Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S1623
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
ERRO DE JULGAMENTO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Nº do Documento: SJ200612140016234
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - É de qualificar como erro de julgamento - e não nulidade de acórdão -, a recusa do Tribunal da Relação a reapreciar as provas e, consequentemente, a emitir juízo sobre a bondade do julgamento da matéria de facto efectuada em primeira instância, com fundamento em argumentos de natureza jurídico-processual (não poder proceder à alteração da matéria de facto por lhe estar vedado, com base nas gravações dos depoimentos, intrometer-se no poder de livre apreciação do julgador da 1.ª instância).
II - Por isso, sobre tal decisão da Relação não opera, quanto à admissibilidade de recurso, nem a proibição de recurso estatuída no n.º 6 do art. 712.º, do CPC, nem a exigência contida no art. 77.º, n.º 1, do CPT/99, quanto à arguição de nulidades.
III - A garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto, que as disposições combinadas dos art.os 690.º-A, n.º 5 e 712.º, n.º 1, alínea b), in fine, e n.º 2, do CPC, consagram, assume a amplitude de novo julgamento em matéria de facto, no sentido de que a Relação, na reapreciação das provas gravadas, dispõe dos mesmos poderes do tribunal de primeira instância, incluindo a faculdade de livre apreciação dos elementos de prova disponíveis.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I

1. AA demandou, no Tribunal do Trabalho de Leiria, “CTT – Correios de Portugal, S.A.”, acção pedindo a condenação desta a:
– Reconhecer que entre as partes existia um contrato sem termo, com efeitos reportados a 12 de Junho de 2000;
– Reconhecer que a comunicação datada de 22 de Outubro de 2002 consubstancia um despedimento ilícito da autora com efeitos a partir de 17 de Dezembro de 2002, inclusive.
– Reintegrar a autora no seu posto de trabalho com a categoria de CRT e a antiguidade reportada a 12 de Junho de 2000; e a
– Pagar-lhe as retribuições que se vierem a vencer desde a data do despedimento até à sentença, computando-se as vencidas, à data da propositura da acção, em € 547,75.

Para tanto alegou que:

