Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
28252/10.0T2SNT.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
COMPRA E VENDA
PREÇO
PAGAMENTO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
CONFISSÃO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
DECLARAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
Doutrina:
- Pires de Lima e A. Varela, “Código Civil”, Anotado, Vol. I.
-Vaz Serra, RLJ, 111.º, p. 302.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 347.º, 352.º, 355.º, N.ºS 1 E 4, 358.º, N.º2, 371.º, N.º1, 393.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 3.06.99, CJSTJ, 1999, 2, 136.
-DE 23.02.2010, PROCESSO N.º 566/06.1TVPRT.P1.S1.
-DE 13.09.2012, PROCESSO N.º 2816/08.0TVLSB.L1.S1.
Sumário :
I - No documento autêntico, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos, que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade.

II - A escritura pública de compra e venda não faz prova plena do pagamento do preço ao vendedor. Porém, a declaração do vendedor perante o notário de já ter recebido o preço, tem este valor, porquanto implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, e que o art. 352.º do CC qualifica de confissão.

III - Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, o vendedor declarou já ter recebido o preço) – cf. arts. 355.º, n.º s 1 e 4, e 358.º, n.º 2, do CC.

IV - Se o vendedor alega que não recebeu o preço, impunha-se-lhe alegar a falsidade do aludido documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração constante desse documento.

V - Fora destes casos, só quando existir um princípio de prova escrita suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação consciente e voluntariamente produzida mediante o documentador.

VI - Diversa é a situação de existirem nos autos outros elementos de facto que obstem à atribuição de natureza confessória à afirmação do montante do preço e do seu recebimento.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 28252/10.0T2SNT.L1.S1[1]

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – AA, demandou os herdeiros da herança indivisa de BB, falecido em 10 de Dezembro de 2007, representada por CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e KK, visando a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 60.000,00 (sessenta mil euros), acrescida dos juros de mora vencidos, desde a citação até integral pagamento.

Contestaram os réus, impugnando o facto de não ter sido pago o preço acordado e mencionado na escritura de compra e venda.

A esse articulado respondeu o autor, mantendo o por si alegado.

Foi dispensada a realização da audiência preliminar, seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória.

Os réus viriam a apresentar um articulado superveniente que foi rejeitado, por decisão proferida em audiência de julgamento, no dia 15 de Outubro de 2012.

Realizada a audiência de julgamento e decidida a matéria de facto controvertida, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido.

Inconformado, interpôs o autor recurso que foi admitido como de apelação, sem sucesso, já que a Relação confirmou a decisão recorrida.

Continuando inconformado, veio o A. interpor recurso de revista excepcional, a qual foi admitida.

São as seguintes as conclusões formuladas pelo A. no seu recurso:

1. O direito tem como finalidade primeira e última a realização da justiça.

2. As soluções jurídicas preconizadas no acórdão de que se recorre não têm em conta a realização da justiça material, antes estando subjacente nesse acórdão a prevalência de razões meramente formais, que dificultam ou impedem mesmo a descoberta da verdade.

3. Por outro lado, as questões levantadas quer no acórdão de que se recorre, quer no acórdão fundamento (ac. STJ de 09.06.2006), pela frequência com que ocorrem nos nossos Tribunais, pressupõe para uma melhor clarificação e aplicação do direito que a presente revista excecional seja admitida.

4. Os presentes autos têm por objeto a declaração constante da escritura de compra e venda celebrada no Cartório Notarial de Sintra em 27.06.2006 através da qual ficou declarado que o Autor, ora Recorrente, havia recebido do comprador (seu irmão) o pagamento do preço de 60.000 € relativo do imóvel transacionado, tendo o Autor alegado que na realidade (por o seu irmão se encontrar a residir em Angola e ter entretanto falecido) esse preço nunca lhe foi pago.

5. Entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de que se recorre que no que se refere a tal documento e declaração:

e) "que se o documento não faz prova plena da verdade do que foi declarado, faz, no entanto, prova plena da declaração de ter sido recebido pelo vendedor o preço acordado.”

f) Que "Tal declaração constitui confissão extrajudicial feita em documento autêntico perante o representante da contra parte, pelo que goza igualmente de força probatória plena (artigo 358º nº 2 do Código Civil.”

g) Que o Autor não "alegou a falsidade da escritura onde ficou exarada a confissão extrajudicial (cfr artigo 372º nº 1 do Código Civil) ou estar a sua vontade omissa ou viciada no momento da declaração (cfr artigo 3590 n° 1 do Código Civil)."

h) Que "Cabia ao autor o ónus de fazer a prova de que o preço não tinha sido pago."

6. O Recorrente discorda frontalmente com tal entendimento, encontrando-se o mesmo em total contradição com os muitos doutos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 09.06.2005 (que serve de fundamento ao presente recurso de revista excecional), 23.02.2010 e 02.03.2011, entre outros referidos nas presentes alegações, no que se refere às mesmas questões de direito apontadas.

