Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1179/08.9TBSTC.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
SOCIEDADE COMERCIAL
DIREITOS DOS SÓCIOS
DISTRIBUIÇÃO DE LUCROS
DELIBERAÇÃO SOCIAL
ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
APROVAÇÃO DE CONTAS
CAPITAL SOCIAL
LUCROS
RESTITUIÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - PROVA
DIREITO COMERCIAL - SOCIEDADES COMERCIAIS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 21.º, N.º 1 AL. A), 31.º, NºS 1 E 2, 32.º, 33.º, NºS 3 E 4, 34.º, N.º1, 55.º, 56.º, N.º1, 58.º N.º 1 AL. B), 60.º Nº 1, 218.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 722.º, N.º2, 729.º, NºS 1, 2 E 3.
LEI N.º 3/99, DE 13/1 (LEI DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS): - ARTIGO 26.º.
Sumário : I - Para a decisão jurídica do pleito, o STJ apenas levará em linha de conta a factualidade assumida pelas instâncias, não lhe competindo apreciar documentos particulares.
II - Nos termos do art. 31.º n.º 1, do CSC, a distribuição de lucros do exercício social deve ser precedida de deliberação dos sócios, deliberação que ocorreu no caso vertente.
III - Pese embora dois titulares do capital social não tenham intervindo na deliberação social, não ocorre a nulidade nem sequer a anulabilidade do acto.
IV - Mas mesmo a entender-se ser possível integrar a conduta em causa numa situação de anulabilidade (art. 58.º, nº 1, al. b), do CSC), como os sócios não presentes na deliberação concordaram com a distribuição de dividendos, se existisse essa irregularidade, a mesma deveria ter-se como sanada.
V - Mas mesmo que subsistisse a irregularidade, a pretensão da recorrente não poderia igualmente proceder, já que a respectiva acção de anulação da deliberação social deveria ser (sempre) instaurada contra a própria sociedade, como resulta do art. 60.º, n.º 1, do CSC.
VI - O art. 32.º do CSC, que trata dos limites à distribuição de bens aos sócios, estabelecendo como princípio geral, a impossibilidade de distribuição de bens aos sócios quando, de harmonia com as contas elaboradas e aprovadas, a situação líquida da sociedade seja inferior à soma do capital e das reservas que a lei ou o contrato não permitem distribuir aos sócios, ou se tornasse inferior a esta soma em consequência da distribuição, não tem aplicação ao caso vertente, visto que ela diz respeito à proibição de distribuição pelos sócios de bens da sociedade, o que não ocorreu aqui.
VII - Nos termos do art. 33.º do CSC sempre que haja prejuízos transitados (de períodos anteriores), ou quando sejam necessários para formar ou reconstituir as reservas imposta pela lei (ou pelo contrato de sociedade), os lucros não poderão ser distribuídos pelos sócios (n.º 1). Proíbe também a disposição, a distribuição aos sócios de lucros do exercício enquanto as despesas de constituição, de investigação e de desenvolvimento não estiverem completamente amortizadas, excepto se o montante das reservas livres e dos resultados transitados for, pelo menos, igual ao dessas despesas não amortizadas (n.º 2), hipóteses que não podem ser aplicadas ao presente caso.
VIII - A restituição de lucros ou reservas, cuja distribuição não é permitida pelos arts. 32.º e 33.º do CSC, deve ser efectuada pelos sócios, mas só se conhecessem a irregularidade da distribuição ou, tendo em conta as circunstâncias, devessem não a ignorar, cabendo à sociedade o ónus da prova do conhecimento pelo sócio, ou do dever de não ignorar, da incorrecção do procedimento, situações que não ocorrem no caso, dado que os factos dados como assentes são omissos sobre esses elementos.
IX - Não se denuncia que a ré tenha agido com abuso de direito.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

             

                                              

                        I- Relatório:

                        1-1- “AA”, Unipessoal Lda, com sede na Rua......, V....., propôs a presente acção com processo ordinário contra “BB”, residente na Rua …, …, Santiago do Cacém, pedindo a condenação desta na restituição da quantia de € 213.328,69 acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

                        Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que a R. foi a única sócia e gerente da A. durante um período de tempo, entre 27/8/2004 e 17/12/2007, e após o falecimento do seu marido a única quota ficou a pertencer, em comum e partes iguais à R. e aos dois filhos, mantendo-se a R. como única gerente. Em 20 de Dezembro de 2007 (período em que a quota única pertencia em comum e partes iguais à R. e aos dois filhos) a R. reuniu e referindo a presença da totalidade do capital, deliberou sozinha a distribuição, a si mesma, a título de dividendos do montante de € 213.328,69 que seriam os resultados do balancete das contas até Novembro de 2007 que refere ter sido analisado. E na sequência dessa deliberação, em 26/12/2007, procedeu à transferência bancária da conta da A. no BPI para si mesma a quantia de € 213.238,69. Os sócios contitulares da quota única, “CC” e “DD”, não estiveram presentes na assembleia nem deliberaram qualquer distribuição de "lucros" ou de bens da sociedade. A deliberação em causa é ilícita e violou o princípio da intangibilidade do capital social e, por isso, a sócia, a R., que os recebeu deve restituí-los à sociedade.

