Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
493/23.8T8VNG.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE LEAL
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL MARÍTIMO
TRIBUNAL COMUM
CONTRATO DE SEGURO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
EMBARCAÇÃO
DANO
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: PROCEDÊNCIA/DECRETAMENTO TOTAL
Sumário :
I. A competência material do tribunal deverá ser apreciada consoante os termos em que a ação é proposta, atendendo-se ao pedido e à causa de pedir formulados pelo autor.

II. Cabe ao tribunal marítimo, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 113.º da LOSJ, julgar uma ação na qual a autora pretende obter da ré seguradora (e, subsidiariamente, da ré mediadora do contrato de seguro) com quem havia celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil, indemnização pelos danos causados, pela autora, em duas embarcações que se encontravam para reparação nas suas instalações, situadas numa marina, danos esses causados aquando da execução da contratada reparação de uma das embarcações, um barco à vela de recreio.

Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Em 16.01.2023 Ondastar, Lda, propôs no Juízo Central Cível de ... ação declarativa de condenação com processo comum contra Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A. e MDS – Corrector de Seguros, S.A..

A A. alegou que tem por objeto, além do mais indicado, a “reparação e manutenção de barcos de recreio, representação de marcas da especialidade, bem como organização de eventos lúdicos e/ou de lazer e ainda o comércio por grosso e a retalho de artigos e acessórios náuticos”. Com o conselho e intermediação da 2.ª R., em 20.6.2017 a A. celebrou com a 1.ª R. um contrato de seguro, que cobria e garantia os riscos de toda a atividade comercial da A.. Conforme consta das “Declarações e Cláusulas Particulares aplicáveis às Coberturas” do contrato, por via do contrato de seguro a A. mantinha transferida para a 1.ª R. a responsabilidade pelo pagamento de indemnizações que lhe fossem exigidas por danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais, causados a terceiros em consequência de atos ou omissões da A., bem como dos seus empregados, assalariados ou mandatários, no exercício da sua atividade. Sucede que em 02.5.2022, na sequência do deficiente escoramento (cujas características a A. detalhou) de um barco à vela (“Y...”) que se encontrava em reparação nas instalações da A. sitas na “... - ...”, em ..., a aludida embarcação tombou, sofrendo danos e causando danos numa outra embarcação (“F...”) que também se encontrava no local para reparação a cargo da A., assim como embateu e derrubou um poste de iluminação fixo, pertencente à “...”. A A. participou o sinistro às RR., mas, por carta de 15.7.2022 a 1.ª R. comunicou-lhe que o sinistro não possuía enquadramento no âmbito das garantias conferidas pelo contrato de seguro, assim declinando a transferência da responsabilidade no sinistro em causa. Como consequência direta e exclusiva do sinistro a A. sofreu diversos prejuízos: gastou € 799,50 no aluguer de uma grua para içar e retirar do local a embarcação sinistrada; pagou € 4 158,00 pela deslocação ao local de uma equipa de peritos da marca da embarcação, sediada em ..., para avaliar as hipóteses de reparação do barco; a marca orçamentou o custo da reparação dos danos da embarcação em € 317 116,60; a reparação do barco em que a primeira embarcação embatera, partindo-lhe o mastro, foi orçamentada em € 9 228,78; a reparação do poste de iluminação derrubado pelo “Y...” importa na quantia de € 1 422,00; pela ocupação do espaço onde ainda se encontra o “Y...” a ... cobra à A. uma taxa diária, variável consoante se esteja em época alta ou época baixa, estando em dívida, à data, € 5 982,00, a que acresce € 536,00 cobrados pela ... pela ocupação do terrapleno pelas gruas e travel lift utilizados para manobrar o barco após a ocorrência do sinistro. As RR., com a sua conduta, privaram a 1.ª A. da indemnização a que tem direito para o ressarcimento dos prejuízos emergentes do sinistro descrito, com isso causando danos graves na sua imagem, bom nome e reputação comercial, pois as embarcações ainda não foram reparadas. Esse dano não pode ser quantificado em menos de € 15 000,00. A 1.ª R. é responsável à luz do teor do contrato celebrado, do seu objeto e da mais elementar boa-fé contratual. A cláusula de exclusão indicada pela 1.ª R. não tem o sentido que esta lhe atribui, tanto mais que, a tê-lo, deixaria sem objeto a cobertura de risco contratada. De resto, as cláusulas em causa são cláusulas contratuais gerais, cuja comunicação e explicação nunca foram feitas à A., em violação do regime geral das cláusulas contratuais gerais. Por isso, a aludida cláusula de exclusão deve ser considerada nula e a 1.ª R. deve ser condenada a pagar à A. todos os prejuízos emergentes e decorrentes do sinistro ocorrido. Quanto à 2.ª R., a considerar-se que a apólice em causa não cobre o sinistro dos autos, então recairá sobre a 2.ª R. a obrigação de indemnizar a A. por manifesto e ostensivo erro e responsabilidade nas informações que prestou no âmbito do exercício da sua atividade profissional de corretora de seguros.