7. Com efeito, não consta dessa escritura que o Notário tivesse presenciado o pagamento do preço.

8. Nos termos do disposto no artigo 371º, nº 1, do Código Civil, os documentos autênticos, como o sejam as escrituras de compra e venda, só fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.

9. Fora das duas aludidas situações, como é o caso, os factos constantes dos documentos autênticos não fazem prova plena.

10. Com efeito, conforme expressamente é referido no douto acórdão deste Supremo Tribunal de 09.06.2005 "No que tange ao preço e respectivo pagamento, o mesmo só estará coberto pela força probatória plena do documento autêntico se o notário tiver atestado esse facto através de percepção sua (directa), isto é que tal pagamento haja sido feito na sua presença.

11. É assim errada a interpretação que o Tribunal da Relação de Lisboa faz do n° 1 do artigo 371° do Código Civil no sentido de que o documento (escritura) faz ''prova plena da declaração de ter sido recebido pelo vendedor o preço acordado."

12. Não constituiu também confissão extrajudicial com força probatória plena a menção constante nessa escritura do preço ter sido pago ao Autor, conforme ilação que o Tribunal da Relação retirou da interpretação do artigo 358º nº 2 do Código Civil.

13. Com efeito, refere o citado nº 2 do artigo 358º do Código Civil que "A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena."

14. Ora, os documentos autênticos, como analisado, só fazem prova plena dos factos que tenham sido praticados ou atestados com base na perceção direta do próprio emitente (no caso, o Notário). Fora destas duas situações, como é o caso, tais documentos (autênticos) não têm força plena, sendo o seu conteúdo (demais declarações prestadas na escritura) sujeito à livre apreciação do julgador conforme claramente resulta da parte final do referido nº 1 do artigo 371º do Código Civil.

15. Resulta assim da interpretação dessas duas normas jurídicas – artigo 358º, nº 2, e 371º, nº 1, do Código Civil – que se o facto declarado (pagamento do preço) foi feito na presença do Notário, essa declaração é tida como confissão, e se for feita à parte contrária, terá força plena. Se não o foi, como é o caso dos autos, não pode a mesma ser tida como confissão mas apenas como uma mera declaração de um facto sujeito à livre apreciação do julgador (como o é qualquer facto sujeito a julgamento que não tenha essa força plena).

16. Neste sentido pronunciou-se este Alto Tribunal no seu muito douto acórdão de 09.06.2005 no qual expressamente refere: “existe uma diferença entre a confissão e a admissão ou mera declaração de um facto (…) Assim, a declaração constante de uma escritura de cessão de quotas na qual é mencionado pelo cedente o recebimento do preço ou de um dado preço, não pode ser havida como confissão, por não conter a admissão pelo declarante da veracidade de tal recebimento."

17. Também assim foi entendido por este Supremo Tribunal no seu douto acórdão de 02.03.2011 supra citado que expressamente refere: "temos que a figura da confissão não permite, no nosso caso, alcançar a prova plena. Ainda que a declaração de recebimento do preço tenha sido feita à parte contrária, vale apenas o que resulta do regime probatório dos documentos autênticos (...). Ou seja, trata-se dum caso de "simples interpretação do contexto do documento", como refere o n.º 3 do artigo 393.º, subtraindo-a às limitações quanto a produção de prova. "

18. Tendo o Autor, ora Recorrente alegado que apesar da declaração que ficou a constar da escritura de que o preço acordado havia sido por si recebido, mas que na realidade não o chegou a receber (devido ao facto do seu irmão, comprador, entretanto ter falecido), não tinha o mesmo que alegar a falsidade desse documento (escritura) nem de invocar estar a sua vontade omissa ou viciada no momento da declaração, como entendeu o Tribunal da Relação, conforme também é referidos nos doutos acórdãos de 09.06.2005, 23.02.2010 e 02.03.2011, na parte supra transcrita das presentes alegações.

19. Quanto ao ónus da prova, entendeu o Tribunal da Primeira Instância no seu douto despacho de 20.09.2011 e na própria sentença, que o mesmo cabia aos Réus, ora Recorridos, ou seja, que eram estes que tinham que fazer prova de que o pagamento do preço tinha sido na realidade feito.

20. Esse entendimento jurídico não foi impugnado por nenhuma das partes nem foi objeto do recurso de apelação.

21. O Tribunal da Relação de Lisboa, como referido, contrariamente ao Tribunal da Primeira Instância, entendeu que era o Autor (Recorrente) quem tinha que fazer a prova do não pagamento do preço.

22. Entende o Recorrente que, atento o disposto no artigo 684º, nº 3, do C.P.C. então em vigor – ser o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões –, estaria vedado ao Tribunal da Relação pronunciar-se sobre tal matéria de direito (repartição do ónus da prova), matéria que teria transitado em julgado.