– Foi admitida ao serviço da Ré para trabalhar sob a sua autoridade, direcção e fiscalização, mediante contrato de trabalho a termo certo de 6 meses, celebrado em 12 de Junho 2000, com início na mesma data, com o horário de 5 horas diárias e 25 semanais, com a categoria profissional de Carteira (CRT) desempenhando as funções correspondentes no Centro de Distribuição Postal (CDP) de Alcobaça;
– Em 18 de Dezembro de 2000, veio a ser celebrado novo contrato a termo certo, agora de 12 meses, para o desempenho das mesmas funções, com o mesmo horário e no mesmo CDP, contrato este, que veio a ser renovado por acordo entre Autora e Ré, em 18 de Dezembro de 2001, com alteração de horário diário para 7 horas e 48 minutos e semanal de 39 horas;
– Por carta datada de 22 de Outubro de 2002, entregue por mão própria à Autora, no dia 25 do mesmo mês, a Ré comunicou-lhe a sua decisão de não renovar tal contrato;
– No momento da cessação das relações de trabalho, a Autora tinha a categoria profissional de CRT e auferia a remuneração base mensal de € 547,75, a que acrescia um subsídio de refeição de € 7,80 por cada dia de trabalho efectivo;
– As relações de trabalho em causa eram reguladas pelo AE estabelecido entre a ré e o Sindicato Nacional dos Trabalhadores dos Correios e Telecomunicações (SNTCT) e outros, publicado no BTE n.º 24, 1.ª Série, de 29 de Junho de 1981, com as alterações que lhe foram introduzidas por sucessivos AA.EE subscritos pela Ré e por aquelas Associações Sindicais, o último dos quais publicado no BTE n.º 27/2001, 1.ª Série, de 22 de Julho de 201, porque a Autora é sócia do Sindicato Nacional dos Trabalhadores dos Correios e Telecomunicações (SNTCT);
– Como se pode ver do contrato, este não contém qualquer motivo justificativo do respectivo prazo, limitando-se a uma referência genérica à alínea h) do artigo 41º do anexo ao Decreto-lei nº 64-A/89 de 27.02. No contrato junto como documento nº 2, refere-se como justificação «...contratação de jovem à procura de primeiro emprego»;
– Não basta a invocação de determinada alínea do artigo 41.º ou a mera transcrição do seu texto, para que se considere preenchida a condição exigida pela alínea e) do n.º 1 do artigo 42.º do mesmo diploma legal;
– Daí que, por força do disposto no n.º 3 do artigo 42.º do Decreto-Lei n.º 64- -A/89, de 27 de Fevereiro, tais contratos terão de ser considerados sem termo, e consequentemente, considerar-se a Autora integrada nos quadros de pessoal efectivo da Ré, com efeitos reportados a 12 de Junho de 2000, data de início do 1.º contrato;
– Tais contratos foram apresentados à Autora já formalizados, e prontos a assinar, não tendo esta tomado consciência de alguns aspectos do seu conteúdo, nomeadamente da declaração que deles consta de nunca ter sido contratada por prazo indeterminado;
– Se tivesse tomado consciência desse facto, não os teria assinado, já que, entre 1984 e 1999, trabalhou, com contrato sem termo, como empregada de escritório, para a empresa BB, S.A, o que era do conhecimento do responsável de distribuição (RD) da Ré;
– Esta fez a Autora subscrever tais contratos com o único propósito de violar a lei e iludir as disposições que regulam o contrato sem termo, aproveitando-se da admissibilidade da contratação a termo de trabalhadores à procura de primeiro emprego, circunstância que bem sabia não se aplicar à Autora, já que tinha conhecimento que esta havia trabalhado como efectiva para a empresa “BB, S.A”.;
– A Autora foi contratada, desde o primeiro contrato celebrado com a Ré, e nos que se lhe seguiram, para suprir necessidades normais e permanentes do serviço de distribuição de correspondências, motivadas pelo facto de os trabalhadores efectivos da Ré, no CDP de Alcobaça, na altura em que a autora lá trabalhou, serem em número muito inferior ao que o volume de serviço normal exigiria, dado que, desde há muitos anos, a Ré vem recorrendo por sistema, à contratação a termo para suprir as suas necessidades com pessoal, em violação clara dos princípios gerais aplicáveis àquele tipo de contratação.
2. Na contestação, em que pugna pela improcedência da acção, a Ré confessou a celebração dos contratos e a renovação, com absoluto respeito pela lei em vigor, e aduziu que a Autora, como consta da Clausula 5.ª de cada um deles, declarou nunca ter sido contratada por tempo indeterminado, sendo esta a única menção necessária para a sua formalização correcta; que foi com base no conceito de jovem à procura de primeiro emprego que a ré contratou a Autora; e que, admitindo- -se, por mera hipótese, que a autora tenha feito uma declaração falsa, por já ter trabalho para outra entidade patronal com vínculo por tempo indeterminado, tal conduta constituiria manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
3. Na primeira instância, a acção foi julgada improcedente.

Inconformada, a Autora apelou para o Tribunal da Relação do Coimbra, que, negando provimento ao recurso, confirmou a sentença impugnada

Desta decisão vem interposto, o presente recurso de revista, cuja alegação termina com as conclusões assim redigidas:

1 - Tendo havido gravação da matéria de facto, a A pediu a sua reapreciação pelo Tribunal da Relação.

2 - Acontece que, em nossa opinião e salvo o devido respeito, resulta do Acórdão recorrido que nenhuma reapreciação foi efectuada da matéria recorrida, por ali se entender que o Tribunal da Relação, no caso concreto, não tinha a possibilidade de sindicar a matéria de facto.

3 - Ora, tal decisão, em nossa modesta opinião viola, de forma flagrante, a lei e, em especial, o que se dispõe na 2.ª parte da al. a) do n.º 1 do art. 712.º do C.P.C.;

4 - Assim pondo em causa, de forma irremediável, o direito a impugnar a matéria de facto estabelecido no art. 690.°-A do C.P.C. e tornando absolutamente inútil a gravação dos depoimentos em julgamento.

