse a nulidade da cláusula em questão, a conclusão a que se chegaria seria exactamente a mesma que acima se enunciou.

É que, na falta da dita cláusula, a solução – tal como se decidiu no Acórdão deste Supremo de 17-10-2019[33]- passaria por determinar, mediante via interpretativa, qual o conteúdo e o sentido da expressão “invalidez total e permanente” coberta pelo contrato de seguro.

De tal sorte, valendo, nesse quadro, as regras de interpretação e integração dos negócios jurídicos, ainda que dentro do contexto do contrato de singular em que se inserem, o conteúdo e o sentido da dita expressão haveria de ser determinado à luz da teoria da impressão do destinatário, segundo a qual “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”(art. 236.º, n.º 1, do CC aplicável “ex vi” do disposto no art. 10.º do RJCCG).

Ora, a invalidez total e permanente de que se vem cuidando, convencionada num contrato de seguro – a exemplo daquele a que nos vimos atendo –, celebrado juntamente com um mútuo hipotecário, com o fito de garantir que, perante a invalidez das pessoas seguras, a seguradora liquidasse ao Banco o valor que estivesse em dívida, não poderia deixar de ser entendida por um declaratário normal, colocado na posição dos recorrentes, senão como uma situação em que a pessoa afectada se encontrasse num estado que a deixasse total e irremediavelmente incapaz de exercer uma actividade laboral, em termos de lhe ser inviável obter meios de subsistência.

Qualquer declaratário normal, medianamente sagaz, colocado naquela posição, entenderia a invalidez total e permanente como uma situação de incapacidade que, para além de o ser para o exercício de qualquer actividade laboral (total), seria irreversível (permanente). Quer isto dizer, uma situação pressupondo a total impossibilidade da pessoa por ela afectada poder angariar os indispensáveis proventos à sua sobrevivência e, ainda, achar-se essa contingência irreversivelmente consolidada[34].

Refira-se, de resto, que foram esses os pressupostos que os recorrentes, de efeito, procuraram preencher factualmente para fazer valer a sua pretensão indemnizatória quando intentaram a presente acção, sem que o teor da dita cláusula lhes houvesse suscitado qualquer dúvida ou patenteasse qualquer ambiguidade ou ininteligibilidade.

O mesmo é dizer que a cláusula constante do ponto 1. do art. 1.º das condições especiais do contrato de seguro em causa nos autos – concernente à cobertura complementar de invalidez total e permanente – na qual os recorrentes começaram por ancorar o seu pedido é, agora, a mesma que, numa derradeira tentativa de obter vencimento na acção, pretendem ver invalidada, invocando, para tanto, a sua nulidade – o que,como é bom de ver, dificilmente se compreende.

Em suma, por todas as razões aduzidas, não tendo os recorrentes logrado sequer demonstrar que o autor, por força do acidente que o vitimou, tenha ficado, total e irreversivelmente, incapacitado para o exercício da sua actividade laboral e, consequentemente, que esteja impossibilitado de auferir rendimentos, não pode ter-se por verificada a invalidez total e permanente que faria nascer o seu direito a exigir da seguradora o pagamento da quantia garantida pelo seguro (art. 342.º, n.º 1, do CC).

Donde, e rematando, o recurso tem necessariamente de naufragar.


2. Aqui chegados, importa ainda atentar na requerida – por parte da recorrida - condenação por litigância de má fé dos recorrentes.

Como narrado, em sede de contra-alegações, veio a recorrida invocar que os recorrentes litigam com manifesta e despudorada má fé, sendo prova disso a forma como articulam e deturpam os factos, devendo, por conseguinte, ser condenados numa multa, quer a favor do Tribunal, quer a seu favor, que englobe o reembolso de todas as despesas com a presente causa, designadamente as taxas de justiça e os honorários de mandatário, a fixar de acordo com a gravidade dos factos.