23. Entende igualmente o Recorrente que, ainda que não estivesse vedado ao Tribunal da Relação de Lisboa o conhecimento de tal matéria, não há qualquer fundamento jurídico para inverter o ónus da prova que se encontra legalmente prescrito para os contratos de compra e venda (artigo 874º do Código Civil), do qual resulta que, por aplicação do nº 2 do artigo 342º do mesmo Código, cabe ao comprador a prova do pagamento do preço como facto extintivo da sua obrigação.

24. Até porque, a prova de um facto negativo é muitas vezes, como seria o caso, uma verdadeira “diabolica probatio".

25. Ao invés, o pagamento do preço (prova do facto positivo), no presente caso (60.000 €), a ser verdadeiro, seria extremamente fácil para os Réus fazer essa prova (bastaria juntar cópia do cheque, da transferência bancária, do levantamento, etc.).

26. Para o caso de assim não se entender, sempre se dirá que o facto do Tribunal da Primeira Instância ter considerado que o ónus da prova do pagamento do preço cabia aos Réus, tendo quesitado o artigo 1º da Base Instrutória nesse sentido – "O preço de sessenta mil euros referido em d) foi pago ao Autor?" – impediu desde logo que o Autor fizesse prova do seu contrário (que o preço nunca tinha sido pago), pois numa resposta negativa "tudo se passa como se o facto não tivesse sido alegado, como se não existisse."

27. Foi também este o entendimento deste Alto Supremo Tribunal de Justiça no seu douto acórdão de 27.l0.2010 ao referir: "A falta de prova de um facto significa apenas que ele pode ter tido lugar ou não. Não constitui a prova de que ele não teve lugar."

28. A entender-se, como entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão recorrido, de que cabia ao Autor, ora Recorrente, fazer a prova de que não tinha recebido o pagamento do preço, então deverão os autos baixar à Primeira Instância a fim de ser formulado o quesito 1º da Base Instrutória pela negativa, anulando-se todo o processado posterior, ou na ausência na atual legislação processual em vigor da fixação da Base Instrutória, regressar o processo à fase atual da identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (artigo 596, nº 1 do C.P.C. na sua redação atual), de modo a que o processo possa ser julgado de acordo com o parecer deste Supremo Tribunal.

29. Apesar do recurso de apelação ter versado apenas sobre matéria de facto, o Tribunal da Relação manteve a resposta positiva dada ao Quesito 1º da Base Instrutória, recusando eliminá-la, unicamente pelo valor probatório que atribuiu à declaração constante da escritura de compra e venda de que o preço havia sido pago ao vendedor, tendo por base a interpretação que fez dos artigos 352º, 355º, nºs 1 e 4, 358º, nº 2, 347º, 371º, 372º, nº 1 e 359º, nº 1, todos do Código Civil.

30. Entende o Recorrente que foi errada a interpretação e aplicação de tais normas jurídicas pelo Tribunal da Relação quando aplicadas à escritura de compra e venda de 27.06.2006 objeto dos autos.

31. Tal matéria cabe nos poderes de revista deste Supremo Tribunal nos termos do artigo 674º, nºs 1 e 2 do C.P.C. (ex-artigo 722º).

32. O acórdão do Tribunal da Relação de que se recorre está em total contradição com o citado acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 09.06.2005 (para além dos demais referidos nas presentes alegações) no que se refere às questões de direito referidas na conclusão número 5 e à interpretação das normas jurídicas referidas na conclusão 29, podendo, como tal, o acórdão recorrido ser objeto do presente recurso de revista excecional (artigo 672º, nº 1, al. c) do C.P.C.).

Conclui no sentido do provimento do recurso, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se a baixa do processo à Relação, para ser julgado de acordo com o entendimento sufragado.

Os recorridos apresentaram a seguinte resposta:

a) As escrituras públicas, como documentos autênticos, são revestidos da força probatória contemplada no art. 371º do CC, fazendo prova plena, apenas, dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora, força probatória que não abrange os factos correspondentes a declarações dos outorgantes.

b) Assim, a escritura pública de compra e venda, não fazendo prova plena do pagamento do preço à vendedora, fá-lo, no entanto, da sua declaração de já ter recebido o preço, pois que a realidade da afirmação cabe nas percepções do notário, o que constitui uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, que goza de força probatória plena contra o confitente.

c) Porém, tal confissão – isto é, o facto de que existe prova plena – refere-se apenas à declaração, e não ao efectivo pagamento. Há prova plena de que, nesse acto, a vendedora declarou já ter recebido o preço, cf. arts. 352.º, 355.º, n.os 1 e 4, e 358.º, n.º 2, do CC.

d) Dispõe o n.º 1 do artigo 394.º do Código Civil: que «É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico (...)»

e) E conforme resulta do art. 393º nº 2 "também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena".