Acresce que,

5 - Com tal entendimento viola-se, sem margem para dúvidas, para além disso, os princípios constitucionais do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, ínsitos no art. 20.º da CRP. O que aqui, expressamente, se invoca.

6 - Sendo certo que, salvo o devido respeito, este segmento do Acórdão recorrido é recorrível, pese embora o que se estabelece no n.º 6 do art. 712.º do C.P.C, uma vez que o que aí se proíbe é que se impugne a decisão tomada pela Relação sobre a matéria de facto.

7- E já não a decisão da Relação que entende não poder/dever ela sindicar a matéria de facto fixada na 1.ª instância, quando os depoimentos tiverem sido gravados. Pelo que,

8 - deve o Acórdão recorrido ser revogado, de modo a que seja substituído por outro em que se tome efectivo conhecimento da impugnação da matéria de facto. Sem prescindir:

9 - mas mesmo que assim se não entenda e só se considere assente a matéria de facto fixada na sentença e mantida no Acórdão recorrido, torna-se manifesto que os motivos apostos nos contratos são falsos. Falsidade essa exclusivamente imputável à Ré.

10 - Não tendo, por isso, razão o Acórdão recorrido que sufragou o entendimento da sentença de 1ª instância, quando sustenta que a falsidade é imputável à A. e daí parte para a conclusão que esta terá agido com abuso de direito.

11 - Ora, sendo o chefe do CDP o superior hierárquico da A e o responsável da ré naquele local de trabalho, o seu conhecimento da situação (Cf. pontos 12 e 13 da matéria de facto) não poderia deixar de vincular e responsabilizar a ré.

12 - Assim, sendo falsos os motivos invocados para a contratação a termo, falsidade essa imputável à ré, deve entender-se que a estipulação do termo em tais contratos é nula por força do disposto no n.º 3 do art. 41.º do DL n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro.

13 - O que se requer seja declarado por este Venerando Tribunal, revogando-se o Acórdão recorrido, com as legais consequências.

Por outro lado e sem prescindir:

14 - Mas mesmo que assim se não entenda – o que se não aceita e só por necessidade de raciocínio se refere – a circunstância de constar dos contratos a declaração de que a trabalhadora nunca foi contratada por tempo indeterminado, não significa que a autora possa ser considerada como sendo "jovem à procura de 1º emprego".

15 - E salvo o devido respeito por entendimento contrário, que tem vindo a ser perfilhado em muitas decisões judiciais, o certo é que, em nosso entender, só pode ser qualificado como trabalhador à procura de 1 ° emprego aquele que antes nunca prestou trabalho subordinado.

16 - O que, manifestamente, não acontece no caso em apreço, quer se tenha em consideração o trabalho prestado por conta da Martan/Safaril, quer o trabalho prestado na própria Ré.

17 - De facto, nesta última situação, aquando da celebração do 2.º contrato, já a autora havia prestado trabalho subordinado para a ré através da celebração do 1.º contrato.

18 - O entendimento perfilhado na sentença citada no art. 39.º da petição inicial e ali junta por fotocópia simples como documento n.º 7 parece-nos indiscutivelmente o mais consentâneo com a letra e o espírito da lei. Para além, de se mostrar estribada na melhor Doutrina.

19 - E, concluindo-se, deste modo, como entendemos dever concluir-se, sempre o termo aposto, pelo menos a partir do 2.º contrato, seria nulo, por força do disposto no n.º 2 do art. 41.º do DL n.º 64-A/ 89, de 27 de Fevereiro.

20 - O que também se requer seja declarado, revogando-se o Acórdão recorrido, com as legais consequências.

Finalmente e também sem prescindir:

21 - De acordo com a matéria fáctica, mesmo considerando só a que foi consignada na sentença de 1ª instância e mantida pelo Acórdão recorrido, nenhuma dúvida pode restar que, no caso em apreço, com a contratação a termo, a ré não visou satisfazer necessidades transitórias, ou ocasionais, mas antes necessidades normais, permanentes e duradouras.