                       

                        A R. contestou, alegando, em síntese, que por força da cessão de quotas referida, esta ficou a pertencer à sociedade “EE” que a adquiriu pela quantia de € 1.655.408, que esta sociedade deu consentimento expresso à distribuição de dividendos referida, sendo que o actual gerente da A. é precisamente o gerente daquela sociedade. Em 18 de Janeiro de 2008 a R. entregou à A. um cheque de € 42.647,73 para pagamento da retenção na fonte referente aos dividendos distribuídos. Aceita que os demais contitulares da quota única não estiveram presentes na assembleia em que foi deliberado a distribuição de lucros, mas na escritura de cessão de quota deram o seu acordo a esta deliberação, pelo que o assentimento escrito desta deliberação, ainda que posterior, produz a sanação da irregularidade que existiu. Não houve violação da intangibilidade do capital social pois aquando da cessão de quota a A. tinha no banco a quantia de € 51.411,14 enquanto o seu capital social é de € 5.000,00 o que obriga a reservas obrigatórias de € 2.500,00.

                        Termina pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido e ainda que a A. seja condenada como litigante de má fé em multa e em indemnização a pagar-lhe por danos patrimoniais (honorários e demais despesas) e não patrimoniais em valor não inferior a € 75.000,00.

                         

A A. respondeu à contestação e, depois de considerar a extemporaneidade da contestação, alegou que a R. confunde a A. e a sociedade “EE” e, reafirmando o referido na petição inicial, pede a improcedência das excepções suscitadas e do pedido de condenação como litigante de má fé.

                        Entendendo-se que o processo continha elementos para tomar uma decisão, proferiu-se despacho saneador/sentença (art. 510º nº 1 al. c) do CPC), que julgou a acção improcedente e absolveu a R. do pedido.

 

                        1-2- Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a A. de apelação para o Tribunal da Relação de Évora, tendo-se aí por acórdão de 30-6-2010, julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

                       

                        1-3- Irresignada com este acórdão, dele recorreu a A. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista excepcional pela Formação de Juízes a que alude o art. 721º A nº 3 do C.P.Civil, com efeito devolutivo.

                       

                        A recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:

                        1ª- No julgamento da presente revista deverão ser tidos em conta os dois documentos juntos com a apelação, que o Tribunal da relação de Évora pura e simplesmente ignorou, acrescendo assim o seu teor à matéria de facto considerada assente.

                        2ª- Todos os factos considerados assentes pelas instâncias dão-se aqui por integralmente reproduzidos.

                        3ª- Está provado que a única quota da sociedade "AA", Unipessoal, Lda à data da deliberação de distribuição dos alegados dividendos pertencia, em conjunto, à recorrida e aos seus dois filhos.

                        4ª- A recorrida deliberou sozinha a distribuição dos alegados lucros que atribuiu a ela mesma em exclusivo, enquanto alegada titular única da única quota da recorrente.

                        5ª- Os demais titulares da quota, não estiveram presentes, nem representados em assembleia, nem ficou provado que algo tivessem recebido em consequência de tal deliberação.

                        6ª- A recorrente só teve conhecimento da acta onde constava tal deliberação após lhe ter sido entregue o respectivo livro de actas, em 27/12/2007.

                        7ª- Da declaração unilateral de garantia prestada por todos os cedentes, recorrida e filhos, na escritura pública de cessão de quota, entre outras, consta:

                        «Que não se encontra pendente nem prevêem que venha a ser intentada qualquer acção que afecte o seu património ou a sua situação económico-financeira, com excepção do levantamento efectuado pelos primeiros outorgantes dos saldos bancários e do saldo de caixa da sociedade existentes até 27 de Dezembro de 2007, a título de distribuição de dividendos».

                        8ª- De tal declaração não resulta qualquer manifestação de concordância com tal deliberação, mas antes o reconhecimento de sobre tal deliberação pudesse vir a ser intentada acção judicial.

                        9ª- A declaração efectuada pelo gerente da cessionária, "“EE”, LDA", «Que tem conhecimento do levantamento já efectuado pelos Primeiros Outorgantes dos saldos bancários e do saldo de caixa da sociedade existentes até 27 de Dezembro de 2007, a titulo de distribuição de dividendos, facto a que não se opõe, em nome da sua representada», apenas vincula a sociedade Cessionária, sua representada e nunca a própria Recorrente, enquanto pessoa jurídica distinta daquela (art. 5° do C.S.C.)

                               10ª- A transferência bancária da conta da Recorrente para a conta da Recorrida no montante de 213.238,69 euros, para nesse mesmo dia pagar a sua divida à Recorrente no montante de 166.493, 16 €, tudo no dia imediatamente à data da celebração da escritura pública de cessão de quota é uma alteração relevante na situação económico-financeira da Recorrente.

                               11ª - Os cedentes declararam na escritura pública de cessão de quota ter levantado saldos bancários e saldo de caixa e não lucros distribuíveis.

                               12ª- Os cedentes declararam igualmente que efectuaram tais levantamentos de saldos bancários e saldo de caixa da sociedade existentes até 27 de Dezembro e não até Novembro de 2007, data a que alegadamente se reportou a deliberação de distribuição de bens da sociedade (cfr. Cópia da acta)

                               13ª- Os cedentes tiveram o cuidado de nunca referirem qual o valor levantado!

                               14ª- Não pode considerar-se que o teor da deliberação tomada pela Recorrida e constante da respectiva acta inserta no livro de actas da assembleia geral da sociedade não pode ser afastado pelo facto dos filhos e da Recorrida vir a declarar posteriormente numa escritura pública que efectuaram um levantamento, quando de tal acta e dos demais documentos juntos aos autos (extractos bancários) se conclui, de forma evidente, o contrário.

                               15ª - Não tem assim aplicação ao caso concreto o disposto no art. 222°, nº 1 do Código das Sociedades Comerciais.