f) O artigo 395.º do mesmo diploma legal remete para a norma anterior, nomeadamente no que respeita ao cumprimento, nestes termos: «As disposições dos artigos precedentes são aplicáveis ao cumprimento, remissão, novação, compensação e, de um modo geral, aos contratos extintivos da relação obrigacional, mas não aos factos extintivos da obrigação, quando invocados por terceiro.»

g) Daí que, mesmo interpretando os referidos dispositivos legais com alguma permeabilidade, sempre admissibilidade de prova testemunhal sobre os factos integrados na Base Instrutória, dependia da junção de prova documental indiciadora da veracidade desses factos,

h) Ou seja, a prova testemunhal apenas poderá ser admitida, como meio de infirmar uma confissão, quando venha consubstanciar prova documental, que tenha sido produzida pelo Autor que pretende provar que confessou um facto falso.

Destarte,

i) Ao A., Recorrente, de pouco vale o que as testemunham tenham declarado, pois, nenhuma prova documental produziu, como indiciadora dos factos que se prestou a demonstrar, contrários a declaração confissória, por ele feita, em documento autêntico;

j) Claudicam por isso, as alegações de Recurso do A., precisamente por esta razão: da prova testemunhal produzida não resulta que alguma testemunha tenha declarado que tem conhecimento directo e pessoal de que o preço não tenha sido pago pelo pai dos RR. ao A..

Concluem pela improcedência do recurso.

A Formação admitiu a revista extraordinária.

Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A) De Facto

Os factos a considerar são os seguintes:

 

1. O autor e seu falecido irmão BB, eram donos e legítimos proprietários, na proporção de metade para cada, de um prédio urbano (moradia) composto de cave, rés-do-chão e primeiro andar, com 72 m2, garagem com 18 m2 e logradouro com 184 m2, sito na R. Nossa …, n° … e …A, em Casais de ..., freguesia de …-..., concelho de Sintra, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o nº … e inscrito na matriz sob o artigo …, com o valor patrimonial de € 75.001,66 (al. a) da matéria de facto assente).

2. Através de escritura pública celebrada em 27/6/2006, no Cartório Notarial de Sintra, o autor vendeu ao seu referido irmão, BB, a metade, de que era proprietário no aludido prédio urbano (aI. b) da matéria de facto assente).

3. O seu irmão BB, que se encontrava a residir em Angola há vários anos, foi nessa escritura de compra e venda representado pelo 2° R. (al. c) da matéria de facto assente).

4. Na escritura referida em 2 ficou declarado que "O preço da transmissão é de SESSENTA MIL EUROS, que o vendedor já recebeu do comprador" (aI. d) da matéria de facto assente).

5. O autor e o seu falecido irmão quiseram efectivamente vender e comprar a metade do prédio urbano identificado em 1., dado o aludido prédio ser habitado pelos filhos do falecido BB há vários anos (aI. e) da matéria de facto assente).

6. Após a assinatura da escritura foi registada na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra a aquisição da metade do prédio em questão de que o autor era proprietário a favor do seu irmão BB, através da apresentação 1 de 6/7/2006, passando o mesmo a ser proprietário da totalidade do mesmo (al. f) da matéria de facto assente).

7. O referido BB faleceu em …/…/20… (al. g) da matéria de facto assente).

8. Por óbito do mesmo sucederam-lhe como únicos herdeiros os seus nove filhos ora réus, todos identificados na escritura de habilitação celebrada no dia 15 de Abril de 2008, no Cartório Notarial de Lisboa, não tendo o de cujus deixado testamento ou qualquer disposição de última vontade (al. h) da matéria de facto assente).

9. A herança do referido BB ainda se encontra por partilhar (aI. i) da matéria de facto assente).

10. O preço de € 60.000,00 referido em 4 foi pago ao autor (resposta ao artigo 1º da base instrutória)

B) De Direito

1. O objecto do recurso é, de acordo com a jurisprudência uniforme, balizado pelas conclusões do recorrente, como decorre, de resto, do disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Por outro lado, os recursos destinam-se a modificar decisões e não a discutir questões novas, pelo que apenas se considerarão as questões abordadas no acórdão da Relação e ora impugnadas.

2. A única questão objecto do recurso é a do valor probatório da declaração do vendedor de que recebeu o preço da venda.

Fora de apreciação a questão da admissibilidade do recurso excepcional, dada a força vinculativa da decisão da Formação que o admitiu (n.º 1 do artigo 721.º-A do CPC).

A posição do acórdão recorrido no ponto que aqui importa é a seguinte:

«O facto objecto do artigo 1º da base instrutora – o pagamento do preço mencionado na escritura de compra e venda – foi alegado pelos réus.