22 - Ora, como é sabido, o princípio geral a observar na celebração do contrato de trabalho é de que este é por tempo indeterminado, ou seja, sem termo. A contratação a termo é, pela sua natureza, excepcional, até por estar em causa o comando constitucional do art. 53.° relativo à segurança no emprego.

23 - No caso em apreço está assente – mesmo sem a alteração da matéria de facto – que:

- "A ré recorre à contratação a termo para suprir as suas necessidades com pessoal" (ponto 16 da sentença);

- "Para um total de giros entre 28/30 a ré tinha 25/26 carteiros no quadro permanente" (ponto 17 da sentença);

- "E existiam entre 4/5 assalariados no CDP de Alcobaça" (ponto 19 da sentença);

24 - assim sendo, por si só, esta matéria é suficiente para poder concluir-se que a contratação da A. não visava satisfazer necessidades transitórias ou ocasionais, mas antes necessidades permanentes.

25 - Daí que, não possa este Venerando Tribunal deixar de concluir que a estipulação do termo nos contratos ajuizados é nula, por força do disposto nos n.os 2 e 3 do art. 41.º do D.L. n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro.

26- E, em consequência, não pode deixar de revogar o Acórdão recorrido.

A Ré contra-alegou para sustentar a manutenção do julgado.

Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, em douto parecer – que não obteve resposta de qualquer das partes – em que, em síntese, defende, por um lado, não poder este Supremo, em face do disposto no n.º 6 do artigo 712.º do Código de Processo Civil (CPC), controlar o não uso pela Relação do poder de alterar a decisão da matéria de facto, conferido pela alínea a) do n.º 1 daquele artigo, e, por outro lado, não se verificar, perante a factualidade fixada pelas instâncias, a nulidade do termo aposto nos contratos de trabalho em causa.

Nas conclusões da alegação, que delimitam o objecto do recurso, suscita a Autora as seguintes questões:

1.ª - Omissão de reapreciação, pelo Tribunal da Relação, das provas gravadas;

2.ª - Nulidade da estipulação do termo aposto nos contratos e consequente sujeição da relação laboral ao regime do contrato de trabalho de duração indeterminada.

Corridos os vistos, cumpre decidir.


II

Relativamente à primeira das enunciadas questões, alega a Autora que, tendo pedido a reapreciação da matéria de facto, com base nas provas gravadas, e resultando do acórdão recorrido que nenhuma reapreciação foi feita, por se entender que o Tribunal da Relação, no caso concreto, não tinha a possibilidade de sindicar a matéria de facto, foi violado o disposto no artigo 712.º, n.º 1, alínea a), 2.ª parte, do CPC, assim pondo em causa, de forma irremediável, o direito a impugnar a matéria de facto estabelecido no art. 690.°-A do mesmo Código, tornando absolutamente inútil a gravação dos depoimentos em julgamento, em ofensa dos princípios constitucionais do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, ínsitos no art. 20.º da Constituição da República.

Alega, outrossim, que o respectivo segmento do acórdão recorrido é recorrível, pese embora o que se estabelece no n.º 6 do citado artigo 712.º, uma vez que o que aí se proíbe é que se impugne a decisão tomada pela Relação sobre a matéria de facto e já não a decisão da Relação que entende não poder/dever ela sindicar a matéria de facto fixada na 1.ª instância, quando os depoimentos tiverem sido gravados

Tudo para concluir que deve o Acórdão recorrido “ser revogado, de modo a que seja substituído por outro em que se tome efectivo conhecimento da impugnação da matéria de facto”.

Debruçando-se sobre a pretensão da Autora de ver reapreciadas as provas gravadas, o Tribunal da Relação concluiu não haver possibilidade de proceder à alteração da decisão da matéria de facto, nos pontos impugnados, fundamentalmente, por entender que lhe está vedado, com base nas gravações, intrometer-se no poder de livre apreciação do julgador da 1.ª instância – ou seja, na valoração dos depoimentos prestados –, que beneficia da imediação da prova, tanto mais que, no caso, ao fundamentar a sua decisão sobre a factualidade controvertida, a Exma. Juíza do tribunal recorrido explicitou os motivos por que considerou determinada matéria de facto e não outra, sendo que a credibilidade que entendeu dar às testemunhas é pela própria natureza das coisas praticamente insindicável pelo tribunal de recurso, que não dispõe da imediação na percepção das provas, factor decisivo para a formação da convicção em que assenta a decisão sobre a matéria de facto.