                               16ª- Não houve pois qualquer ratificação e/ou consentimento dos filhos da Recorrida, co-titulares da quota única da Recorrente, pelo que foi violado o art. 31°, n° 1 do Código das Sociedades Comerciais, o que determina a nulidade da deliberação tomada pela Recorrida. Acresce que,

                               17ª- Refere o acórdão recorrido que, "Quanto ao mérito da deliberação da distribuição de dividendos, registe-se que a mesma teve em consideração o balancete até Novembro de 2007 e resultados transitados".

                               18ª- Dos artigos arts. 32° e 33° do Código das Sociedades Comerciais resulta, em síntese, que não podem ser distribuídos aos sócios quaisquer bens da sociedade quando a situação líquida desta for inferior à soma do capital e de reservas não distribuíveis.

                               19ª- Ou seja, se o balanço (sublinhado nosso) evidenciar que o património líquido é inferior à soma do capital social com as reservas, a sociedade está, em termos patrimoniais, numa situação de prejuízo, pelo que não poderá distribuir dividendos aos sócios. Se o contrário se verificar, uma vez que a situação é constatada em face do balanço (que é o documento contabilístico que evidencia a situação patrimonial da sociedade), pode a sociedade ter lucros de balanço de duas proveniências: lucros de exercício; e reservas distribuíveis, ou seja, lucros entesourados em exercícios anteriores sob a forma de reservas susceptíveis de serem distribuídas pelos sócios.

                               20ª- Em regra, os lucros só podem ser distribuídos anualmente, após a aprovação das contas do exercício findo (para as sociedades anónimas, permite-se, em certos termos, a distribuição antecipada de dividendos - arts 297° e 534°)

                               21ª- Igualmente não deverá ser executada a deliberação de distribuição de lucros, quando eles formalmente existam à face do balanço apresentado, mas este assente em contas viciadas ou, ainda, quando haja uma alteração superveniente na situação patrimonial da sociedade que torne, naquele momento, a deliberação inválida (cfr. arts 31°, nº2 c), CSC).

                               22ª- No caso concreto tratou-se de uma deliberação de lucros disponíveis (reservas voluntárias existentes na sociedade) e não do lucro de exercício (ainda que antecipadamente), pelo que quer a sua existência quer o seu montante deveriam constar ou resultar expressamente de um balanço da sociedade especialmente elaborado para o efeito. (cfr. Art 33°, nº 3 do CSC)

                               23ª- Ficou expressamente provado tal não se verificou!

                               24ª- Acresce que, na deliberação sob apreciação deveriam ter sido expressamente mencionadas quais as reservas distribuídas, no todo ou em parte, quer isolada quer conjuntamente com os lucros de exercício (art. 33°, nº 4 do CSC). O que também não se verificou!

                               25ª - Para se determinar, se com referência a Novembro de 2007, qual a verdadeira e real situação económico-financeira da Recorrente e nomeadamente que montantes concretos eventualmente provenientes dos alegados resultados transitados existiam em Novembro de 2007, tal deveria ser atestado através de um Balanço especifico para efeitos da deliberação que deveria ter ficado anexo à acta como parte integrante da deliberação! O que também não aconteceu!

                               26ª - A Recorrida, do modo como procedeu, não podia nem deveria ter tomado nem executado a deliberação, (cfr. Art. 31º, n° 2 do CSC.).

                               27ª - Segundo o art. 34°, n° 1, do C.S.C., os sócios devem restituir à sociedade os bens que dela tenham recebido com violação do disposto na lei, e aqueles que tenham recebido a título de lucros ou reservas importâncias cuja distribuição não era permitida pela lei, designadamente pelos arts 32° e 33° são obrigados à restituição se conheciam a irregularidade da distribuição ou, tendo em conta as circunstâncias, deviam não a ignorar.

                               28ª - A Recorrida está, assim, obrigada, enquanto ex-sócia, a proceder à sua restituição o valor recebido da Recorrente, ou seja, a quantia de 213.238,69 €, respectivamente, nos termos dos arts. 31°, nº 1 e 2, e 34°, nº1 do C.S.C.

                               29ª- Pois, no caso de se verificar uma distribuição ilícita de bens, os sócios que receberam qualquer bem terão de restituir - nos termos do art. 34° do C.S.C. - tudo o que receberam, podendo a restituição dos bens em causa ser pedida quer pela sociedade quer pelos credores sociais (art. 34° nº 1,3 e 4 CSC).

                               30ª- Encontra-se provado que a R. teve conhecimento de todos os factos, isto é da irregularidade/invalidade da deliberação, estando assim de má-fé.

                               31ª- A utilização da personalidade jurídica societária para subtrair o património à garantia geral e comum dos credores configura igualmente abuso de direito previsto no art. 334° do Código Civil.    

                               32ª - Refira-se, finalmente, que nunca a Recorrente ou qualquer seu gerente, em sua representação, aceitou como boa a deliberação tomada pela Recorrida.

                               33ª- Face ao exposto, tem a Recorrente direito de exigir da Recorrida a quantia ilicitamente recebida no valor de 213.238,69 euros, bem como aos respectivos juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

                               34ª- Pelo que fica dito tanto no corpo das presentes alegações como, mais sumariamente, nas conclusões, deve ser dado integral provimento ao presente recurso, devendo o acórdão recorrido ser totalmente revogado e a acção ser julgado totalmente procedente, devendo a Recorrida ser condenada no pedido nos termos referidos em 33 das conclusões.