Consta da escritura pública a que compareceram o autor, enquanto vendedor e o réu DD, enquanto representante do comprador, conforme procuração que ficou arquivada, que o vendedor, ora autor declarou perante o notário e perante o representante do comprador, que já tinha recebido do comprador o preço acordado para a venda – sessenta mil euros.

De acordo com o disposto no artigo 371º nº 1 do Código Civil os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como dos factos que neles são atestados com base nas percepções dessa entidade.

Como refere o Juiz Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues na sua obra “A prova em direito civil" (Coimbra Editora 2011) a página 58 “a força probatória do documento autêntico não abarca tudo o que nele se mostra exarado".

Assim sendo, porque a entidade pública documentadora não pode atestar que os factos declarados na escritura objecto dos autos correspondentes à venda de uma vez (sic) que foram por ela percepcionados caberia aos réus demonstrar que o autor já tinha recebido o preço acordado

4. A prova produzida na audiência de julgamento a propósito do pagamento do preço é de natureza indirecta e não é, de facto, abundante, já que ninguém referiu ter assistido ao pagamento e todos os depoimentos prestados têm, por uma razão ou outra, que ser analisados com alguma reserva.

Mas é um facto assente e incontroverso que o autor e o representante do falecido comprador declararam na escritura, pública que o vendedor, aqui autor, já tinha recebido do comprador o preço de sessenta mil euros.

Que valor probatório deve então ser atribuído a tal declaração?

5. Analisando um caso muito semelhante, em que foi declarado pelo vendedor em escritura pública ter recebido o preço acordado, ponderou-se, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Dezembro de 2011, relatado pelo Exmº Sr. Juiz Conselheiro Gregório da Silva Jesus (disponível em www.dgsi.pt), que se o documento não faz prova plena da verdade do que foi declarado, faz, no entanto, prova plena da declaração de ter sido recebido pelo vendedor o preço acordado

Pelo seu interesse e aplicabilidade ao caso presente, passa a transcrever-se o acórdão citado:

“(...) A realidade da afirmação cabe nas percepções do notário, o que implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, beneficia a autora, e que o artigo 352º do Código Civil qualifica como confissão.

Trata-se de uma confissão extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355°, nºs 1 e 4, e 358°, n° 2 do Código Civil.

Acontece que a força probatória plena da confissão só pode ser contrariada por meio de prova do contrário, nos termos do disposto no artigo 347º do CC que dispõe: "A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (...)".

Significa isto, "que o vendedor é admitido a destruir a força da confissão de haver recebido o preço, mediante a prova de, que, na realidade, o não recebeu; que o certo é outro facto contrário ao da afirmação que consciente e voluntariamente produziu perante o notário".

6. Ou seja a escritura celebrada entre o autor e o seu falecido irmão, ali representado pelo réu DD, faz prova plena de que o autor declarou ter recebido o preço relativo ao negócio celebrado.

Tal declaração constitui confissão extrajudicial feita em documento autêntico perante o representante da contraparte, pelo que goza igualmente de força probatória plena (artigo 358° n° 2 do Código Civil).

A força probatória plena da confissão extrajudicial podia ser destruída pela prova do contrário, isto é, pela prova de que o autor não tinha recebido o preço acordado, apesar da declaração constante da escritura. Cabia ao autor o ónus de fazer a prova de que o preço não tinha sido pago.

Ora o autor não só não fez essa prova como nem sequer alegou a falsidade da escritura onde ficou exarada a confissão extrajudicial (cfr artigo 372º n° 1 do Código Civil) ou estar a sua vontade omissa ou viciada no momento da declaração (cfr artigo 359º n° 1 do Código Civil).

7. A expressão da convicção do tribunal, mesmo que possa não ser completamente clara, move-se na mesma ordem de razões que acabam de ser expostas:

Senão atentemos no seu teor:

“(…) Quanto à matéria do quesito 1°, o teor da declaração do autor que consta da escritura de compra e venda de 27/6/2006 (...), referida nos pontos b) a d) dos factos assentes, a qual é do seguinte teor "O preço da transmissão é SESSENTA MIL EUROS, que o vendedor já recebeu do comprador", assim se podendo retirar desta declaração que o autor, na sua qualidade de vendedor, recebeu do respectivo comprador (o falecido pai dos réus, representado pelo R. DD) a quantia que indicou e que correspondia ao preço da venda, dando assim quitação dessa entrega através de declaração perante o notário, e sem que da totalidade da prova produzida quanto a este quesito se possa afirmar que tal declaração não correspondeu à realidade (…), desde logo porque as testemunhas ouvidas quanto ao mesmo (LL e MM) se pronunciaram de forma tal que não colocaram em causa o teor dessa declaração atestada pelo notário, antes resultando dos seus depoimentos que a celebração dessa escritura correspondia ao "arrumar" das questões entre o autor e o seu irmão (BB, pai dos réus e entretanto falecido) relativas aos imóveis de que eram comproprietários, factos de que demonstraram conhecimento por força das relações próximas de amizade e afinidade que mantinham com o mesmo e com o próprio, pelo que se a mesma escritura representava o encerramento de relações patrimoniais existentes entre ambos os irmãos de acordo com as regras da experiência comum pode afirmar-se que não tem qualquer cabimento que o autor fosse proferir uma declaração distinta da realidade, deixando em aberto uma realidade que ficava documentada de forma oposta".