A A. terminou formulando o seguinte petitório:

Nestes termos, e nos demais de direito aplicáveis com o douto suprimento de Vª. Exª., deve a presente acção ser julgada provada e procedente, condenando-se a 1ª Ré, a:

Pagar à Autora:

a) A quantia de € 339.242,88 (trezentos e trinta e nove mil duzentos e quarenta e dois euros e oitenta e oito cêntimos) a título de danos patrimoniais conforme discriminadamente alegado em 46º a 67º desta peça;

b) A quantia de, pelo menos, € 15.000,00 (quinze mil euros), a título de danos não patrimoniais, conforme discriminadamente alegado em 68º a 86º desta peça;

c) Os juros moratórios, calculados à taxa legal anual de 7% sobre o montante global a indemnizar, contados da data da citação até integral e efectivo pagamento;

d) As custas de parte e demais encargos legais.

e) Caso assim não se entenda, deverá subsidiariamente a 2ª Ré ser condenada a pagar à Autora:

f) A quantia de € 339.242,88 (trezentos e trinta e nove mil duzentos e quarenta e dois euros e oitenta e oito cêntimos) a título de danos patrimoniais conforme discriminadamente alegado em 46º a 67º desta peça;

g) A quantia de, pelo menos, € 15.000,00 (quinze mil euros), a título de danos não patrimoniais, conforme discriminadamente alegado em 68º a 86º desta peça

h) Os juros moratórios, calculados à taxa legal anual de 7% sobre o montante global a indemnizar, contados da data da citação até integral e efectivo pagamento;

i) As custas de parte e demais encargos legais”.

3. A 2.ª R. contestou, negando não ter esclarecido corretamente a A. acerca do âmbito da garantia do seguro contratado, impugnando, por desconhecimento, as circunstâncias do sinistro e prejuízos alegados, e requerendo a intervenção principal provocada da A... S.A. – Sucursal em Portugal, para a qual havia sido transferida a eventual responsabilidade profissional da 2.ª R. – concluindo pela sua absolvição do pedido.