Alicerça este seu pedido em factos que afirma terem ocorrido ao longo do processo, designadamente em sede de audiência de julgamento (aquando da prestação das declarações de parte dos recorrentes), factos esses que, no seu entender, aliados ao facto que extrai de uma certidão do registo comercial que invoca e cujo código de acesso indica, preencheriam a noção de má fé, expressa em sede do art. 542.º, n.º 2, do CPC.

A condenação dos recorrentes como litigantes de má fé estaria, assim, dependente da prova dos factos atinentes ao comportamento por eles alegadamente assumido ao longo do processo, designadamente nos articulados e na audiência de julgamento.

Sucede, porém, que essa factualidade não vem dada como provada pelas instâncias e era a estas que cabia atender e pronunciarem-se – a requerimento da contraparte (caso tivesse sido deduzido tal pedido) ou oficiosamente (se os autos reunissem, por si só, elementos nesse sentido) – sobre a materialidade supostamente integrante da litigância de má fé em referência, dando-a como provada ou como não provada, depois de devidamente observado o princípio do contraditório (art. 3.º, n.º 3, do CPC).

Com efeito, inserindo-se tal litigância maliciosa na tramitação da causa, assume, processualmente, a estrutura de um incidente da instância, comportando, como tal, produção de prova.

Ora, o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, não conhece, em regra, de matéria de facto, limitando-se a aplicar definitivamente o direito aos factos materiais fixados pelas instâncias, às quais, ressalvadas as excepções expressamente previstas na lei, cabe, nesse campo, a última e derradeira palavra (arts. 674.º, n.º 3, e 682.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

Pelo que, na falta dos ditos factos, caracterizadores da conduta dos recorrentes, que a recorrida entende serem subsumíveis à previsão contida no art. 542.º, n.º 2, do CPC, não pode o pedido de condenação por litigância de má fé ora em atinência deixar de ser –como vai - relegado à improcedência.

Tudo visto, resta, pois, findar com a seguinte

           

VI. DECISÃO

    Pelo exposto, decide-se - negar a revista, confirmando o Acórdão recorrido.

     Custas pelos recorrentes.


*

*



Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 10 de dezembro de 2019


Helder Almeida (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Olindo Geraldes