8. De tudo o que vem de ser dito se conclui que o autor não conseguiu fazer prova suficiente do facto contrário ao confessado na escritura, pelo que, beneficiando os réus do especial valor da confissão extrajudicial do facto perguntado bem andou a douta decisão impugnada ao dar como provado que foi efectuado o pagamento do preço acordado para a compra e venda.

No acórdão-fundamento defende-se a seguinte posição:

‘”Reportando-nos à escritura pública de cessão de quotas a que se reportam os autos, apenas resultou provado plenamente que na presença do notário foi declarado que as quotas seriam cedidas por preços iguais aos seus valores nominais, já recebidos.

Mas isto sem que ficasse inviabilizada a prova de o preço recebido haver sido de montante superior ao declarado sem necessidade – repete-se – da respectiva arguição de falsidade.

Assim, a estatuição do artº 371º, nº 1 do C.Civil não preclude a demonstração da falta de correspondência com a realidade dos factos declarados, nem que as declarações dos outorgantes hajam sido viciadas por erro, dolo ou coacção ou que o acto não seja simulado.

No que tange ao preço e respectivo pagamento, o mesmo só estará coberto pela força probatória plena do documento autêntico se o notário tiver atestado esse facto através de percepção sua (directa), isto é que tal pagamento haja sido feito na sua presença. De contrário só está plenamente provado que os vendedores declararam já terem recebido o preço da venda que efectuaram – Ac STJ de 10-4-03, in Proc. 544/02 – 2ª Sec.

Nas conclusões da respectiva alegação, parece pretender o Réu voltar a sindicar a matéria de facto apurada pela Relação.

Ora, a determinação do real preço do negócio constituem «a se» matéria de facto cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias, satisfeitos que sejam – é claro – o ónus da alegação e da prova da banda do demandante. Tal como tradutores de matéria de facto do foro exclusiva das instâncias são a indagação, a pesquisa, e o apuramento da intenção dos contraentes ou outorgantes em determinado negócio jurídico, bem como a questão de saber se o declaratário conhecia a vontade real do declarante e qual a vontade deste (artº 236º nº 2) – conf. Acs do STJ de 11-12-03, in Proc 2992/03 e de 18-12-03, in Proc 3794/03, ambos da 2ª Sec.

Contra o que sustenta o recorrente, a Relação fez o exame crítico da prova processualmente adquirida para concluir como concluiu em sede factual.

E há que observar que o STJ, na sua qualidade de tribunal de revista, só conhece, em princípio, de matéria de direito, limitando-se a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido – art°s 26º da LOFTJ 99 aprovada pela L 3/99 de 13/1 e 729º nº 1 do CPC; daí que o eventual erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto pelo tribunal recorrido só poderá ser objecto do recurso de revista quando haja ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art.ºs 729, n.º 2 e 722º, n.º 2 do CPC).

Vem aqui à colação a suposta violação por parte da Relação – ao alterar a resposta ao quesito 7º – do disposto no artº 394º do C. Civil.

Nos termos deste preceito de lei, é inadmissível a prova testemunhal se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico, ou dos documentos particulares mencionados nos art°s 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.

E desde já se adianta que se reputa de inteiramente correcta a interpretação que do preceito é feita pelo tribunal recorrido. Essa norma aplica-se, tão-somente, às convenções contrárias aos documentos na parte em que estes têm força probatória plena e às convenções adicionais ou acessórias.

Ora, a estipulação de um preço superior ao que consta da escritura pública parece corresponder a uma convenção contrária ao conteúdo de documento autêntico na parte em que este não tem força probatória plena.

Na esteira de Vaz Serra in RLJ, ano 103º, pág 13, «os artºs 394º e 395º não formulam expressamente excepções às regras neles contempladas. Mas tal não quer dizer que tais regras não sejam aplicáveis, pois da razão de ser destas concluiu-se que não têm alcance absoluto, havendo que ressalvar algumas hipóteses em que a prova testemunhal será admissível apesar de ter por objecto uma convenção contrária ou adicional ao conteúdo do documento».

Quando há «um começo de prova por escrito que torne verosímil o facto alegado, a prova testemunhal já não é o único meio de prova do facto, justificando-se a excepção, por então o perigo da prova testemunhal ser eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada parcialmente com base num documento. Também no nosso direito se o facto a provar já está tomado verosímil por um começo de prova escrito, a prova de testemunhas é de admitir, pois não oferece os perigos que teria quando desacompanhada de tal começo de prova» (conf. mesmo autor, in RLJ, ano 107º, pág 312) e Mota Pinto/Pinto Monteiro, in Parecer publicado em CJ, Ano X, tomo. III, pág 11 e ss.