4. Também a 1.ª R. contestou, arguindo, à cabeça, a incompetência material do tribunal, por a competência para julgar o litígio caber ao tribunal marítimo. Para tanto, salientou que a causa de pedir em que assenta a pretensão da A. é o ressarcimento dos danos por erro cometido nos procedimentos de execução de um contrato de reparação de uma embarcação de recreio, causados a essa própria embarcação e a terceiros por via do mesmo erro. Tal matéria, defende a 1.ª R., cabe na previsão das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 113.º da Lei n.º 62/2013, de 26.8. e das alíneas a) e b) do art.º 4.º da Lei n.º 35/86, de 04.9. Por impugnação, a 1.ª R. alegou que, na sequência de informada e esclarecida negociação, a A. contratou com a 1.ª R. a cobertura da responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei civil, pudesse ser imputada à segurada no exercício da atividade ou na qualidade expressamente referida nas condições especiais ou particulares da apólice. Mais foi negociada uma cláusula especial, nos termos da qual a 1.ª R. garantia a responsabilidade civil emergente para a A. de danos causados ou sofridos pelos veículos propriedade de clientes da A. ocorridos em consequência de serviço ou trabalho mal executado pela A., após o veículo ter sido entregue ao cliente seu proprietário. Ora, o sinistro invocado pela A. emerge de responsabilidade contratual e ocorreu antes da entrega das embarcações aos seus proprietários – pelo que não cabe no âmbito da garantia contratada, do que a A. havia sido bem esclarecida aquando da contratação. A 1.ª R. admitiu o alegado quanto às circunstâncias do sinistro admitidas pela A. e impugnou os danos alegados.

A 1.ª R. concluiu pela sua absolvição dos pedidos.

5. Para o efeito notificada pelo tribunal, a A. respondeu à exceção de incompetência material suscitada pela 1.ª R., pugnando pela sua improcedência.

6. Em 12.6.2023 foi proferida decisão, na qual o tribunal absolveu as RR. da instância, por julgar verificada a incompetência do tribunal quanto à matéria, porquanto a competência para julgar o litígio cabia ao tribunal marítimo.

7. A A. apelou desta decisão e, por acórdão proferido em 09.10.2023 pelo Tribunal da Relação do Porto, a dita decisão foi revogada e substituída por outra em que se declarou o tribunal competente em razão da matéria para a subsequente tramitação dos autos.

8. A 1.ª R. interpôs recurso de revista desse acórdão, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:

“1.º O acórdão recorrido alterou a decisão da primeira instância, restituindo a competência à jurisdição comum cível por entender que atenta a causa de pedir na PI esta não compreende apenas “o ressarcimento dos danos por erro cometido nos procedimentos de execução de um contrato de reparação de uma embarcação de recreio”, mas sobretudo a apreciação do contrato de seguro que é invocado cobrir essa actividade;

2.º Ora, a génese da prestação reclamada pela autora no pedido formulado na PI encontra-se na alegada deficiente execução do contrato de reparação naval que se encontra a montante do enquadramento ou não da situação concreta no seguro contratado entre autora e 1ª ré, que é acessório e dependente daquela;

3.º Essa relação jurídica nuclear ou subjacente está regulada em diploma específico do Direito Marítimo, no caso o Dec-Lei n.º 201/98 de 10 de Julho, e é à luz do cumprimento defeituoso do contrato de reparação naval que se encontra a fonte da obrigação que conforma a prestação que se entende transferida para a seguradora pelo seguro contratado;

4.º É na relação a montante que gere ou não a deslocação da obrigação de indemnizar para um sujeito diferente (seguradora) por via de um contrato de seguro, que deve predominar na determinação da competência, em detrimento da relação a jusante dada a natureza acessória e dependente emergente do contrato de seguro.

5.º Ademais, é ainda da competência dos Tribunais marítimos a apreciação de contratos de seguro que respeitem a questões com envolvimento de embarcações, tendo todo cabimento que um litígio que tem que apreciar uma apólice de seguro de responsabilidade civil no plano de uma actividade de reparação naval, seja reconduzida ao foro especifico do Tribunal Maritimo.

6.º Violou, por isso, o acórdão recorrido, o disposto nos arts. 40º e 113.º n.º 1 alineas a), b), f) e s) da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) e art.º 4.º a), b), f) e t) da Lei nº 35/86, de 4 de setembro.

A recorrente terminou pedindo que a decisão recorrida fosse revogada, repristinando-se a sentença da primeira instância que julgara procedente a exceção da incompetência material e absolvera as RR. da instância.