_________

[1] Rel.: Helder Almeida
Adjs.: Exm.ª Conselheira Maria dos Prazeres Beleza e
              Exm.º Conselheiro Olindo Geraldes.
[2] Com as alterações decorrentes da Rectificação n.º 114-B/95, de 31-08, do DL n.º 220/95, de 31-08, do DL n.º 249/99, de 07-07 e do DL n.º 323/2001, de 17-12.
[3] Cfr. O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, pp. 23-24.
[4] Neste sentido, cfr. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, Almedina, p. 415; e ALMENO DE SÁ, Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas, Almedina, p. 165.
[5] No mesmo sentido e para maiores desenvolvimentos, vide ANA PRATA, Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, Almedina, p. 326 e ss.
[6]Cfr. MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Cláusulas Contratuais Gerais, Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, Reimpressão, Almedina, pp. 38 e 39.
[7] Cfr. O Problema do Contrato, As Cláusulas Contratuais Gerais e o Princípio da Liberdade Contratual, Reimpressão, Almedina, p. 550.
[8] Cfr. ob. cit., p. 562.
[9]Ibidem, pp. 563-564.
[10]Cfr. Cláusulas Contratuais Gerais, DL N.º 446/85 – Anotado, Recolha Jurisprudencial, W. Kluver e C. Editora, p. 170 e ss..
[11]Como as referentes à divergência entre a vontade real e a declarada, ao dolo, à coacção, à simulação e à reserva mental.
[12]Como as dos negócios usurários ou dos pactos leoninos.
[13]ARAÚJO DE BARROS, ob. cit., p. 171.
[14] Publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias n.º L95/29, de 21 de Abril de 1993 e transposta para a ordem interna através do Decreto-Lei n.º 220/95, de 31-08, que alterou o DL n.º 446/85, de 25-10, uma vez que este já então vigorava no ordenamento nacional, inclusive com um âmbito objectivo e subjectivo mais vasto.
[15] Cfr. ob. cit., p. 33.
[16]Idem, p. 34.
[17]Idem, pp. 34-35.
[18]Idem, p. 35.
[19] Neste sentido: ALMEIDA COSTA e MENEZES CORDEIRO, ob. cit., p. 40.
[20] Cfr. ob. cit., pp. 171 e 172.
[21] Cfr. ob. cit., p. 184, que bem de perto se continuará a seguir.
[22]Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, p. 290 a 293 apud Ana Prata, ob. cit., p. 336.
[23]Veja-se, neste sentido e para maiores desenvolvimentos, Joaquim de Sousa Ribeiro, ob. cit., p. 568 e ss..
[24] Cfr. Contrato de Seguro, Estudos, C. Editora, p. 98.
[25] Neste sentido, ainda MOITINHO DE ALMEIDA, ob. cit., pp. 98 -100.
[26] Cfr., entre muitos outros, os Acs. de 07-10-2010, Proc. n.º 1583/06.7TBPRD.L1.S1, de 24-04-2014, Proc. n.º 6659/09.6TVLSB.L1.S1; de 18-09-2014, Proc. n.º 2334/10.7TBGDM.P1.S1, e de 27-09-2016, Proc. n.º 240/11.7TBVRM.G1.S1, todos disponíveis in dgsi.pt.
[27]Revogado, entretanto, pelo DL n.º 187/2007, de 10-05, que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e continuou a definir a eventualidade invalidez em termos semelhantes, embora tenha passado a distinguir a invalidez relativa da absoluta (vide arts. 2.º, n.º 1, 14.º, 15.º, 113.º, al a), e 115.º).
[28]A propósito destes conceitos, podem ver-se, designadamente, o DL n.º 352/2007, de 23-10 (que aprovou, além do mais, a Tabela Indicativa para a Avaliação da Incapacidade em Direito Civil) e as Portarias n.º 377/2008, de 26-05 e n.º 679/2009, de 25-06 (que fixam os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel de proposta razoável para indemnização do dano corporal).
[29]Sobre igual condição, num contrato de seguro em tudo equipolente ao dos autos, já o STJ se pronunciou, no Acórdão de 10-01-2017,proferido no Proc. n.º 3135/12.3TBVIS.C1.S1, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/06/civel2017.pdf, no qual é dado ler “(…) II – Tendo-se provado que o mutuário segurado sofreu um acidente vascular cerebral em que ficou com uma taxa de incapacidade permanente para o trabalho de 80%, mas apurando-se que o mesmo exercia à data do sinistro funções de gerente bancário e após o mesmo sinistro passou a desempenhar outras funções bancárias menos complexas e de menor responsabilidade e afastado do contacto com o público, mas que, por isso, não sofreu alteração do seu nível remuneratório, não se encontra preenchida a referida cláusula contratual do seguro.”
[30]Veja-se, a este propósito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-03-2012, proferido no Proc. n.º 3687/04.1TVLSB, com sumário disponível in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2012.pdf.
[31]No tocante à distinção entre as modalidades de cobertura de invalidez em causa e para maiores desenvolvimentos, veja-se ARNALDO FILIPE DA COSTA OLIVEIRA, “Seguro de Vida associado ao crédito à habitação: A “acordadíssima” jurisprudência relativa à cobertura de invalidez, seguida de Ponto da Situação do quadro regulatório aplicável” in Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano LVI (XXIX da 2.ª Série), Janeiro/Setembro, ano de 2015, n.º 1-3, pp. 200 e ss..
[32]É nesta conformidade que tem decidido este Alto Tribunal em casos em tudo semelhantes, citando-se, a título exemplificativo, os Acórdãos de 13-01-2009, Proc. n.º 3477/08, com sumário disponível in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2009.pdf; e de 09-02-2012, Proc. n.º 1222/09.4TBPNF.P1.S1, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2012.pdf.
[33] Proferido no Proc. n.º 2978/15.0T8FAR.E1.S1, disponível in dgsi.pt.
[34]Cfr. Ac. do STJ de 9-07-2014, Proc. n.º 360/08.5TVLSB.L1.S1, disponível in dgsi.pt.