No caso «sub-specie», a prova testemunhal (a que a Relação atendeu) eventualmente relacionada com a convenção contrária ao conteúdo do documento autêntico (escritura de cessão de quotas) seria sempre admissível porque complementar (coadjuvante) de um elemento de prova escrito e de particular relevância, precisamente a Acta nº 84 de 31-7-96, o mesmo se podendo dizer da prova por presunção judicial – artº 351º do C. Civil – conf. Vaz Serra, in RLJ ano 107° atrás citado.

No entender do recorrente, o acórdão teria também violado o disposto no n° 2 do artº 393º do C. Civil, ao admitir prova testemunhal sobre o preço real das cessões de quotas a ele feitas pelo recorrido. E isto porque a escritura pública de 31-7-96 faria prova plena dos preços e o recorrido teria confessado, extrajudicialmente, que tais preços haviam sido os respectivos valores nominais aquando da outorga dessa escritura.

Mas a verdade é que se não demonstra que tal confissão (extrajudicial) haja sido emitida com o alcance que o recorrente lhe pretende associar. Declarou-se, é certo, na escritura que os preços das cessões eram os correspondentes aos seus valores nominais e que os respectivos preços já haviam sido recebidos, mas a verdade é que se veio a provar que os outorgantes, aquando da celebração da escritura, tinham plena consciência de que os preços desse acto constantes não correspondiam aos preços reais.

Na peugada dos Acs desta Secção de 23-9-99 e 16-12-99, in Procs 544/99 e 988/99, existe uma diferença entre a confissão e a admissão ou mera declaração de um facto (ou situação factual); esta última, queda-se no adiantamento de uma proposição ou juízo cuja veracidade se não confirma; aquela, traduz a afirmação de um facto (ou situação factual) como verdadeiro. «Assim, a declaração constante de uma escritura de cessão de quotas na qual é mencionado pelo cedente o recebimento do preço ou de um dado preço, não pode ser havida como confissão, por não conter a admissão pelo declarante da veracidade de tal recebimento; a materialidade da declaração é indiscutível, porém o respectivo conteúdo, porque não atestado pelo oficial público, é passível de demonstração/impugnação, designadamente através de prova testemunhal.

Dúvidas não restam – como a Relação concluiu em sede factual – de que os contraentes quiseram fazer as cessões de quotas pelos preços exarados na acta n° 84, e que de resto reflectiam o que havia já ficado expresso na acta da AG da C de 12-6-94, sendo que logo nessa ocasião o A. recebeu do Réu um cheque respeitante à primeira prestação do preço, prestação esta ela própria de valor superior ao constante da escritura como sendo o preço global da cessão.

Nada pois a censurar à conclusão extraída pela Relação de que o valor global a considerar como contrapartida da cessão das quotas a que se reportam os autos é o efectivamente querido pelas partes, ou seja o de 13.000.000$00, e não aquele que consta da escritura pública adrede celebrada.”’

No acórdão recorrido recorreu-se à lição do acórdão deste STJ de 6.12.2011, de uma forma que se nos apresenta isenta de dúvidas e sem que a tese perfilhada entre em rota de colisão com a do acórdão-fundamento.

De facto, não suscita dúvidas o teor do artigo 371.º, n.º 1, do CC:

“Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora;”.

Isto é, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que os factos relatados e que resultam das suas percepções correspondem à verdade. Ou seja, designadamente no que se refere ao que foi afirmado perante ele, o documentador não garante a veracidade das declarações, a sua sinceridade, eficácia ou validade que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram (VAZ SERRA, RLJ, 111.º, p. 302.)

Consequentemente, o simples facto de se ter atestado que as partes declararam determinado preço e que o mesmo já tinha sido recebido, não resulta plenamente provado da escritura.

Porém, se é o vendedor que afirma, perante o notário, qual o montante do preço estipulado e afirma já o ter recebido entretanto, esta sua declaração de já ter recebido o preço implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável e beneficia os RR, o que a qualifica como confissão, nos termos do artigo 352.º do CC.

Trata-se de uma confissão extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º, n.ºs 1 e 4, e 358.º, n.º 2 do CC.

Acontece que, a força probatória plena da confissão só pode ser contrariada por meio de prova do contrário, nos termos do disposto no art. 347.º do CC que dispõe: “A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (...)”.

Significa isto, “que o vendedor é admitido a destruir a força da confissão de haver recebido o preço mediante a prova de que, na realidade, o não recebeu; que o certo é outro facto contrário ao da afirmação que consciente e voluntariamente produziu perante o notário” – Ac do STJ de 3.06.99, CJSTJ, 1999, 2, 136.