9. A A. contra-alegou, pugnando pela improcedência da revista e consequente manutenção da decisão recorrida.

10. Recebidos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça, foi o processo aos vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A questão objeto deste recurso é se o presente litígio cabe na competência dos juízos cíveis ou se, pelo contrário, é da competência do tribunal marítimo.

2. O factualismo a levar em consideração é o constante no Relatório (I).

3. O Direito

O exercício da função jurisdicional é repartido por diversos órgãos jurisdicionais, atendendo a diversos critérios entre os quais avulta o da matéria a que respeitam as respetivas causas.

Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art.º 211.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e art.º 40.º n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ – aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8, com as alterações publicitadas; art.º 64.º do CPC de 2013).

A instituição de diversos tribunais e a demarcação da respetiva competência de acordo com a natureza da relação substantiva pleiteada visa a fruição das vantagens inerentes à especialização, que são a maior celeridade e a maior adequação das decisões aí proferidas, por força da particular experiência e preparação dos respetivos magistrados e, quiçá, dos seus funcionários.

Assim, a Constituição da República Portuguesa prevê que “na primeira instância pode haver (…) tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas” (art.º 211.º n.º 2) e que “os tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça podem funcionar em secções especializadas” (n.º 4 do art.º 211.º). Tal possibilidade é reafirmada, como princípio geral, na LOSJ, no art.º 37.º n.º 1 (cfr. igualmente o art.º 65.º do CPC de 2013) e explicitada nos artigos 111.º e seguintes, através da enunciação dos tribunais judiciais de competência especializada (incluindo tribunais de competência territorial alargada) que poderão existir e da definição da respetiva área de competência. Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (art.º 130.º n.º 1 da LOSJ).

A par dos tribunais de comarca existem tribunais de competência territorial alargada (art.º 83.º n.º 1 da LOSJ). São tribunais judiciais de primeira instância cuja área territorial de jurisdição excede a da comarca e conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável (art.º 83.º n.º 2 da LOSJ). Os tribunais de competência territorial alargada atualmente existentes estão enunciados no art.º 65.º do Regulamento da LOSJ (Dec.-Lei n.º 49/2014, de 27.3, com as alterações publicitadas) e figuram também, com indicação da respetiva área territorial de competência, no anexo III da LOSJ.

Entre eles conta-se o Tribunal Marítimo, sediado em Lisboa, que tem competência nos Departamentos Marítimos do Norte, do Centro e do Sul (anexo III da LOSJ). Ficam, pois, fora da sua área de competência, os Departamentos Marítimos dos Açores e da Madeira, em cujas circunscrições são competentes os respetivos tribunais de comarca (art.º 113.º n.º 3 da LOSJ).

A competência material do Tribunal Marítimo está determinada no art.º 113.º da LOSJ nos seguintes termos:

1 - Compete ao tribunal marítimo conhecer das questões relativas a:

a) Indemnizações devidas por danos causados ou sofridos por navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, ou resultantes da sua utilização marítima, nos termos gerais de direito;

b) Contratos de construção, reparação, compra e venda de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, desde que destinados ao uso marítimo;

c) Contratos de transporte por via marítima ou contrato de transporte combinado ou multimodal;

d) Contratos de transporte por via fluvial ou por canais, nos limites do quadro n.º 1 anexo ao Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/72, de 31 de julho;

e) Contratos de utilização marítima de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, designadamente os de fretamento e os de locação financeira;

f) Contratos de seguro de navios, embarcações, outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo e suas cargas;

g) Hipotecas e privilégios sobre navios e embarcações, bem como quaisquer garantias reais sobre engenhos flutuantes e suas cargas;

h) Processos especiais relativos a navios, embarcações, outros engenhos flutuantes e suas cargas;

i) Procedimentos cautelares sobre navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, respetiva carga e bancas e outros valores pertinentes aos navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, bem como solicitação preliminar à capitania para suster a saída das coisas que constituam objeto de tais procedimentos;