                               Nestes termos, e nos demais de Direito, deve ser dado integral provimento ao presente recurso, devendo a Recorrida ser condenada nos pedidos, devendo consequentemente ser revogado o acórdão recorrido, só assim fazendo V. Exas., Venerandos Conselheiros, a tão costumada Justiça!!

                         A recorrida contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação do acórdão recorrido.

                        Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

                       

                        II- Fundamentação:

                        2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº 1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).

                        Nesta conformidade, serão as seguintes as questões a apreciar e decidir:

                        - Se deve ser dada como provada a matéria de facto constante dos documentos juntos pela recorrente com as alegações da apelação.

                        - Se a deliberação social de distribuição de lucros é nula, nos termos do art. 31º nº 1 do C.S.Comerciais.

                        - Se a mesma deliberação e a correspondente distribuição dos lucros da sociedade, viola o princípio da intangibilidade do capital social.

                        - Se a R. agiu com abuso de direito.

                       

                        2-2- Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:

                        1- A autora é uma sociedade por quotas unipessoal que tem como objecto social o comércio de produtos farmacêuticos, perfumaria e acessórios e o capital social no valor de 5.000 euros representado por uma única quota com o valor nominal de 5.000 euros.

                        2- A ré foi entre 27 de Agosto de 2004 e 17 de Dezembro de 2007 a única sócia da autora e entre 27 de Agosto de 2004 e 2 de Janeiro de 2008 a sua única gerente.

                        3- A ré foi casada com “HH”no regime de comunhão geral de bens.

                        4- Entre 18 de Dezembro de 2007 e 2 de Janeiro de 2008 a titularidade da única quota representativa do capital social da autora encontrava-se registada, em comum e sem determinação de parte ou direito, em virtude da morte do marido da ré, a favor da ré e dos seus filhos “CC” e “DD”.

                        5- Actualmente a titularidade da referida quota encontra-se registada a favor da sociedade “EE” - Farmácias Lda, com o número de pessoa colectiva ..., com sede na Rua … que a adquiriu em 27 de Dezembro de 2007.

                        6- No dia 20 de Dezembro de 2007, pelas 18 horas, na Rua 1° de Maio nº 7, em V....., a ré reuniu sozinha a assembleia-geral da autora.

                        7- Da acta desta assembleia, assinada pela ré, consta o seguinte:

                        «A assembleia geral realizou-se com dispensa das formalidades legais, nos termos do artigo cinquenta e quatro do Código das Sociedades Comerciais, encontrando-se presente a sócia detentora da totalidade do capital social, “BB” que assumiu a presidência da mesma, com o seguinte ponto único da ordem de trabalhos:

Ponto único - Apreciar e votar a distribuição de lucros disponíveis da sociedade à sócia única, “BB”.

Estando em condições de deliberar validamente, e uma vez aberta a sessão, a sócia única analisou o balancete das contas até Novembro de 2007, tendo constatado que a sociedade tem a quantia de duzentos e treze mil, duzentos e trinta e oito euros e sessenta e nove cêntimos em resultados transitados, pelo que decidiu aprovar a distribuição de lucros disponíveis da sociedade à sócia única, “BB”, no valor de duzentos e treze mil, duzentos e trinta e oito euros e sessenta e nove cêntimos.

Nada mais havendo a tratar ou a decidir foi dada por encerrada a sessão cerca das dezoito horas e trinta minutos, tendo sido lavrada a presente acta que é assinada pela sócia única, “BB”».

                        8- Em 26 de Dezembro de 2007 a ré, como gerente da autora, procedeu à transferência bancária da conta da autora no BPI para si mesma da quantia de 213.238,69 euros.

                        9- Não foi aprovado qualquer balanço da sociedade para efeitos de distribuição de dividendos nem ficou qualquer balanço anexo à referida acta.

                        10- A ré sabia que a quota única da sociedade era titulada em comum e sem determinação de parte ou direito pela própria e pelos seus dois filhos “CC” e “DD”.

                        11- Por escritura pública outorgada no dia 27 de Dezembro de 2007 no Cartório Notarial de ..., em que foram primeiros outorgantes “BB”, “CC” e “DD” e como segundo outorgante “II” na qualidade de gerente da sociedade “EE” - Farmácias, Lda, foi declarado, para além do mais, o seguinte:

Pelos primeiros outorgantes foi declarado:

Que são os únicos sócios da sociedade unipessoal por quotas com a firma AA, Unipessoal, Lda, com o capital social integralmente realizado de cinco mil euros, representado por uma única quota, de igual valor nominal, que lhes pertence, em comum e sem determinação de parte ou direito e que cedem à sociedade representada pelo segundo outorgante, dita “EE” - Farmácias, Lda, aquela referida quota, com o valor nominal de cinco mil euros, pelo preço de um milhão seiscentos e cinquenta e cinco mil quatrocentos e oito euros, já recebido da cessionária;

Que desde vinte e dois de Novembro até à presente data não se verificaram alterações relevantes na situação económica - financeira da sociedade;

Que nesta data foram entregues à sociedade representada do segundo outorgante [a] o livro de actas da assembleia devidamente selado e actualizado, no qual se contém todas as deliberações relevantes e [b] todos os demais elementos relativos à sociedade AA, Unipessoal, Lda, e ao estabelecimento de farmácia, incluindo todos os livros, registos e documentos contabilísticos; e

Que não se encontra pendente nem prevêem que venha a ser intentada qualquer acção que afecte o seu património ou a sua situação económica ­financeira, com excepção do levantamento efectuado pelos primeiros outorgantes dos saldos bancários e do saldo de caixa da sociedade existentes até 27 de Dezembro de 2007, a título de distribuição de dividendos.