Ao alegar que não recebera do comprador qualquer quantia, apesar de ter confessado exactamente o contrário na escritura, não podia o Tribunal deixar de entender que ao A. competiria a prova em contrário.

Como se diz no acórdão deste Tribunal de 13.09.2012, proc. 2816/08.0TVLSB.L1.S1:

“…neste caso e de harmonia com o n.º 2 do art. 393 do C. Civil «não é admitida prova por testemunhas quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena”.

A respeito da interpretação deste normativo os Prof, Pires de Lima e A. Varela in C. Civil Anotado, Vol. I, aconselham uma interpretação nos justos termos, referindo que “nada impede que se recorra à prova testemunhal para demonstrar a falta de vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada.

O documento prova, em dados termos, que o seu autor fez as declarações nele constantes; os factos compreendidos na declaração consideram-se provados, quando sejam desfavoráveis ao declarante. Mas o documento não prova nem garante, nem podia garantir, que as declarações não sejam viciadas por erro, dolo, ou coacção ou simuladas.

Por isso mesmo a prova testemunhal se não pode, neste aspecto considerar legalmente interdita”.

Voltando ao caso dos autos, já vimos que os factos relacionados com o vício da declaração/confissão, não foram provados, pelo que à luz das disposições conjugadas dos arts. 371.º, n.º 1, 358.º, n.º 2 e 393.º, n.º 2 do C. Civil, temos como provados os factos compreendidos naquela declaração confessória, ou seja, o recebimento do preço por parte do Autor (facto desfavorável ao declarante).

Também chamaremos à colação o acórdão deste STJ de 23.02.2010, proferido no processo n.º 566/06.1TVPRT.P1.S1, em cujo sumário se pode ler:

“I – A prova testemunhal relacionada com convenção contrária ao conteúdo da escritura pública é de ter como admissível quando complementar (coadjuvante) de um elemento de prova escrito que constitua um suporte documental suficientemente forte para que, constituindo a base da convicção do julgador, se possa, a partir dele, avançar para a respectiva complementação.

II – Existindo um princípio de prova escrita suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação consciente e voluntariamente produzida perante o documentador.”

Não se afasta substancialmente deste entendimento o acórdão-fundamento.

Só que a sua decisão assenta em dois fundamentos que não se verificam no caso presente:

O primeiro é o de que é admissível a prova testemunhal, por existir um começo de prova por escrito, em sentido não concordante com a prova decorrente do documento.

No caso sub judice não existe qualquer começo de prova que ponha em questão o montante do preço ou o seu prévio pagamento.

A outra grande diferença é a de que, na situação do acórdão-fundamento, existiam elementos de facto nos autos que impediam que se pudesse atribuir uma natureza confessória à afirmação do montante do preço e do seu recebimento, porquanto havia a considerar que “os contraentes quiseram fazer as cessões de quotas pelos preços exarados na acta nº 84, e que de resto reflectiam o que havia já ficado expresso na acta da AG … de 12-6-94, sendo que logo nessa ocasião o A. recebeu do Réu um cheque respeitante à primeira prestação do preço, prestação esta ela própria de valor superior ao constante da escritura como sendo o preço global da cessão.”

Ou seja, no acórdão recorrido, não existia qualquer elemento de prova ou de começo de prova que pusesse em questão a confissão.

Pelo contrário, a prova testemunhal produzida foi no sentido de reforçar a ideia de que a compra e venda entre o A. e o seu irmão BB se traduziu num acerto de contas, incompatível com o postergar do cumprimento das respectivas obrigações.

Em Conclusão:

I. No documento autêntico, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos, que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade.

II. A escritura pública de compra e venda não faz prova plena do pagamento do preço ao vendedor. Porém, a declaração do vendedor perante o notário de já ter recebido o preço, tem este valor, porquanto implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, e que o art. 352.º do CC qualifica de confissão.

III. Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, o vendedor declarou já ter recebido o preço) – cf. arts. 355.º, n.ºs 1 e 4, e 358.º, n.º 2, do CC.

IV. Se o vendedor alega que não recebeu o preço, impunha-se-lhe, alegar a falsidade do aludido documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração constante desse documento.

V. Fora destes casos, só quando existir um princípio de prova escrita suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação consciente e voluntariamente produzida perante o documentador.

VI. Diversa é a situação de existirem nos autos outros elementos de facto que obstem à atribuição de natureza confessória à afirmação do montante do preço e do seu recebimento.

III – Pelo exposto, acordam em negar a revista excepcional, mantendo-se o acórdão recorrido, embora com diversa fundamentação.

Custas pelo Recorrente.


Lisboa, 9 de Julho de 2014


Paulo Sá (Relator)

Garcia Calejo

Helder Roque

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[1] N.º 653
  Relator:    Paulo Sá
  Adjuntos: Garcia Calejo e
                     Hélder Roque