j) Avarias comuns ou avarias particulares, incluindo as que digam respeito a outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo;

k) Assistência e salvação marítimas;

l) Contratos de reboque e contratos de pilotagem;

m) Remoção de destroços;

n) Responsabilidade civil emergente de poluição do mar e outras águas sob a sua jurisdição;

o) Utilização, perda, achado ou apropriação de aparelhos ou artes de pesca ou de apanhar mariscos, moluscos e plantas marinhas, ferros, aprestos, armas, provisões e mais objetos destinados à navegação ou à pesca, bem como danos produzidos ou sofridos pelo mesmo material;

p) Danos causados nos bens do domínio público marítimo;

q) Propriedade e posse de arrojos e de coisas provenientes ou resultantes das águas do mar ou restos existentes, que jazam nos respetivos solo ou subsolo ou que provenham ou existam nas águas interiores, se concorrer interesse marítimo;

r) Presas;

s) Todas as questões em geral sobre matérias de direito comercial marítimo;

t) Recursos das decisões do capitão do porto proferidas em processo de contraordenação marítima.

2 - A competência a que se refere o número anterior abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.

3 - Nas circunscrições não abrangidas pela área de competência territorial do tribunal marítimo, as competências referidas nos números anteriores são atribuídas ao respetivo tribunal de comarca”.

A competência material do tribunal deverá ser apreciada consoante os termos em que a ação é proposta, atendendo-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo autor (v.g., acórdão do STJ de 21.9.2010, processo n.º 1096/08.2...).

No caso destes autos e com base nesta mesma premissa, as instâncias chegaram a conclusões diferentes.

A primeira instância entendeu que a competência para julgar o litígio objeto destes autos cabia ao tribunal marítimo.

Para tal, na sentença exarou-se o seguinte:

Resulta de forma clara que tendo a ação por objeto o ressarcimento, de danos sofridos pela Autora no exercício da sua atividade de reparação e manutenção de barcos de recreio, decorrentes de acidente ocorrido no estaleiro da sua propriedade, sitas na ... e que teve por objeto embarcação destinada a uso marítimo e a competência atribuída ao Tribunal Marítimo, é este o tribunal competente para apreciar o presente litigio”. E concluiu-se que o objeto da ação se encontrava contemplado nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 113.º da LOSJ.

Por sua vez a Relação considerou que o tribunal demandado (juízo central cível) tem competência para julgar o litígio.

No acórdão recorrido escreveu-se o seguinte (transcrevemos, incluindo sublinhado):

“Postas estas breves considerações, dúvidas não existem de que, face resumo fáctico supra enunciado no presente Relatório, a presente ação foi proposta pela Recorrente, contra a 1ª Ré (e, subsidiariamente, contra a 2ª Ré), para desta(s) exigir a responsabilidade pelo pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de um sinistro ocorrido dentro das suas instalações, designadamente com duas embarcações que, no âmbito da atividade comercial da recorrente, se encontravam a ser por si intervencionadas e reparadas.

Portanto, a causa de pedir da presente ação funda-se no facto da recorrente ter celebrado com a 1ª Ré, sob intermediação da 2ª Ré, um “contrato de seguro de responsabilidade civil geral”, conjugado com a ocorrência de um sinistro no âmbito da atividade comercial daquela com a consequente obrigação desta reconstruir a situação anterior à lesão, em obediência ao princípio da reposição natural.

Significa, pois, que a causa de pedir formulada pela apelante não é apenas como refere na decisão recorrida “o ressarcimento dos danos por erro cometido nos procedimentos de execução de um contrato de reparação de uma embarcação de recreio”, ela assenta sobretudo, em apurar o âmbito de cobertura e o eventual incumprimento pela 1ª Ré e, subsidiariamente, pela 2ª Ré, das obrigações decorrentes de um contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado com a apelante e vigente à data do invocado sinistro.