Pelo segundo outorgante foi declarado:

Que, para a sua representada, aceita a presente cessão da quota nos exactos termos atrás referidos e o presente negócio nos termos exarados e pressupostos e condições acima mencionados que foram essenciais para as partes contratarem, o que aqui reconhecem por acordo;

Que tem conhecimento do levantamento já efectuado pelos primeiros outorgantes dos saldos bancários e do saldo de caixa da sociedade existentes até 27 de Dezembro de 2007, a título de distribuição de dividendos, facto a que expressamente não se opõe, em nome da sua representada;

Nomear-se a ele próprio, segundo outorgante, como gerente da sociedade.

                        12- No dia 18 de Janeiro de 2008 a ré entregou à autora um cheque bancário remetido à ordem do IGCP no valor de € 42.647,73 para pagamento da retenção na fonte de IRS relativa à referida distribuição de lucros.

                        13- Depois da entrega do cheque a autora efectuou o correspondente pagamento tendo entregue cópia da respectiva liquidação à ré.

                        14- Os filhos da ré “CC” e “DD” concordaram com a distribuição de dividendos.

                        15- No dia 27 de Dezembro de 2007 a autora tinha o saldo bancário no BPI de € 51.411,14.

                        16- Para além deste saldo a autora tinha outras contas bancárias, stock, recheio, móveis, utensílios, mercadorias, créditos resultantes da facturação já emitida, o alvará de farmácia e as licenças respectivas.

                        17- A autora apresentou lucros no final do ano de 2007.

                        18- Antes de proceder à distribuição de dividendos a ré pagou à autora a dívida que tinha para com esta no valor de € 166.493,16.

                        19- A existência de reservas constavam do balancete que serviu de base para a ré tomar a deliberação elaborado pelo técnico oficial de contas e do balanço do ano transacto e que foram entregues à sociedade “EE” ­Farmácias, Lda.------------------

                       

                        2-3- A recorrente na presente revista começa por sustentar que neste julgamento deverão ser tidos em conta os dois documentos juntos com a apelação, que o Tribunal da Relação de Évora ignorou acrescendo, assim, o seu teor, à matéria de facto considerada assente.

                        A pretensão da recorrente é, manifestamente, infundada porque, como se sabe, o STJ é um tribunal de revista e, nesta conformidade, os seus poderes em sede de apreciação/alteração/ampliação da matéria de facto, são muito restritos. Assim, o Supremo só poderá proceder a essa análise/modificação/aumento nas limitadas hipóteses contidas nos arts. 722º nº 2, 729º nºs 2 e 3 do C.P.Civil, isto é, quando a decisão das instâncias vá contra disposição expressa da lei que exija certa prova para a existência do facto ou fixe a força de determinado meio de prova (prova vinculada), quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, ou quando ocorrem contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, situações que não ocorrem no presente caso. Trata-se, no essencial, de consagrar o princípio de que a competência jurisdicional do Supremo Tribunal, se limita à apreciação da matéria de direito, como decorre do art. 26º da Lei 3/99 de 13/1 (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais) segundo o qual “fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito”.

                        Daqui resulta que, fora as ditas hipóteses, compete ao STJ somente aplicar definitivamente o regime jurídico adequado, face aos factos matérias fixados pelas instâncias (art. 729º nº 1 do C.P.Civil).

                        Por outro lado, os documentos servem para demonstrar matéria factual alegada pelas partes, não constituindo em si próprios factos. Se a recorrente entendia que os documentos em causa encerravam e provavam circunstâncias factuais relevantes para sustentar a sua posição processual, deveria ter alegado, em devido tempo, esse circunstancialismo factual, apontando os escritos como susceptíveis de realizar a correspondente prova.

                        Significa isto que para a decisão jurídica do pleito, este Supremo Tribunal apenas levará em linha de conta a factualidade assumida pelas instâncias.

                       

                        2-4- Entrando na apreciação do mérito jurídico da acção, a recorrente sustenta que a recorrida deliberou sozinha a distribuição dos alegados lucros que atribuiu a ela mesma em exclusivo, enquanto titular única da única quota da recorrente, sendo que os demais titulares da quota, não estiveram presentes, nem representados em assembleia, nem ficou provado que algo tivessem recebido em consequência de tal deliberação. Por isso, no seu prisma, a deliberação isoladamente tomada pela R. é nula, nos termos do art. 31º nº 1 do C.S.Comerciais (diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem).

                        Estabelece esta disposição que “salvo o caso de distribuição antecipada de lucros e outros expressamente previstos na lei, nenhuma distribuição de bens sociais, ainda que a título de distribuição de lucros de exercício ou de reservas, pode ser feita aos sócios, sem ter sido objecto de deliberação destes”.

                        Fica, pois, claro perante este dispositivo que a distribuição de bens sociais, deve ser (sempre) precedida de deliberação dos sócios.

                        Ora, no caso vertente, os factos provados demonstram que existiu deliberação social no sentido da distribuição de lucros sociais. Com efeito provou-se que no dia 20 de Dezembro de 2007, a R. reuniu sozinha a assembleia-geral da A. onde, considerando estar em condições de deliberar validamente, a R. (sócia) analisou o balancete das contas até Novembro de 2007, tendo constatado que a sociedade tinha a quantia de duzentos e treze mil, duzentos e trinta e oito euros e sessenta e nove cêntimos em resultados transitados, pelo que decidiu aprovar a distribuição de lucros disponíveis da sociedade à sócia única, “BB”, no valor de duzentos e treze mil, duzentos e trinta e oito euros e sessenta e nove cêntimos.