É contra este entendimento que a Autora se insurge, na alegação do recurso, afirmando a recorribilidade desse “segmento decisório” e pedindo, como já se referiu, que o acórdão seja “revogado, de modo a que seja substituído por outro em que se tome efectivo conhecimento da impugnação da matéria de facto”.

É sabido que o Supremo, funcionando, estruturalmente, como um tribunal de revista, e não como uma 3.ª instância, conhece, em princípio, unicamente de matéria de direito nos termos dos artigos 26.º Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais), 87.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, 721.º e 722.º do Código de Processo Civil (CPC), cabendo-lhe aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido e não podendo, em regra, alterá-los.

Nos termos do artigo 722.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi do n.º 2 do art. 729.º do mesmo diploma, a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, nem o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa pode ser objecto da revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, ou seja, salvo havendo erros sobre regras de direito probatório material que ocorram no Acórdão da Relação, na sentença ou, até, nas respostas à base instrutória.

Não está em causa nenhuma das situações previstas na 2.ª parte do n.º 2 do citado artigo 722.º, por isso que não pode este Supremo substituir-se ao tribunal recorrido na reapreciação das provas gravadas e conhecer da impugnação da matéria de facto.

Daí que só possa entender-se a pretensão da Autora com o sentido de, na censura da alegada omissão de conhecimento da impugnação da matéria de facto, ver substituído o acórdão recorrido por outro, do mesmo tribunal, que não enferme daquela omissão.

Nos termos do artigo 712.º, n.º 1, alínea a), parte final, do CPC, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida.

Reza o n.º 5 deste último artigo que, em tal caso, o tribunal de recurso procederá à audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes, e o n.º 2 do citado artigo 712.º que a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido.

O n.º 6 do mesmo artigo proíbe o recurso para o Supremo das decisões da Relação previstas nos seus números anteriores.

Porém, salvo o devido respeito por diferente opinião, tal proibição contempla os casos em que a Relação, cumprindo aquele poder-dever de ouvir os depoimentos, decide, após a reapreciação das provas, alterar ou confirmar a decisão da matéria de facto (ou determinar a renovação dos meios de prova), e não aqueles casos em que se abstém de ouvir os depoimentos gravados e, assim, de valorar as provas oralmente produzidas em audiência, em ordem a apreciar da correcção da decisão impugnada.

De outro modo, seria frustrada a garantia de um verdadeiro e efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto.

No Acórdão deste Supremo de 8 de Julho de 2003(1) , considerou-se que “se não obstante a gravação da prova, a Relação não cumpre o poder-dever de a reapreciar, para o que necessita, sem dúvida, de ouvir os depoimentos gravados, tal omissão importa nulidade, porque manifestamente influi na decisão do recurso, devendo STJ mandar repetir o julgamento da Relação para que, efectuada tal reapreciação, seja fixada definitivamente a matéria de facto”.

E, no Acórdão de 19 de Outubro de 2004, apreciando um caso em que a Relação omitira a reapreciação das provas gravadas – por ter considerado que a decisão do julgador da 1.ª instância é inatacável em matéria de facto, quando, devidamente fundamentada, se apresentar como uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção – concluiu-se pela anulação do acórdão da Relação, por falta de reapreciação da prova, em violação dos artigos 690.º-A, n.º 5, com referência ao artigo 712.º, n.º 1, alínea a), 2.ª parte, e n.º 2, do CPC (2)

Tratando-se de nulidade do acórdão da Relação, ela teria, segundo a jurisprudência constante desta Secção Social, de ser arguida, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, sem o que dela não poderia tomar-se conhecimento (3).