Contrato de seguro esse que, como se alega na petição inicial, visava assegurar toda a atividade comercial desta, não contendo, em si, nenhuma especificidade ou particularidade que importe, envolva ou exija a aplicação de um qualquer conhecimento ou normativo de Direito Marítimo.

Como assim, não obstante o pedido culminar na pretensão do pagamento pelas apeladas à apelante de uma indemnização por danos, o pilar basilar da presente ação, afirma-se pelo enquadramento da responsabilidade contratual da 1ª Ré e, subsidiariamente, da 2ª Ré, no cumprimento das obrigações por esta(s) assumida(s) no âmbito de uma apólice decorrente do contrato de seguro celebrado com a Recorrente.

Ou seja, o elemento essencial ou preponderante da causa de pedir dos presentes autos reside em aferir se o contrato de seguro celebrado entre a apelante e 1ª Ré, sob a mediação da 2ª, acolhe ou não a pretensão indemnizatória formulada pela recorrente, na sequência de um sinistro ocorrido no estaleiro desta no qual, no exercício da sua atividade comercial, se encontrava a prestar um serviço de reparação/manutenção nas embarcações vítimas do sinistro que apesar de ter envolvido embarcações, ocorreu em terra, mais precisamente dentro das instalações da apelante.

Acontece que, como já noutro passo se referiu, é absolutamente pacífico na nossa mais autorizada doutrina e jurisprudência que a competência do tribunal em razão da matéria se afere pela natureza da relação jurídica apresentada pelo autor na petição inicial.

Ora, não sendo o elemento preponderante da causa de pedir, no caso em apreço, a indemnização dos danos sofridos, nem tão pouco o contrato de manutenção e reparação das embarcações em causa celebrado entre a apelante e os seus clientes, donos das embarcações, mas sim o âmbito de cobertura do contrato de seguro e o seu incumprimento, esta questão está absolutamente subtraída à competência cível dos Tribunais Marítimos, porquanto, tratando-se como se trata de uma questão pura de direito civil, a mesma não exige nem envolve qualquer conhecimento específico ou especial de outros ramos de direito, que não do direito civil, muito menos do direito marítimo, como singularmente defende a 1ª Ré e à qual a sentença recorrida veio a dar razão.

Portanto, ao contrário do que defende a decisão recorrida, o caso sub Júdice não preenche a facti species quer de qualquer das alíneas do 4.º da Lei nº 35/86, de 4 de setembro quer do artigo 113.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.”

Vejamos.

É um facto que nesta ação se discute qual o âmbito da cobertura do contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado entre a A. e a 1.ª R. e intermediado pela 2.ª R.. Segundo a A., esse contrato tem por objeto a responsabilidade civil emergente para a A. dos danos causados em virtude da sua atividade, a qual tem por núcleo a reparação de embarcações destinadas a utilização marítima. E o que a A. pretende, com esta ação, é que a 1.ª R. assuma essa cobertura, cobrindo os danos emergentes da atividade da A., a qual, na execução de um contrato de reparação de uma embarcação, cometeu erros dos quais resultaram estragos nesse barco e, bem assim, numa outra embarcação que também se encontrava nas suas instalações para reparação.

A responsabilização da 1.ª R. depende da resolução da questão do âmbito da garantia coberta. Mas o facto que despoletou o litígio, que o pressupõe e que também estabelece a medida da responsabilidade, é o ato danoso praticado pela A., em execução de contratos de reparação naval, e os danos daí emergentes.

De acordo com a causa de pedir invocada na petição inicial, fundando-se a obrigação de indemnizar da 1.ª R. seguradora nos danos provocados pela deficiente execução de um contrato de manutenção e reparação de uma embarcação destinada ao uso marítimo, incluindo os danos sofridos por essa embarcação e ainda os danos provocados pela colisão numa outra embarcação que também se encontrava a ser reparada, será competente o Tribunal Marítimo nos termos das alíneas a) e b) do art.º 113.º da LOSJ. A própria discussão sobre o âmbito da cobertura do contrato de seguro celebrado entre as partes envolve a apreciação de quais eram os riscos inerentes ao exercício da atividade comercial da A. e, segundo a causa de pedir invocada, tais riscos emergiam da guarda, manutenção e reparação de embarcações, no âmbito de contratos de reparação de embarcações como aquele em cuja execução ocorreu o sinistro que é objeto da ação.