                        A questão que a recorrente coloca diz respeito ao facto de a deliberação ter sido tomada, não por todos os sócios, mas apenas pela sócia "BB".

                        Provou-se que, na altura dos factos em evidência, o capital social da A. se encontrava registado, em comum e sem determinação de parte ou direito, em virtude da morte do marido da R., a favor desta e dos seus filhos “CC” e “DD”.

                        Portanto também estes, como titulares do capital social, deveriam ter intervindo na deliberação social.                        

                        Como não intervieram, qual será a irregularidade a considerar?

                        É esta a questão essencial que a recorrente coloca neste âmbito, sustentando que o acto deve ser fulminado com a sua nulidade.

                        As nulidades das deliberações dos sócios, estão previstas nas alíneas do nº 1 do art. 56º[1]. Ora aí, patentemente, não será possível integrar a pretensa irregularidade resultante da falta de intervenção dos sócios na deliberação em causa (vide as diversas alíneas da disposição).

                        Sendo de afastar a nulidade da deliberação fica-nos a sua anulabilidade.

                        Igualmente por falta de elementos fácticos, não vemos que a conduta em questão possa ou deva ser integrada numa das hipóteses a que aludem as alíneas do nº 1 do art. 58º[2].

                        Mas mesmo que se pudesse entender ser possível integrar a conduta em causa, no que dispõe o art. 58º nº 1 al. b)[3], deve dizer-se que os sócios não presentes na deliberação concordaram com a distribuição de dividendos (facto referido acima sob o nº 14).        

                        Assim sendo, somos em crer que mesmo a existir essa irregularidade, a mesma deveria ter-se como sanada[4].

                        Sublinhe-se ainda que, como decorre, do art. 55º, mesmo nas deliberações que a lei exige o consentimento de determinado sócio (o que não sucederá no presente caso, dado que o dito art. 31º nº 1, fala apenas em deliberação de sócios e já não em consentimento), a ineficácia em relação a esse sócio e aos restantes, fica ultrapassada a partir do momento em que ele der o seu acordo, expressa ou tacitamente.

                        É certo que a recorrente defende, através da argumentação acima referida (nas suas conclusões recursais), que não houve qualquer ratificação e/ou consentimento dos filhos da recorrida, co-titulares da quota única da recorrente, pelo que foi violado o referido art. 31° nº 1. A esta objecção diremos que, como acima já se referiu, o STJ, como tribunal de revista, não conhece, em regra, de matéria de facto. Nesta conformidade, tem este Supremo que aceitar a factualidade assumida pelas instâncias (designadamente a referida acima sob o nº 14), ou seja, que os sócios não presentes na deliberação concordaram com a distribuição de dividendos, pelo que a posição da recorrente carece de sentido.

                        Mas mesmo que não fosse como acima se referiu, a pretensão da recorrente não poderia igualmente proceder, já que a respectiva acção de anulação da deliberação social deveria ser (sempre) instaurada pelos interessados contra a própria sociedade, como resulta do art. 60 nº 1, carecendo, assim, de sentido, a propositura da presente acção por quem deveria ser demandada.

                       

                        2-5- Sustenta, por outro lado, a recorrente que a deliberação em causa padece de ilegalidade substancial, por violação do princípio da intangibilidade social. É que, no seu entender, dos arts. 32° e 33° resulta, em síntese, que não podem ser distribuídos aos sócios quaisquer bens da sociedade quando a situação líquida desta for inferior à soma do capital e de reservas não distribuíveis. Ou seja, se o balanço evidenciar que o património líquido é inferior à soma do capital social com as reservas, a sociedade está, em termos patrimoniais, numa situação de prejuízo, pelo que não poderá distribuir dividendos aos sócios. Se o contrário se verificar, uma vez que a situação é constatada em face do balanço, pode a sociedade ter lucros de balanço de duas proveniências: lucros de exercício e reservas distribuíveis, ou seja, lucros entesourados em exercícios anteriores sob a forma de reservas susceptíveis de serem distribuídas pelos sócios. Em regra, os lucros só podem ser distribuídos anualmente, após a aprovação das contas do exercício findo. Igualmente não deverá ser executada a deliberação de distribuição de lucros, quando eles formalmente existam à face do balanço apresentado, mas este assente em contas viciadas ou, ainda, quando haja uma alteração superveniente na situação patrimonial da sociedade que torne, naquele momento, a deliberação inválida (art. 31°, nº 2 c)).

                        No caso concreto, ainda segundo a recorrente, tratou-se de uma deliberação de lucros disponíveis (reservas voluntárias existentes na sociedade) e não do lucro de exercício (ainda que antecipadamente), pelo que quer a sua existência quer o seu montante deveriam constar ou resultar expressamente de um balanço da sociedade especialmente elaborado para o efeito (art. 33°, nº 3), tendo ficado expressamente provado que tal se não verificou. Acresce que, na deliberação sob apreciação, deveriam ter sido expressamente mencionadas quais as reservas distribuídas, no todo ou em parte, quer isolada quer conjuntamente com os lucros de exercício (art. 33°, nº 4), o que também não se verificou. Para se determinar, se com referência a Novembro de 2007, qual a verdadeira e real situação económico-financeira da recorrente e nomeadamente que montantes concretos eventualmente provenientes dos alegados resultados transitados existiam em Novembro de 2007, tal deveria ser atestado através de um balanço especifico para efeitos da deliberação que deveria ter ficado anexo à acta como parte integrante da deliberação, o que também não aconteceu. A recorrida, do modo como procedeu, não podia nem deveria ter tomado nem executado a deliberação, (art. 31º nº 2), pelo que segundo o art. 34º nº 1, deve restituir à sociedade os bens que dela tenham recebido com violação do disposto na lei, designadamente pelos arts 32° e 33°. A recorrida está, assim, obrigada, enquanto ex-sócia, a proceder à sua restituição o valor recebido da recorrente, ou seja, a quantia de 213.238,69 €, respectivamente, nos termos dos arts. 31°, nº 1 e 2, e 34°, nº 1.