Todavia, o caso apresenta-se, não como nulidade do acórdão, mas como erro de interpretação e aplicação de normas processuais, uma vez que a Relação para se recusar a reapreciar as provas e, consequentemente, a emitir juízo sobre a bondade do julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância, fundou-se em argumentos de natureza jurídico-processual, não se tratando, pois, de pura omissão de pronúncia.

É que a Relação não deixou de se pronunciar sobre o pedido de reapreciação das provas, antes o encarou como inviável, fundamentando a sua atitude e, assim, a questão posta na revista reconduz-se a eventual erro de julgamento em matéria processual, estando, por conseguinte, em causa apreciar da procedência ou improcedência dos fundamentos invocados para a recusa de reapreciação.

Nesta perspectiva, não opera, nem a proibição de recurso estatuída no n.º 6 do artigo 712.º do CPC, nem a exigência contida no artigo 77.º, n.º 1, do CPT, pelo que nada obsta a que a questão seja apreciada em sede de recurso de revista.

A garantia de dupla jurisdição em matéria de facto, que as disposições combinadas dos artigos 690.º-A, n.º 5 e 712.º, n.os 1, alínea b), in fine, e n.º 2, do CPC, consagram, assume a amplitude de novo julgamento em matéria de facto, no sentido de que a Relação, na reapreciação das provas gravadas, dispõe dos mesmos poderes do tribunal de primeira instância, incluindo a faculdade de livre apreciação dos elementos probatórios disponíveis.

Mas para usar dessa faculdade tem de, obrigatoriamente, ouvir as provas gravadas.

É, portanto, incorrecto afirmar-se, como se fez no acórdão recorrido, não haver possibilidade de proceder à alteração da decisão da matéria de facto, nos pontos impugnados, por lhe estar vedado, com base nas gravações, intrometer-se no poder de livre apreciação do julgador da 1.ª instância – ou seja, na valoração dos depoimentos prestados –, porque a Relação não beneficia da imediação da prova.

Se assim fosse, não teria qualquer efeito útil o recurso em matéria de facto, baseado no registo dos depoimentos, desde que a decisão recorrida se apresentasse minimamente fundamentada, relativamente à convicção do julgador

A interpretação adoptada pela Relação não é, pois, consentida pelas referidas normas.

Não procedendo os motivos em que assentou a recusa de reapreciação das provas gravadas, tal decisão não pode, em princípio, subsistir.

Importa, no entanto, averiguar se os pontos de facto impugnados assumem relevância para a solução do recurso de apelação, pois que, se tal não suceder, será possível conhecer com base na materialidade de facto provada, sendo desprovido de efeito útil, revogar, nessa parte, a decisão.

Pretendia a Autora que, no reexame da prova testemunhal gravada, que especificou, fossem declarados provados os seguintes factos alegados nos artigos da petição inicial que indica, e que na primeira instância foram considerados não provados:

a) Dos artigos 18.º e 19.º “não tendo esta [a Autora] tomado conhecimento de alguns aspectos do seu [dos contratos] conteúdo”, “nomeadamente da declaração que deles consta de nunca ter sido contratada por tempo indeterminado”;

b) Do artigo 20.º “se tivesse tomado consciência desse facto, não os teria assinado”;

c) Do artigo 21.º “tal facto [ter anteriormente trabalhado mediante contrato sem termo] era do domínio público”;

d) Do artigo 26.º A ré fez a autora subscrever tais contratos com o único propósito de violar a lei e iludir as disposições que regulam o contrato sem termo; aproveitando-se da admissibilidade da contratação a termo de trabalhadores que procuram o primeiro emprego”;

e) Do artigo 27.º “Circunstância que bem sabia não se aplicar à A já que... tinha conhecimento que esta havia trabalhado como efectiva para a empresa “ BB SA”;

f) Do artigo 29.º, “tendo nele [segundo contrato] sido aposta nas mesmas condições que se vieram a referir no artº 18º desta p. i.”