Note-se, aliás, como realça a recorrente, que o contrato de reparação de embarcações se regula por regime jurídico específico, contido no Decreto-Lei n.º 201/98, de 10.7, diploma esse que revogou e substitui diversas normas do Livro III do Código Comercial.

O facto de a controvérsia entre as partes se centrar, sobretudo, no teor do contrato de seguro, não esconde a natureza específica do facto danoso que desencadeia o litígio e que lhe traça os limites: execução deficiente de contrato de reparação de navio/embarcação e consequente causação de danos em duas embarcações, com a concomitante obrigação de indemnização desses danos. É a partir desses factos e dentro deste quadro que se molda a responsabilidade assacada a ambas as RR., incluindo a responsabilidade subsidiariamente imputada à 2.ª R..

Trata-se de questão que cabe nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 113.º da LOSJ.

A A./recorrida defende que o contrato de seguro sub judice contém normas, nas suas cláusulas gerais, que visam a atribuição da competência jurisdicional ao tribunal comum.

São as normas contidas no artigo 2.º e no n.º 2 do artigo 23.º das aludidas cláusulas.

Os mencionados artigos têm a seguinte redação:

Artigo 2.º

O presente contrato de seguro garante a responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao segurado, no exercício da actividade ou na qualidade expressamente referida nas condições especiais ou particulares da apólice”;

N.º 2 do artigo 23.º

O foro competente para dirimir os litígios emergentes deste contrato é o fixado na lei civil” (negritos nossos).

Antes de mais, o sentido do texto poderá, tão-só, ter em vista a contraposição entre as regras atinentes ao direito privado e, do outro lado, as regras próprias do direito público como o direito administrativo, o direito contraordenacional ou o direito penal. É neste sentido amplo que a Constituição da República Portuguesa define a área de competência dos tribunais judiciais como a dos “tribunais comuns em matéria cível e criminal” (art.º 211.º da CRP), podendo identificar-se matéria cível como matéria de direito privado, seja ele direito civil, comercial, laboral ou qualquer outro (neste sentido, cfr. António A. Vieira Cunha, Organização Judiciária Portuguesa, Gestlegal, 2018, pág. 134).

Mas o que releva é que a determinação da competência dos tribunais quanto à matéria rege-se por regras constitucionais e legais, e não pela vontade das partes, quiçá expressa em normas contratuais. Conforme exarado no art.º 65.º do CPC, “[a]s leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”. A violação das regras de competência material implica uma exceção dilatória (artigos 577.º alínea a) e 96.º alínea a) do CPC) que é de conhecimento oficioso (artigos 97.º e 578.º do CPC) e determina a absolvição da instância (artigos 576.º n.º 2 e 99.º n.º 1 do CPC), sem embargo da faculdade de remessa para o tribunal competente, nos termos do art.º 99.º n.º 2.

Conforme exposto acima, o litígio sub judice, face ao peticionado e à respetiva causa de pedir, cabe na área de competência do tribunal marítimo, à luz das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 113.º da LOSJ, o que determina a absolvição da instância das RR., conforme fora ajuizado pelo tribunal de 1.ª instância.

Assim, a revista é procedente, devendo repristinar-se a sentença recorrida.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a revista procedente e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença proferida.

As custas da revista e da apelação, na componente de custas de parte, são a cargo da A., que nelas decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º, do CPC).

Lx, 23.01.2024

Jorge Leal (Relator)

Nelson Borges Carneiro

Jorge Arcanjo