                        Esta questão já havia sido levantada na apelação tendo o douto acórdão recorrido respondido a ela, dizendo, designadamente, que “quanto ao mérito de deliberação da distribuição de dividendos, registe-se que a mesma teve em consideração o balancete até Novembro de 2007 e resultados transitados. E havendo distribuição de lucros precedida de deliberação social, como aqui aconteceu, observou-se o estatuído no art. 31º do CSC. Há, no entanto, que respeitar o princípio da intangibilidade do capital consagrado no art. 32º do CSC… No que concerne às reservas há que ter em conta o estatuído no art. 218º do CSC. Neste domínio há que considerar que sendo o capital social da autora de € 5.000,00, a reserva legal é de € 2.500,00. Ora, considerando que a autora ficou na conta bancária com um saldo muito superior ao valor da soma do capital social e reserva legal (€ 51.411,14), podemos concluir como na sentença recorrida que a deliberação de distribuição dos lucros transitados do exercício de 2006 não violou a intangibilidade social”.

                        Quer dizer, o douto acórdão recorrido, pelas razões que referenciou, concluiu que a deliberação em causa não violou, contra o que defende a recorrente, o princípio da intangibilidade do capital social.

                        Estabelece o art. 32º que “sem prejuízo do preceituado quanto à redução do capital social, não podem ser distribuídos aos sócios bens da sociedade quando a situação líquida desta, tal como resulta das contas elaboradas e aprovadas nos termos legais, for inferior à soma do capital e das reservas que a lei ou o contrato não permitem distribuir aos sócios ou se tornasse inferior a esta soma em consequência da distribuição”.

                        Trata pois esta disposição dos limites à distribuição de bens aos sócios, estabelecendo como princípio geral, a impossibilidade de distribuição de bens aos sócios quando, de harmonia com as contas elaboradas e aprovadas, a situação líquida da sociedade seja inferior à soma do capital e das reservas que a lei ou o contrato não permitem distribuir aos sócios ou se tornasse inferior a esta soma em consequência da distribuição.

                        De sublinhar, desde logo, que se desconhece se consta algo sobre o assunto do contrato social, já que as partes nada referiram sobre o tema. Porém, a lei, designadamente o art. 218º, para além de determinar a obrigatoriedade da constituição de uma reserva legal, estabelece[5] o limite mínimo de reserva legal, num valor nunca inferior a 2500 €.

                        Aquela disposição (o art. 32º), a nosso ver, não tem aplicação ao caso vertente, visto que ela diz respeito à proibição de distribuição pelos sócios de bens da sociedade[6], o que não ocorreu aqui.

                        Quanto aos lucros e reservas não distribuíveis, estabelece o art. 33º que “1 - Não podem ser distribuídos aos sócios os lucros do exercício que sejam necessários para cobrir prejuízos transitados ou para formar ou reconstituir reservas impostas pela lei ou pelo contrato de sociedade. 2 - Não podem ser distribuídos aos sócios lucros do exercício enquanto as despesas de constituição, de investigação e de desenvolvimento não estiverem completamente amortizadas, excepto se o montante das reservas livres e dos resultados transitados for, pelo menos, igual ao dessas despesas não amortizadas. 3 - As reservas cuja existência e cujo montante não figuram expressamente no balanço não podem ser utilizadas para distribuição aos sócios. 4 - Devem ser expressamente mencionadas na deliberação quais as reservas distribuídas, no todo ou em parte, quer isoladamente quer juntamente com lucros de exercício.

                        De sublinhar desde logo que este dispositivo distingue claramente lucros, de reservas, proibindo a distribuição aos sócios de lucros do exercício que sejam necessários para cobrir prejuízos transitados ou para formar ou reconstituir reservas impostas pela lei ou pelo contrato de sociedade (nº 1). Ou seja, sempre que haja prejuízos transitados (de períodos anteriores), o quando sejam necessários para formar ou reconstituir as reservas imposta pela lei (ou pelo contrato de sociedade), os lucros não poderão ser distribuídos pelos sócios.

                        Proíbe também a disposição, a distribuição aos sócios de lucros do exercício enquanto as despesas de constituição, de investigação e de desenvolvimento não estiverem completamente amortizadas, excepto se o montante das reservas livres e dos resultados transitados for, pelo menos, igual ao dessas despesas não amortizadas (nº 2), disposição sem aplicação ao caso, dado que não estão aqui em causa (nem foram invocadas como impeditivas da distribuição de lucros) as despesas aí referenciadas.

                        Fica-nos, portanto, realizar uma melhor observação do disposto no nº 1 do dito artigo.

                        O capital da sociedade é de 5.000 €, sendo a reserva legal de 2.500 €.

                        Não se provou nem foi invocada a ocorrência de prejuízos transitados, pelo que, nesse aspecto, nada impedia a distribuição de lucros. Igualmente não se demonstrou que os lucros fossem necessários para formar ou reconstituir as reservas sociais imposta pela lei (ou pelo contrato de sociedade), pelo que não se encontra fundamentada a (pretendida pela A.) não distribuição pela sócia dos lucros da sociedade. Ao invés provou-se que a sociedade, no período em referência, tinha o saldo bancário no BPI de € 51.411,14, tendo para além deste saldo, outras contas bancárias e créditos resultantes da facturação já emitida, valores que, patentemente, ultrapassam (amplamente) o valores do capital social e da reserva legal.