g) Do artigo 31.º “sendo falsos os motivos invocados, falsidade essa imputável à Ré”

h) Do artigo 42.º “a autora foi contratada, desde o primeiro contrato celebrado com a ré e nos que lhe seguiram para suprir necessidades normais e permanentes do serviço de distribuição de correspondência, motivadas pelo facto de os trabalhadores efectivos da Ré, do CPD de Alcobaça, na altura em que a A. lá trabalhou, serem em número muito inferior ao que o volume normal de serviço exigiria

i) Do artigo 43.º “dado que desde há muitos anos, a ré vem recorrendo por sistema à contratação a termo para suprir as suas necessidades com pessoal”

j) Do artigo 44.º, “dispõe apenas” [de 25 carteiros do quadro permanente, para um total de 30 giros];

k) Do artigo 47.º, embora em termos restritivos, ou seja “por ocasião da cessação das relações de trabalho entre autora e Ré esta contratou outro trabalhador

O veredicto sobre estes factos, no contexto em que integraram a causa de pedir, mostra-se relevante para, segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito, decidir o litígio, face à sua conexão com o pedido formulado pela Autora e ao teor da defesa apresentada pela Ré.

Com efeito, não é indiferente, para a decisão da causa, que a matéria de facto neles contida – embora, eventualmente, tenha de ser limitada a formulações não conclusivas – seja declarada, total ou parcialmente, provada, em função da requerida reapreciação das provas.

Recorde-se que a Autora fundou a sua pretensão, não apenas no desconhecimento do exacto e integral teor dos escritos, prontos a assinar, elaborados pela Ré, que assinou, mas também, por um lado, no conhecimento que a Ré tinha do seu anterior passado laboral, e, por outro lado, na imputação à Ré de, intencionalmente, ter celebrado os contratos a termo para a satisfação de necessidades permanentes, e, desse modo, iludir as disposições legais reguladoras do contrato sem termo.

Decorre do exposto que a decisão de não reapreciar as provas não pode subsistir, uma vez que, como se viu, os fundamentos que a ela conduziram não são de aceitar.

E porque os factos em causa interessam à resolução do litígio tem a referida decisão que ser revogada.

Como se deixou dito, está vedado a este Supremo apreciar as provas, fora dos condicionalismos previstos no artigo 722.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, que aqui não se verificam.

Assim, a consequência da revogação a que se aludiu é a de ordenar a remessa dos autos ao tribunal recorrido, a fim de proceder à reapreciação das provas gravadas e proferir, em conformidade, decisão sobre os factos impugnados no recurso de apelação.

Visto que sem a fixação definitiva da matéria de facto, nos termos referidos, não é possível apreciar do mérito da causa, não se conhece da segunda questão suscitada pela Autora.


III

Em face do exposto, decide-se:

– Conhecendo da parte em que decidiu não reapreciar as provas gravadas revogar o acórdão recorrido, concedendo-se a revista;

– Ordenar a remessa dos autos ao tribunal recorrido a fim de proceder à reapreciação das provas gravadas e, em função do seu exame, proferir decisão sobre os pontos de facto impugnados, julgando, depois, a causa conforme o direito.

Custas a cargo da Ré.

Lisboa, 14 de Dezembro de 2006

Vasques Dinis (Relator)
Fernandes Cadilha
Mário Pereira
_______________________________

(1) Subscrito pelos Exmos. Conselheiros Fernando Araújo de Barros (Relator), Boavida Oliveira Barros e Salvador da Costa, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XI, Tomo II, 151.

(2) Subscrito pelos Exmos. Conselheiros Reis Figueira, (Relator), Barros Caldeira e Faria Antunes, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XII, Tomo III, 72.
(3) Entre outros, os Acórdãos de 10 de Maio de 2001, subscrito pelos Exmos. Conselheiros Mário Torres (Relator), Manuel Pereira e José António Mesquita, e de 14 de Março de 2006, subscrito pelos Exmos. Conselheiros Fernandes Cadilha, Mário Pereira e Maria Laura Leonardo, ambos disponíveis, em texto integral, em www.dgsi.pt, Documentos n.os SJ200105100018124 e SJ200603140040284, respectivamente