                        Determina também o nº 3 do dito art. 33º a proibição da distribuição aos sócios das reservas cuja existência e cujo montante não figurem expressamente no balanço. Não se tratando neste caso de disposição de reservas (mas sim de lucros de exercício), o dispositivo não tem aqui aplicação. Pela mesma razão, o nº 4 da disposição (que também diz respeito à distribuição de reservas), igualmente deve ser afastado da situação vertente.

                        Sublinhe-se que, como acertadamente se refere na douta sentença de 1ª instância e como os factos provados evidenciam, a deliberação estabeleceu a distribuição de lucros (na forma de dividendos), não tendo determinado qualquer distribuição de reservas, pelo que toda a argumentação da recorrente, confundindo reservas com lucros, carece de sentido.

                        Não se vê, assim, que a distribuição dos lucros tenha violado o princípio da intangibilidade do capital social.

                        Mas mesmo que assim não fosse, a nosso ver, nunca a R. poderia ser condenada a restituir os lucros em questão.

                        Estabelece o art. 34º nº 1 que:

                        “1 - Os sócios devem restituir à sociedade os bens que dela tenham recebido com violação do disposto na lei, mas aqueles que tenham recebido a título de lucros ou reservas importâncias cuja distribuição não era permitida pela lei, designadamente pelos artigos 32.º e 33.º, só são obrigados à restituição se conheciam a irregularidade da distribuição ou, tendo em conta as circunstâncias, deviam não a ignorar. 2 - … 3 - … 4 - Cabe à sociedade ou aos credores sociais o ónus de provar o conhecimento ou o dever de não ignorar a irregularidade”.

                        Quer dizer, para o que aqui importa, a restituição de lucros ou reservas, cuja distribuição não é permitida pelos artigos 32º e 33º, deve ser efectuada pelos sócios, mas só se conhecessem a irregularidade da distribuição ou, tendo em conta as circunstâncias, devessem não a ignorar, cabendo à sociedade o ónus da prova do conhecimento pelo sócio, ou do dever de não ignorar, da incorrecção do procedimento.

                        Ora, no caso vertente, os factos dados como assentes são omissos sobre estes elementos, pelo também por aqui a pretensão da A., a quem cabia o ónus da prova, teria que improceder.

                           

                        2-6- Sustenta a recorrente, por fim, que a utilização da personalidade jurídica societária para subtrair o património à garantia geral e comum dos credores, configura igualmente abuso de direito previsto no art. 334° do Código Civil.  

                        Salvo o devido respeito pela opinião contrária, não se vê, quer no corpo das alegações, quer nas conclusões, que a recorrente, com argumentação fáctico/jurídica capaz, demonstre que a recorrida, ao actuar como actuou, tivesse abusado do seu direito.

                        A nosso ver, limitou-se a exercer o direito de sócia, direito que deriva do disposto no art. 21º nº 1 al. a), isto é, direito a quinhoar nos lucros da sociedade.

                        Sublinhe-se que, contra o que parece defender a recorrente, não se demonstrou que a recorrente tenha descapitalizado a sociedade.  A afirmação de que a R. subtraiu o património social à garantia geral e comum dos credores, carece de sentido, não só porque os factos provados tal não indiciam, mas também porque não se vê a validade da recorrente em falar e defender o interesse dos credores (que nem se sabe se existem).

                        O recurso improcede in totum.

                       

                        III- Decisão:

                        Por tudo o exposto, nega-se a revista, mantendo-se o douto acórdão recorrido.

                        Custas pela recorrente.


Lisboa, 10 de Maio de 2011

Garcia Calejo (Relator)
Helder Roque
Gregório Silva Jesus

___________________________________________

[1] Estabelece esta disposição:

1 - São nulas as deliberações dos sócios:

a) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios

tiverem estado presentes ou representados;

b) Tomadas mediante voto escrito sem que todos os sócios com direito de voto

tenham sido convidados a exercer esse direito, a não ser que todos eles tenham

dado por escrito o seu voto;

c) Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios;

d) Cujo conteúdo, directamente ou por actos de outros órgãos que determine ou

permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam
ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.
[2] Refere esta disposição que:

1 - São anuláveis as deliberações que:

a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos

termos do artigo 56.º, quer do contrato de sociedade;

b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir,

através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para

terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de

prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido

tomadas mesmo sem os votos abusivos;

c) Não tenham sido precedidas do fornecimento ao sócio de elementos mínimos
de informação.
[3] A argumentação da recorrente parece-nos mais conforme com o disposto nesta alínea do nº 1 do art. 58º
[4] Note-se a anulabilidade só poderá ser arguida, para além do órgão da fiscalização da sociedade (e contra esta) ou por qualquer sócio que não tenha votado no sentido que fez vencimento nem posteriormente tenha aprovado a deliberação, expressa ou tacitamente, como resulta do art. 59º nº 1 do C.S.C.

[5] Estabelece esse art. 218º o seguinte: “1 - É obrigatória a constituição de uma reserva legal.

2 - É aplicável o disposto nos artigos 295.º e 296.º, salvo quanto ao limite mínimo de reserva legal, que nunca será inferior a (euro) 2500”.
[6] Bens que a sociedade detenha e os haja adquirido para transformar e/ou comercializar.